Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0321/10
Data do Acordão:07/14/2010
Tribunal:2 SUBSECÇÃO DO CA
Relator:ANTÓNIO MADUREIRA
Descritores:PROJECTO DE ARQUITECTURA
CÉRCEA
PLANO DIRECTOR MUNICIPAL
CÂMARA MUNICIPAL DE LISBOA
Sumário:I - O Regulamento do Plano Director Municipal de Lisboa (RPDML) define a moda da cércea como a cércea que apresenta maior frequência num conjunto edificado (artigo 7.º).
II - Por cércea mais frequente deve entender-se aquela que se repete mais vezes, não existindo moda da cércea num quarteirão em que existem apenas quatro prédios, todos eles com cérceas diferentes (de 25, 12, 16 e 19 m).
III - A regra relativamente a cérceas nas áreas consolidadas de edifícios de utilização colectiva habitacional, estabelecida no RPDML, é a da autorização do alinhamento pela moda da cércea [alínea a) do artigo 50.º], com o limite máximo de altura de 25 m [alínea b) do mesmo preceito].
IV - Aprovado um projecto de arquitectura num quarteirão em que apenas existiam os referidos quatro prédios, todos eles com cérceas diferentes, entre as quais havia uma de 25,22 m, para a reconstrução de um desses prédios com uma cércea de 25 m, essa aprovação não violava os critérios urbanísticos estabelecidos nos referidos preceitos do RPDML, em virtude de não existir moda da cércea no local e de não ter sido excedido o limite máximo permitido.
V - É, assim, ilegal, por erro nos seus pressupostos, a deliberação que declarou nulo o despacho que aprovou o projecto de arquitectura com essa cércea de 25 m, com o fundamento de que esse despacho violava esses critérios.
Nº Convencional:JSTA00066532
Nº do Documento:SA1201007140321
Data de Entrada:05/21/2010
Recorrente:A...
Recorrido 1:MUNICÍPIO DE LISBOA
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:REC REVISTA EXCEPC.
Objecto:AC TCA SUL.
Decisão:PROVIDO.
Área Temática 1:DIR URB - LICENCIAMENTO CONSTRUÇÃO.
Legislação Nacional:RGU DO PLANO DIRECTOR MUNICIPAL DE LISBOA RATIFICADO PELA RCM 94/94 DE 1994/09/29 ART7 ART44 ART50 4º N1 B.
CONST97 ART266 N2.
CPA91 ART3.
DL 555/99 DE 1999/12/16 ART68 N9.
CPA91 ART140 N1 B N2 A.
Jurisprudência Nacional:AC STA PROC299/09 DE 2009/12/09.; AC STA PROC46227 DE 2001/05/16.
Referência a Doutrina:FREITAS DO AMARAL CURSO DE DIREITO ADMINISTRATIVO VII PAG42 PAG43 PAG79.
FERNANDA PAULA OLIVEIRA IN CJA N13 PAG53 PAG54.
JOÃO GOMES ALVES IN CJA N17 PAG13 - PAG16.
MÁRIO TORRES IN CJA N27 PAG41.
ANTÓNIO DUARTE DE ALMEIDA IN CJA N45 PAG31 PAG33.
Aditamento:
Texto Integral: Acordam, em conferência, na 2.ª Subsecção da Secção do Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo:
1. RELATÓRIO
1. 1. A..., Ld.ª, devidamente identificada nos autos, intentou, no TAC de Lisboa, providência cautelar de suspensão de eficácia da deliberação da Câmara Municipal de Lisboa de 23/4/2008, que declarou nulo o despacho da sua vereadora do pelouro de obras particulares, B..., de 6/4/2006, que havia aprovado o projecto de arquitectura apresentado pela Autora para a construção de um edifício para habitação no n.º ... da Avenida ..., na cidade de Lisboa.
Por despacho de 29/10/2009, foi decidido antecipar o juízo sobre a causa principal, ao abrigo do disposto no artigo 121.º do CPTA, tendo, por sentença da mesma data, sido anulada a referida deliberação de 23/4/2008.
Interposto recurso para o TCAS, foi essa sentença revogada e mantida na ordem jurídica essa mesma deliberação.
Não se conformando com esse acórdão, a Autora interpôs recurso de revista excepcional, que foi admitido pela formação especial a que se reporta o n.º 5 do artigo 150.º do CPTA.
Nas suas alegações formulou as seguintes conclusões:
A. Mediante Acórdão proferido em 11 de Fevereiro de 2010, o Tribunal Central Administrativo do Sul concedeu provimento ao recurso interposto pela ora Recorrida e, em consequência, revogou a sentença recorrida do TAC de Lisboa e manteve na ordem jurídica a Deliberação da CML de 23/04/2008.
B. É deste Acórdão do Tribunal Central Administrativo do Sul que, pelos riscos que encerra a extrapolação da doutrina nele vertida para outros casos semelhantes (e muitos haverá pois está em causa a aplicação do PDM de Lisboa), e não apenas na relação jurídica controvertida, se interpõe o presente recurso de revista para o Supremo Tribunal Administrativo, ao abrigo do disposto nos nºs 1 e 2 do artigo 150.° do CPTA, já que o mesmo enferma de nulidade e efectuou incorrecta aplicação da lei.
C. A Recorrente fundamenta a interposição do presente recurso de revista tanto no pressuposto da existência de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental, quanto pela evidência de a admissão do presente recurso ser claramente necessária para uma melhor aplicação do direito.
D. O Acórdão sob revista sustenta que o n.º 1 do artigo 50.° do RPDM, nomeadamente a sua alínea a) confere poderes discricionários ao Município de Lisboa, não sindicáveis em sede jurisdicional.
E. Sucede, porém, que tal entendimento não pode, nem deve proceder, visto que semelhante tese afigura-se contrária ao espírito subjacente ao quadro legal em matéria de ordenamento do território e de planeamento urbanístico, já que o mesmo visa, justamente, eliminar a discricionariedade da Administração, e não facilitá-la (vide, entre outros, a alínea b) do artigo 8. °, o n.º 2 do artigo 9.°, o n.º 2 do artigo 11.° e o n.º 4 do artigo 15.°, todos da Lei de Bases da Política de Ordenamento do Território e Urbanismo - Lei n.º 48/98, de 11 de Agosto, com as alterações decorrentes da Lei n.º 54/2007, de 31 de Agosto).
F. É que não é indiferente, em especial na óptica das garantias dos particulares, interpretar a alínea a), do n.º 1 do artigo 50.° do RPDM num sentido ou noutro: ou como norma que atribui ao Município um poder discricionário quanto à dimensão das cérceas dos edifícios a construir; ou como uma verdadeira norma vinculativa que estabelece um parâmetro edificatório imperativo, em matéria de altura das fachadas das novas edificações.
G. No primeiro caso, a CML permitirá, ou não, o nivelamento da cércea a seu belo critério, e o acto que vier a praticar, seja ele de aprovação ou rejeição das pretensões dos particulares, apenas poderá ser atacado por desvio de poder, visto que de acto discricionário se trata.
H. Assim, a interpretar-se o preceito em causa como a fixação de um verdadeiro parâmetro urbanístico, e não como norma atributiva de qualquer poder discricionário, parece evidente que a CML não poderá impor, às novas edificações uma cércea inferior à altura das fachadas da maioria dos edifícios existentes, contrariamente ao propugnado pelo Acórdão sob revista.
I. Por outro lado, no entender do Tribunal a quo, a "moda da cércea" corresponde à altura da fachada de um único edifício: o edifício que apresentar, comparativamente com os demais, a maior largura da fachada.
J. Tal entendimento não se afigura conforme com o conceito de "moda da cércea” definido pelo RPDM de Lisboa, bem como com o disposto no Regulamento Municipal de Urbanização e Edificação de Lisboa, assumindo tal conceito uma enorme relevância, nomeadamente pela sua função conformadora da capacidade edificatória do solo, configurando-se assim a interpretação a dar ao conceito como uma questão jurídica da maior acuidade.
K. Acresce que Acórdão sob recurso veio aderir a uma determinada interpretação do artigo 50.º do RPDM, interpretação essa dada pela CML quando foi tomada a deliberação de 23 de Abril de 2008, objecto dos presentes autos.
L. Acontece, porém, que, no passado recente, a mesma CML, através do Despacho de 6 de Novembro de 2006 da Senhora Vereadora do Pelouro, interpretou a mesma norma jurídica em sentido diametralmente oposto.
M. Ou seja, no curto espaço de alguns meses, e na vigência das mesmas normas jurídicas (o RPUM), os serviços técnicos da CML, os respectivos dirigentes, e os órgãos do Município perfilharam uma determinada orientação e o seu contrário.
N. E o que sucedeu no passado, ocorrerá, seguramente, no futuro, a menos que por via do presente recurso este Tribunal Superior dirima, de uma vez por todas, a questão em apreço, dessa forma evitando que se perpetue a incerteza jurídica em matéria da maior sensibilidade, como é o caso da definição dos parâmetros urbanísticos aplicáveis às pretensões edificatórias dos particulares, pelo que assume tal questão enorme relevância social.
O. Aquela relevância decorre igualmente da orientação expendida no Acórdão posto em crise constituir (caso fosse seguida) um factor altamente limitativo e desincentivador das operações de reabilitação urbana na cidade de Lisboa, apesar de ser público, notório e reconhecido por todos que o interesse geral aconselha a privilegiar a recuperação do património edificado, nas zonas centrais da cidade, em detrimento da criação de novas áreas urbanizadas nas periferias.
P. O Acórdão sob revista padece de nulidade, por omissão de pronúncia, por força do artigo 668.°, n.º 1, alínea d) do CPC, tendo violado o artigo 660.°, também do CPC, bem como o n.º 2 do artigo 95.° do CPTA.
Q. A nulidade invocada verifica-se nos casos em que o Tribunal não conheça em absoluto de questão que deva conhecer, sendo certo que tal sucede quando sejam imputados ao acto administrativo impugnado um conjunto de vícios, ou ilegalidades, e a decisão judicial considere improcedente um deles sem cuidar de apreciar da procedência dos demais, tanto lhe bastando para decretar a validade do acto impugnado.
R. Na verdade, entendeu o douto Acórdão do TCA Sul que "teremos que considerar que a deliberação impugnada de 23/04/2008, que declarou nula a aprovação do projecto de arquitectura se mostra legal por o acto de aprovação haver violado o disposto no art.º 50/1/ a) do RPDM”.
S. Ora, ainda que o dito pressuposto (violação do artigo 50. °, n.º 1, alínea a) do RPDM) fosse exacto - e mais adiante veremos que o não é -, tal não bastaria para se concluir pela legalidade / validade da Deliberação posta em crise.
T. Isto porque a Recorrente, quer no processo cautelar que na acção principal, assacou à dita deliberação a violação da alínea a), do n.º 1 do artigo 50. ° e do artigo 44.º do RPDM, bem como a violação dos princípios da boa fé, da protecção dos direitos e interesses dos cidadãos e da proporcionalidade, consagradas nos artigos 4.°, 5.° e 6.º A do CPA. E a sentença da primeira instância considerou que a deliberação impugnada teria violado os artigos 50.°, 4.° e 44.° do RPDM, bem como o regime de revogabilidade dos actos válidos consagrados no artigo 140.° do CPA.
V. O Acórdão recorrido limitou-se a emitir pronúncia sobre a validade da deliberação em causa, à luz do preceituado na alínea a) do n.º 1 do artigo 50.° do RPDM, nada dizendo quanto aos demais vícios (causas de invalidade) que foram alegados pela ora Recorrente e/ou que fundamentaram a decisão tomada em primeira instância.
W. Pelo que o Acórdão recorrido, ao manter a deliberação impugnada sem apreciar todas as causas de invalidade assacadas a tal acto, enferma de nulidade, por omissão de pronúncia, em conformidade com o estatuído na alínea d) do n. ° 1 do artigo 668.° do CPC, tendo violado o artigo 660.°, n.º 2, do CPC bem como o artigo 95.° n.º 2 do CPTA.
X. A Deliberação Camarária n.º 255/2008, de 23/04/2008 é inválida uma vez que enferma dos vícios de violação de lei, por erro sobre os pressupostos de facto e de direito e desconformidade com o RPDM, bem como por violação dos princípios da boa fé, da protecção dos direitos e interesses dos cidadãos e da proporcionalidade, sendo, por isso, nula ou anulável, por força do artigo 103.° do RJIGT (Decreto-Lei n.º 380/99, de 22 de Setembro, na redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 316/2007, de 19 de Setembro) e dos artigos 4.°, 5.° e 6.º-A do CPA.
Y. Não poderá o intérprete encarar, isoladamente, o disposto na alínea a), do n.º 1, do artigo 50.° do RPDML, antes se impondo a articulação desta alínea com as demais alíneas do artigo 50.°, bem como com o artigo 44.°.
Temos assim que o critério fixado na alínea a) do n.º 1, do artigo 50.º do RPDML determina que a cércea dos novos edifícios deve ser nivelada pela moda da cércea ou i) no troço de rua entre duas transversais, ou ii) no troço de rua que apresente características morfológicas homogéneas.
AA. Tudo isto sempre com o limite máximo de 25 metros, fixado na alínea b), do n.º 1, do artigo 50.º do RPDML.
BB. Ora, uma vez que, no caso dos autos, não ocorre uma cércea que apresente maior frequência e, consequentemente, não existindo moda da cércea, a cércea do novo edifício teria que ser determinada através do recurso à alínea b) do n.º 1 do artigo 50.º do RPDM de Lisboa, tal como foi pugnado pelos serviços técnicos da CML, de acordo com a factualidade assente.
CC. Acontece, porém, que a deliberação impugnada (tal como o Acórdão recorrido) considerou que a moda de cércea é definida pela cércea do edifício mais baixo e não pela cércea mais frequente, sendo, por isso, evidente o erro em que labora tal deliberação, como evidente é a desconformidade da mesma com os preceitos do RPDML acima citados.
DD. A declaração de nulidade do acto de aprovação do projecto de arquitectura constituiu uma total surpresa para a Recorrente, defraudando a confiança nela suscitada quer pela actuação dos serviços da CML, respectivos funcionários e dirigentes, quer pelo Despacho da Sra. Vereadora da CML que aprovou o dito projecto.
EE. A apreciação do projecto de arquitectura incide, entre outras coisas, sobre a sua conformidade com os planos municipais de ordenamento do território, conforme estatui o n.º 1 do artigo 20.º do RJUE, pelo que a fixação da cércea e todas as questões inerentes ao cálculo da mesma, devem ser apreciadas e decididas nessa fase do procedimento.
FF. Assim, uma vez aprovado o projecto de arquitectura decididas ficam, em termos definitivos, todas as questões que poderiam, à partida, inviabilizar o licenciamento da operação urbanística
GG. N o entanto, decorridos 17 meses sobre a aprovação do projecto de arquitectura (e mais 5 meses sobre a conclusão do procedimento, com aprovação dos projectos das especialidades) a CML decide apreciar o projecto de arquitectura, não obstante estar há muito finda a respectiva fase procedimental.
HH. Desta forma, a CML frustrou a legítima expectativa e a confiança gerada na Recorrente, em razão de todos os pareceres, informações e despachos (mormente o Despacho de 06/11/2006) proferidos no procedimento em causa.
II. É notório que a Deliberação impugnada violou o princípio da boa fé, no seu vector negativo, porquanto a aprovação do projecto de arquitectura se traduziu num juízo de conformidade com o disposto no Plano Director Municipal de Lisboa, juízo esse da autoria da CML, nada fazendo antever uma nova apreciação do mesmo projecto de arquitectura e muito menos no sentido em que foi efectuada.
JJ. O princípio da boa fé é transversal a todo o procedimento administrativo, pelo que suscitando-se as questões acima referidas, já após o despacho da aprovação do projecto de arquitectura, deveria a CML ter informado a Recorrente e procurado solucionar as mesmas no espírito de colaboração mútua.
KK. Termos em que a Deliberação camarária que declarou a nulidade da aprovação do projecto de arquitectura é anulável por violação do princípio da boa fé.
LL. A deliberação impugnada igualmente violou, de forma flagrante, os princípios da protecção dos direitos e interesses dos cidadãos e da proporcionalidade, consagrados nos artigos 4.° e 5.° do CPA, já que é notório que o acto impugnado afectou legítimos interesses da Recorrente, na medida em que inviabilizou a construção do edifício em causa, num momento em que se encontravam aprovados todos os projectos necessários ao licenciamento do mesmo.
MM. Por outro lado, a deliberação impugnada impôs à Recorrente um sacrifício desmedido e inusitado, já que a mesma foi proferida sem que à Recorrente tenha sido dada a oportunidade de alterar ou reformular o projecto de arquitectura em causa.
NN. É manifesto que a deliberação impugnada não é adequada nem necessária nem tão pouco justa, porque o interesse público sempre poderia ser satisfeito pela alteração ou reformulação do projecto de arquitectura, sem que fosse declarado nulo o anterior acto de aprovação do mesmo.
OO. É também por demais manifesto que a sentença do TAC de Lisboa efectuou correcta interpretação do RPDM de Lisboa.
PP. A deliberação impugnada, igualmente violou a alínea b), do n.º 1 do artigo 140.° e o artigo 141.° do CPA, conforme a primeira instância também reconheceu.
QQ. Independentemente da questão de saber se o Despacho de 06/11/2006, que aprovou o projecto de arquitectura, é, ou não constitutivo de direitos, parece inquestionável que o mesmo é gerador de interesses legalmente protegidos, a favor da Recorrente.
RR. O acto de aprovação do projecto de arquitectura, ainda que não seja o acto final de licenciamento da pretensão urbanística do requerente, define uma posição jurídica atendível e juridicamente tutelada, dado que concretiza e estabiliza determinados parâmetros urbanísticos, no que dizem respeito à arquitectura, determinando que o procedimento de licenciamento avance para a sua última fase.
SS. Se assim é, o acto de aprovação do projecto de arquitectura beneficia da protecção conferida pelo artigo 140.° do CPA, tornando tal acto irrevogável, e consequentemente insusceptível de alteração.
TT. O Acórdão sob revista sustenta que o n.º 1 do artigo 50.° do RPDM, nomeadamente a sua alínea a) confere poderes discricionários ao Município de Lisboa, o que corresponde uma errada interpretação da lei uma vez que tal não resulta do elemento literal da norma.
UU. É que o preceito legal invocado diz claramente, e para além de qualquer dúvida razoável, que "É autorizado o nivelamento da cércea pela moda das cérceas da frente edificada ... ", e não, como o douto Tribunal a quo o parece entender, que "pode ser autorizado" .
VV. Nada existe de discricionário na norma citada, nem tão-pouco a mesma confere ao critério do intérprete qualquer escolha quanto ao modo de calcular a cércea do edifício a construir.
WW. Antes pelo contrário, a norma em apreço do RPDM de Lisboa expressamente indica como se deverá proceder ao cálculo da cércea, não existindo qualquer alternativa senão obedecer àquela prescrição.
XX. É por demais evidente o erro em que incorreu o Acórdão recorrido, já que não faz sentido determinar um parâmetro urbanístico, que é relativo à dimensão vertical das edificações, em função da dimensão horizontal dos mesmos.
YY. Por tudo isto, lógico será concluir que o Acórdão recorrido errou na interpretação dada à alínea a) do n.º 1 do artigo 50.º do RPDM de Lisboa, visto que calculou a moda da cércea pela frente edificada de um edifício, quando a mesma se calcula por referência à frequência da cércea nos vários edifícios que compõem o arruamento ou o troço de rua.
1. 2. A Câmara Municipal de Lisboa contra-alegou, tendo defendido, em síntese:
- o acto que aprova o projecto de arquitectura de uma obra não define a situação jurídica do requerente relativamente a essa obra, o que só acontece com o acto final de licenciamento;
- assim, o projecto de arquitectura que tenha sido aprovado perante certo quadro normativo poderá ser alterado, pois não é um acto constitutivo de direitos;
- não sendo um acto constitutivo de direitos, não está sujeito à disciplina de revogação de actos constante da alínea b) do n.º 1, nem n.º 2, do artigo 140 do CPA, sendo sim livremente revogável;
- uma vez que o acto de licenciamento ainda não tinha sido deferido e considerando que a regra é que a nulidade pode ser declarada a todo o tempo, o Município de Lisboa não só tinha fundamentos de facto e de direito, como estava em tempo para emitir a deliberação ora impugnada;
- o projecto de arquitectura aprovado violava o PDM de Lisboa;
- na verdade, o edifício objecto de pedido de licenciamento localiza-se numa zona classificada pelo RPDM como Área Consolidada de Edifícios de Utilização Colectiva Habitacional, cujas operações urbanísticas estão sujeitas ao disposto nos artigos 49.º e seguintes do RPDM.
- na Av. ..., para efeitos de cércea, há que atender à 1.ª parte da alínea a) do n.º 1 do art. 50.º do RPDM para cujo efeito importa ponderar três edifícios, os n.ºs ..., ... e ... daquela Avenida, excluindo-se o n. ° ... (da Recorrida) por se destinar a demolição.
- atendendo aos três edifícios em causa, existe uma variação, não repetida, de classes de altura de fachada dos mesmos, o que não significa que não exista moda de cércea;
- o prédio com o n.º ..., contíguo ao prédio a reconstruir, é que apresenta maior largura da fachada da rua, pelo que a sua cércea deve ser considerada a preponderante;
- era, assim, por ele que devia ser feita a homogeneização das alturas, pelo que o projecto de arquitectura da recorrente não cumpria os requisitos necessários para merecer aprovação;
- o acórdão recorrido não sofre de nulidade por omissão de pronúncia, pois que conheceu de todas as questões colocadas no recurso que lhe foi apresentado e que ficou delimitado por essas questões;
- a deliberação impugnada não viola os princípios da boa fé, da proporcionalidade, em qualquer das suas vertentes, nem do princípio da legalidade, antes defendendo a satisfação desses interesses.
1. 3. O Excelentíssimo Magistrado do Ministério Público, notificado para efeitos do disposto no artigo 146.º, n.º 1, do CPTA, emitiu o seguinte parecer:
“Exmos. Juízes Conselheiros
A - Do Recurso
1. O TAC de Lisboa, por sentença de 29.10.09, julgou procedente a pretensão impugnatória da ora recorrente A..., Lda. e anulou a deliberação da Câmara Municipal de Lisboa de 23.4.08 que aprovou a proposta n° 255/08 na qual se propunha a declaração de nulidade do despacho de 6.4.06, proferido pela, então, Sr.ª ª Vereadora responsável e que tinha aprovado o projecto de arquitectura para a construção do edifício da Av. ..., nº ... em Lisboa.
1.1. Desta sentença recorreu jurisdicionalmente o Município de Lisboa, sendo que por Ac. de 11.02.2010 o TCA Sul concedeu provimento a este recurso e revogou aquela com o fundamento de que - "da aplicação conjugada dos arts. 50°, nº 1 - a) , 4° , nº 1 e 44° do Regulamento do Plano Director Municipal de Lisboa ( RPDML ) resulta que em matéria de alinhamento das cérceas o município goza de alguns poderes discricionários visando a protecção dos interesses de ordem paisagística, histórica, cultural e de humanização do território, que em princípio não podem ser sindicados pelos tribunais, salvo em caso de erro grosseiro ou palmar, não podendo ser imposto o referido alinhamento pelos 25 metros de cércea conforme expresso na sentença recorrida já que não existe aquele tipo de erro ... sendo que como a moda de cércea ali é de 12,50 metros (a do prédio nº ...°) não poderia o projecto de arquitectura do prédio a construir com o nº ... aprovar uma altura de 25 metros, não existindo sequer nenhum interesse estético, cultural ou ambiental que justifique a adopção do limite máximo admitido pelo RPDML " .
1.2. É deste Ac. que vem interposto o presente recurso de revista alegando, em síntese, a recorrente A..., Lda. que o Ac. recorrido padece de nulidade, por omissão de pronúncia, por força dos arts. 668°, nº 1 - d) do C.P.C., 660° do mesmo código e ainda nº 2 do art. 95° do CPTA; que o Município de Lisboa não goza de quaisquer poderes discricionários neste caso; que não existindo moda de cércea tem que se aplicar o disposto na alínea b) do nº 1 do art. 50° do RPDML (altura máxima de 25 m) e que foi violado o princípio da boa-fé.
1.3. Este recurso de revista foi admitido por Ac. de 28.4.2010 por se entender - " que importa clarificar, à luz do quadro legal aplicável, designadamente, quais os parâmetros edificativos imperativos, em matéria de altura das fachadas das novas edificações, precisando, para além do mais, qual o sentido e o alcance do conceito urbanístico de "moda de cércea " a que alude a alínea a), do nº 1 do art. 50° do RDPML, interessando, também, apurar qual a concreta natureza dos poderes legais concedidos a este nível à CML".
B - O Direito
2. Como é sabido, a nulidade de sentença por omissão de pronúncia só ocorre quando o tribunal deixar de apreciar questão que devia conhecer (artigos 668.°, n.º 1, alínea d) e 660.°, n.º 2 do CPC).
Ora, o Ac. do TCA apreciou todas as questões alegadas pelo, então, recorrente Município de Lisboa e "se o acórdão apreciou a sentença, e não deixou de conhecer toda a matéria nela tratada, e à sentença não foi imputada nulidade, o acórdão, por esse motivo, também não pode padecer de omissão de pronúncia ". Ac. deste STA de 9.12.09, rec. n° 0299/99 da 1ª Sub-secção do CA. Assim, o Ac. do TCA não tinha que se pronunciar sobre as demais causas de invalidade do acto que a ora recorrente invocava para além da interpretação das normas do RPDML e das consequências jurídicas de tal interpretação. Não se verifica, pois, o vício de omissão de pronúncia invocado.
3. A Administração está subordinada, na globalidade da sua actuação, ao princípio da legalidade (arts. 266.°, n.º 2, da C.R.P. e 3.° do C.P.A.) e, para se poder concluir pela atribuição de um poder discricionário, é necessário que a lei atribua à Administração o poder de escolha entre várias alternativas diferentes de decisão. Assim, não existindo qualquer disposição legal que atribua à Administração um poder discricionário tem de concluir-se que o seu poder é vinculado. No art. 3.° do C.P.A., o princípio da legalidade passou a ter uma formulação positiva, constituindo não só o limite mas também o fundamento e o critério de toda a actuação administrativa, o que tem como corolário que não haja um poder de a Administração fazer o que bem entender, salvo quando a lei lho proibir, mas sim que a Administração só possa fazer aquilo que a lei lhe permitir que faça.
Assim, mesmo nos casos em que é se conclui pela existência de um poder discricionário, «é necessário que a lei atribua à Administração o poder de escolha entre várias alternativas diferentes de decisão, quer o espaço de escolha esteja apenas entre duas decisões contraditoriamente opostas (v.g., conceder ou não uma autorização), quer entre várias decisões à escolha numa relação disjuntiva (v.g. nomeação de um funcionário para um determinado posto de uma lista nominativa de cinco)». (FREITAS DO AMARAL, Curso de Direito Administrativo, volume II, página 79.)
O princípio da legalidade é definido no referido art. 3.° do C.P.A. nos seguintes termos: Os órgãos da Administração Pública devem actuar em obediência à lei e ao direito, dentro dos limites dos poderes que lhes estejam atribuídos e em conformidade com os fins para que os mesmos poderes lhes forem conferidos.
Neste art. 3.°, o princípio da legalidade deixou de ter «uma formulação unicamente negativa (como no período do Estado Liberal), para passar a ter uma formulação positiva, constituindo o fundamento, o critério e o limite de toda a actuação administrativa».(FREITAS DO AMARAL, JOÃO CAUPERS, JOÃO MARTINS CLARO, JOÃO RAPOSO, PEDRO SIZA VIEIRA e VASCO PEREIRA DA SILVA, em Código do Procedimento Administrativo Anotado, 3.ª edição, página 40.
Em sentido semelhante, pode ver-se o primeiro Autor em Curso de Direito Administrativo, volume II, página 42.)
«A lei não é apenas um limite à actuação da Administração: é também o fundamento da acção administrativa. Quer isto dizer que, hoje em dia, não há um poder livre de a Administração fazer o que bem entender, salvo quando a lei lho proibir; pelo contrário, vigora a regra de que a Administração só pode fazer aquilo que a lei lhe permitir que faça».(FREITAS DO AMARAL, Curso de Direito Administrativo, volume II, páginas 42-43. Em sentido idêntico, podem ver-se:
- MARCELO REBELO DE SOUSA, Lições de Direito Administrativo, 1999, volume I, página 84, que refere:
«Com o Estado pós-liberal, em qualquer das suas três modalidades, a legalidade passa de externa a interna.
A Constituição e a lei deixam de ser apenas limites à actividade administrativa, para passarem a ser fundamento dessa actividade.
Deixa de valer a lógica da liberdade ou da autonomia, da qual gozam os privados, que podem fazer tudo o que a Constituição e a lei não proíbem, para se afirmar a primazia da competência, a Administração Pública só pode fazer o que lhe é permitido pela Constituição e a lei, e nos exactos termos em que elas o permitem.».
- MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA, PEDRO COSTA GONÇALVES e J. PACHECO DE AMORIM, em Código do Procedimento Administrativo Comentado, volume I, 1.ª edição página 138, em que referem que «As fórmulas usadas parecem manifestações inequívocas de que, para o legislador do Código, a actuação da Administração Pública é comandada pela lei, sendo ilegais não apenas os actos (regulamentos ou contratos) administrativos produzidos contra proibição legal, como também aqueles que não tenham previsão ou habilitação legal, ainda que genérica (ou até orçamental)».
- ANTÓNIO FRANCISCO DE SOUSA, em Código do Procedimento Administrativo Anotado, página 56:
«Ora, este princípio não admite, contrariamente ao que sucede com os particulares, que seja possível à Administração tudo o que a lei não proíbe, antes impõe que apenas lhe seja possível aquilo que positivamente lhe seja permitido.». Ac. deste STA de 17.12.03, rec. n° 01492/03 do C.A.
3.1. Ora, dúvidas não parece haver que a criação e existência dos Planos Directores Municipais e respectivos Regulamentos se destinam a reduzir ao mínimo o poder discricionário da Administração em matéria de ordenamento do território e do planeamento urbanístico, como, de resto, bem refere a recorrente nas suas alegações.
E o art. 50°, nº 1 - a) do RPDML não permite qualquer discricionariedade à Administração quando diz - "Nas áreas consolidadas de edifícios de utilização colectiva habitacional as obras de construção ficam sujeitas aos seguintes condicionamentos: a) É autorizado o nivelamento da cércea pela moda das cérceas da frente edificada do lado do arruamento onde se integra o novo edifício, no troço de rua entre duas transversais ou no troço de rua que apresente características morfológicas homogéneas, desde que não ultrapasse o que decorre da aplicação do art. 59° do RGEU: b) No caso previsto na alínea anterior a cércea do novo edifício não pode em qualquer caso exceder 25 m". Não se discute que estamos em presença de uma área consolidada nos termos do art. 44° do RPDML que dispõe -"As áreas consolidadas são espaços urbanos onde os arruamentos e o alinhamento do edificado estão definidos e onde se visa ordenar o aproveitamento das parcelas não edificadas e se admite a substituição de edifícios, bem como a modificação das funções e usos urbanos, mantendo as características morfológicas do tecido urbano existente".
A questão coloca-se, neste caso, face ao que deve entender-se por cércea e moda de cércea.
Ora o art. 7° do RPDML define cércea como - "A dimensão vertical da construção contada a partir do ponto da cota média do terreno no alinhamento da fachada até à linha superior do beirado ou platibanda ou guarda do terraço". E a moda de cércea é definida como - "cércea que apresenta maior frequência num conjunto edificado".
Daqui resulta que num determinado conjunto edificado a moda de cércea será aquela que se repete mais vezes nesse conjunto.
Sucede, porém, que no conjunto em causa neste processo não existe uma cércea que se repita, ou seja, dos quatro edifícios que constituem o conjunto cada um tem a sua cércea. O n° ... (primeiro para quem vem do Largo do ... e entra na AV. ... - lado esquerdo) tem 19,94 m de cércea; o n° ... (imediatamente a seguir e propriedade da recorrente) tem 16,73 m de cércea; o n° ... (a seguir a este, portanto o 3°) tem 12,64 m de cércea e o n° ... (o último no sentido que vem sendo apontado) tem 25,22 m de cércea.
Não há, pois, manifestamente, moda de cércea neste conjunto edificado.
Como, aliás, também não há no conjunto edificado em frente, muito embora as cérceas sejam quase todas perto dos 20/5 metros. Acresce que (para quem conheça bem o local) o desregramento urbanístico é manifesto podendo vislumbrar-se um edifício, muito próximo deste conjunto (esquina da Avª ..., Largo ...) em que a cércea é superior a 30 metros.
Aqui, o único edifício que, efectivamente destoa dos demais, é o n° ..., que tem 12,64 m de cércea.
3.2. Não havendo, como não há, moda de cércea e havendo no conjunto edificado uma cércea de 25,22 m a construção será de autorizar com o respeito pelo limite imposto pela alínea b) do n° 1 do art. 50° do RPDML (máximo de 25 m, que é o que consta do projecto de arquitectura ora aprovado ora desaprovado pela Administração (neste caso, o Município de Lisboa e ora recorrido).
A não ser que se entenda que tal contende com a globalidade dos interesses de ordem paisagística, histórica, cultural e de humanização do território como está previsto no art. 4°, n° 1 do dito RPDML o que, diga-se, é impensável face ao que se disse atrás em 3.1.
3.3. De qualquer modo, o projecto de arquitectura foi aprovado pelo Município de Lisboa e se tal aprovação não é constitutiva de direitos (o que é discutível face à doutrina e à jurisprudência Embora a corrente maioritária seja no sentido de que se trata de um acto preparatório - Acs. 047.070, de 16.5.02; 45.789, de 21.2.01; 45.490 de 8.2.01; 45.768 de 23.5.2000; 43.497 de 5.5.98 e 46.506 de 28.11.08 - não impugnável contenciosamente (em sentido contrário - Fernanda Paula Oliveira e João Gomes Alves, in Cadernos de Justiça Administrativa, n° 13, p. 53/54 e nº 17, p. 13/16, respectivamente).
a verdade é que criou legítimas expectativas na recorrente Vide as reflexões sobre esta matéria e que constam das anotações ao Ac. n° 46.227 de 15.5.01, in Cadernos de Justiça Administrativa n° 45, por António Duarte de Almeida e Mário Torres, anotação ao Ac. do TC, n° 40/01, in CJA, n° 27. p. 41 e sgs.
já que o despacho de aprovação de qualquer projecto de arquitectura é o termo de uma fase do procedimento administrativo Mário Torres qualifica esta aprovação do projecto de arquitectura como acto central do procedimento de licenciamento de construção - na anotação citada.
no qual se decide da conformidade da construção a efectuar com os planos municipais e de ordenamento do território e da sua adequação com os demais interesses públicos (paisagísticos, históricos, culturais etc.). Depois só terá que se verificar a conformidade da construção nos pormenores, de acordo com o RGEU (projectos de especialidades). Assim sendo, aquela pequena parte de discricionariedade que é concedida à Administração pelo arts. 4°, n° 1 e 44° do RPDML teria sempre que respeitar aquelas legítimas expectativas sob pena de violação do princípio da boa-fé previsto no art. 6° - A do CPA e, até por isso, tal discricionariedade seria sempre sindicável pelos tribunais (como defende toda a doutrina e jurisprudência). É claro que com isto não se quer afastar radicalmente a possibilidade da Administração revogar uma anterior decisão que tenha aprovado um qualquer projecto de arquitectura. Mas tal só deverá ser possível quando se verificar que tal decisão cometeu um erro grosseiro ou foi viciada por outros motivos menos consentâneos com a legalidade ou quando tal projecto viole os mais elementares interesses públicos.
Sem isto, não é admissível que o Município de Lisboa, ou qualquer outro, no âmbito da mesma factualidade e mesma legislação dê o dito por não dito, em consequência, por vezes, de razões sem razão e a que o cidadão não pode ficar exposto.
4. Como assim, embora com respeito por diferente e mais douta opinião, somos de parecer que o presente recurso de revista merece provimento.”
1. 4. Foram colhidos os vistos legais, pelo que cumpre decidir:
2. FUNDAMENTAÇÃO
2. 1. OS FACTOS:
Consideram-se provados os factos como tal considerados pelas instâncias, conforme o estabelecido no artigo 713.º, n.º 6, do CPC.
2. 2. O DIREITO:
A recorrente coloca, nas suas alegações de recurso, as seguintes questões: (i) erro de julgamento do acórdão recorrido, ao considerar que o Plano Director Municipal de Lisboa (a) confere ao município poderes discricionários em matéria de nivelamento das cérceas e (b) ao definir e aplicar o conceito urbanístico de “moda de cércea” estabelecido nesse Plano [conclusões D) a M) e X) a FF) e OO) a YY)]; (ii) nulidade, por omissão de pronúncia, desse acórdão, ao não ter conhecido da violação dos princípios da boa fé, da protecção dos direitos e interesses dos cidadãos e da proporcionalidade, consagrados nos artigos 4.°, 5.° e 6.º A do CPA, que a requerente imputou à deliberação impugnada [conclusões B e P) a W)]; (iii) pretende, ainda, que seja conhecida a violação dos princípios referidos em (ii) [conclusões GG) a NN)].
Dessas alegações resulta, com clareza, que o que a recorrente pretende é ver anulada a deliberação impugnada (de 23/4/2008), com vista a ver reposto na ordem jurídica o despacho de 6/11/2006, que havia aprovado o projecto de arquitectura da obra em causa. Para o efeito, pretende a revogação do acórdão recorrido, com vista a represtinar a sentença do TAF, que havia anulado a deliberação impugnada. É isso, aliás, o que pede, dizendo que deve “revogar-se o acórdão recorrido, mantendo assim a sentença de primeira instância, tudo com as legais consequências”.
O que significa que a nulidade por omissão de pronúncia do acórdão recorrido só lhe interessará para o caso de não ser concedido provimento ao recurso relativamente ao alegado erro de julgamento referente ao nivelamento da cércea, o mesmo acontecendo com o conhecimento da violação dos princípios cuja omissão considera ter gerado essa nulidade.
Este STA tem decidido que a arguição de nulidades pode ser feita a título subsidiário (cfr. ac. de 24/2/2010, recurso n.º 1107/09), entendimento que se reitera, em face do estabelecido no artigo 684-A, n.º 2, do CPC, pelo que, considerando-se ser essa a pretensão da recorrente, começaremos por conhecer dos invocados erros de julgamento.
2. 2. 1. Erros de julgamento:
O acórdão recorrido concedeu provimento ao recurso jurisdicional interposto da sentença do TAF de Lisboa de 29/10/2009 (fls 330-354 dos autos), que havia anulado a deliberação do recorrente de 23/4/2008, que tinha declarado nulo o despacho de 6/11/2006, revogando essa sentença e mantendo na ordem jurídica esta deliberação.
A sentença do TAF anulou a deliberação impugnada, por ter considerado, que, “no caso concreto não sendo possível determinar uma classe de edifícios dominante no troço de rua em causa cabia ao município impôr o alinhamento de cérceas nos termos da alínea e) do nº 1 do artigo 50° do RPDML, naturalmente no respeito pelos limites impostos pelo artigo 59° do RGEU e pela alínea b) do artigo 50°, n° 1, b) do RPDML (25 metros de cércea), cujo desrespeito importava aí sim a nulidade das respectivas decisões de aprovação” e, na sequência, ter concluído que a deliberação impugnada padecia de erro de direito no específico fundamento que nela era invocado, pois que, “Em 2008 a aprovação do projecto de arquitectura só poderia ser alterada ou eliminada (em face da discordância da específica solução encontrada, do concreto alinhamento permitido) através dos regimes de revogação dos actos administrativos constitutivos de direitos (artigo 140º, nº 1 c) e nº 2 a) e b) do CPA)”.
Do seu discurso fundamentador resulta que a cércea autorizada pelo despacho de 30/4/2006 foi determinada por razões de ordem estética e de integração no conjunto dos edifícios existentes quer na rua quer especificamente no troço da rua em causa, ao abrigo da alínea e) do artigo 50.º do RPDML, pelo que esse despacho não violava o disposto na alínea a) do mesmo preceito e, consequentemente, não era nulo, pelo que só podia ser objecto de revogação de acordo com o regime estabelecido no artigo 140.º do CPA.
O acórdão recorrido, por sua vez, considerou que, em face do disposto nos artigos 50.º, 4.º, n.º 1 e 44.º do RPDM, o município gozava, em matéria de alinhamento das cérceas, de alguns poderes discricionários, visando a protecção de interesses de ordem paisagística, histórica, cultural e de humanização do território, que, em princípio, só seriam passíveis de sindicância pelo tribunal em caso de erro grosseiro ou palmar, e que, sendo a moda da cércea no quarteirão em causa a do prédio com o n.º ..., por a fachada deste prédio ser a que tinha a mais ampla largura de rua e, por isso, predominar sobre os restantes prédios, não poderia, considerando o disposto no art° 50º/1/a) do RPDM, o projecto de arquitectura do prédio a construir no nº ... daquela rua ter sido aprovado com uma altura de 25 metros, não existindo sequer nenhum interesse estético, cultural ou ambiental que justificasse a adopção do limite máximo admitido pelo RDPM, pelo que também por esta via era de considerar que a deliberação impugnada de 23/4/2008, que declarou nula a aprovação do projecto de arquitectura se mostra legal por o acto de aprovação haver violado o disposto no art° 50º/1/a) do RDPM, pelo que decidiu revogar a sentença recorrida e manter na ordem jurídica a deliberação anulatória de 23/4/2008.
A recorrente e o Excelentíssimo Magistrado do Ministério Público defendem que a recorrida não detinha quaisquer poderes discricionários relativamente ao nivelamento das cérceas, antes estando vinculada à aplicação do critério urbanístico estabelecido na alínea a) do artigo 50.º do RPDML, por força do qual, não havendo cérceas repetidas no quarteirão, não havia moda de cércea, pelo que apenas estava sujeita ao limite imposto pela alínea b) do mesmo preceito regulamentar (máximo de 25 m, que era o que constava do projecto de arquitectura aprovado pelo Município de Lisboa, ora recorrido).
O recorrido, por sua vez, para além de defender que o acto de aprovação do projecto de arquitectura não é um acto administrativo constitutivo de direitos, defende que havia prédios construídos no quarteirão, logo havia moda de cércea, que, dado não haver cérceas repetidas, era determinada pela cércea do prédio com maior frente de rua, pelo que o acto que aprovou o projecto de arquitectura da obra em causa não respeitou a moda da cércea, pelo que violava o PDML, sendo, por isso, nulo, pelo que devia ser declarada essa nulidade.
São estas as posições em confronto.
2. 2. 1. 2. De acordo com o estabelecido no n.º 3 do artigo 150.º do CPTA, aos factos materiais fixados pelo tribunal recorrido, o tribunal de revista aplica definitivamente o regime jurídico que julgue aplicável.
Os factos provados relevantes para essa aplicação são os seguintes:
- A recorrente é proprietária de um prédio urbano sito em Lisboa na Avenida ..., números ... a ...-A.
- O quarteirão onde o prédio se integra é delimitado, no que respeita à Avenida..., por duas transversais: o Largo do... e a Avenida..., estando o mesmo em zona classificada pelo Plano Director Municipal de Lisboa como "Área Consolidada de Edifícios de Utilização Colectiva Habitacional".
- Nesse quarteirão, na Avenida ..., do lado dos números de porta pares, existem quatro prédios: o nº..., o nº..., o nº... e o nº....
- O prédio com o nº... detém 13,99 m de frente de fachada para a Avenida..., o nº... detém 13,7 m, o nº... detém 25, 25m e o nº... detém 23,76m.
- O prédio com o n.º ... detém 19,94 m de cércea, o nº ... detém 16, 73m, o n° ... detém 12,64 e o nº ... detém 25, 22 m.
- A recorrente apresentou um pedido de licenciamento para construção de um prédio nos n.ºs... a... A, constando do projecto de arquitectura apresentado uma cércea de 25 metros.
- Esse projecto foi aprovado por despacho da Vereadora responsável de 6/4/2006, mediante as informações e os pareceres favoráveis dos serviços constantes das alíneas J), K) e L) do probatório;
- Por deliberação da Câmara Municipal de 23/4/2008 foi declarado nulo o despacho que havia aprovado o projecto de arquitectura, com base nas informações constantes das alíneas O) e R) do probatório
São do seguinte teor as disposições regulamentares que foram consideradas, pelas instâncias, pelas partes ou pelo Excelentíssimo Magistrado do Ministério Público, como reguladoras da situação, todas elas do RPDML:
Artigo 4.º
1. Na aplicação do presente Regulamento os órgãos e serviços municipais actuarão de modo a atender à globalidade dos interesses de ordem paisagística, histórica, cultural e de humanização do território.
Artigo 7.º
Para efeitos do Regulamento, são adoptadas as seguintes definições:
Cércea - dimensão vertical da construção, contada a partir do ponto da cota média do terreno no alinhamento da fachada até à linha superior do beirado ou platibanda ou guarda do terraço;
Moda da Cércea - cércea que apresenta maior frequência num conjunto Edificado.
Artigo 44.º
As áreas Consolidadas são Espaços Urbanos onde os arruamentos e o alinhamento do edificado estão definidos e onde se visa ordenar o aproveitamento das parcelas não edificadas e se admite a substituição de edifícios, bem como a modificação das funções e usos urbanos, mantendo as características morfológicas do tecido urbano existente.
Artigo 50.º
1. Nas Áreas Consolidadas de Edifícios de Utilização Colectiva Habitacional, as obras de construção ficam sujeitas aos seguintes condicionamentos:
a) É autorizado o nivelamento da cércea pela moda das cérceas da frente edificada do lado do arruamento onde se integra o novo edifício, no troço de rua entre duas transversais ou no troço de rua que apresente características morfológicas homogéneas, desde que não ultrapasse o que decorre da aplicação do artigo 59.º do RGEU.
b) No caso previsto na alínea anterior a cércea do novo edifício não pode em qualquer caso exceder 25 metros.
… … …
e) Por razões estéticas e de integração no conjunto dos edifícios existentes, a Câmara Municipal pode impor o alinhamento de pisos e de outros elementos construtivos e arquitectónicos, com os edifícios envolventes.
2. 2. 1. 3. Poderes discricionários:
A sentença do TAC considerou que o alinhamento da cércea em causa autorizado pelo despacho de 30/4/2006, que aprovou o projecto de arquitectura da obra, foi proferido ao abrigo do disposto na alínea e) do artigo 50.º do RPDML, que considerou conferir poderes discricionários ao município.
O acórdão recorrido, por sua vez, também defende a existência de poderes discricionários da CML para definir o nível das cérceas, mas conferidas pelas disposições conjugadas dos artigos 50.º, 4.º, n.º 1 e 44.º do RPDML.
Para a recorrente e o Excelentíssimo Magistrado do Ministério Público a recorrida, ao aprovar o projecto de arquitectura, não detinha quaisquer poderes discricionários relativamente ao nivelamento das cérceas, antes estando vinculada à aplicação do critério urbanístico estabelecido na alínea a) do artigo 50.º do RPDML, por força do qual, não havendo cérceas repetidas no quarteirão, não havia moda de cércea, pelo que apenas estava sujeita ao limite imposto pela alínea b) do mesmo preceito regulamentar (máximo de 25 m, que era o que constava do projecto de arquitectura aprovado pelo Município de Lisboa, ora recorrido).
E a razão está do lado destes últimos.
Na verdade, o princípio geral que norteia a actividade administrativa é o princípio da legalidade (cfr. artigo 266.º, n.º 2, da CRP e artigo 3.º do CPA), por força do qual a Administração deve fazer o que a lei lhe determinar e só o que esta lhe determinar. Não existindo qualquer disposição legal a atribuir um poder discricionário à Administração, os poderes desta consideram-se poderes vinculados. Para se poder concluir pela atribuição de um poder discricionário, é necessário que a lei atribua à Administração o poder de escolha entre várias alternativas diferentes de decisão, como desenvolvidamente evidenciou o Excelentíssimo Magistrado do Ministério Público no seu douto parecer que transcrevemos. Essa atribuição, dado constituir excepção à regra da vinculação, tem de ser absolutamente clara e inequívoca.
No caso sub judice, o RPDML não atribui à CML qualquer poder de escolha entre várias alternativas diferentes no que respeita ao nivelamento das cérceas.
Com efeito, a regra geral é – todos estão de acordo quanto a isso – a do nivelamento da cércea pela moda das cérceas existentes.
E a regra contida na alínea e) do artigo 50.º do RPDML, que a sentença da 1.ª instância considerou permitir à Câmara impôr o alinhamento dos pisos, não tem nada a ver com as cérceas, nem com o seu nivelamento. Respeita ao alinhamento de pisos, que é uma coisa absolutamente distinta, ou seja, à altura dos pisos, de cada um dos eventuais vários pisos existentes, à altura do chamado pé direito deles, visando a inexistência de alturas diferentes que dêem origem, por exemplo, a diferentes linhas de janelas ou de varandas para a frente da rua, que poderiam pôr em causa a estética da mesma e daí a possibilidade de uniformização das alturas desses pisos, por razões estéticas. Atente-se só na diferença de terminologia – nivelamento numa alínea e alinhamento noutra – e logo se conclui estar-se perante campos de aplicação diferentes, o que afasta a aplicação de soluções diferentes à mesma situação. Para além de que seria absolutamente inexplicável que fosse estabelecida a regra geral na alínea a) e a possibilidade de a poder afastar praticamente sempre na alínea e), como resultaria do entendimento que lhe foi dado no TAC.
O artigo 4.º, por sua vez, é uma norma de carácter geral, uma norma programática, que aponta uma linha de rumo, indicando os interesses de carácter público que devem nortear a actuação da Câmara, sendo o seu campo de aplicação aquelas situações em que esta dispõe de algum poder conformador, tal como acontece no preenchimento de conceitos indeterminados ou de matérias de carácter técnico (por exemplo, determinar o conceito de estética para efeitos do alinhamento de pisos estabelecido na alínea e) do artigo 50.º, ou fixar os índices e parâmetros urbanísticos no caso concreto quando o Regulamento fixa índices e parâmetros mínimos e máximos).
O artigo 44.º, finalmente, no que respeita à substituição de edifícios, que é o caso de que nos ocupamos, refere a manutenção das características morfológicas do tecido urbano existente, mas não diz como é feita, não podendo, no entanto, deixar de o ser, relativamente a matéria especificamente regulada, pelo modo como essa regulação é estabelecida. É o caso da cércea, cujo nivelamento tem de ser feito pela moda, com o limite máximo de 25 m.
Da conjugação de todos estes preceitos não resulta, portanto, a atribuição de qualquer poder discricionário, stricto sensu, à CML, pelo que, relativamente ao nivelamento das cérceas, os seus poderes são vinculados.
2. 2. 1. 4. Moda da cércea:
A “Moda da Cércea” é a cércea que apresenta maior frequência num conjunto edificado” (artigo 7.º do RPDML).
Como bem se refere na sentença do TAC, “O que o PDM visa nas áreas consolidadas de edifícios de utilização colectiva habitacional é nivelar a dimensão vertical dos edifícios novos pela dimensão vertical dos edifícios já existentes, ou melhor, pela dimensão vertical mais frequente dos edifícios existentes. O que se visa é harmonizar as características do edificado, é estabelecer uma concordância, em termos de altura, do tecido urbano.”
O artigo 7.º do RPDML, ao referir-se à cércea mais frequente deve ser entendido como referindo-se à cércea mais repetida, como defendem a recorrente e o Excelentíssimo Magistrado do Ministério Público.
É que frequente significa repetido, reiterado, habitual, amiudado (ver Dicionário de sinónimos: Português), o que nos leva à cércea que se vê em maior número de edifícios.
E, por outro lado, este entendimento é o que permite uma mais rápida e eficaz harmonização das cérceas, objectivo visado no RPDML para as zonas em causa, pois que, tendo essa harmonização de ser alcançada através das construções a fazer no futuro, será tanto mais célere quanto maior for o número de intervenções a fazer e, no campo das probabilidades, quanto maior for o número de prédios com cérceas iguais, maior será a possibilidade de intervenção nesses prédios.
Consideramos, assim, que o conceito de moda da cércea estabelecido no RPDML não é o defendido pelo recorrido e consagrado no acórdão recorrido, mas sim o da cércea mais repetida, o que nos leva a considerar que, no presente caso, não havia moda da cércea.
E, não a havendo, o único limite que existia era o dos 25 m consagrado na alínea b) do artigo 50.º, como considerou o despacho de 6/4/2006, que aprovou o projecto de arquitectura e que, assim, não violou o RPDML.
A cércea, com a altura de 25 m, foi aprovada por ter sido considerado que as cérceas no quarteirão eram amodais, atípicas, o que aponta para a consideração da inexistência de moda da cércea e o uso do referido poder conformador numa situação em que, por força da inexistência dessa moda, apenas havia um limite máximo.
A deliberação impugnada não anulou essa aprovação por ter considerado que foi indevidamente usado esse poder conformador, mas sim por ter considerado que violou o parâmetro urbanístico vinculado da moda da cércea, o que implicava a violação do RPDML e implicava a sua nulidade, nos termos do disposto na alínea a) do artigo 68.º do DL n.º 555/99, de 16/12.
Essa nulidade não se verificava, pelo que a deliberação impugnada, ao considerá-la, incorreu em erro nos seus pressupostos de direito.
E o acórdão recorrido, ao sufragar essa posição, incorreu em erro de julgamento, fazendo incorrecta interpretação e aplicação do disposto nas alíneas a) e b) do RPDML.
2. 2. 1. 5. Eliminação da ordem jurídica do despacho que aprovou o projecto de arquitectura:
A ilegalidade tratada no número anterior foi a única invocada pela recorrida para fundamentar a impugnada deliberação anulatória.
A sentença do TAC considerou, bem, pelas razões já expendidas, que essa nulidade se não verificava e que, como tal, a sua eliminação da ordem jurídica só se podia verificar através do recurso ao instituto da revogação dos actos administrativos válidos, que está estabelecido no artigo 140.º do CPA.
Dele resulta a irrevogabilidade dos actos administrativos constitutivos de direitos ou interesses legalmente protegidos, a menos que os interessados dêem a sua concordância [n.º 1, alínea b) e n.º 2, alínea a)].
A recorrida não aceita que o acto que aprova um projecto de arquitectura de uma obra seja constitutivo de direitos, antes o considerando um acto preparatório do acto final de licenciamento, esse sim constitutivo de direitos, e que, como tal, podia ser livremente revogável.
Mas não lhe assiste razão.
Na verdade, não obstante não ser o acto final do licenciamento, o acto que aprova um projecto de arquitectura é um acto constitutivo de direitos.
Como se sumariou no acórdão deste STA de 16/5/2001, recurso n.º 46227, A deliberação camarária que nos termos do Dec-Lei nº 445/91 aprova o projecto de arquitectura, não sendo embora o acto final do procedimento de licenciamento, nem possuindo efeitos lesivos sobre terceiros contra-interessados, é no entanto constitutiva de direitos para o próprio particular requerente, criando em favor deste expectativas legítimas no licenciamento, que a partir daí (salvo casos de revogação ou nulidade da deliberação) já não poderá ser recusado com fundamento em qualquer desvalor desse mesmo projecto, ficando apenas dependente do impulso do particular na apresentação dos projectos das especialidades e da conformidade destes, e ulteriormente do requerimento do alvará e do pagamento das taxas devidas”. Assinala-se que o regime de licenciamento estabelecido no DL n.º 555/99, de 16/12, ao abrigo do qual foi aprovado o projecto da obra da recorrente é idêntico, valendo, assim, para ele esta doutrina.
E, como se escreveu nesse acórdão, a aprovação do projecto de arquitectura representa “ …a aprovação do modelo de construção de edifício com certas e determinadas características”, sendo o reconhecimento pela câmara, “… de que o projecto de arquitectura cumpre com os condicionalismos legais e regulamentares, designadamente os constantes de qualquer plano, e vai de encontro ao modo como a autarquia avalia as demais condicionantes da aprovação e que são, segundo o art.º 17.º, o aspecto exterior do edifício” e a sua inserção no ambiente urbano e na paisagem”.
E ainda que “… … …não volta a haver no procedimento nenhuma apreciação do projecto nem reavaliação de qualquer aspecto ou parâmetro construtivo que se prenda com as características da edificação pretendida, ficando a câmara vinculada a licenciar e emitir o alvará se o interessado der todos os passos procedimentais nesse sentido e os documentos e projectos que entregar merecerem a aprovação dos serviços. Mas essa fase não serve para pôr em causa a aprovação dada ao projecto de arquitectura, que tem para o requerente do licenciamento naturais efeitos constitutivos de direitos.

Nem se estranhe que assim seja. Efectivamente, no que respeita a um acto que no procedimento de licenciamento se situa bem mais atrás, a informação prévia (art.ºs 10.º e sgs), a lei é clara quando proclama que a mesma é constitutiva de direitos.”
Concordamos em absoluto com esta doutrina, que tem recebido o apoio largamente maioritário no plano doutrinal. Ver: Fernanda Paula Oliveira, in Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 13, pág. 53/54; João Gomes Alves, in CJA n.º 17, pág. 13/16; Mário Torres, in CJA n.º 27, pág. 41 e sgs; e António Duarte de Almeida, in CJA n.º 45, pág. 31/33. Na jurisprudência, ver o acórdão do STA de 12/3/2008, que considerou que a aprovação do projecto de arquitectura confere ao dono da obra o direito a que essa aprovação não possa já ser posta em causa à luz dos instrumentos de planeamento em vigor.
Pelo que é indiferente, para efeitos de revogação, que esse acto seja ou não o acto final do procedimento do licenciamento, não vigorando a possibilidade da livre revogação até à decisão final, mas sim o regime geral da revogação dos actos constitutivos de direitos.
Acresce que o regime de revogação dos actos constitutivos de direitos é, a partir da entrada em vigor do CPA, idêntico ao regime de revogação dos actos constitutivos de interesses legalmente protegidos e é indiscutível que o acto de aprovação do projecto de arquitectura é um acto constitutivo de interesses legalmente protegidos dos interessados, pois que permite a passagem à fase seguinte do procedimento, com vista à prolacção do acto final de licenciamento, já com determinadas questões (entre outras, o aspecto exterior do edifício e a sua inserção no ambiente urbano) já resolvidas e que não podem ser postas em causa à luz dos instrumentos de planeamento ao abrigo dos quais foram praticadas essas resoluções.
Assim sendo, impõe-se concluir que, com a aprovação do projecto de arquitectura, ficou definida a cércea de 25 m do prédio em causa, que só podia ser alterada através do regime da revogação dos actos administrativos constitutivos de direitos ou de interesses legalmente protegidos válidos, já que não está demonstrado estar inquinado de qualquer ilegalidade.
Donde resulta que a sua eliminação da ordem jurídica, operada pela deliberação recorrida, para além de ilegal em face da declaração de nulidade, nos termos expendidos em 2.2.1.4., é também ilegal, se entendida como operada através de revogação, pois que esta só podia ser feita mediante a concordância do seu beneficiário e este não a deu.
Pelo que não pode manter-se esse acórdão, sendo de o revogar e de manter a decisão do TAC.
2. 2. 2. Em face do expendido em 2.2.1.3., 2.2.1.4. e 2.2.1.5. e tendo em conta o enunciado em 2.2, considera-se prejudicado o conhecimento da arguida nulidade do acórdão recorrido, bem como do conhecimento da violação, pela deliberação impugnada, dos princípios da boa fé, da protecção dos direitos e interesses dos cidadãos e da proporcionalidade (de que este Supremo não podia conhecer, por substituição, em julgamento de revista – cfr. artigos 726.º e 715.º, n.º 1, do CPC –, impondo-se-lhe a baixa ao TCA para esse fim, mas que, em face da solução alcançada, se não ordena).
3. DECISÃO
Nesta conformidade, acorda-se em, concedendo provimento ao recurso:
a) revogar o acórdão recorrido;
b) manter, com a presente fundamentação, a sentença do TAC, que anulou a deliberação do recorrido de 23/4/2008.
Custas pelo recorrido, fixando-se a taxa de justiça em 5UCs no TCA e em 8 UCs neste STA, valores já reduzidos a metade [artigos 73.º - D e 73.º - E, alínea f) do CCJ].
Lisboa, 14 de Julho de 2010. – António Bernardino Peixoto Madureira (relator) – António Políbio Ferreira Henriques – Maria Angelina Domingues.