Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0767/11
Data do Acordão:01/26/2012
Tribunal:1 SUBSECÇÃO DO CA
Relator:MADEIRA DOS SANTOS
Descritores:ASSOCIAÇÃO DE BOMBEIROS VOLUNTÁRIOS
COMANDANTE DOS BOMBEIROS VOLUNTÁRIOS
NULIDADE PROCESSUAL
Sumário:I – Não integra o âmbito do recurso o conhecimento da nulidade, imputada ao acórdão recorrido, cuja arguição autónoma foi indeferida por aresto de que se não recorreu.
II – À luz do Regulamento Geral dos Corpos de Bombeiros, que foi aprovado pelo DL n.º 295/2000, de 17/11, é ilegal o acto das associações detentoras desses corpos que afaste os respectivos comandantes do exercício dos cargos para que eles haviam sido nomeados pelo período de cinco anos.
Nº Convencional:JSTA00067378
Nº do Documento:SA1201201260767
Data de Entrada:10/27/2011
Recorrente:ASSOC HUMANITÁRIA DOS BOMBEIROS VOLUNTÁRIOS DE ....
Recorrido 1:AUTORIDADE NACIONAL DE PROTECÇÃO CIVIL
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:REC REVISTA EXCEPC
Objecto:AC TCA NORTE
Decisão:NEGA PROVIMENTO
Área Temática 1:DIR ADM GER - ASSOC PUBL
Área Temática 2:DIR PROC CIV
Legislação Nacional:CPC96 ART668 N4 ART684 N3 ART685-A
RGU GERAL DOS CORPOS DE BOMBEIROS APROVADO PELO DL 295/2000 DE 2000/11/17 N1 A E N6 N7 N8 ART34
CONST97 ART46 N2 ART283
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na 1.ª Secção do Supremo Tribunal Administrativo:
A Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários de … interpôs recurso de revista do acórdão do TCA-Norte que, confirmando a ilegalidade já assinalada pelo TAF de Braga, declarou nula a deliberação de 17/5/2007 – em que a Direcção da recorrente fizera cessar as funções do comandante do respectivo corpo de bombeiros, nomeando outra pessoa para o cargo – e manteve a decretada procedência da acção administrativa especial instaurada pela Autoridade Nacional de Protecção Civil contra a ora recorrente e o contra-interessado A……, beneficiário da referida nomeação.
A recorrente terminou a sua minuta de recurso formulando as conclusões seguintes:
1° Com o presente recurso de revista, pretende a Recorrente obter uma melhor aplicação do direito, o que se torna ainda mais premente em face da frequência com que as questões em discussão na jurisdição administrativa chegam ao conhecimento de um Tribunal Central Administrativo, bem como obter pronúncia sobre uma questão de elevada relevância jurídica e social.
2° A primeira questão concreta suscitada no presente recurso prende-se com a previsão dos exactos poderes e obrigações do TCA no âmbito do chamado recurso de apelação, questão esta que não pode ser controvertida sob pena de alguns processos terem uma decisão em que os Recorrentes são ouvidos numa decisão surpresa e outros não o são.
3º É imprescindível para a regular e normal tramitação dos recursos interpostos para o TCA que o Supremo Tribunal Administrativo esclareça e defina quais as obrigações que aquele Tribunal possui e se os artigos 3°/n° 3 do CPC e 149°/n°s. 3 e 4 do CPTA não o obrigam a ouvir sempre o Recorrente antes de proferir uma decisão diversa da proferida pela 1ª instância.
4° A segunda questão consiste em apurar se uma associação detentora de um corpo de bombeiros pode dispensar o seu Comandante por falta de confiança “política” e inexistência de condições de relacionamento entre a Direcção e o referido Comandante, não enquadráveis num procedimento disciplinar.
5° Esta segunda questão assume especial relevância jurídica (atenta a sua complexidade e inovação) e ainda social, dada a existência de inúmeras associações no país iguais à Recorrente, podendo este tipo de situação surgir com frequência.
6º A Recorrente considera que o acórdão recorrido violou normas de natureza processual e de natureza substantiva.
7° O presente recurso preenche os requisitos previstos no n° 1 e no n° 2 do artigo 150° da CPTA, pelo que se encontra em condições de ser recebido na apreciação liminar sumário prevista no n° 5 do mesmo normativo.
8° Salvo melhor opinião, o acórdão recorrido interpretou incorrectamente a questão jurídica de fundo, na medida em que sufragou a tese da Recorrida de que só dois caminhos tinha a Recorrente para fazer cessar o mandato ao ex-Comandante: termo do prazo ou procedimento disciplinar.
9° Em face da interpretação das normas legais em vigor, o que se pode concluir é que:
A Recorrente é uma pessoa colectiva de direito privado, dotada de utilidade pública administrativa;
A Recorrente está sujeita a poderes de fiscalização/orientação/coordenação por parte da Recorrida apenas no que concerne à actividade operacional do corpo de bombeiros, ou, no máximo, a poderes de tutela sobre esta mesma actividade.
10º No caso do Comandante de um corpo de bombeiros, a decisão de nomeação cabe à direcção da associação, aqui Recorrente, e o inspector distrital de bombeiros homologa tal decisão, conferindo-lhe assim eficácia (sendo certo que este acto possui um conteúdo vinculado, pois se o nomeado cumprir os requisitos técnicos, não há forma de não homologar o seu nome).
11° A conduta do ex-Comandante, consubstanciada em diversos actos e comportamentos, nem todos de natureza disciplinar (onde se inclui falta de diálogo e contacto institucional e pessoal com os membros da direcção da Recorrente), não é enquadrável no caminho do procedimento disciplinar.
12° Contudo, deparou-se a Recorrente com a insólita norma do artigo 36°/nº 3 do D.L. nº 295/2000, de 17.11, que estipula que “a aplicação de quaisquer penas disciplinares ao comandante do corpo de bombeiros cabe ao inspector distrital de bombeiros”.
13° Nesta linha de raciocínio, entende a Recorrente que a norma em causa é inconstitucional, por violação do artigo 46°/nº 2 da CRP, que estipula que “as associações prosseguem livremente os seus fins sem interferência das autoridades públicas...”, na medida em que a subtracção à Recorrente do poder disciplinar sobre um seu subalterno a favor de uma entidade externa é uma ingerência excessiva e injustificável, pois não encontra qualquer fundamentação ou necessidade.
14° E, por isso, lançou a Recorrente mão de um regime legal semelhante, que fez aplicar por analogia em virtude do vazio legal do D.L. nº 295/2000, de 17.11, já que, no seu modesto entendimento, este vazio legal traduz uma inconstitucionalidade por omissão, pois deveria estar prevista e regulada a possibilidade da cessação do mandato do Comandante de um corpo de bombeiros (fora da previsão do procedimento disciplinar) como está regulamentada a cessação de uma comissão de serviço.
15º Neste diploma em causa, entende a Recorrente que ocorre uma insuficiência de regulamentação do exercício e manutenção do Comandante de um corpo de bombeiros, e, por via desta omissão, foi a Recorrente servir-se de um regime legal com algumas semelhanças.
16° Acresce, ainda, e conforme se referiu quanto à omissão, que o diploma em causa também não proíbe que a direcção da associação detentora do corpo de bombeiros demita ou prescinda do Comandante (ou exonere, empregando a expressão da Recorrida, nada sendo dito sobre a possibilidade da Associação dispensar, demitir, exonerar ou prescindir do Comandante.
17º Cumpre, ainda, assinalar que o artigo 35° dos Estatutos da Recorrente lhe permite adoptar todas as acções necessárias ao bom funcionamento da instituição e do seu corpo de bombeiros, o que manifestamente sucede quando o seu Comandante nem sequer dirige a palavra a alguns dos membros da Direcção.
18º O recurso à Lei nº 51/2005, de 30.08, resulta da mesma tratar de pessoas que são nomeadas para um dado cargo, como o de Comandante surge por nomeação, existindo aqui, pois, uma identidade na forma de provimento – nomeação - sendo certo que em ambas as situações não está excluído o exercício da acção disciplinar (a Lei nº 51/2005, de 30.08 não afasta o procedimento disciplinar).
19° Por outro lado, quanto à legalidade da analogia, a mesma tem cabimento no artigo 10° do Código Civil, pois perante uma lacuna (a omissão de regulamentação já explicitada), impõe-se proceder ao seu preenchimento, graças a um raciocínio fundado em razões de similitude.
20° O DL. n° 295/2000, de 17.11 não proíbe a cessação do cargo de Comandante do corpo de bombeiros desde que verificadas situações que colocam em causa de forma irremediável o relacionamento entre aquele e a Direcção detentora do corpo:
21° O artigo 19° do D.L n° 295/2000, de 17.11 enferma de uma inconstitucionalidade por omissão (por violação do artigo 46° da CRP) ao não regular a hipótese do mandato do Comandante do corpo de bombeiros poder cessar por outro motivo que não seja o seu fim ou desde que ocorra infracção disciplinar, o que devia estar previsto, em obediência ao princípio da auto-gestão das associações;
22° O artigo 36°/n°3 do DL n° 295/2000, de 17.11 enferma de uma inconstitucionalidade material traduzida na violação do artigo 46° da CRP na medida em que retira à Direcção da associação detentora do corpo de bombeiros o poder disciplinar sobre o Comandante, que lhe seria inerente por efeito do princípio da auto-gestão das associações.
23 Ao não decidir da forma argumentada, considera a Recorrente que violou o acórdão recorrido o DL. nº 295/2000, de 17.11 e o artigo 46° da CRP, por efeito da inconstitucionalidade por omissão e material invocadas.
Não houve contra-alegação.
A revista foi admitida pelo acórdão do STA de fls. 407 e ss., da responsabilidade da formação a que alude o art. 150º, n.º 5, do CPTA.
A matéria de facto pertinente é a dada como provada no aresto «sub judicio», a qual aqui damos por inteiramente reproduzida – como ultimamente decorre do art. 713º, n.º 6, do CPC.
Passemos ao direito.
Nas sete primeiras conclusões da sua minuta – manifestamente dirigidas à «formação» («vide» o art. 150º, n.º 5, do CPTA) que se pronunciaria sobre a admissibilidade da revista – a recorrente afirmou serem duas as «quaestiones juris» a decidir: uma «primeira questão», de índole adjectiva, advinda do TCA não a ter ouvido antes de alterar a forma de invalidade do acto impugnado; e uma «segunda questão», de fundo, a propósito da qual a recorrente diverge do decidido nas instâncias e defende que o acto é irrepreensível «de jure».
Mas aquela «primeira questão» não integra o presente «thema decidendum». «Primo», porque a revista tem por objecto o acórdão do TCA de fls. 293 e ss., enquanto a nulidade em que tal questão se analisa foi denunciada autonomamente – aliás, ao arrepio do que se prevê no art. 668º, n.º 4, do CPC – e essa arguição foi indeferida pelo acórdão de fls. 334 e ss., anterior à interposição da revista e que ora não está sob ataque (cfr. o despacho de fls. 400 e o acórdão deste STA, de fls. 407 e ss.). «Secundo», e a título meramente coadjuvante, porque o assunto conexo com essa nulidade não foi tratado nas conclusões da revista segundo o modo previsto no art. 685º-A do CPC, pelo que sempre se haveria de entender que constituía matéria abandonada («vide» o art. 684º, n.º 3, do CPC). E assim se percebe não ter sido por acaso que o acórdão de fls. 407 e ss. acabou por centrar a admissibilidade da revista no conhecimento daquela «segunda questão».
Portanto, a única «quaestio juris» presentemente posta e merecedora de resolução é a que se prende com a legalidade do acto impugnado. E esse problema deve ser encarado «tout court», ou seja, no sentido de somente se ver se o acto é legal ou ilegal – restrição que se deve ao facto da recorrente não questionar nas suas conclusões se o TCA andou bem ao divergir da 1.ª instância quanto à qualificação do vício invalidante como gerador de nulidade.
Através do acto impugnado, a aqui recorrente fez cessar, «ante finem» e sem arrimo a motivações e processo disciplinares, as funções do comandante do seu corpo de bombeiros voluntários. Na óptica das instâncias, e «ex vi» do chamado Regulamento Geral dos Corpos de Bombeiros (RGCB, aprovado pelo DL n.º 295/2000, de 17/11, objecto de alterações pelo DL n.º 209/2001, de 28/7), estava vedado à recorrente fazê-lo, pois aquele comandante só poderia ser afastado das funções no termo do prazo de cinco anos para que fora nomeado ou, antes disso, por via e na sequência de processo disciplinar – e, em ambos os casos, sempre mediante decisão administrativa.
Ora, a recorrente objecta que, enquanto associação privada, tem o direito de gerir os seus recursos humanos conforme entenda; e que a falta de previsão, no RGCB, desses seus poderes gestionários corresponde a uma «lacuna legis» que ela preencheu com recurso a outras normas, justificativas da deliberação impugnada. A isso, a recorrente acrescenta ainda duas coisas: que tal lacuna traduz uma «inconstitucionalidade por omissão» (mas violadora do art. 46º da CRP), já que o RGCB devia ter previsto a possibilidade das associações do género despedirem os comandantes dos corpos de bombeiros, tal e qual o acto decidiu; e que o RGCB também é inconstitucional no ponto em que priva tais associações do poder de aplicar penas expulsivas aos aludidos comandantes.
Mas, no essencial, a recorrente não tem razão – o que radica no facto de não existir a lacuna que ela divisa no RGCB.
Com efeito, óbvias razões de interesse público, ligadas à operacionalidade dos corpos de bombeiros, explicam que a escolha dos seus comandantes fundamentalmente dependa de um juízo da Administração; e, sobretudo, que tais comandantes actuem com independência em relação aos órgãos dirigentes das associações respectivas – com natural quebra dos poderes de direcção, de regulamentação e de disciplina, que normalmente cabem às entidades patronais. Assim, as nomeações dos comandantes dos corpos de bombeiros, embora efectuadas pela «entidade detentora» desses corpos, «estão sujeitas a homologação» administrativa (art. 19º, n.º 1, als. a) e e), do RGCB – sendo agora irrelevante apurar se essa «homologação» da nomeação constitui um acto integrador de eficácia ou algo mais). Homologada a nomeação, tais comandantes exercem as funções por um «período de cinco anos, renováveis» (n.º 6 desse art. 19º), prevendo o RGCB um único meio de eles serem entretanto excluídos do cargo – o de sofrerem uma pena de demissão, aplicada pela Administração em processo disciplinar (art. 34º). E é extremamente significativo o que o RGCB dispõe para o fim do período de cinco anos: não só a renovação desse período, mesmo que proposta pela entidade detentora do corpo de bombeiros, continua sujeita a homologação administrativa (art. 19º, n.º 7, do RGCB), como a circunstância de tal entidade recusar a renovação pode não ser suficiente para que as funções do comandante cessem; pois, dessa decisão de não renovação, cabe recurso para uma comissão arbitral (art. 19º, n.º 8), constituída na órbita da Administração e que definitivamente decidirá o assunto.
Tudo isto genericamente mostra que o regime jurídico inserto no RGCB se caracteriza, quanto ao modo de ingressar e de permanecer no cargo e nas funções de comandante de um corpo de bombeiros, pela prevalência da vontade da Administração – com a correlativa perda de importância do que, a tal respeito, pensem e pretendam as entidades detentoras desses corpos. E, se estas entidades vêem fortemente atenuado o seu campo de intervenção em tal domínio, sugerido fica que o RGCB não contém uma «lacuna legis», resultante de aí se lhes não reconhecer amplos poderes interventivos.
E essa sugestão é confirmada por um argumento especial e incontornável. O regime do RGCB, na medida em que recusa às entidades detentoras dos corpos de bombeiros a palavra final sobre a não renovação do exercício de funções dos comandantes, há-de também, e por maioria de razão, recusar-lhes a possibilidade de, «motu proprio», afastarem os comandantes no decurso daquele exercício. Não fora assim, atribuir-se-ia àquelas entidades o mais, supostamente silenciado e lacunoso, quando o RGCB, «expressis verbis», já lhes recusara o menos. Tem, pois, de prevalecer a ideia, transversal ao RGCB, de que é fundamentalmente à Administração que cabe decidir se os comandantes dos corpos de bombeiros entram, ficam ou saem – não havendo qualquer lacuna de regulamentação no tocante à outorga de poderes do género às entidades detentoras dos corpos de bombeiros.
Ora, não havendo a referida lacuna, a recorrente não podia socorrer-se analogicamente de outras normas para emitir o acto impugnado; e este, ao fundar-se num inaplicável regime, mostra-se ilegal por traduzir o uso de poderes de que a recorrente estava desprovida – como as instâncias correctamente detectaram. Diga-se ainda que os estatutos da recorrente são inaptos para suprir aquela falta de poderes «ex lege».
Por outro lado, a inexistência da lacuna afasta a inconstitucionalidade por omissão que, segundo a recorrente, daquela seria consequência. Mas a denúncia dessa inconstitucionalidade sempre se mostraria vã, pois os tribunais administrativos não apreciam inconstitucionalidades por omissão (cfr. o art. 283º da CRP) – salvo como fundamento de responsabilidade civil.
Por último, importa dizer que não colhe a arguição de que o art. 36º, n.º 3, do RGCB – onde se prevê que «a aplicação de quaisquer penas disciplinares ao comandante do corpo de bombeiros cabe ao inspector distrital de bombeiros» – é materialmente inconstitucional, por ofensa do art. 46º, n.º 2, da CRP. Com efeito, a recorrente admite que o acto impugnado, seja pela sua genealogia, seja pelo seu tipo legal, não tem o cariz de uma punição disciplinar (cfr. as conclusões 4.ª, 11.ª e 14.º da revista). Sendo assim, tal art. 36º, n.º 3, não é comensurável com o acto; e, não o sendo, a hipotética inconstitucionalidade dessa norma não pode operar como medida da legalidade dele.
Mostram-se, portanto, improcedentes ou irrelevantes todas as conclusões da alegação do recurso, devendo o aresto «sub specie» ser inteiramente confirmado.
Nestes termos, acordam em negar a revista e em confirmar o acórdão recorrido.
Custas pela recorrente.
Lisboa, 26 de Janeiro de 2012. – Jorge Artur Madeira dos Santos (relator) – Alberto Acácio de Sá Costa Reis – José Manuel da Silva Santos Botelho.