Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0504/15.0BEMDL
Data do Acordão:12/16/2020
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:ANABELA RUSSO
Descritores:RECURSO
PRESSUPOSTOS
CONVOLAÇÃO
Sumário:I - O recurso consagrado no n.º 3 do artigo 280.º do CPPT possui natureza excepcional quer relativamente aos demais tipos de recurso previstos na legislação processual civil e processual administrativa quer quanto aos regimes consagrados nos n.ºs 1 e 2 do mesmo normativo.
II – A admissibilidade do recurso referido em I depende da verificação dos seguintes requisitos (i) identidade da questão fundamental de direito; (ii) ausência de alteração substancial da regulamentação jurídica; (iii) identidade de situações fácticas; (iv) antagonismo de soluções jurídicas entre a sentença de que se recorre e, no mínimo, quatro sentenças proferidas por qualquer outro tribunal tributário.
III - Os critérios interpretativos consagrados no artigo 9.º do Código Civil, em especial nos seus nºs 1 e 2, impõem que se conclua que o recurso previsto no n.º 3 do artigo 280.º do CPPT tem necessariamente por objecto sentenças ou acórdãos, pelo que não pode, ao abrigo dessa disposição, ser admitido recurso do despacho que decidiu a nota justificativa prevista e disciplinada nos artigos 25.º a 26.º do Regulamento das Custas Processuais.
Nº Convencional:JSTA000P26936
Nº do Documento:SA2202012160504/15
Data de Entrada:10/23/2020
Recorrente:AT – AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Recorrido 1:A...................
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral:
ACÓRDÃO


1. RELATÓRIO

1.1. A Autoridade Tributária e Aduaneira, inconformada com a decisão do Tribunal Administrativo e Fiscal de Mirandela - que indeferiu a reclamação por si apresentada à nota justificativa e discriminativa de custas de parte com fundamento em que, face ao preceituado no artigo 25.º, n.º 2, al. d) do Regulamento das Custas Processuais (RCP) a parte vencedora só está obrigada a indicar, em rubrica autónoma, as quantias pagas a título de honorários de mandatário se tais quantias forem inferiores ao montante de 50% previsto no artigo ao valor indicado na alínea c) do n.º 3 do artigo 26.º do mesmo Regulamento - veio, ao abrigo do artigo 280.º, n.º 3 do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), recorrer para o Supremo Tribunal Administrativo.

1.2. Após ser notificada da admissão do recurso, apresentou alegações, das quais extraímos as seguintes conclusões:

«1. Vem o presente recurso jurisdicional interposto, ao abrigo do n.º 3 do artigo 280.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário, do despacho do Tribunal Administrativo e Fiscal de Mirandela que decidiu indeferir a reclamação da nota justificativa de custas de parte, apresentada pela Fazenda Pública com fundamento na não comprovação das despesas suportadas pela parte vencedora a título de honorários do mandatário judicial da parte vencedora;

2. A questão de direito, ora controvertida, já foi alvo de pronúncia em outros tribunais de igual grau do Tribunal a quo em, pelo menos, cinco decisões judiciais (vide, sete documentos em anexo), externadas que foram em sentido oposto ao da decisão aqui sindicada;

3. O pagamento, à parte vencedora, do montante compensatório devido em razão das despesas que a mesma incorreu com os honorários do mandatário judicial encontra-se na dependência da comprovação do valor efetivamente suportado relativo àquelas despesas;

4. No caso dos presentes autos, a parte vencedora limitou-se a incluir na nota discriminativa e justificativa de custas de parte, o valor determinado nos termos da alínea c) do n.º 3 do artigo 26.º da RCP, sem fazer prova – ou sequer, alegando – do montante efetivamente incorrido a título de honorários com o respetivo mandatário judicial;

5. Inviabilizando, desse modo, aferir se as despesas efectivamente incorridas pela parte vencedora, a título de honorários do mandatário judicial, foram superiores, iguais ou inferiores ao valor que resulta da fórmula de cálculo da compensação, ínsita no artigo 26.º, n.º 3, alínea c), do RCP, que lhe seria devida por tais despesas;

6. É que, tal como sustenta a doutrina autorizada sobre a matéria, “A parte vencedora, no todo ou em parte, que tenha pago ao seu mandatário judicial dos referidos honorários, com base na nota elaborada pelo último, em conformidade com as regras estatutárias, deve juntar o respetivo recibo.” (in Regulamento das Custa Processuais, anotado e comentado, 2011, 3.ª Edição, Almedina, pág. 362)».

1.3. Não foram apresentadas contra-alegações.

1.4. A Exma. Procuradora-Geral-Adjunta, a quem os autos foram apresentados imediatamente após serem recebidos neste Supremo Tribunal Administrativo, emitiu parecer no qual, após transcrição dos artigos 25.º, al. d) e 26.º n.º3, al. c) do Regulamento das Custas Processuais (RCP), concluiu pela procedência do recurso uma vez que a “nota discriminativa tem e deve ser transparente por não se tratar de um valor sem justificação, mas só podem ser reclamados os valores que se enquadram dentro do circunstancialismo previsto no artigo 26º, nº 3 do RCP».

1.5. Cumpre, agora, decidir.

2. OBJECTO DO RECURSO

2.1. Como é sabido, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, a intervenção do Tribunal ad quem é especialmente delimitada pelo teor das conclusões que finalizam as alegações do recurso jurisdicional apresentado [artigo 635.º do Código de Processo Civil (CPC)].

Essa delimitação do objecto do recurso jurisdicional, na sua vertente negativa, permite concluir se o recurso abrange tudo o que na sentença foi desfavorável ao Recorrente ou, se este, expressa ou tacitamente, se conformou com parte das decisões de mérito proferidas quanto a questões por si suscitadas (artigos 635.º, n.º 3 e 4 do CPC), situação em que não podem ser reapreciadas pelo Tribunal ad quem. Na sua vertente positiva, a delimitação do objecto do recurso, especialmente nas situações de recurso para o Supremo Tribunal Administrativo como é o caso, constitui ainda o suporte necessário à fixação da sua própria competência, nos termos em que esta surge definida pelos artigos 26.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF) e 280.º e seguintes do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT).

2.2. Atento o que ficou exposto, são duas as questões que este recurso suscita:

(I) aferir se no caso concreto estão verificados os pressupostos de admissibilidade do recurso consagrados no artigo 280.º, n.º 3 do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT).

(II) decidir se a parte vencedora que pretende beneficiar do direito consagrado no artigo 26.º, n.º 3, al. c) do Regulamento das Custas Processuais (RCP) tem de comprovar documentalmente que pagou honorários ao seu mandatário e o valor que despendeu a esse título, independentemente desse valor ser inferior ou superior a 50% do somatório das taxas de justiça pagas por ambas as partes.

3. Fundamentação de direito

3.1. Vejamos, pois, o que nos oferece dizer sobre as questões suscitadas pela Recorrente, começando por transcrever o teor do despacho recorrido:

«Reclamação de fls. 345-348 (SITAF)

De acordo com o voto de vencido no acórdão do STA de 17/12/2019, Proc.0906/14.0BEVIS-S1, que aqui se segue, “As custas de parte são um conceito normativo que corresponde, não a tudo quanto a parte vencedora despendeu com o processo, mas apenas àquela parte do que, tendo sido despendido, o CPC e o RCP permitem que a parte recupere em virtude de ter obtido vencimento (total ou parcial) na causa e na medida desse vencimento (cfr. arts. 529.º, n.º 4, e 533.º, do CPC). Nelas se inclui a compensação à parte vencedora das despesas suportadas com honorários do mandatário judicial por ela constituído, compensação que a lei computa em 50% do somatório das taxas de justiça pagas pela parte vencida e pela parte vencedora, a menos que o valor efectivamente pago a título de honorários seja inferior àquele [cfr. art. 533.º, n.º 2, alínea d), e art. 26.º, n.ºs 3, alínea c), e 5, do RCP].

A meu ver, nem o elemento literal (sendo este o ponto de partida e o limite da actividade hermenêutica) nem qualquer outro elemento interpretativo permitem extrair da lei, designadamente do RCP, o sendo de que se exige à parte vencedora que tenha constituído mandatário judicial, em ordem a obter da parte vencida a compensação legalmente devida pelas despesas com honorários do mandatário judicial, a comprovação do pagamento dos honorários a este pagos e, muito menos, mediante a apresentação do respectivo recibo; exige-se-lhe apenas a apresentação da nota discriminativa e justificativa das custas de parte. Essa compensação, que consta da condenação em custas [cfr. arts. 527.º, n.º 1, 529.º, n.º 1 e 607.º, n.º 6, todos do CPC, e art. 26.º, n.º 1, do RCP], será de 50% do somatório das taxas de justiça pagas pela parte vencida e pela parte vencedora, a menos que os honorários não tenham atingido esse valor, caso em que deverá ser inscrito o seu efectivo valor em rubrica autónoma na nota de custas de parte a apresentar pela parte vencedora, nos termos da alínea c) do n.º 2 do art. 25.º do RCP. (sublinhado nosso).

Note-se que a apresentação da nota justificativa e discriminativa de custas de parte não equivale a um pedido de condenação da parte vencida, designadamente dos honorários suportados ou de parte deles (como parece resultar da reiterada referência a “honorários peticionados” feita no acórdão), em que competiria ao autor a alegação e comprovação dos factos constitutivos do seu direito. Essa nota visa tão-só discriminar e liquidar a responsabilidade que resulta da já proferida condenação em custas e interpelar o devedor para o pagamento.

A interpretação adoptada no acórdão cria por via jurisprudencial mais um requisito para percepção das custas de parte. Que esse requisito é salvo o devido respeito, manifestamente impertinente resulta do facto de o mesmo não poder ser observado em situações como aquelas em que o mandato judicial é exercido no âmbito de um contrato de trabalho ou em regime de avença, situações em que a parte vencedora não terá como comprovar a relação directa entre os pagamentos efectuados ao mandatário judicial e o concreto processo. (sublinhado nosso).

A interpretação adoptada no acórdão dá também origem a uma intolerável situação de desigualdade, na medida em que por certo ninguém sustentará a exigência de qualquer comprovativo de pagamento quando a compensação a título de custas de parte for devida pelo patrocínio de entidades públicas por licenciado em direito ou em solicitadoria com funções de apoio jurídico, que a lei faz equivaler, para esse efeito, à constituição de mandatário judicial (cfr. art. 25.º, n.º 3, do RCP).

Poderá também questionar-se, pelo menos no que respeita às pessoas singulares, se a exigência de revelação do montante dos honorários pagos ao mandatário judicial não constituirá uma injustificada intromissão no domínio da esfera privada dos cidadãos.

Finalmente, a interpretação adoptada no acórdão parece transformar o incidente de reclamação da nota justificativa (que, a meu ver, tem o seu âmbito delimitado à verificação da medida da responsabilidade, mediante aferição da correcção da liquidação efectuada pela parte vencedora) numa verdadeira “acção dentro de uma acção”, em que se poderia discutir não só o pagamento, como até o valor dos honorários pagos pela contraparte – eventualmente, com alegação e exigências de prova mais complexas do que a própria acção a que respeitam as custas de parte – numa solução legislativa que, manifestamente, não pode ter sido querida pelo legislador.

Se, porventura, a parte vencida souber (e a AT, aqui reclamante, sempre saberá se foi ou não emitido recibo e por que valor) que o valor dos honorários efectivamente pago pela parte vencedora ao seu mandatário não atingiu 50% do somatório das taxas de justiça pagas pela parte vencida e pela parte vencedora e se na nota discriminativa não foi apresentado aquele valor [como o impõe a alínea c) do n.º 2 do art. 25.º do RCP], sempre poderá recusar o pagamento e, se o credor avançar com a execução, poderá discutir o montante efectivamente pago a título de honorários em sede de oposição à execução (cfr. art. 731.º do CPC). Nem se diga que tal não será possível por o título executivo ser uma sentença. É que o título executivo neste caso é compósito, integrado pela sentença condenatória e pela certidão da nota discriminativa (que liquida a responsabilidade por custas de parte) e só aquela tem os seus fundamentos de oposição limitados pelo art. 729.º do CPC.”

Assim, de acordo com o art.º 26.º, n.º 3, al. c) do RC P, a parte vencida é condenada ao pagamento de 50 % do somatório das taxas de justiça pagas pela parte vencida e pela parte vencedora, para compensação da parte vencedora face às despesas com honorários do mandatário judicial, sempre que seja apresentada a nota referida na alínea d) do n.º 2 do artigo anterior.

Este preceito (art.º 25.º, n.º 2, al. d) dispõe o seguinte:

“2 - Devem constar da nota justificativa os seguintes elementos:

(…)

d) Indicação, em rubrica autónoma, das quantias pagas a título de honorários de mandatário ou de agente de execução, salvo, quanto às referentes aos honorários de mandatário, quando as quantias em causa sejam superiores ao valor indicado na alínea c) do n.º 3 do artigo 26.º;

(…)”

Portanto, e apesar de não fazer explicitamente menção de que os honorários suportados superam o montante de 50 % do somatório das taxas de justiça pagas pela parte vencida e pela parte vencedora, tem se entender que, face ao disposto no art.º 25.º, n.º 2, al. d) do RCP citado, a parte vencedora não está obrigada a indicar, em rubrica autónoma, as quantias pagas a título de honorários de mandatário, só estando obrigada a indicar tais quantias quando elas sejam inferiores.

Pelo exposto indefere-se o requerido

Custas pela Requerente

Notifique».

3.2. Posto isto, e passando de imediato à apreciação das questões colocadas pela ordem porque ficaram enunciadas no ponto 2. deste acórdão, são de julgar verificados os pressupostos de admissibilidade do recurso interposto e juridicamente suportado no artigo 280.º, n.º 3 do CPPT?

Entendemos que não.

Considerando que os fundamentos da resposta já adiantada são integralmente idênticos aos que ficaram exarados no acórdão proferido por esta Secção de Contencioso Tributário, em julgamento realizado por esta mesma formação, proferido a 28-10-2020, no processo n.º 279/18.1BEMDL, será por referência a esse acórdão, por nós relatado, que decidiremos o presente recurso.

Sendo assim, comecemos por transcrever a norma em que a Recorrente fundou este recurso - artigo 280.º n.º 3 do CPPT:

«Para além dos casos previstos na lei processual civil e administrativa, é sempre admissível recurso, independentemente do valor da causa e da sucumbência, de decisões que perfilhem solução oposta relativamente ao mesmo fundamento de direito e na ausência substancial de regulamentação jurídica, com mais de três sentenças do mesmo ou de outro tribunal tributário.»

A simples leitura deste preceito permite que se extraiam de imediato dois tipos de conclusões.

Por um lado, que se conclua que estamos perante uma regulamentação excepcional, quer porque o legislador destacou que o meio de reacção neste normativo acrescia aos demais recursos “previstos na lei processual civil e administrativa”, quer porque o legislador, antes mesmo de enunciar os pressupostos de que dependia a admissibilidade desse recurso, vincou claramente que a sua admissão não dependia “do valor da causa e da sucumbência”. Foi, de resto, com este carácter de excepcionalidade que a doutrina e a jurisprudência desde sempre o conformaram.

Por outro, que se identifique o objectivo do legislador processual fiscal com a consagração deste recurso excepcional como sendo o de regular de forma especial a sindicância do julgamento de direito de determinadas decisões judiciais, ou seja, das decisões que, sem que ocorra uma alteração do quadro jurídico vigente, vêm a perfilhar uma solução de direito oposta à vertida em mais de três sentenças proferidas pelo mesmo ou outro tribunal tributário.

A opção legislativa pela consagração deste recurso, que se afasta de forma impressiva dos critérios ou pressupostos de admissibilidade estabelecidos para os recursos jurisdicionais ordinários e que apresenta também acentuadas particularidades (formais e substantivas) relativamente aos pressupostos exigíveis para a admissão de recurso de uniformização de jurisprudência (cfr. artigo 284.º do CPPT), tem, no entanto, de comum com o último recurso referido constituir uma via de concretização do princípio constitucional de igualdade de tratamento imanente ao princípio da justiça constitucionalmente consagrado em situações concretas que o legislador entendeu serem dignas de especial necessidade de protecção.

Sendo há muito reconhecido que os critérios de admissibilidade do recurso consagrado no n.º 3 do artigo 280.º do CPPT são idênticos aos requisitos globais para o conhecimento dos recursos interpostos com fundamento em oposição de acórdãos que antes da entrada em vigor da Lei n.º 118/19, de 17-9, estavam consagrados no artigo 284.º, n.º 1 do CPPT (neste sentido, vide, na doutrina, Jorge Lopes de Sousa, “Código de Procedimento e de Processo Tributário anotado e comentado”, Áreas Editora, 6.ª edição, IV volume, anotação 11 c) ao artigo 280.º, pág. 422, e anotação 5 ao artigo 284.º, pág. 466; na jurisprudência, por todos, acórdão da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo de 29-5-2019, processo n.º 17/16.3BEAVR, integralmente disponível em www.dgsi.pt.) há que concluir (porque a revogação do regime de recurso previsto naquele último artigo e as alterações de redacção introduzidas pela citada Lei n.º 118/19 ao artigo 280.º do CPPT não apontam noutro sentido) que a admissibilidade do recurso interposto à luz do n.º 3 do artigo 280.º do CPPT depende da verificação dos seguintes requisitos (i) identidade da questão fundamental de direito; (ii) ausência de alteração substancial da regulamentação jurídica; (iii) identidade de situações fácticas; (iv) antagonismo de soluções jurídicas entre a sentença de que se recorre e, no mínimo, quatro sentenças proferidas por qualquer outro tribunal tributário.

Ora, é indiscutível que a questão de direito suscitada em todas as “decisões” invocadas pela Recorrente é a mesma – exigibilidade de comprovação documental das despesas relativas a honorários com mandatário judicial qualquer que seja o valor que a esse título seja pago pela parte vencedora face ao preceituado nos artigos 25.º e 26.º do RCP; que não há distinção de relevo entre as situações fácticas nelas contempladas e que a solução oposta foi proferida em idêntico quadro de regulamentação jurídica.

Porém também é inquestionável que as “decisões” convocadas (em número capaz de justificar o pressuposto exigido) não assumem a qualidade de sentenças.

Efectivamente, constituindo todas as “decisões” invocadas (cujas cópias constam dos autos) despachos relativos a incidentes de reclamação de conta, não é discutível que não possuem formalmente a natureza de sentenças.

É verdade que esses despachos constituem decisões de incidentes e, nessa medida, conhecem do mérito da questão aí colocada.

Porém, salvo o devido respeito, não foi para este tipo de decisões (despachos), que o legislador previu o recurso excepcional do artigo 280.º, n.º 3 do CPPT.

Que assim é, resulta desde logo, a nosso ver, da letra deste preceito que expressamente estabelece que a oposição de decisões se revela em sentenças, impedindo que o âmbito de aplicação do preceito se estenda a despachos de incidentes, por, em conformidade com o n.º 2 do artigo 9.º do Código Civil (CC), não haver correspondência destes com a letra do citado n.º 3 do artigo 280.º do CPPT.

Acresce que, na unidade do sistema jurídico e nas circunstâncias em que este preceito com a nova redacção se manteve no ordenamento jurídico-processual tributário, não é possível ter outro entendimento.

Desde logo, porque o legislador fiscal não ignorava que, por força do artigo 26.º-A, n.º 3 do RCP, só há recurso da decisão/despacho que decide a reclamação da nota justificativa em um grau se o valor da nota justificativa for superior a 50 UC. Note-se que não nos referimos ao valor da causa ou de sucumbência, pois como deixámos dito antes, o legislador excluiu-os de pressupostos de admissibilidade do recurso em causa, antes nos reportamos ao valor da nota justificativa.

Seria no mínimo estranho que o legislador, que para efeito de recurso ordinário não atribui relevo jurídico a uma decisão de reclamação da nota justificativa quando esta não excede o valor de 50 UC, viesse a reconhecer a essa decisão valor jurídico suficiente para constituir objecto de recurso excepcional para o Supremo Tribunal Administrativo ao abrigo do artigo 280.º, n.º 3 do CPPT.

Acresce ainda que não podemos olvidar que o regime consagrado no Regulamento foi revisitado pelo legislador no mesmo ano em que surgiu a reformulação do artigo 280.º do CPPT (conforme resulta do artigo 5.º da Lei n.º 27/19, de 28-3, que procedeu à décima terceira alteração do RCP), não tendo a norma que ora se analisa (artigo 26.º-A), sido objecto de qualquer alteração.

Portanto, a nosso ver, a unidade do sistema jurídico também impõe o entendimento de que este tipo de despacho não cabe no artigo 280.º n.º 3 do CPPT.

Diga-se por fim, que a última reforma processual tributária, na parte respeitante aos recursos jurisdicionais, foi determinada por um objectivo de apreciação das competências da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo, com o firme propósito de libertar este Tribunal dos recursos relativos a questões consideradas de menor importância, em termos idênticos aos anteriormente reconhecidos ao Supremo Tribunal de Justiça e à Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo (cfr., respectivamente, artigos 678.º do CPC e 151º do CPTA e Despacho da Ministra da Justiça de 13-10-2016 (cuja publicação em Diário da República não logramos encontrar) e a “ Exposição de Motivos” que acompanhou a Proposta de Lei n.º 168/XIII, disponível para consulta em https://www.icjp.pt/sites/default/files/cursos/documentacao/proposta_de_lei_n.º_168-xiii_-_cpta_et_al.pdf)

E embora seja certo que com esse objectivo se visava a criação de condições adequadas ao exercício da primordial função que deve estar reservada àquela Secção – de orientação e uniformização da jurisprudência tributária - e que o recurso previsto no n.º 3 do artigo 280.º do CPPT teve em vista precisamente a uniformização de decisões, é evidente que também se tem de reconhecer que o legislador considerou que apenas as decisões contidas em sentenças (citado n.º 3 do artigo 280.º) ou em acórdãos (conforme artigo 284.º também do CPPT) revestiam dignidade suficiente para assumir a qualidade de “questão carecida de uniformização de decisões”.

Em suma, o legislador não considerou que a existência de meros despachos de incidentes, que decidam em sentido oposto questão de mérito incidental assumam relevância bastante para poderem ser objecto do recurso previsto no n.º 3 do artigo 280.º, n.º 3 do CPPT.

Entender o contrário seria, aliás, admitir que o legislador simultaneamente legislou em sentidos opostos, ou seja, enquanto nas situações de recurso per saltum restringia significativamente as competências da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo a decisões de mérito da causa (n.º 1, do artigo 280.º do CPPT), permitia concomitantemente que fossem susceptíveis de recurso jurisdicional quaisquer despachos proferidos pelos tribunais fiscais em sentido oposto, bastando para tanto mais de três despachos em sentido oposto, qualquer que fosse a sua natureza ou valor, desta forma vulgarizando um recurso que o legislador manifestamente quis que fosse excepcional (cfr. n.º 3, in fine, do artigo 9.º do CC)

Note-se que a redacção do n.º 3 do artigo 280.º do CPPT foi modificada de forma a harmonizá-la com o regime geral dos recursos e com as alterações introduzidas pela Lei n.º 118/19, designadamente com a introdução no processo fiscal do critério da sucumbência e com a restrição da admissibilidade do recurso per saltum no contencioso tributário às situações em que a decisão proferida conhece do mérito da causa (artigo 280.º, n.º 1 do CPPT), passando ainda a impor que, nas situações em que ocorra oposição com decisões de tribunais superiores, incluindo do Supremo Tribunal Administrativo, essa oposição se tenha de verificar relativamente a mais de três decisões («iii) Recurso per saltum: restringiu-se a aplicabilidade do recurso per saltum no contencioso tributário, previsto no n.º 1 do artigo 280.º, através da exclusão do seu âmbito das questões processuais, nomeadamente a ineptidão da petição inicial, o erro na forma de processo, entre outros, assumindo o STA como um verdadeiro tribunal de cúpula da jurisdição administrativa, limitando o recurso para a Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo, para além do já admitido requisito da fundamentação exclusivamente em matéria de direito, às situações em que a decisão proferida for de mérito» - cfr. “Exposição de Motivos” que acompanhou a Proposta de Lei n.º 168/XIII, integralmente disponível em https://www.icjp.pt/sites/default/files/cursos/documentacao/proposta_de_lei_n.º_168-xiii_-_cpta_et_al.pdf)

Ou seja, as circunstâncias em que este tipo de recurso foi mantido na ordem jurídica não permitem que seja outra a interpretação a dar à norma contida no n.º 3 do artigo 280.º do CPPT.

Não é, pois, de admitir o recurso jurisdicional interposto ao abrigo do preceituado no n.º 3 do artigo 280.º do CPPT, por falta de verificação dos seus pressupostos.

Todavia, porque o despacho que decidiu o incidente de reclamação da nota justificativa é recorrível nos termos gerais – uma vez que nem constitui um despacho de mero expediente nem foi proferido no uso de um poder discricionário (artigos 152.º, n.º 4 e 630.º do CPC), importa apurar se estão preenchidos os pressupostos para a sua admissibilidade, uma vez que, se tal se verificar, há que determinar a sua convolação em conformidade com o preceituado nos artigos 97.º, n.º 3 da LGT e 98.º, n.º 4 do CPPT. Efectivamente, há muitos anos que é uniforme o entendimento na doutrina e na jurisprudência, quer da jurisdição comum quer, o que ora nos importa relevar, da jurisprudência deste Supremo Tribunal Administrativa, que perfilhamos, que deve incluir-se nesse dever de convolação por “erro na forma de processo” as alterações ditadas pela indevida utilização do meio processual “reclamação para a conferência” em vez do meio processual recurso, bem assim, as correcções processuais decorrentes da utilização de um determinado tipo de recurso em vez de outro, se a tal não obstarem os pressupostos processuais de cujo preenchimento depende essa convolação [neste sentido, a título exemplificativo, na doutrina, Jorge Lopes de Sousa, “Código de Procedimento e de Processo Tributário”, anotação ao artigo 280.º, n.º 5 (actual n.º 3 do mesmo normativo), volume IV, Áreas Editora, página 422; na jurisprudência, acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 18-6-2008, processo 1145/06, in DR, I Série, de 29-09-2008; de 14-10-2010 e de 26-6-2014, proferido no processo n.º 1831/13, estes últimos integralmente disponíveis em www.dgsi.pt].

Considerando que a Recorrente ficou vencida e interpôs o recurso antes de decorrido o prazo de 30 dias, não subsistem dúvidas de que estão verificados os pressupostos de legitimidade (artigos 280.º e 631.º, respectivamente, do CPPT e CPC) e tempestividade (cfr., artigos 281.º e 282.º, n.º 1 do CPPT).

Acontece porém que o artigo 26.º-A, n.º 3 do RCP dispõe que que só é admissível recurso da decisão que decide a reclamação da nota justificativa se esta tiver um valor superior a 50 UC, isto é, só é admissível recurso jurisdicional se a nota tiver um valor superior a € 5.100 [€102 x50 - por força do determinado no artigo 210.º da Lei n.º 2/2020, de 31 de Março, que aprovou o Orçamento de Estado para 2020, que estipulou que “Em 2020, mantém-se a suspensão da atualização automática da unidade de conta (UC) prevista no n.º 2 do artigo 5.º do Regulamento das Custas Processuais, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 34/2008, de 26 de fevereiro, mantendo-se em vigor o valor das custas vigente em 2019.”).

No caso, sendo o valor da nota justificativa de € 749, 70, há que concluir que não está verificado o pressuposto de admissibilidade previsto no artigo 26.º-A, n.º 3 do RCP e, consequentemente, pela inutilidade da convolação por nós equacionada.

Em conclusão:

- O recurso consagrado no n.º 3 do artigo 280.º do CPPT possui natureza excepcional relativamente aos regimes consagrados nos n.ºs 1 e 2 do mesmo normativo, como decorre da exclusão naquele primeiro dos pressupostos de valor da causa ou sucumbência previstos para o segundo.

– A admissibilidade do recurso referido em I depende da verificação dos seguintes requisitos (i) identidade da questão fundamental de direito; (ii) ausência de alteração substancial da regulamentação jurídica; (iii) identidade de situações fácticas; (iv) antagonismo de soluções jurídicas entre a sentença de que se recorre e, no mínimo, quatro sentenças proferidas por qualquer outro tribunal tributário.

- Os critérios interpretativos consagrados no artigo 9.º do Código Civil, em especial nos seus nºs 1 e 2, impõem que se conclua que o recurso previsto no n.º 3 do artigo 280.º do CPPT tem necessariamente por objecto sentenças ou acórdãos, pelo que, ao abrigo dessa disposição não pode ser admitido o recurso do despacho que decidiu a nota justificativa.

3.3. É, pois, com os fundamentos expostos, de julgar não verificados os pressupostos do recurso jurisdicional previsto no artigo 280.º, n.º 3 do CPPT e, em conformidade, não admitir o mesmo, o que, a final, se determinará.

4. DECISÃO

Em face de tudo quanto ficou exposto, acordam os Juízes que integram a Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo, em conferência, não admitir o recurso interposto pela Fazenda Pública.

Custas pela Recorrente.

Registe e notifique

Lisboa, 16 de Dezembro de 2020. - Anabela Ferreira Alves e Russo (relatora) – José Gomes Correia – Aníbal Augusto Ruivo Ferraz.