Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0436/18.0BALSB
Data do Acordão:01/30/2019
Tribunal:PLENO DA SECÇÃO DO CT
Relator:FRANCISCO ROTHES
Descritores:ACTO TRIBUTÁRIO
ANULAÇÃO PARCIAL
Sumário:I - O acto tributário, enquanto acto divisível, tanto por natureza como por definição legal, é susceptível de anulação parcial.
II - O critério para determinar se o acto deve ser total ou parcialmente anulado passa por aferir se a ilegalidade afecta o acto tributário no seu todo, caso em que o acto deve ser integralmente anulado, ou apenas em parte, caso em que se justifica a anulação parcial.
III - Não impede a anulação parcial do acto a necessidade de um ulterior accertamento por parte da AT, de modo a conformar a parte remanescente do acto com os termos da decisão judicial anulatória, como o impõe no caso a diminuição ao valor da matéria colectável apurada em sede de acção inspectiva do valor respeitante às correcções que foram julgadas ilegais pelo tribunal.
Nº Convencional:JSTA00070855
Nº do Documento:SAP201901300436/18
Data de Entrada:05/03/2018
Recorrente:DIRGER DA AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Recorrido 1:A... SA
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:RECURSO PARA UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
Objecto:DECISÃO DO CAAD
Decisão:CONCEDE PROVIMENTO
Área Temática 1:IRC
Área Temática 2:ANULAÇÃO PARCIAL
Aditamento:
Texto Integral: Recurso para uniformização de jurisprudência da decisão arbitral proferida pelo Centro de Arbitragem Administrativa - CAAD no processo n.º 724/2016 -T

1. RELATÓRIO

1.1 A Autoridade Tributária e Aduaneira (AT, adiante também Recorrente) veio, ao abrigo do disposto no art. 25.º, n.º 2, do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária (RJAT), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, interpor recurso para o Pleno da Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo de decisão arbitral proferida pelo Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD), tendo apresentado alegações do seguinte teor:

«A. O presente Recurso para Uniformização de Jurisprudência tem como objecto o Acórdão arbitral proferido no processo n.º 724/2016-T, em 16-03-2018, por Tribunal Arbitral Colectivo em matéria tributária constituído, sob a égide do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD), na sequência de pedido de pronúncia arbitral apresentado ao abrigo do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária aprovado pelo Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro;

B. O Acórdão arbitral recorrido colide frontalmente com a jurisprudência firmada pelo Supremo Tribunal Administrativo no Acórdão proferido no âmbito do processo n.º 0636/17, datado de 12-07-2017, já transitado em julgado, no segmento decisório respeitante à anulação total das liquidações de IRC e de juros compensatórios do exercício de 2011.

C. O Acórdão arbitral recorrido incorreu em erro de julgamento quando decidiu, em contradição total com o Acórdão fundamento, declarar a ilegalidade e anulação total da liquidação de IRC do exercício de 2011 que se encontra influenciada por correcções que não foram contestadas pela Requerente arbitral e, como tal, se encontram firmadas na ordem jurídica;

D. Bem como, quando determinou a anulação total das liquidações «embora não tenha concluído pela ilegalidade de todas as correcções à matéria colectável operadas pela AT».

E. O acórdão arbitral recorrido e o acórdão fundamento versam sobre situações fácticas substancialmente idênticas.

F. Tanto no acórdão fundamento como no acórdão arbitral recorrido foram considerados provados factos respeitantes a uma liquidação de IRC emitida na sequência de acção inspectiva que desconsiderou a constituição de provisão para créditos de cobrança duvidosa (hoje imparidades), por se considerar que não estavam reunidas as condições previstas no artigo 35.º do CIRC (hoje artigo 36.º do CIRC).

G. Para que haja oposição é necessário que os acórdãos em confronto se pronunciem sobre a mesma questão fundamental de direito. Ou seja, importa que as soluções opostas tenham sido perfilhadas relativamente ao mesmo fundamento de direito, o que se verifica in casu.

H. Ambos os acórdãos tratam da mesma questão fundamental de direito, que se prende a natureza divisível do acto tributário de liquidação e da susceptibilidade da sua anulação parcial.

I. No acórdão arbitral recorrido, entendeu o Tribunal arbitral que «Muito embora o Tribunal Arbitral não tenha concluído pela ilegalidade de todas as correcções à matéria colectável operadas pela AT (e existam numerosas outras correcções que não foram objecto da presente impugnação) o Tribunal, por não dispor de elementos que lhe permitam decidir de outro modo (anulação parcial), terá que anular as liquidações impugnadas na sua totalidade, cabendo à AT como é de lei extrair as devidas consequências desta decisão arbitral, nomeadamente no tocante à reforma das liquidações impugnadas.»,

J. No Acórdão fundamento defende-se a «regra da admissibilidade da anulação parcial do acto de liquidação de imposto, consensualmente aceite pela jurisprudência e pela doutrina (vide Jorge Lopes de Sousa no local e obra citado no parecer do M.º P.º supra destacado) por apelo à divisibilidade do acto tributário».

K. Consignando o Acórdão fundamento:
«para se saber se o acto de liquidação deve ser total ou parcialmente anulado há que determinar o tipo de ilegalidade que o inquina e analisar se ela é susceptível de o afectar no seu todo, caso em que ele tem de ser integralmente anulado.
Ora, na situação dos autos há que ter conta que estamos perante imposto sobre o rendimento, de sociedades (IRC) em que a determinação do quantitativo de imposto devido passa pela aplicação de taxas fixas.
Pelo que a redução do rendimento colectável não exige a prática de novo acto tributário, sendo pois perfeitamente praticável e impondo-se, por respeito ao princípio da economia processual e de meios, a mera anulação parcial ou a reforma do acto tributário impugnado, o que está ao alcance da administração tributária efectuar com faculdade e prontidão.».

L. Demonstrada está, assim, uma evidente contradição entra a decisão recorrida e o Acórdão fundamento sobre a mesma questão fundamental de direito que importa dirimir, mediante a admissão do presente recurso e consequente anulação do segmento decisório contestado, com substituição do mesmo por novo Acórdão que determine a procedência parcial do pedido, com a consequente anulação parcial das liquidações (n.º 6 do artigo 152.º do CPTA).

M. A infracção a que se refere o n.º 2 do artigo 152.º do CPTA, consiste num manifesto erro de julgamento expresso na decisão recorrida, na medida em que o tribunal arbitral, ultrapassando os seus poderes de cognição que estão limitados pelo pedido e causa de pedir, nos termos dos artigos 608.º, n.º 2 e 609.º, n.º 1 do CPC, não podia apreciar nem declarar a ilegalidade e anulação total da liquidação de IRC do exercício de 2011 mas somente a sua anulação parcial, porquanto a mesma se encontra influenciada por correcções que não foram contestadas pela Requerente arbitral e, como tal, se encontram firmadas na ordem jurídica.

N. Ocorre, ainda, erro de julgamento, na medida em que o tribunal arbitral apreciou a questão das perdas por imparidade em créditos, à luz do artigo 36.º do CIRC, e decidiu manter a correcção operada pela AT relativamente ao cliente B………., S.A., fundamentando a sua decisão na falta de alegação pela Requerente arbitral «de quaisquer factos em que tenha baseado a sua decisão de constituição de imparidades».

O. Não obstante, de forma absolutamente contraditória, decidiu, afinal, anular «por ilegais» as liquidações impugnadas na sua totalidade, decidindo para além da competência que lhe é atribuída pelo artigo 2.º do RJAT.

P. Por tudo o exposto, resta concluir que o Acórdão recorrido incorreu em erro de julgamento por violação das normas legais aplicáveis, bem como que se encontra em manifesta oposição quanto à mesma questão fundamental de direito com a jurisprudência firmada pelo STA no Acórdão fundamento, devendo ser substituído por novo Acórdão que julgue parcialmente procedente o pedido, com a consequente anulação parcial das liquidações de IRC do exercício de 2011.

Termos em que deve o presente Recurso para Uniformização de Jurisprudência:

a) Ser aceite e posteriormente julgado procedente, por provado, sendo, em consequência, nos termos e com os fundamentos acima indicados, revogada a decisão arbitral recorrida e substituída por outro Acórdão consentâneo com o quadro jurídico vigente.

b) Em virtude do valor da causa ser superior a € 275.000,00, desde já se requer, a V. Ex.as., que, nos termos do n.º 7 do artigo 6.º do Regulamento das Custas Processuais, determinem a dispensa do pagamento da taxa de justiça aí prevista».

1.2 O recurso foi admitido.

1.3 Não foram apresentadas contra-alegações.

1.4 Dada vista ao Ministério Público, o Procurador-Geral Adjunto neste Supremo Tribunal emitiu parecer no sentido de que ocorre oposição de acórdãos (detalhando os motivos por que considera verificada a oposição) e de que «deve dar-se provimento ao recurso e anular-se a decisão arbitral recorrida, no segmento sindicado, e, em substituição, anular-se parcialmente o acto de liquidação, apenas na parte respeitante às correcções aritméticas, efectivamente, anuladas», com a seguinte fundamentação: «[…]

É ponto assente em termos doutrinários e jurisprudenciais que o acto de liquidação enquanto acto divisível é susceptível de anulação parcial.
“Porém, tal anulação parcial só poderá ser juridicamente admissível quando o fundamento da anulação valha apenas em relação a uma parte do acto, isto é, quando haja uma ilegalidade apenas parcial.
Será o que acontece quando um acto de liquidação se baseia em determinada matéria colectável e se vem a apurar que parte dela foi calculada ilegalmente, por não dever ser considerada. Nestes casos, não há qualquer obstáculo a que o acto de liquidação seja anulado relativamente à parte que corresponde à matéria colectável cuja consideração era ilegal, mantendo-se a liquidação na parte que corresponde a matéria colectável que não é afectada por qualquer ilegalidade.
No entanto, se o acto de liquidação tem um único fundamento jurídico, não sendo nele possível distinguir entre uma parte que está conforme à lei e outra que a viola, não se pode decretar a anulação parcial, mesmo que se entenda que, por força de outras disposições legais, uma liquidação poderia ter lugar.
Será por exemplo, o caso de uma liquidação se ter baseado em determinada tabela de taxas de imposto e se vir a entender que a tabela legalmente aplicável seria outra.
Nestas circunstâncias, toda a liquidação assentará em fundamentos jurídicos errados, pelo que o acto deve ser integralmente anulado, com fundamento em erro sobre os pressupostos de direito (vício de violação de lei). A prática de novo acto, com base na tabela tida como legal, caberá à administração tributária e não ao tribunal, não podendo o interessado ser privado da possibilidade de discutir a legalidade do novo acto que, eventualmente, venha a ser praticado, utilizando todos os meios de impugnação administrativa e contenciosa que a lei lhe proporciona”.
Ora, no caso em análise, em que estavam em apreciação as correcções aritméticas atrás devidamente especificadas, todas elas foram anuladas, à excepção da relativa ao crédito sobre a alegada imparidade do crédito sobre a B………., no montante de € 59.685,69.
Acresce que, como resulta dos autos, houve correcções à matéria colectável que, também estiveram na génese da liquidação sindicada e que nem sequer foram sindicadas pela contribuinte, pelo que se mostram, devidamente, consolidadas na ordem jurídica.
Como tal, parece certo que se impõe que, apenas, seja anulado o ato de liquidação, na parte respeitante às correcções, efectivamente, anuladas, subsistindo quanto à correcção não anulada e às que nem sequer foram objecto de sindicância.
Na verdade, o fundamento da anulação vale apenas em relação às correcções anuladas e não à totalidade da matéria colectável, pelo que, salvo melhor juízo, se impõe a anulação parcial da liquidação, apenas, nessa parte e não na totalidade».

1.5 Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir em conferência no Pleno desta Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo.


* * *
2. FUNDAMENTAÇÃO
2.1 DE FACTO

2.1.1 A decisão arbitral recorrida efectuou o julgamento da matéria de facto nos seguintes termos:

«Gerais

a. A Requerente foi notificada da decisão de prorrogação do prazo para a conclusão do procedimento inspectivo, constando de tal notificação apenas a disposição legal que o permite mas não as razões determinantes de tal prorrogação.

b. A Inspecção tributária elaborou uma informação, datada de 01-10-2015, propondo a prorrogação da acção inspectiva por um período de três meses, ao abrigo do artigo 36.º, n.ºs 3 e 4 do RCPITA, da qual consta a indicação dos factos que justificam a necessidade de prorrogação do procedimento, a saber: a existência de situações de especial complexidade decorrente do elevado volume de operações e da interligação com empresas relacionadas, inclusive com uma sucursal em França.

c. Tal prorrogação foi autorizada por despacho do competente Director de Finanças Adjunto exarado em tal «Informação».

Quanto aos contratos de construção – rendimentos a acrescer/diferir

d. A Requerente utiliza o método da percentagem de acabamento para efeitos do apuramento dos resultados das obras de carácter plurianual em curso no final do período de 2011;

e. Tendo em vista a aplicação deste método, a Requerente elaborou um mapa de cálculo designado de mapa das obras em curso, onde determina o grau de acabamento, através da divisão entre os custos totais incorridos e os custos totais estimados; grau este que se consubstancia numa percentagem que é multiplicada pelo rédito total do contrato, determinando-se desta forma, o rendimento do período e, consequentemente, o rendimento a acrescer ao período ou a diferir para períodos seguintes (doc. n.º 4 junto com a PI);

f. A Requerente apresentava-se, por vezes, a concursos para execução de obras com preços equivalente ao custo estimado da obra, ou seja, sem estimar qualquer margem de ganho, para, desta forma, conseguir ganhar as obras a que concorria;

g. A Requente, apesar de concorrer com preços equivalentes ao custo estimado da obra, tinha por objectivo maximizar o lucro ou minimizar os gastos aquando da execução da obra, estimando, portanto, a ocorrência de um resultado positivo;

h. Os custos estimados para concluir as obras constantes do mapa de obras com referência a 31 de Dezembro de 2011 é, para diversas obras, superior a esse custo estimado no mapa de obras do período anterior;

i. A Requerente incluiu no rédito total do contrato itens designados como “trabalhos a mais”, “outros proveitos” e de “revisão de preços”;

j. Os “outros proveitos” incluem débitos a outras entidades que não o cliente, tais como vendas de sucata, valores debitados a parceiros de obras realizadas em consórcio, relativamente a valores a serem suportados pelo parceiro;

k. A inspecção tributária (e a requerida) recalcula o mapa dos contratos de construção relativos a 2011 efectuado pela requerente, no sentido de a coluna dos “outros proveitos” e das “revisões de preço” não devem ser inseridas no mapa dos contratos de construção (ou seja, não se reflectem nos rendimentos e margem dos contratos de construção), mas devem ser antes tratadas como um rendimento do exercício, segundo as regras gerais do art. 19.º do CIRC, com o que entende que o rédito tributado em 2011 é superior ao declarado pela requente em € 4.932.868,00 (cfr. os mapas do relatório de inspecção nas folhas 10 a 16, com a identificação de todas e cada uma das obras em causa com “outros proveitos” e “revisão de preços” objecto de correcção e o doc. n.º 4 junto com a PI).

l. Os montantes que a IT retira ao rédito do contrato de construção (ao custo estimado e ao valor facturado) dizem respeito a situações e trabalhos efectivamente efectuadas e executadas e que se reflectiram nos gastos incorridos: os “outros proveitos” e a “revisão de preços” são verdadeiros e correspondem a operações efectivamente realizadas.

Quanto aos Contratos de construção – grau acabamento

m. Em 2011, a Requerente, para efeitos de cálculo de acabamento dos contratos de construção, considerou que as obras CO 10/065 Unidade de tratamento Mecânico e Biológico de Resíduos Sólidos Urbanos, do cliente ………… – Valorização e Tratamento de Residuais Sólidos, S.A. e CO 11/005, Estação de Tratamento de Águas residuais do ………., A.S – Empresa das Águas de Santarém – EM, S.A. tinham um grau de acabamento de respectivamente 52,32% e de 46,56%.

n. A requerente efectuou estes cálculos com base na percentagem de acabamento no final desse período (2011), com base na proporção entre os gastos suportados até final de 2011 e a soma desses gastos com os estimados para a conclusão dessas obras.

o. Os autos de medição de tais obras em finais de 2011 (assinados por representantes da requerente e dos clientes) indicavam que a obra CO 10/065 tinha um grau de acabamento de 100% e que a obra CO 11/005 tinha um grau de acabamento de 92,71%.

p. Em ambos os casos, os autos de medição estão errados: as obras estavam menos adiantadas do que a medição dos autos – e fez-se isso para permitir “adiantamento” de facturação – depoimento das testemunhas ……… e ………..

q. A requerente incorreu em gastos com a obra CO 10/065 de 617.178,33 € em 2012 e de 107.777,85 € em 2013 (e foi nesse ano de 2013 que se efectuou o auto de recepção provisória dessa obra).

r. A requerente incorreu em gastos com a obra CO 11/005 de 957.399,29€ em 2012 – e foi nesse ano que se efectuou o auto de recepção provisória dessa obra.

s. A liquidação da AT considerou que estava errado o cálculo do grau de acabamento apurado pela Requerente e concluiu que os rendimentos de tais obras deviam ser reconhecidos na proporção do trabalho executado – tal como indicado nos autos de medição, isto é 100% no caso da obra CO 10/065 e 92,71% no caso da obra CO 11/005 – e acresceu ao lucro tributável do sujeito passivo as quantias de respectivamente, 2.064.257,49 € e de 2.128.770,31 €.

Quanto às imparidades

t. A AT procedeu a correcções positivas às provisões/ajustamentos/perdas por imparidade registada pela Requerente em anos anteriores, tendo procedido às consequentes liquidações adicionais.

u. Tais liquidações adicionais são objecto de quatro processos de impugnação judicial que correm termos no Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga.

v. Relativamente ao exercício ora em causa, A AT não aceitou imparidades em dívidas a receber registadas pela Requerente relativas aos seguintes clientes 1 [1 Apenas se enumeram as imparidades cuja desconsideração pela AT é objecto de impugnação no presente processo]:
- C……….., Lda. - € 20.260,96
- D………., Lda. - € 274.509,29
- E………., SA - € 312.008,99
- F………., Lda. - € 1.989.787,69
- B…………., S.A. - € 59.685,69
- ……….., S.A. - € 344.782,17

w. A Requerente possui um departamento que se ocupa da cobrança de créditos cujo pagamento está em mora, sendo que o respectivo funcionário contactou por diversas vezes, pessoalmente, responsáveis dos quatro primeiros clientes referidos na alínea anterior, em ordem a conseguir o pagamento, mesmo que faseado, das importâncias aí referidas.

x. Não obstante a mora no pagamento das quantias referidas e do facto de estes clientes, a maioria dos quais mantinha relações comerciais regulares com a Requerente, terem um historial de práticas de pagamento muito para além dos prazos convencionados, a Requerente continuou a manter relações comerciais com C……….., E………. e F………...

y. O Cliente C……….. estava envolvido construção de um hotel no Porto e em decorrência da crise em 2010 começou a ter dificuldades de recebimentos e, consequentemente, de pagamento das suas dívidas.

z. O Cliente E………… estava envolvido na construção do centro comercial Dolce Vita de Braga, obra de grande dimensão, envolvendo valores muito significativos. Tal obra foi suspensa por falta de pagamentos, só tendo sido retomada em pleno em 2013, após a CGD ter assumido a sua continuação.

aa. O Cliente F……….. estava envolvido na construção de um hotel geriátrico. O dono da obra tinha um contrato com terceiro que iria explorar esse estabelecimento. Houve desinteligências entre o dono da obra e o tal terceiro, que se terão reflectido nos pagamentos devidos pelo dono da obra e, consequentemente, na capacidade de a F………… solver os seus compromissos.

bb. A sociedade D………. participava, em 25%, no consórcio para construção do Dolce Vita de Braga, mas, nomeadamente devido à já referida suspensão desses trabalhos, entrou em grandes dificuldades para conseguir recursos financeiros necessários para efectuar a sua quota-parte em tal obra.

cc. Em 2011 a Requerente efectuou um adiantamento a D……….., Lda. no montante de € 622.737,32, apesar de esta sociedade lhe dever € 647.541,01.

dd. O adiantamento feito pela Requerente visou permitir a compra de materiais e equipamentos necessários ao prosseguimento da já referida construção do Dolce Vita, de forma a evitar os prejuízos que para a Requerente, sua parceira em tal consórcio, decorreriam da não conclusão de tal obra ou de um elevado atraso na sua conclusão.

ee. Em 2011, a ……….., S.A. recusava o pagamento das quantias em causa, facturadas pela Requerente.

ff. O que motivou a instauração, pela Requerente, de uma acção judicial, a qual terminou por acordo, em 31 de Maio de 2012 tendo a requerente aceitado reduzir os montantes peticionados e a ……….., S.A., reduzir os montantes de sanções contratuais aplicáveis».

2.1.2 No acórdão fundamento, considerou-se a seguinte factualidade:

«A decisão recorrida julgou provada a seguinte matéria de facto (cfr. fls.113 a 115 dos autos):

1. Em 10 de Janeiro de 2012, foi elaborado o Relatório de Inspecção Tributária relativo à acção inspectiva efectuada a G…………, Lda., que concluiu pela necessidade de correcções meramente aritméticas à matéria colectável dos exercícios de 2008 e 2009 – cfr. fls. 27- 38 dos autos.

2. No decurso da acção inspectiva G…………, Lda., procedeu voluntariamente à regularização de todas as correcções propostas excepto a relativa às provisões de cobrança duvidosa não dedutíveis no período de 2009 – cfr. fls. 28 dos autos.

3. Quanto a tais provisões, o Relatório de Inspecção Tributária tem o seguinte teor:
«(...)
3.1.3.2 – Provisões não dedutíveis
Foi constituída provisão para créditos de cobrança duvidosa no montante de 487.115.49, sem que estejam reunidas as condições previstas nos artigos 34.º e 35.º do CIRC, na redacção em vigor à data dos factos, pelos motivos a seguir expostos:
- A conta …. Clientes de Cobrança Duvidosa foi movimentada no final do exercício de 2009, com lançamentos datados de 31 de Dezembro, em que a conta de cada cliente foi debitada por um valor global sem que se conheça quais as facturas que titulam os créditos em mora, considerando que a contabilidade ao longo do exercício não registou o movimento com os clientes de uma forma individualizada mas apenas uma conta residual ……… Diversos;
- Para além da contabilidade não evidenciar os créditos de uma forma inequívoca também não foram apresentadas provas de terem sido reclamados judicialmente ou efectuadas quaisquer diligências para o seu recebimento, tendo sido confirmado pelo sócio gerente.
IX – Direito de audição – fundamentação
No exercício do direito de audição, (...) vem o sujeito passivo (...) discordar da correcção proposta por estes Serviços de Inspecção no ponto 3.1.3.2 – Provisões Não Dedutíveis, com os seguintes fundamentos:
- Considera que não foi tido em conta, quanto aos créditos incluídos na provisão constituída, que sempre foram efectuadas diligências de cobrança através de contacto pessoal, contacto telefónico, bem como através de carta, tendo em vista o recebimento dos mesmos;
- Junta diversos documentos, que designa por cartas de cobrança, conforme documentos 1 a 32;
- Refere, ainda, que da legislação tributária aplicável não resulta a exigência de forma escrita para que as diligências efectuadas, tendo em vista a cobrança extrajudicial dos créditos em apreço, possam ser consideradas.
1 – Análise dos documentos enviados:
1.1 – Os documentos 1 a 11 que juntou ao direito de audição são cópias de cartas alegadamente enviadas aos clientes;
1.2 – Documentos 12 a 28 respeitam a avisos extraídos de um programa informático, que não o da contabilidade, datados de 2012/01/27, dirigidos a diversos clientes onde identifica as facturas, data, valor total e valor pendente;
1.3 – Os documentos 29, 31 e 32, designados por mapas de antiguidade de saldos, com a identificação dos clientes e valor dos créditos em mora nos diversos prazos previstos nas alíneas do n.º 2 do artigo 35.º do CIRC.
1.4 – O documento 30 é o balancete que serviu de base ao lançamento contabilístico da criação da provisão.
2 – Da sua análise, constatamos que os documentos numerados de 1 a 11 não respeitam à totalidade dos clientes, cujos saldos foram considerados para a constituição da previsão, são fotocópias de cartas que só por si nada justifica, não só pelo seu teor, porque não identificam as facturas em causa, como pelo facto de não existir qualquer prova do seu envio.
3 – Os documentos 12 a 28 também não contemplam todos os clientes em questão, e uma análise mais detalhada, designadamente em relação aos saldos de maior valor, revelam as seguintes incongruências:
(…)
4 Quanto à exigência ou não da forma escrita para que as diligências efectuadas, tendo em vista a cobrança extrajudicial dos créditos possam ser consideradas, devemos ter presente que a constituição da provisão não se repercute só ao nível da relação entre a entidade credora e os devedores, mas também entre o credor e terceiros, neste caso a Autoridade Tributária, a quem tem de esclarecer fundadamente e sem margem para dúvidas ter diligenciado a cobrança do crédito em causa, o que em nossa opinião não ocorreu no caso em apreço.
(…)
- cfr. fls. 33 e 35-37 dos autos.

4. No dia 29 de Fevereiro de 2012, foi emitida a liquidação n.º 2012.8310001327, relativa ao IRC de 2009, no valor de € 134.999,16 (acto impugnado) – cfr. fls. 39 dos autos.

5. Em 9 de Agosto de 2012, G……….., Lda., deduziu Reclamação Graciosa contra aquela liquidação – cfr. fls. 3 da Reclamação.

6. No dia 9 de Outubro de 2012, o Director de Finanças de Faro indeferiu a Reclamação Graciosa com fundamento, além do mais, nas “lacunas evidenciadas na formalização documental, a não contabilização, de forma inequívoca, dos créditos em causa, bem como a falta de provas conclusivas sobre as diligências efectuadas para o seu recebimento” – cfr. fls. 151-152 da Reclamação.

7. Em 6 de Novembro de 2012, G…………, Lda., interpôs Recurso Hierárquico contra aquela decisão – cfr. fls. 162 do Recurso.

8. No dia 21 de Fevereiro de 2013, a Directora da Direcção de Serviços do IRC indeferiu o Recurso Hierárquico – cfr. fls. 217 do Recurso.

9. O Técnico Oficial de Contas de G……….., Lda., baseava-se exclusivamente num documento designado por «Mapa de antiguidade de saldos», com exclusão de outros documentos de suporte, para fazer o lançamento global, não cliente a cliente, dos montantes de cobrança duvidosa — cfr. o depoimento de ...............

10. G……….., Lda., solicitou a H……….., por telefone e por carta, o pagamento de facturas vencidas – cfr. fls. 261 dos autos.

11. Em 31 de Julho de 2009, H……….. devia € 16.403,21 a G……….., Lda. – cfr. fls. 264 dos autos».


*

2.2 DE DIREITO

2.2.1 AS QUESTÕES A APRECIAR E DECIDIR

A AT veio, ao abrigo do disposto no art. 25.º, n.º 2, do RJAT, interpor recurso para o Pleno da Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo da decisão arbitral proferida pelo CAAD em 16 de Março de 2018 no processo n.º 724/2016-T (Disponível em
https://caad.org.pt/tributario/decisoes/decisao.php?s_processo=724%2F2016&s_data_ini=&s_data_fim=&s_resumo=&s_artigos=&s_texto=&id=3274.), invocando contradição entre essa decisão e o acórdão (fundamento) da Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo de 12 de Julho de 2017, proferido no processo n.º 636/17 (Disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/7d0010474901939b802581620050c1ab.), relativamente à possibilidade da anulação parcial da liquidação.
Nos termos do n.º 2 do referido art. 25.º do RJAT, «[a] decisão arbitral sobre o mérito da pretensão deduzida que ponha termo ao processo arbitral é […] susceptível de recurso para o Supremo Tribunal Administrativo quando esteja em oposição, quanto à mesma questão fundamental de direito, com acórdão proferido pelo Tribunal Central Administrativo ou pelo Supremo Tribunal Administrativo»; dispõe o n.º 3 do mesmo artigo que a esse recurso «é aplicável, com as necessárias adaptações, o regime do recurso para uniformização de jurisprudência regulado no art. 152.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, contando-se o prazo para o recurso a partir da notificação da decisão arbitral».
Assim, o regime de interposição do recurso da decisão arbitral para o Supremo Tribunal Administrativo difere do regime do recurso previsto no art. 152.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), na medida em que aquele tem de ser apresentado no prazo de 30 dias contado da notificação da decisão arbitral, enquanto neste o prazo se conta do trânsito em julgado do acórdão recorrido, como decorre da alínea a) do n.º 2 do referido art. 152.º (Cfr. JORGE LOPES DE SOUSA, Comentário ao Regime Jurídico da Arbitragem Tributária, Guia da Arbitragem Tributária, Almedina, pág. 230. ).
Já quanto ao acórdão fundamento, o recurso para uniformização de jurisprudência pressupõe o seu trânsito em julgado, como tem vindo a afirmar este Supremo Tribunal Administrativo, condição verificada no caso sub judice.
Assim, e não havendo dúvidas quanto aos demais requisitos formais (legitimidade da Recorrente e tempestividade do recurso), há que passar a averiguar se estão verificados os requisitos substanciais da admissibilidade do recurso.
Só depois, se for caso disso, passaremos a conhecer do mérito do recurso.

2.2.2 DOS REQUISITOS SUBSTANCIAIS DE ADMISSIBILIDADE DO RECURSO PARA UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA

2.2.2.1 Nos termos do referido art. 25.º, n.º 2, do RJAT, que remete, com as devidas adaptações, para o art. 152.º do CPTA, os requisitos de admissibilidade do recurso para o Supremo Tribunal Administrativo da decisão arbitral que tenha conhecido do mérito da pretensão deduzida para uniformização de jurisprudência são os seguintes: i) que exista contradição entre essa decisão e um acórdão proferido por algum dos tribunais centrais administrativos ou pelo Supremo Tribunal Administrativo, relativamente à mesma questão fundamental de direito, ii) que a orientação perfilhada pelo acórdão impugnado não esteja de acordo com a jurisprudência mais recentemente consolidada do Supremo Tribunal Administrativo.
No que ao primeiro requisito respeita, como tem sido inúmeras vezes explicitado pelo Pleno desta Secção relativamente à caracterização da questão fundamental sobre a qual deve existir contradição de julgados, devem adoptar-se os critérios já firmados no domínio do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF) de 1984 e da Lei de Processo dos Tribunais Administrativos, para detectar a existência de uma contradição, quais sejam:

i. identidade da questão de direito sobre que recaíram os acórdãos em confronto, o que pressupõe uma identidade substancial das situações fácticas, entendida esta não como uma total identidade dos factos mas apenas como a sua subsunção às mesmas normas legais;
ii. que não tenha havido alteração substancial na regulamentação jurídica, a qual se verifica sempre que as eventuais modificações legislativas possam servir de base diferentes argumentos que possam ser valorados para determinação da solução jurídica;
iii. que se tenha perfilhado, nos dois arestos, solução oposta e esta oposição decorra de decisões expressas, não bastando a simples oposição entre razões ou argumentos enformadores das decisões finais ou a invocação de decisões implícitas ou a pronúncia implícita ou consideração colateral tecida no âmbito da apreciação de questão distinta.

2.2.2.2 Começaremos por apreciar se estão verificados os requisitos da alegada contradição de julgados à luz dos supra referidos princípios, já que a sua inexistência obstará, lógica e necessariamente, ao conhecimento do mérito do recurso.
Vejamos, pois, o que decidiram os acórdãos em confronto – o arbitral, ora sob recurso, e o fundamento, tendo sempre presente como pano de fundo a questão relativamente à qual foi invocada a contradição de julgados, a da possibilidade da anulação parcial do acto impugnado.

2.2.2.2.1 A ora Recorrida apresentou no CAAD pedido de declaração da ilegalidade da liquidação adicional de IRC e respectivos juros compensatórios que lhe foi efectuada relativamente ao ano de 2011, na sequência de uma acção inspectiva levada a cabo pela AT e com base em diversas correcções à matéria tributável declarada.
O pedido formulado pela ora Recorrida ao CAAD – de «declaração integral de ilegalidade dos actos de liquidação adicional de IRC e respectivos juros compensatórios, corrigindo-se para os valores indicados pela Requerente» – incidiu apenas sobre algumas dessas correcções, designadamente: «contratos de construção – rendimentos a acrescer/diferir, no montante de € 4.932.868,00», «contratos de construção – grau acabamento, no montante de € 4.193.027,80» e «perdas por imparidades em dívidas a receber, no montante de € 2.882.986,50».
O tribunal arbitral pronunciou-se pela ilegalidade dessas correcções, com excepção da imparidade relativa ao crédito sobre a sociedade denominada «B…………, S.A.», do montante de € 59.685,59.
Depois, na parte que ora nos interessa considerar, atentos os termos em que vem configurado o recurso, sob a epígrafe «F Anulação total das liquidações», no acórdão arbitral recorrido ficou escrito o seguinte: «Muito embora o Tribunal Arbitral não tenha concluído pela ilegalidade de todas as correcções à matéria colectável operadas pela AT (e existam numerosas outras correcções que não foram objecto da presente impugnação) o Tribunal, por não dispor de elementos que lhe permitam decidir de outro modo (anulação parcial), terá que anular as liquidações impugnadas na sua totalidade, cabendo à AT, como é de lei, extrair as devidas consequências desta decisão arbitral, nomeadamente no tocante à reforma das liquidações impugnadas».
Concluiu, pois, o acórdão arbitral recorrido proferindo decisão nos seguintes termos: «Anulam-se, por ilegais, a liquidação adicional de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (IRC), relativa ao ano de 2011, com o n.º 2015.00014777251, bem como das liquidações de juros daquela decorrentes (liquidações n.º 2015.00002365256, 2015.0000236527 e 2015.0000236528)».

2.2.2.2.2 Por sua vez, no acórdão fundamento estava em causa uma liquidação adicional de IRC do ano de 2009 efectuada a uma sociedade na sequência de uma acção inspectiva em que foi efectuada uma correcção relativa às provisões para créditos de cobrança duvidosa, do montante de € 487.115,49.
A referida sociedade impugnou a liquidação e na sentença proferida nesse processo apenas foi considerada fiscalmente relevante a provisão relativa a um crédito, do montante de € 16.403,21, parte em que a liquidação foi considerada ilegal. A sentença, julgando a impugnação judicial parcialmente procedente, anulou totalmente a liquidação impugnada.
A Fazenda Pública insurgiu-se contra essa sentença com o fundamento de que a anulação deveria ter sido parcial, ou seja, a liquidação apenas deveria ter sido anulada na parte respeitante à provisão que foi considerada fiscalmente relevante.
O Supremo Tribunal Administrativo deu provimento ao recurso. Depois de tecer diversos considerandos em torno da jurisprudência e da doutrina a propósito da possibilidade da anulação parcial do acto tributário, fazendo aplicação dos mesmos ao caso, deixou dito:
«[…] no presente caso, parece-nos perfeitamente possível a anulação parcial.
É que para se saber se o acto de liquidação deve ser total ou parcialmente anulado há que determinar o tipo de ilegalidade que o inquina e analisar se ela é susceptível de o afectar no seu todo, caso em que ele tem de ser integralmente anulado.
Ora, na situação dos autos há que ter conta que estamos perante imposto sobre o rendimento, de sociedades (IRC) em que a determinação do quantitativo de imposto devido passa pela aplicação de taxas fixas.
Pelo que a redução do rendimento colectável não exige a prática de novo acto tributário, sendo pois perfeitamente praticável e impondo-se, por respeito ao princípio da economia processual e de meios, a mera anulação parcial ou a reforma do acto tributário impugnado, o que está ao alcance da administração tributária efectuar com facilidade e prontidão.
Concordamos com o Sr. Procurador Geral Adjunto neste STA que, no presente caso, no qual estava em apreciação a relevância fiscal de provisões para créditos de cobrança duvidosa, no montante total de € 487.115, 49, apenas foi julgada fiscalmente relevante a provisão relativa ao crédito sobre H…………, no montante de € 16.403,21, o que impunha que apenas fosse anulado parcialmente o acto de liquidação, na parte respeitante ao crédito de cobrança duvidosa relevado fiscalmente. É o que se decidirá, de seguida».
Em conformidade, decidiu nos seguintes termos: «Pelo exposto, acordam os Juízes deste STA em conceder provimento ao recurso revogando a sentença recorrida, no segmento sindicado e, conhecendo em substituição, anulam, apenas, parcialmente o acto de liquidação impugnado, na parte respeitante ao referido crédito, no montante de € 16.403,21».

2.2.2.2.3 Como resulta do que deixámos exposto supra, as situações factuais nos presentes autos e no processo em que foi proferido o acórdão fundamento são em tudo idênticas: impugnada uma liquidação adicional de IRC efectuada após correcções à matéria tributável efectuadas pela AT na sequência de acção inspectiva, o tribunal, considerou verificada a ilegalidade de apenas uma parte dessas correcções.
E, como resulta também do que deixámos dito, os acórdãos em confronto deram resposta divergente à questão que a Recorrente erigiu como decidenda no presente recurso por oposição de julgados: o acórdão fundamento entendeu anular a liquidação apenas parcialmente (dizendo que anulava a liquidação apenas na parte em que considerou que a correcção operada pela AT era ilegal), enquanto o acórdão arbitral recorrido entendeu que, «por não dispor de elementos que lhe permitam decidir de outro modo (anulação parcial)», não podia senão anular totalmente as liquidações impugnadas (de IRC e juros compensatórios), sem prejuízo de logo alertar que cabia à AT, nos termos da lei, extrair as devidas consequências da decisão proferida pelo tribunal arbitral, «nomeadamente no tocante à reforma das liquidações impugnadas».
Verifica-se, pois, a divergência que justifica a prossecução do recurso.
Por outro lado, também não é de ponderar como obstáculo à admissão do recurso que a orientação perfilhada pelo acórdão arbitral esteja de acordo com a jurisprudência mais recentemente consolidada do Supremo Tribunal Administrativo, uma vez que sobre a questão existe alguma controvérsia, se não nos seus traços gerais, nalguns aspectos mais específicos.
Passemos, pois, ao conhecimento do mérito do recurso, respeitante à questão da possibilidade da anulação parcial da liquidação impugnada.

2.2.3 DA ANULAÇÃO PARCIAL DA LIQUIDAÇÃO

Sobre a questão, ficou dito no acórdão do Pleno da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo, proferido em 10 de Abril de 2013 no processo n.º 298/12 (Disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/23388de46c670e8f80257b59004a34b1.):
«Diga-se, desde já, que independentemente de saber se a anulação parcial do acto sindicado é ou não a solução que se impõe em casos como o dos autos, a anulação meramente parcial não se consubstancia na prática, pelo tribunal, de qualquer acto tributário, razão pela qual carece de fundamento a invocação neste contexto do princípio da separação de poderes. A anulação parcial do acto tributário, em si mesma, nada tem de inédito ou de estranho, pois que como ainda recentemente reafirmou este Supremo Tribunal (cfr. Acórdão de 12 de Janeiro de 2012, rec. 965/10 [(Disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/42b9b25dc3f9b56c8025798f005c6f0f.)]), «(…) o acto tributário, enquanto acto divisível, tanto por natureza como por definição legal, é susceptível de anulação parcial. É esta, aliás, a posição consensual da doutrina e da jurisprudência da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo, a qual, para além de apelar a essa divisibilidade (Cfr., entre outros, os acórdãos proferidos em 9/07/1997, no processo n.º 5874 [(Publicado no Apêndice ao Diário da República de 30 de Março de 2000
(http://www.dre.pt/pdfgratisac/1997/32430.pdf), págs. 69 a 75, com sumário disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/a202bc1b392573da802568fc0039b121.)]; em 22/09/1999, no processo n.º 24101 [(Publicado no Apêndice ao Diário da República de 18 de Julho de 2002
(http://www.dre.pt/pdfgratisac/1999/32230.pdf), págs. 3065 a 3070, com sumário disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/c063c7cf270cd8ff802568fc003a0cb4.)]; em 16/05/2001, no processo n.º 25532 [(Publicado no Apêndice ao Diário da República de 8 de Setembro de 2003
(http://www.dre.pt/pdfgratisac/2001/32220.pdf), págs. 1259 a 1263, com sumário disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/8d7899d81b611bde80256ad30052bece.)]; em 26/03/2003, no processo n.º 1973/02 [(Disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/d4b6d2d45d1dc27b80256cfd0044cf1c.)]; em 27/09/2005, no processo n.º 287/05 [(Disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/e5ee2b207f40abbc80257093004b1b5c.)]; e em 12/01/2011, no processo n.º 583/10 [(Disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/d96428dd47c20a118025781f003f56e3.)]), apela, também, à natureza de plena jurisdição da sentença de anulação parcial do acto, invocando razões ligadas aos princípios processuais da economia processual (para que da sentença ou acórdão do tribunal saia logo uma definição da situação que não careça de qualquer nova pronúncia da administração tributária) e ligadas ao próprio âmbito do contencioso de mera anulação (no qual os limites à plena jurisdição só serão de aceitar em relação àqueles aspectos da acção administrativa em que a plena jurisdição implique para o juiz tributário, enquanto juiz administrativo, a prática de actos que afrontem o núcleo essencial da função administrativa) (Cfr. o Prof. Saldanha Sanches, in Fiscalidade, 7/8, Julho-Outubro de 2001, págs. 63 e segs. [(Disponível em http://www.saldanhasanches.pt/pdf-3/2001,20-Fiscalidade,207-8,-2063-71.pdf.)], e o Prof. Casalta Nabais, in Direito Fiscal, 2.ª ed., pág. 397.). Deste modo, se o juiz reconhecer que o acto tributário está inquinado de ilegalidade que só em parte o invalida, deve anulá-lo apenas nessa parte, deixando-o subsistir no segmento em que nenhuma ilegalidade o fira».
O critério jurisprudencial para determinar se o acto deve ser total ou parcialmente anulado passa, pois, por determinar se a ilegalidade afecta o acto tributário no seu todo, caso em que o acto deve ser integralmente anulado (como nos casos julgados por Acórdãos deste Supremo Tribunal de 10 de Outubro de 2012, rec. n.º 533/12 ( Disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/8a5b5c3914bb743980257a9f004c2462.), de 12 de Janeiro de 2011, rec. n.º 583/10 (Ver nota 11 supra.) ou de 26 de Março de 2003, rec. 1973/02 (Ver nota 9 supra.)) ou apenas em parte, caso em que se justifica a anulação parcial».
Acompanhamos integralmente esta jurisprudência (No mesmo sentido, mais recentemente, o seguinte acórdão da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:
- de 5 de Dezembro de 2018, proferido no processo n.º 888/05.9BEPRT, disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/6a96859b090c0b0b8025835f0052d7d1.): se a ilegalidade que afecta o acto tributário o inquina no seu todo, não há que ponderar a possibilidade da decisão a proferir em sede de impugnação judicial anular o acto parcialmente; essa possibilidade só deve ser ponderada nos casos em que essa ilegalidade apenas afecta o acto impugnado em parte. Nestes casos, deve o tribunal aferir da possibilidade da anulação parcial da liquidação, pela qual não substitui o acto impugnado por um outro acto da sua autoria (substituição que lhe está vedada pelo princípio da separação dos poderes), mas antes mantém aquele acto, mas apenas na parte não afectada; «este subsiste, só que parcialmente, continuando a ser o “título” no qual se funda a exigência do pagamento do imposto» (Cfr. RUI DUARTE MORAIS, Manual de Procedimento e de Processo Tributário, Almedina, 2012, pág. 243.).
Como ficou dito no já referido acórdão da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo de 5 de Dezembro de 2018, proferido no processo n.º 888/05.9BEPRT, «de forma a compreender se o acto de liquidação deve ser total ou parcialmente anulado, o recente Acórdão deste Supremo Tribunal proferido a 12 de Julho de 2017 no Processo n.º 0636/17 [ora invocado como acórdão fundamento] reitera quehá que determinar o tipo de ilegalidade que o inquina e analisar se ela é susceptível de o afectar no seu todo, caso em que ele tem de ser integralmente anulado”».
No caso dos autos, como deixámos dito supra, o acórdão arbitral recorrido julgou verificada a ilegalidade de apenas uma parte das correcções à matéria colectável que deram origem à liquidação impugnada. Assim, parafraseando o citado acórdão de 5 de Dezembro de 2018, também nós diremos que essas ilegalidades apenas poderão “inviabilizar o acto tributário de liquidação na parte correspondente às correcções ilegais (e não no seu todo)»; que as demais correcções (algumas que nem foram objecto do pedido de pronúncia arbitral e outras que foram julgadas legais pelo tribunal arbitral) são perfeitamente autonomizáveis, razão pela qual, a divisibilidade do acto tributário em análise nos presentes autos é “materialmente realizável, por simples operação aritmética”.
Ou seja, não obsta à anulação parcial da liquidação a necessidade de um ulterior accertamento por parte da AT, de modo a conformar a parte remanescente do acto com os termos da decisão judicial anulatória. Tendo esta declarado ilegais apenas uma parte das correcções à matéria colectável efectuadas na sequência de acção inspectiva, deve anular o acto de liquidação apenas na parte que decorre dessas correcções que foram julgadas ilegais pelo tribunal, devendo a liquidação manter-se quanto às correcções que se mantêm intocadas.
O acórdão arbitral, que, diversamente, entendeu que não podia decidir pela anulação parcial, enferma do erro de julgamento que lhe vem assacado e, nessa parte, não pode manter-se.

2.2.4 CONCLUSÕES

Preparando a decisão, formulamos as seguintes conclusões:

I - O acto tributário, enquanto acto divisível, tanto por natureza como por definição legal, é susceptível de anulação parcial.

II - O critério para determinar se o acto deve ser total ou parcialmente anulado passa por aferir se a ilegalidade afecta o acto tributário no seu todo, caso em que o acto deve ser integralmente anulado, ou apenas em parte, caso em que se justifica a anulação parcial.

III - Não impede a anulação parcial do acto a necessidade de um ulterior accertamento por parte da AT, de modo a conformar a parte remanescente do acto com os termos da decisão judicial anulatória, como o impõe no caso a diminuição ao valor da matéria colectável apurada em sede de acção inspectiva do valor respeitante às correcções que foram julgadas ilegais pelo tribunal.


* * *

3. DECISÃO

Em face do exposto, os juízes do Pleno da Secção do Contencioso Tributário deste Supremo Tribunal Administrativo acordam em tomar conhecimento do mérito do recurso e, concedendo-lhe provimento, anular a decisão arbitral no segmento recorrido e, em substituição, mantendo a decisão de anulação da liquidação impugnada quanto às correcções nela referidas como ilegais, anular a liquidação impugnada apenas nessa parte, mantendo-a no demais.
Custas pela Recorrida, que não paga taxa de justiça porque não contra-alegou o recurso.
Comunique-se ao CAAD.

Lisboa, 30 de Janeiro de 2019. – Francisco António Pedrosa de Areal Rothes (relator) – Pedro Manuel Dias Delgado – Ana Paula da Fonseca Lobo – Jorge Miguel Barroso de Aragão Seia – Isabel Cristina Mota Marques da Silva – Dulce Manuel da Conceição Neto – José da Ascensão Nunes Lopes.