Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0788/17
Data do Acordão:07/06/2017
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:COSTA REIS
Sumário:
Nº Convencional:JSTA000P22129
Nº do Documento:SA1201707060788
Data de Entrada:06/27/2017
Recorrente:A............, B............ E C............
Recorrido 1:D............ E ESTADO PORTUGUÊS
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na Formação de Apreciação Preliminar da Secção do Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo:

1. D………… intentou, no TAF de Braga, contra o Estado Português, C…………, Director do Centro Nacional de Pensões, B…………, funcionária do Instituto de Segurança Social, IP, do Centro Distrital de Braga e A…………, Directora do Instituto de Segurança Social, IP, do Centro Distrital de Braga, acção administrativa comum pedindo:
“(i)a condenação solidária dos Réus no pagamento da quantia de € 374.937,64, a título de danos patrimoniais relativos às remunerações de trabalho dependente que o Autor deixou de auferir;
(ii) subsidiariamente, no pagamento de € 114.091,04, a título de danos patrimoniais relativos à perda de subsídio de pensão permanente de invalidez,
(iii) no pagamento de encargos suportados pelo Autor com o respectivo mandatário, em valores relegados para execução de sentença, nos termos do n.º 2, do art.º 609, do CPC;
(iv) no pagamento de € 250.000,00, acrescidos de juros vencidos, a título de danos não patrimoniais;
(v) e ao pagamento de juros já vencidos, à taxa legal, sem prejuízo dos juros que se venceram desde a instauração da acção;
(vi) ser os Réus condenados a suportar as custas e demais encargos com o processo”.

O TAF, por saneador-sentença julgou procedente a excepção dilatória de ilegitimidade passiva de todos os Réus e, em consequência, absolveu-os da instância.

O Autor apelou para o TCA Norte e este, por Acórdão de 24/02/2017 (rec. 4/15.9BEBRG), concedeu provimento ao recurso, revogando a decisão recorrida e ordenando a baixa dos autos para que se convidasse o Autor a regularizar a instância e a apreciar o mérito da acção.

É desse Acórdão que o Réus C…………, A………… e B………… vêm recorrer (artigo 150.º/1 do CPTA).

II. MATÉRIA DE FACTO
Os factos dados como provados são os constantes do acórdão recorrido para onde se remete.

III. O DIREITO

1. As decisões proferidas pelos TCA em segundo grau de jurisdição não são, por via de regra, susceptíveis de recurso ordinário. Regra que sofre a excepção prevista no art.º 150.º/1 do CPTA onde se lê que daquelas decisões pode haver, «excepcionalmente», recurso de revista para o STA «quando esteja em causa a apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental» ou «quando a admissão do recurso seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito». O que significa que este recurso foi previsto como «válvula de segurança do sistema» para funcionar em situações excepcionais em que haja necessidade, pelas apontadas razões, de reponderar as decisões do TCA em segundo grau de jurisdição.
Deste modo, a pretensão manifestada pelo Recorrente só poderá ser acolhida se da análise dos termos em que o recurso vem interposto resultar que a questão nele colocada, pela sua relevância jurídica ou social, se reveste de importância fundamental ou que a sua admissão é claramente necessária para uma melhor aplicação do direito.
Vejamos, pois, se tais requisitos se verificam in casu socorrendo-nos para isso da matéria de facto seleccionada no Acórdão recorrido.

2. O TAF julgou todos os Réus parte ilegítima nesta acção onde se pedia a sua condenação no pagamento de uma indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais decorrente de responsabilidade civil extra contratual. Para tanto ponderou o seguinte:
…Nos termos do art. 10º nº 1 do CPTA cada acção deve ser proposta contra a outra parte na relação material controvertida e, quando for caso disso, contra as pessoas ou entidades titulares de interesses contrapostos aos do autor.
Trata-se, assim, de um critério semelhante ao que se estabelece no art. 30º do CPC, em cujo nº 1 se estabelece que o autor é parte legítima quando tem interesse directo em demandar; o réu é parte legítima quando tem interesse directo em contradizer. Já o nº 3 deste preceito refere que na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação material controvertida, tal como é configurada pelo autor.
….
Em face dos pedidos formulados e os respectivos fundamentos para tanto expostos ao longo da petição inicial, sobressai que o Autor pretende ser ressarcido dos prejuízos (patrimoniais e não patrimoniais) sofridos em consequência da actuação alegadamente ilícita dos serviços do Instituto da Segurança Social, I.P. (Centro Nacional de Pensões e Centro Distrital de Braga) e dos seus funcionários.
O Instituto da Segurança Social, I.P. (ISS) é uma pessoa colectiva de direito público, dotada de autonomia administrativa, financeira e patrimonial, com natureza de instituto público (cfr. art. 1º do Decreto-Lei nº 83/2012, de 30 de Março, que aprovou a orgânica do ISS).
O Centro Distrital de Segurança Social de Braga é um serviço desconcentrado do ISS, como sobrevém do art. 17º da Portaria nº 135/2012, de 08 de Maio, que aprovou os Estatutos do Instituto da Segurança Social, I.P.
Por seu turno, o Centro Nacional de Pensões é também um serviço do ISS, como decorre dos artigos 1º nº 1 e 20º da Portaria nº 135/2012, competindo-lhe a gestão das pensões previstas no Decreto-Lei nº 187/2007, de 10 de Maio (que aprovou o regime de protecção nas eventualidades invalidez e velhice dos beneficiários do regime geral de Segurança Social) ….. .
Conforme se atesta dos autos, foram os Serviços do ISS e os seus funcionários que emitiram as comunicações ou informações que o Autor reputa de inexactas e contraditórias quanto à sua pensão de invalidez e que, alegadamente, terão dado causa à perda do emprego e da pensão por parte do Autor.
Daqui releva que a relação material controvertida, tal como o Autor a configura, se estabelece entre o Instituto da Segurança Social, I.P. e o Autor, surgindo, inevitavelmente, o Estado Português como parte ilegítima, nos termos do nº 1 do art. 10º do CPTA.
A este propósito, importa ainda assinalar que, nos presentes autos, o Instituto da Segurança Social, I.P., não foi demandado, não foi citado, não constituiu mandatário e não deduziu contestação, ao contrário do que o Autor parece fazer crer em sede de resposta à matéria de excepção.
Quanto aos Réus A…………, B………… e C……….., demandados na qualidade de funcionários do ISS, IP, a sua legitimidade tem de ser aferida pela concreta alegação fáctica.
A sua responsabilização encontra-se limitada aos casos de dolo ou culpa grave, como se afere da previsão contida no nº 1 do art. 8º da Responsabilidade Civil do Estado e Demais Entidades Públicas (doravante RRCEE), aprovado pela Lei nº 67/2007, de 31/12 ….. .
Compulsada a petição inicial, verifica-se que o Autor não imputa qualquer comportamento doloso aos referidos Réus, pelo que estaríamos no âmbito de responsabilidade civil extracontratual exclusiva do ISS, nos termos do art. 7º nº 1 do RRCEE, por culpa leve (presumida) dos seus funcionários no exercício da função administrativa e por causa desse exercício.
Portanto, ainda que a acção procedesse, nunca os referidos Réus seriam objecto de condenação, atento o modo como o autor constrói a relação controvertida.
Não fazendo, por isso, os Réus A…………, B………… e C………… parte da relação material controvertida, ou seja, não são partes legítimas.
Pelo exposto, julgo procedente a excepção dilatória de ilegitimidade passiva do Réu Estado Português, bem como dos Réus A…………, B………… e C………… e, em consequência, absolvo os mesmos da instância.”.

O Autor apelou para o TCA Norte e este concedeu provimento ao recurso com a seguinte fundamentação:
… É certo que, como se diz na decisão recorrida, em face dos pedidos formulados e dos respectivos fundamentos, alinhados na petição inicial, o Autor pretende ser ressarcido dos prejuízos (patrimoniais e não patrimoniais) sofridos em consequência da actuação alegadamente ilícita dos serviços do Instituto da Segurança Social, I.P. (Centro Nacional de Pensões e Centro Distrital de Braga) e dos seus funcionários.
A causa de pedir na presente acção funda-se, portanto, na responsabilidade civil extracontratual prevista na Lei nº 67/2007, de 31.12.
É certo também que o Instituto da Segurança Social, I.P. (ISS) é uma pessoa colectiva de direito público, dotada de autonomia administrativa, financeira e patrimonial, com natureza de instituto público, nos termos do disposto no artigo 1º do Decreto-Lei nº 83/2012, de 30.03; o Centro Distrital de Segurança Social de Braga é um serviço desconcentrado do ISS, face ao disposto no artigo 17º da Portaria nº 135/2012, de 08.05; e, finalmente, o Centro Nacional de Pensões é um serviço do ISS, como decorre dos artigos 1º nº 1 e 20º da Portaria nº 135/2012.
Pelo que, do lado passivo, deveriam ter sido estas entidades a figurar na petição inicial como entidades demandadas.
O Estado demandado, em vez destas entidades dotadas, para o efeito, de personalidade judiciária, é, portanto em bom rigor, parte ilegítima.
Mas, por um lado, estas entidades públicas, apesar de autónomas para efeitos processuais não são entidades absolutamente distintas e alheias à entidade Estado, antes nele se integram num conceito amplo.
Neste sentido, o Autor, ao demandar o Estado no seu todo, não demandou entidade distinta daquelas que deveria ter demandado mas uma entidade mais alargada.
Por outro lado, não estamos aqui perante um caso de eventual ilegitimidade passiva singular mas de ilegitimidade passiva plural dado que, a petição inicial termina, pedindo a condenação, indistinta, do Réu Estado Português e dos Réus C…………, Director do Centro Nacional de Pensões, B…………, funcionária do Instituto da Segurança Social, IP, Centro Distrital de Braga, e A…………, Directora do Instituto da Segurança Social IP, Centro Distrital de Braga, o que integra uma situação de responsabilidade solidária, nos termos em que a acção é configurada – artigo 497º, n.º1, do Código Civil.
Pelo que, a existir ilegitimidade passiva de apenas algum ou alguns dos Réus, e não de todos, nunca seria caso de julgar extinta toda a instância e pôr assim termo ao processo … mas antes de suprir tal ilegitimidade convidando o Autor a suprir tal excepção no prazo de 10 dias contados da notificação para o efeito, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 88º do CPTA (na redacção anterior ao Decreto-Lei n.º 214-G/2015, de 02.10, que apenas iniciou a sua vigência em 01.12.2015 e, por isso, não se aplica ao caso concreto).
Logo por aqui, ao absolver pura e simplesmente o Réu Estado Português, da instância, ao invés de convidar, como deveria ter convidado, o Autor a suprir essa ilegitimidade passiva, a decisão recorrida errou, pelo que, logo nesta vertente, procede o recurso jurisdicional.
Quanto à absolvição da instância dos funcionários demandados também se mostra errada, no nosso entendimento, a decisão recorrida.
A causa de pedir na presente acção funda-se na responsabilidade civil extracontratual prevista no RRCEEP, aprovado pela Lei nº 67/2007, de 31.12, sendo, como tal, constituída pelo facto voluntário, ilícito, culposo, gerador de danos e pelo nexo de causalidade adequada entre o facto e os danos verificados.
Todos estes elementos são constitutivos do direito do Autor a ser indemnizado, pelo que o ónus da sua alegação e prova compete ao Autor (artigo 342º, nº 1, do Código Civil).
Como se refere na decisão recorrida, a responsabilidade directa dos titulares de órgãos, funcionários e agentes encontra-se limitada aos casos de dolo ou culpa grave, como resulta do disposto no nº 1 do artigo 8º do Regime da Responsabilidade Civil do Estado e Demais Entidades Públicas.
Sucede que, desde logo, na decisão recorrida se dá um salto lógico ao concluir-se que não imputando o Autor qualquer comportamento doloso a estes Réus estaríamos no âmbito de responsabilidade civil extracontratual exclusiva do ISS, nos termos do artigo 7º nº 1 do Regime da Responsabilidade Civil do Estado e Demais Entidades Públicas, pelo que os mesmos seriam partes ilegítimas.
Os titulares de órgãos, funcionários e agentes são solidariamente responsáveis com as pessoas colectivas em que se integram, não apenas no caso de condutas dolosas mas também quanto aos “danos que resultem de acções ou omissões ilícitas, cometidas com diligência e zelo manifestamente inferiores àqueles a que se encontravam obrigados em razão do cargo”, face ao disposto no n.º 1 do artigo 8º do Regime da Responsabilidade Civil do Estado e Demais Entidades Públicas.
Quanto a afirmar que as faltas, imputadas na petição inicial àqueles agentes foram cometidas ou não “com diligência e zelo manifestamente inferiores àqueles a que se encontravam obrigados em razão do cargo”, trata-se de mera conclusão jurídica a retirar dos factos alegados.
E se os factos alegados não são, à partida, suficientes para integrar tal conclusão, sempre será caso de convite à correcção do articulado inicial e não de absolvição pura e simples da instância – artigo 88º, n.º 2, do CPTA, e artigo 508º, n.º 1, alíneas a) e b), do CPC.
E, em todo o caso, não se verificando, o que sucede é que a acção claudica por falta de prova de um dos pressupostos. Mas nesse caso o que se verifica é a falta de uma condição de procedência da acção e não a falta de um pressuposto processual, designadamente da legitimidade passiva.
Trata-se de uma questão de mérito.
Não tendo sido invocados - e não podendo ser por não se terem verificado - factos que permitam concluir pela culpa grave dos Réus pessoas singulares, a acção claudica quanto a eles - e apenas quanto a eles - por uma questão de mérito, pela falta também de um pressuposto de procedência.
Não se verifica, em qualquer caso, também a ilegitimidade passiva dos Réus pessoas singulares.”

3. O que está em causa nesta revista é a legitimidade dos RR.
O TAF, como vimos, declarou-os parte ilegítima por ter entendido que a pretensão do Autor era o ressarcimento dos prejuízos (patrimoniais e não patrimoniais) sofridos pelo Autor em consequência da actuação alegadamente ilícita dos funcionários que identificou como RR do Instituto da Segurança Social, I.P., do Centro Distrital de Segurança Social de Braga e do Centro Nacional de Pensões. Ora, a relação material controvertida desenhada pelo Autor tinha-se estabelecido entre ele o Instituto da Segurança Social, I.P. surgindo, inevitavelmente, o Estado Português como parte ilegítima. Por outro lado, o Instituto da Segurança Social, I.P. era uma pessoa colectiva de direito público, dotada de autonomia administrativa, financeira e patrimonial, com natureza de instituto público e o Centro Distrital de Segurança Social de Braga e o Centro Nacional de Pensões mais não eram do que serviços daquele Instituto. Sendo que aquele Instituto não foi demandado.
Quanto aos restantes Réus, demandados na qualidade de funcionários do Instituto da Segurança Social, I.P. só seriam parte legítima se viesse alegado que os mesmos agiram com dolo. Não tendo tal alegação sido feita os Réus A…………, B………… e C………… eram também parte ilegítima.

Outro, porém foi o entendimento do TCA.
Com efeito, este considerou que as entidades públicas acima identificadas, apesar de autónomas para efeitos processuais, não eram entidades absolutamente distintas e alheias à entidade Estado, antes nele se integram num conceito amplo.Neste sentido, o Autor, ao demandar o Estado no seu todo, não demandou entidade distinta daquelas que deveria ter demandado mas uma entidade mais alargada. Pelo que, a existir ilegitimidade passiva de apenas algum ou alguns dos Réus, e não de todos, nunca seria caso de julgar extinta toda a instância e pôr assim termo ao processo … mas antes de suprir tal ilegitimidade convidando o Autor a suprir tal excepção no prazo de 10 dias contados da notificação para o efeito, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 88º do CPTA.” Por isso a sentença ao absolver da instância o Réu Estado Português ao invés de convidar, como devia, o Autor a suprir essa ilegitimidade passiva errou, pelo que, nesta vertente, procedia o recurso jurisdicional.
E também era errada a absolvição da instância dos funcionários demandados uma vez que afirmar que as faltas que lhes foram imputadas na petição inicial foram cometidas com diligência e zelo manifestamente inferiores àqueles a que se encontravam obrigados em razão do cargo era uma mera conclusão jurídica a retirar dos factos alegados e estes não eram, à partida, suficientes para integrar tal conclusão.

4. O Acórdão recorrido não foi tirado por unanimidade, como o evidencia o voto de vencido nele aposto.
Com efeito, considerar que as entidades públicas onde os restantes RR prestavam serviço, apesar de autónomas, não eram absolutamente distintas e alheias ao Estado, antes nele se integravam num conceito amplo, e que, por isso, o Autor ao demandar tais entidades estava também a demandar o Estado, o que por si só bastava para que se concluísse pela legitimidade do Estado e pela necessidade do Autor ser convidado a regularizar a petição inicial, é um entendimento controverso que merece melhor estudo.
Por outro lado, sustentar que não tinham sido alegados factos donde derivasse o dolo ou a culpa grave dos RR, funcionários das entidades acima identificadas, e que tal bastava para que a questão a decidir já não fosse de legitimidade mas de mérito também não é pacífica, atento a configuração que o Autor faz da relação material controvertida na petição inicial.
Justifica-se, assim, a admissão da revista para uma melhor aplicação do direito.

DECISÃO.

Termos em que os Juízes que compõem este Tribunal acordam em admitir a revista.
Sem custas.
Lisboa, 6 de Julho de 2017. – Costa Reis (relator) – Madeira dos Santos – São Pedro.