Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0149/19.6BEMDL
Data do Acordão:07/13/2021
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:ANABELA RUSSO
Descritores:RECURSO
COMPETÊNCIA HIERÁRQUICA
Sumário:I - A infracção das regras da competência em razão da hierarquia determina a incompetência absoluta do tribunal, constituindo uma questão que o tribunal deve conhecer, oficiosamente ou mediante arguição, com prioridade sobre qualquer outra, até ao trânsito em julgado da decisão final, devendo ainda o tribunal, na decisão que declare a incompetência, indicar o tribunal que considera competente (artigos 16.º, n.ºs 1 e 2, 18.º, n.º 3 do CPPT e 13.º do CPTA).
II - Em regra, a competência em razão da hierarquia para conhecimento de recurso jurisdicional de decisão de Tribunal Tributário de 1.ª instância cabe aos Tribunais Centrais Administrativos, apenas estando legalmente cometida à Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo nas situações em que o recurso tiver por objecto decisões de mérito e forem suscitadas em exclusivo questões de direito (artigos 26.º, alínea b), e 38.º, alínea a), do ETAF e 280.º, n.º 1, do CPPT).
III - Se nas alegações de recurso e, especialmente nas suas conclusões, o Recorrente questiona as ilações extraídas do teor de um conjunto de documentos que ficou vertido no probatório ou que eles não permitem sustentar os factos apurados ou as conclusões de facto que sustentaram o julgamento de direito, há que concluir que é ao Tribunal Central Administrativo, e não ao Supremo Tribunal Administrativo que cabe apreciar o mérito do recurso.
Nº Convencional:JSTA000P28010
Nº do Documento:SA2202107130149/19
Data de Entrada:04/26/2021
Recorrente:A................, LDA
Recorrido 1:AT – AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral:
ACÓRDÃO

1. RELATÓRIO

1.1. «A……………….., Lda.», inconformada com a decisão do Tribunal Administrativo e Fiscal de Mirandela - que julgou improcedente a Oposição às execuções fiscais nºs 0485201801024957, 0485201801025740, 0485201801057111, 0485201801057731, 0485201801057740, 0485201801063537, 0485201801150073, 0485201901008099 e 0485201901008234, contra si instauradas no Serviço de Finanças de Bragança, no valor global de € 15.087,67 – interpôs recurso jurisdicional para este Supremo Tribunal Administrativo.

1.2 Tendo o recurso sido admitido, a Recorrente apresentou a respectiva alegação, aí concluindo nos seguintes termos:

«- O Douto Tribunal fez uma aplicação errónea do art.163.º do CPPT.

- Errando na análise dos respetivos requisitos que o referido preceito legal exige para a existência de título executivo.

- Devendo ter concluído que a oponente não foi citada conforme o disposto no art.163.º do CPPT.

- Pois os títulos executivos, e no que concerne à natureza e proveniência da dívida exequenda não fornece ao executado informação suficiente para saber, com segurança que dívida ou dívidas nele se refere de forma a estarem assegurados os seus direitos de defesa.

- Sendo que dos ofícios de citação, apesar de constar que estas provêm da ASCENDI, não permite saber a qualidade em que as cobra.

- Da análise de todas as certidões, não se consegue chegar à conclusão relativamente à origem da dívida e à natureza em que é cobrada, nem a que se reportam.

- O artigo 163.º do CPPT, deve ser interpretado no sentido de nomeadamente, a proveniência da dívida e demais elementos serem claros e não como entendeu o Tribunal de eles se poder de forma nada clara e explicita aferir a proveniência da dívida.

- Impondo o art.163.º do CPPT, uma interpretação restritiva, ou seja, a proveniência da dívida e demais elementos devem ser claros e objectivos e não meramente indiciários.

- Dúvidas não existem que, o Tribunal fez uma interpretação e aplicação errada do artigo 163.º do CPPT.

- Como igualmente não são percetíveis as designações constantes dos títulos executivos e dos documentos que eles acompanham e aludidas no artigo 14.º da motivação, nem deles se retira qualquer informação.

- Aliás é o próprio Tribunal na douta sentença recorrida que reconhece uma incorreção formal.

- Errou o Tribunal ao entender que a executada ficou a saber da natureza e proveniência da dívida e demais elementos exigidos no artigo 163.º do CPPT.

- Fazendo deste preceito legal uma interpretação extensiva e não se limitando à letra da lei, que exige que todos os elementos constem nos títulos sejam o máximo possível esclarecedores, diretos e objetivos.

- Devendo ter concluindo que por falta de tais elementos existia uma nulidade insanável no processo de execução, nos termos do artigo 165.º, n.º 1, al. b) do CPPT.

- O Douto tribunal violou por errada interpretação do direito o artigo 163.º, 165.º, n.º 1, al. b) do CPPT.

Termos em que deverá ser revogada a douta sentença que julgou improcedente a oposição à execução, julgando-se a mesma procedente».

1.3. A Autoridade Tributária e Aduaneira, não obstante ter sido notificada da interposição do recurso e da sua admissão, não contra-alegou.

1.4. Recebidos os autos neste Supremo Tribunal Administrativo, foi dada vista ao Ministério Público, tendo o Excelentíssimo Procurador-Geral Adjunto emitido parecer no sentido da incompetência deste Tribunal em razão da hierarquia.

1.5. Por despacho da ora Relatora, de 17 de Maio de 2021, foi ordenada a notificação do referido parecer às partes, tendo a Recorrente, na sequência do cumprimento do determinado, defendido a improcedência da excepção suscitada, alegando que apenas colocou em causa a interpretação do artigo 163.º do CPPT e, consequentemente, que é apenas uma questão de direito a que se coloca no recurso que nos vem dirigido.

1.5 Colhidos os vistos dos Excelentíssimos Juízes Conselheiros Adjuntos, nos termos do artigo 657.º do Código de Processo Civil (CPC) aplicável ex vi artigo 288.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), cumpre agora julgar, o que fazemos com intervenção, em conferência, da Secção de Contencioso Tributário deste Supremo Tribunal Administrativo.

2. OBJECTO DO RECURSO

2.1 Como é sabido, sem prejuízo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, é o teor das conclusões com que a Recorrente finaliza as suas alegações que determina o âmbito de intervenção do tribunal de recurso [artigo 635.º do Código de Processo Civil (CPC)].

Essa delimitação do objecto do recurso jurisdicional, numa vertente negativa, permite concluir se o recurso abrange tudo o que na sentença foi desfavorável ao Recorrente ou se este, expressa ou tacitamente, se conformou com parte das decisões de mérito proferidas quanto a questões por si suscitadas (artigos 635.º, n.º 3 e 4 do CPC), desta forma impedindo que voltem a ser reapreciadas por este Tribunal de recurso. Numa vertente positiva, a delimitação do objecto do recurso, especialmente nas situações de recurso directo para o Supremo Tribunal Administrativo, como é o caso, constitui ainda o suporte necessário à fixação da sua própria competência, nos termos em que esta surge definida pelos artigos 26.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF) e 280.º e seguintes do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT).

2.2. No caso concreto, tendo por referência o que ficou dito, são duas as questões a decidir.

A primeira, prévia, decidir a excepção de incompetência em razão da hierarquia do Supremo Tribunal Administrativo para conhecer o mérito do recurso.

A segunda, sendo aquela primeira julgada improcedente, decidir se o Tribunal a quo errou (i) ao concluir que é possível extrair-se das certidões de dívida qual a proveniência destas [por delas não ser possível concluir-se que se reportam a não pagamento de portagens, custos administrativos e coimas ou, sequer, a qualidade da entidade que se apresenta a cobrar as alegadas dívidas]; (ii) ao concluir que a Recorrente, na sequência da remessa de documentos enviados, ficou na posse de quaisquer informações; (iii) ao julgar que a citação da Recorrente observou todas as exigências que estão consagradas no artigo 163.º do CPPT, sendo evidente que existe fundamento para que seja declarada a nulidade insuprível do processo de execução fiscal por falta de requisitos do título executivo.

3. FUNDAMENTAÇÃO

3.1. Fundamentação de facto

3.1. Na sentença recorrida foram dados como provados os seguintes factos:

1. A Oponente foi citada para pagar o montante global de 15.087,67€., nos processos de execução fiscal n.º 0485201801057740 e apensos, de acordo com os ofícios de citação que constam de fls. 16 a 24 dos autos, que aqui se reproduzem, com o seguinte destaque (Fls.16): “(…)

[imagem]

(…)”

2. Dão-se aqui por reproduzidas as certidões de dívida que constam do PA, e que se reportam aos processos de execução fiscal em causa, (Cfr. fls. 1 e ss, 7 e ss, 13 e ss, 20 e ss, 25 e ss, 30 e ss, 35 e ss, 41 ess, e 46 e ss, com o seguinte destaque (Fls. 3 e 4):

“(…)

[imagem]

[imagem]

3.2. Fundamentação de Direito

3.2.1. Tendo presente a delimitação do objecto do recurso efectuada no ponto 2. deste acórdão e a relação de prejudicialidade que existe para a apreciação da segunda questão se for dada resposta afirmativa à questão de incompetência hierárquica, é, naturalmente, por esta última que iniciaremos o nosso julgamento.

3.2.2. E, fazendo-o, recordamos, antes de mais, que embora a questão da competência hierárquica, no caso, tenha sido suscitada pelo Exmo. Procurador-Geral-Adjunto no seu douto parecer, a sua apreciação impor-se-ia sempre a este Supremo Tribunal Administrativo, por ser questão de ordem pública, prioritária em relação a qualquer outra, de conhecimento oficioso e susceptível de ser arguida até ao trânsito em julgado da decisão final [cfr. artigos 13.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA) e 16.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT)].

3.2.2. Vejamos, então, começando por realçar que nos termos do disposto nos artigos 26.º, alínea b), e 38.º, alínea a), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF) e 280.º, n.º 1, do CPPT, a competência para conhecer dos recursos das decisões dos tribunais tributários de 1.ª instância em matéria de contencioso tributário, pertence à Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo quando os recursos tenham por exclusivo fundamento matéria de direito, constituindo uma excepção à competência generalizada dos tribunais centrais administrativos, aos quais cabe conhecer «dos recursos de decisões dos Tribunais Tributários, salvo o disposto na alínea b) do artigo 26.º» [art. 38.º, alínea a), do ETAF].

3.2.3. Há, assim, para aferir da competência em razão da hierarquia do Supremo Tribunal Administrativo, que olhar para as conclusões da alegação do recurso e alegações que as suportam e verificar se, em face das mesmas, as questões controvertidas se resolvem mediante uma exclusiva actividade de aplicação e interpretação de normas jurídicas, ou, pelo contrário, essa resolução implica a necessidade de dirimir questões de facto - seja por insuficiência, excesso ou erro no apuramento da factualidade que foi dada por provada na decisão recorrida, quer por se entender que foram esquecidos factos tidos por relevantes, quer por se sustentar que a prova produzida foi incorrectamente apreciada ou por se divergir das ilações de facto retiradas da facticidade apurada.

3.2.4. Ora, como ressalta com clareza da exposição realizada ao longo das alegações do recurso e das conclusões destas, a Recorrente, invocando que alegou na petição inicial que não foi citada e desconhece a que se reportam as dívidas, insurge-se, agora em recurso, contra as ilações que o Tribunal a quo extraiu dos documentos reproduzidos na matéria de facto e que suportaram a conclusão de que essa citação se verificou. E insurge-se, igualmente e de forma veemente, contra as ilações extraídas pelo Tribunal a quo dos documentos constantes dos autos, alegando que do seu teor, vertido no probatório, não é possível extrair-se a conclusão de que teve conhecimento da origem da dívida, insistindo, inclusive, que com a recepção desses documentos não ficou nem podia ficar a saber se se as dívidas se reportavam a falta de pagamentos de portagem, custos administrativos e coima, não aceitando, outrossim, as conclusões que o Tribunal a quo retira desses mesmos documentos, designadamente quanto a partir deles poder ter tido perfeito conhecimento desses factos.

3.2.5. Retira-se ainda das mesmas alegações, que a Recorrente está inconformada com a conclusão do Tribunal, face aos factos apurados, de que lhe seria possível ter tomado conhecimento do próprio significado das designações apostas nesses documentos, já que deles se não retira qualquer informação que lhe permitisse perceber ou defender da dívida que lhe é imputada.

3.2.6. Neste contexto, de manifesta discordância com os factos apurados e, muito especialmente, com as ilações e conclusões deles extraídas, é irrelevante, para o que ora importa decidir, que, a final, a Recorrente venha a concluir que não foi devidamente julgada a sua pretensão por violação do preceituado no artigo 163.º do CPPT. Porque esta violação do quadro legal assenta nas erradas ilações que afirma terem sido extraídas dos factos provados, o que vale para dizer que não é apenas uma questão de direito a que submeteu à nossa apreciação, mas, sim, sobretudo, uma questão de facto.

3.2.7. Como muito bem salientou o Excelentíssimo Procurador-Geral-Adjunto no seu parecer, a Recorrente não está apenas inconformada com o julgamento de direito que ficou vertido na sentença sobre as questões suscitadas. Para além do seu desacordo com esse julgamento, a Recorrente questiona o acerto das ilações que do probatório foram extraídas, questiona a existência nos autos de elementos de prova que permitam sustentar o apuramento dos factos ou as conclusões de facto em que o julgamento de direito se louvou.

3.2.8. Em suma, a Recorrente, para além de discordar do julgamento de direito no que respeita à interpretação que foi realizada do artigo 163.º e 165.º, n.º 1 alínea b) do CPPT, dissente, no mínimo, das ilações que o Meritíssima Juíza a quo extraiu dos factos apurados, o que, como é evidente, constitui fundamento para que se conclua que o presente recurso jurisdicional não tem por exclusivo fundamento matéria de direito. E, consequentemente, que a competência em razão da hierarquia para dele conhecer pertence ao Tribunal Central Administrativo Norte e não a este Supremo Tribunal Administrativo.

4. DECISÃO

Em face do exposto, julga-se este Supremo Tribunal Administrativo incompetente em razão da hierarquia, declarando-se competente para conhecer do mérito do presente recurso o Tribunal Central Administrativo Norte.

Custas pelos Recorrente, fixando-se em 2 UC´s a taxa de justiça devida.

Registe, notifique e, após trânsito, remeta os autos ao Tribunal Central Administrativo Sul (artigo 18.º, n.º 1 do CPPT).

Lisboa, 13 de Julho de 2021 – Anabela Ferreira Alves e Russo (Relatora, que consigna e atesta, nos termos do disposto no artigo 15.º-A do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de Março, aditado pelo artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 20/2020, de 1 de Maio, têm voto de conformidade com o presente acórdão os Senhores Juízes Conselheiros José Gomes Correia e Aníbal Augusto Ruivo Ferraz).