Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:01956/18.2BEBRG
Data do Acordão:04/24/2019
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:FRANCISCO ROTHES
Descritores:EXECUÇÃO FISCAL
ANULAÇÃO
LIQUIDAÇÃO
RECLAMAÇÃO JUDICIAL
Sumário:I - A anulação total da liquidação que esteve na origem da dívida exequenda tem como consequência inelutável a extinção da execução fiscal onde estava a ser cobrada tal dívida [cfr. arts. 176.º, n.º 1, alínea b), e 270.º, n.º 1, do CPPT].
II - Eventual novo acto a que a AT proceda em execução da decisão anulatória não permite a prossecução daquela execução fiscal, em qualquer medida, e nunca poderá ser cobrado o respectivo montante coercivamente (em nova execução fiscal instaurada com base em novo título) sem que se mostre esgotado o prazo para o pagamento voluntário.
III - Caso a execução prossiga ao arrepio do que deixámos dito em I e II, porque estamos perante um comportamento imediatamente lesivo dos direitos do executado, este pode arguir essa ilegalidade directamente perante o juiz e através do meio processual previsto no art. 276.º e segs. do CPPT, não tendo previamente que suscitar a questão perante o órgão da execução fiscal.
Nº Convencional:JSTA000P24477
Nº do Documento:SA22019042401956/18
Data de Entrada:03/26/2019
Recorrente:AT - AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Recorrido 1:A......., S.A.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: 1. RELATÓRIO
1.1 O Representante da Fazenda Pública junto do Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga (adiante Recorrente) recorre para o Supremo Tribunal Administrativo da sentença por que aquele tribunal, julgando procedente a reclamação deduzida pela sociedade acima identificada (adiante Recorrida) ao abrigo do art. 276.º e segs. do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), determinou a extinção do processo de execução fiscal em que aquela era executada e o levantamento da garantia que prestou, no entendimento de que é judicialmente sindicável, por via da reclamação, o prosseguimento da execução fiscal depois de o tribunal arbitral ter anulado totalmente a liquidação que deu origem à dívida exequenda, prosseguimento esse que teve por ilegal.

1.2 Com o requerimento de interposição do recurso apresentou a respectiva motivação, que resumiu em conclusões do seguinte teor:

«A. A ora reclamante vem pelo presente incidente solicitar a extinção do processo executivo n.º 3590201601111248, bem como o levantamento da suspensão do mesmo, por força da garantia prestada, fundamentando a Reclamação na razão do órgão da execução fiscal (Serviço de Finanças de Vila Nova de Famalicão-2) não ter procedido à extinção do processo executivo supra referido, pelo facto da liquidação de IRC n.º 2016 8310033636, do ano de 2012, no montante a pagar de € 465.436,53, subjacente ao identificado PEF, ter sido integralmente anulada, em resultado da decisão colectiva arbitral, proferida no processo n.º 362/2017, transitada em julgado (negrito nosso).

B. Em consonância com o acima invocado, pronunciou-se o douto Tribunal a quo, com o seguinte segmento decisório: “O Reclamante requereu pronúncia arbitral, junto do CAAD, contra a liquidação de IRC e respectivos juros compensatórios, referente ao exercício de 2012, identificada com o n.º 2016 8310033636 e os juros compensatórios n.ºs 2016 0000551877 e 2016 0000551878, onde se evidencia um montante de imposto a pagar de € 465.436,53, dos quais € 225.746,33 correspondem a tributação autónoma (TA) e € 48.465,46 a juros compensatórios. […] Nessa conformidade, e considerando que a decisão arbitral proferida no processo n.º 362/2017-T procedeu à anulação total, e não apenas parcial do acto de liquidação subjacente ao processo de execução fiscal n.º 3590201601111248, a Administração Fiscal estava obrigada a cumprir o que aí se determinou (conforme artigo 24.º do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria em Matéria Tributária, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 11/2011, de 20/01) e a retirar da anulação da liquidação as devidas consequências, quais sejam, atento o disposto nos artigos 176.º, n.º 1, alínea b) e 270.º, n.º 1, ambos do CPPT, a de extinguir o processo de execução fiscal instaurado para cobrança coerciva da dívida titulada por aquela liquidação com o consequente levantamento da garantia prestada para efeitos da suspensão do processo de execução fiscal. Não o tendo feito espontaneamente, […] importa determinar a extinção do processo de execução fiscal n.º 3590201601111248, nos termos do artigos 176.º, n.º 1, alínea b) e 270.º, n.º 1, ambos do CPPT, e o levantamento da garantia prestada, nos termos do artigo 271.º do CPPT”.

C. O Mm.º Juiz [do Tribunal] a quo proferiu a seguinte DECISÃO: “Julgar procedente a presente Reclamação procedente e, em consequência, determinou a extinção do processo de execução fiscal n.º 3590201601111248, com o consequente levantamento da garantia prestada para efeitos de suspensão do processo de execução fiscal”.

D. É da referida decisão do Tribunal a quo que a Fazenda Publica discorda, por entender, salvo sempre o devido respeito e melhor opinião, que o M.º Juiz [do Tribunal] a quo fez errada interpretação e aplicação das disposições legais ao caso concreto, ao ter considerado, como considerou, que a questão que contende com a execução espontânea de decisão judicial, podia ser apreciado na forma de processo que o Reclamante lançou mão, muito embora, na douta sentença, admitisse o que aqui se passa a transcrever: “O enfoque referido pela Reclamante assenta nos efeitos, em sede de processo de execução fiscal, da decisão arbitral proferida no âmbito do processo n.º 362/2017-T, designadamente atinentes à possibilidade de prosseguimento do processo de execução fiscal para cobrança de valores divergentes daqueles inicialmente instaurados, e seus efeitos na garantia apresentada com vista à suspensão da execução fiscal. Com efeito, o facto de inexistir, no caso concreto, qualquer “despacho reclamado”, na medida em que a extinção da execução e/ou o levantamento da garantia prestada para efeitos de suspensão da execução fiscal não foi directamente peticionada, nem directamente objecto de despacho expresso de indeferimento, não é de molde a obviar à sindicância judicial de actuação implícita de prosseguimento de execução fiscal (a AT prosseguiu com a execução fiscal para cobrança dos valores considerados fora da alçada da decisão arbitral, o que se retira, desde logo, da emissão de “liquidação correctiva””. (sublinhados nossos).

E. Conforme acima se transcreveu na parte da fundamentação extraída da douta sentença, o M.º Juiz [do Tribunal] a quo deixou exarado que o órgão da execução fiscal não havia praticado nenhum acto no seio do processo executivo.

Ora,

F. constituindo a reclamação judicial de acto praticado na execução fiscal uma verdadeira acção impugnatória incidental da execução fiscal, formulada no curso de execução pendente, tendo por objecto determinado acto que nela foi praticado pelo órgão da execução e por finalidade a apreciação da validade desse acto; e,

G. estabelecendo o n.º 1 do art. 277.º do CPPT o prazo de 10 dias para deduzir reclamação judicial dos actos materialmente administrativos em matéria tributária praticados no âmbito do processo de execução fiscal, contados desde a sua notificação;

H. da factualidade dada como provada na douta sentença a quo ficou assente que, face à inexistência da prática de qualquer acto e/ou despacho proferidos na execução fiscal, consequentemente, inexistiu a notificação referida no predito artigo 277.º, n.º 1, que permitisse ao Reclamante apresentar a Reclamação do art. 276.º do CPPT.

I. Donde, considera a Fazenda Pública, salvo sempre o devido respeito e melhor opinião, que esta Reclamação da decisão do artigo 276.º do CPPT, deveria ter sido rejeitada, porque, dada a estrutural dependência desta em relação à execução fiscal na qual é praticado o acto potencialmente lesivo “reclamável”, e, inexistindo, in casu, a prática de qualquer acto lesivo, inexistia fundamento para deduzir a Reclamação do artigo 276.º do CPPT.

J. Apesar disso e não obstante o M.º Juiz [do Tribunal] a quo expressamente referir na fundamentação expressa na douta sentença recorrida (acima transcrita - pontos D e E), certo é que deu por assente que a causa de pedir e o pedido se adequavam à forma de processo utilizada pelo ora Reclamante.

K. Na presente Reclamante a Reclamante deduz como pretensão a imediata extinção do processo executivo, com todas as consequências legais.

L. Porém, não podemos perder de vista que, no caso dos autos, está em causa o cumprimento da execução espontânea da decisão arbitral por banda da AT, tendo esta interpretado a acção como sendo parcialmente procedente e, em consequência, procedeu à correspondente anulação “parcial” da liquidação de IRC, no valor de 410.645,67 €, prosseguindo o processo executivo pelo remanescente – € 47.007,87, cujo procedimento é o que subsume à “questão a dirimir” e que é o ponto de discordância do Reclamante e da AT.

M. Nessa medida, parece-nos, sempre com o devido respeito e melhor opinião, que, tendo o Reclamante em vista o de colocar em crise a “incorrecção” da execução espontânea da decisão arbitral – proferida no âmbito do processo “CAAD” n.º 362/2017-T, levada a cabo pelo OEF, teria que ser discutida, não em sede de Reclamação da decisão do órgão da execução fiscal, admitida e decidida pelo douto Tribunal a quo, mas, antes, em sede de execução de julgado, previsto nos artigos 158.º e 176.º e ss. do CPTA.

N. Nesta sequência, e quando se analisa o exposto no Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), temos que nos termos do artigo 158.º, n.º 1, daquele diploma “as decisões dos tribunais administrativos são obrigatórias para todas as entidades públicas e privadas e prevalecem sobre as de quaisquer autoridades administrativas”.

O. De acordo com o regime vertido no n.º 1, do artigo 160.º do CPTA: “os prazos dentro dos quais se impõe à Administração a execução das sentenças proferidas pelos Tribunais Administrativos correm a partir do respectivo trânsito em julgado”.

P. E no n.º 1 do artigo 175.º, do CPTA, que, salvo ocorrência de causa legítima de inexecução, o dever de executar deve ser integralmente cumprido, no máximo de 90 dias.

Q. Se tal não se verificar, determina o n.º 2 do artigo 176.º do CPTA, que o interessado dispõe do prazo de um ano para pedir a respectiva execução ao Tribunal competente (negrito nosso).

R. Do antedito, se, in casu, a AT, não tivesse executado espontaneamente a decisão arbitral, no prazo legalmente previsto, o Reclamante teria que se socorrer da execução de Julgado, de harmonia com o disposto nos artigos 151.º, 158.º, 175.º e 176.º do CPTA.

S. A exemplo do que acima ficou dito, interpretando as referidas normas e aplicando-as ao caso concreto, somos de opinião, salvo sempre o devido respeito, que o que está em causa nos presentes autos é sempre a decisão arbitral – a execução espontânea da decisão arbitral que a AT executou espontaneamente (sublinhado nosso).

T. O processo de execução de julgado está sujeito ao princípio da plenitude da execução, no sentido que é nele que se há-de apurar da legalidade de todos os actos de execução do julgado anulatório.

U. Tal significa que a obrigação de respeito pelo caso julgado formal sobre a decisão judicial impede a Administração Tributária de actuar de forma que com ela seja incompaginável.

V. Quanto ao conteúdo do dever de executar, impõe-se ter presente o disposto no art. 100.º da LGT, o qual aponta no que “a administração tributária está obrigada, em caso de procedência total ou parcial de reclamações ou recursos administrativos, ou de processo judicial a favor do sujeito passivo, à imediata e plena reconstituição da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade (…)”.

W. Nessa sequência, crê-se, que se impunha ao douto Tribunal a quo uma leitura mais incisiva da matéria em apreciação, até porque o que está em causa nos autos é, sem sombra de dúvida, a execução do julgado que se impôs à Administração Tributária, em resultado de decisão arbitral, e não qualquer acto ou despacho proferido no âmbito do processo executivo que fundamente a apresentação de Reclamação da decisão do órgão, conforme atrás ficou expresso.

X. Destarte, salvo o devido respeito, somos da opinião que a douta sentença, procedeu a errónea interpretação do artigo 276.º, do CPPT, e a sua aplicação ao caso concreto, por falta de preenchimento dos pressupostos previstos no citado dispositivo legal.

Termos em que, com o sempre mui douto suprimento de Vossas Exas., deverá ser concedido provimento ao presente, com o que se fará como sempre, a costumada JUSTIÇA».

1.3 O recurso foi admitido a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito devolutivo.

1.4 A Executada apresentou contra-alegações, com conclusões do seguinte teor:

«A. O recurso em apreço incide sobre uma sentença na qual o Tribunal determina a anulação total de uma liquidação que deu origem a uma execução fiscal de € 465.436,53, que não decorria de uma qualquer soma de valores de correcções e que, portanto, não podia ser dividida para ser anulada parcialmente – a decisão diz, preto no branco, que ordena uma “anulação total” – um acto de execução consequente de uma “nova” liquidação de um valor cujo processo de quantificação e fundamento se desconhece vai para além da mera execução espontânea de sentença e é em si, um “novo” acto, independentemente de ostentar o mesmo número de processo da execução fiscal precedente.

B. Relativamente ao teor desta sentença, a Recorrida adere, na íntegra, à posição perfilhada pelo Tribunal a quo na sentença recorrida, e às conclusões extraída em matéria de prova produzida, bem como ao raciocínio jurídico o qual está em linha com a jurisprudência dos Tribunais Superiores.

C. É a própria AT que reconhece expressamente ter praticado um acto positivo no sentido do prosseguimento do processo executivo relativamente ao remanescente da dívida exequenda que no seu (erróneo) juízo o Tribunal Arbitral consentiu (vide artigo 14.º das alegações da Recorrente).

D. Não pode, por conseguinte, vir a RFP arguir, nas suas alegações de recurso, que inexiste, “no caso, a prática de qualquer acto lesivo” (artigo 10.º das alegações da AT) na tentativa de justificar um erro na forma do processo, para acabar por ela própria afirmar a existência desse acto lesivo: o prosseguimento do processo de execução fiscal após ter “entendido” que a liquidação que servia de título executivo àquele processo foi apenas anulada parcialmente (cfr. artigo 14.º das alegações da AT).

E. A argumentação esgrimida nas alegações de recurso coloca o acento tónico na execução espontânea da decisão arbitral por parte da AT, uma vez que aquela entidade interpretou o pedido como sendo parcialmente procedente, com base nessa interpretação, alegadamente respeitou o caso julgado formal. Nesse sentido, alega a AT “se, in casu, a AT não tivesse executado espontaneamente a decisão arbitral, no prazo legalmente previsto, o Reclamante teria que se socorrer da execução de julgado” (cfr. artigo 20.º das alegações).

F. Ora, a verdade é que a Recorrida viu a sua pretensão de anulação da liquidação adicional de IRC (subjacente ao processo de execução fiscal) ser julgada totalmente procedente.

G. Tendo sido totalmente anulada a liquidação de IRC em execução, o que iria a Recorrida peticionar numa “execução de julgados” quando o acto lesivo estava precisamente a ser praticado no âmbito do processo de execução fiscal instaurado por referência à liquidação de IRC totalmente anulada e nada havia a pagar, pois a recorrente tinha apresentado garantia para suspender a execução?

H. Quanto ao alegado erro na forma do processo, e ciente de que a presente reclamação se debruçava sobre os efeitos da decisão arbitral proferida no processo n.º 362/2017-T no processo de execução fiscal n.º 3590201601111248, ao ter determinado a anulação integral da liquidação de IRC de 2012 (o título executivo, portanto), o Tribunal a quo fixou, e bem, o seguinte entendimento: “Com efeito, o facto de inexistir, no caso em concreto, qualquer «despacho reclamado», na medida em que a extinção da execução e/ou levantamento da garantia prestada para efeitos de suspensão da execução fiscal não foi directamente peticionada, nem directamente objecto de despacho expresso de indeferimento, não é de molde a obviar à sindicância judicial de actuação implícita (ou não tão implícita assim) de prosseguimento de execução fiscal” (pág. 8 da sentença).

I. Atenta a natureza judicial da execução fiscal – expressamente contemplada na LGT e a possibilidade de pedir a sindicância judicial de todos os actos praticados pela AT que sejam lesivas – possibilidade constitucionalmente garantida – é reconhecido, por um lado, o controlo jurisdicional da legalidade de todo o processo executivo e, por outro, o direito de os interessados reagirem por via judicial contra todos os actos e omissões praticados pelo órgão da execução fiscal ou por outras autoridades administrativas e que lesem os seus direitos ou interesses legítimos (independentemente da sua natureza administrativa ou processual).

J. É neste contexto que o prosseguimento (que a própria AT afirma ter existido), ou a não extinção, do processo de execução fiscal n.º 3590201601111248, e o levantamento da suspensão, sem a restituição da garantia prestada – por chocar frontalmente com o caso julgado da decisão arbitral proferida no processo n.º 362/2017-T – consubstancia um acto praticado em sede de execução fiscal pelo órgão competente com imediata lesividade para os direitos e interesses legítimos da Recorrida (i.e., com repercussão negativa imediata na esfera jurídica da sua destinatária quando a sua lesividade não puder ser diferida por meios administrativos de impugnação),

K. Quanto aos efeitos da decisão arbitral proferida no processo n.º 362/2017-T no processo de execução fiscal n.º 3590201601111248, e intrinsecamente ligados à adequação do meio processual mobilizado, estes são unívocos: assim que se verifica, no contencioso arbitral de mera anulação, a anulação total, e não parcial, da dívida subjacente à execução fiscal, acham-se reunidas as condições legais para a extinção desse processo executivo cujo título executivo (a liquidação adicional de IRC) foi totalmente anulado.

L. A este propósito, o Tribunal a quo socorreu-se do (recente) Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 18.04.2018, proferido no processo n.º 410/17.4BELLE (disponível em www.dgsi.pt) – o qual assentava sobre uma situação fáctica em tudo idêntica à presente –, e segundo o qual: “Efectivamente, tendo a sentença proferida no processo de impugnação judicial n.º 812/13.5BELLE procedido à anulação total do acto de liquidação adicional de IRS n.º 2012.5005002638, tal anulação tem como efeito a eliminação do mesmo acto tributário da ordem jurídica, pelo que, estando na origem do processo de execução fiscal uma liquidação que foi anulada, o processo executivo terá de ser declarado extinto, oficiosamente, por força do disposto nos arts. 176.º, n.º 1, al. b) e 270.º, n.º 1, do C.P.P.T., uma vez que tal anulação tem como consequência a anulação da própria divida exequenda, constituindo o prosseguimento do processo executivo a violação de uma situação de caso julgado”.

M. Em suma, considerando que a decisão arbitral proferida no processo n.º 362/2017-T procedeu à anulação total, e não apenas parcial do acto de liquidação contestado, a AT estava obrigada a cumprir o que aí se determinou – a coberto do artigo 24.º do RJAT, com amparo constitucional no artigo 205.º da CRP – e a retirar da anulação da liquidação as devidas consequências, quais sejam, atento o disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 176.º, no n.º 1 do artigo 270.º e no artigo 271.º do CPPT, a de extinguir o processo de execução fiscal n.º 3590201601111248 instaurado para cobrança coerciva da dívida titulada por aquele acto de liquidação anulado, e de levantar a garantia prestada para efeitos de suspensão desse processo executivo.

Nestes termos e nos mais de Direito, deve o recurso interposto pelo RFP ser julgado totalmente improcedente, mantendo-se a sentença recorrida».

1.5 Recebidos os autos neste Supremo Tribunal Administrativo e dada vista ao Ministério Público, o Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de que seja negado provimento ao recurso, com a seguinte fundamentação: «[…]

Resulta do estatuído no artigo 276.º do CPPT que podem ser objecto de reclamação judicial quaisquer decisões ou actos que tenham potencialidade lesiva praticados no processo de execução fiscal, incluindo actos e operações materiais de execução.
Já no que concerne à mera omissão de actos que o interessado entenda que deveriam ter sido praticados e não o foram já não será possível deduzir reclamação judicial.
Como expende o Juiz Conselheiro, Jorge Lopes de Sousa (CPPT, anotado e comentado, 6.ª edição, 2011, IV volume páginas 271/272), “Por isso, relativamente a omissões de actos não será possível, em princípio reclamar imediatamente para o juiz, pelo que o interessado deverá fazer a respectiva arguição de nulidade perante o órgão de execução fiscal e só da decisão deste que não satisfaça a sua pretensão poderá reclamar…
Aliás, se se aceitar que há um direito global de os particulares solicitarem a «intervenção do juiz do processo», como decorre da alínea 29) do art. 2.º da Lei 41/98, de 4 de Agosto, que autorizou o Governo a aprovar a LGT, parece ter de deixar-se em aberto a possibilidade do os particulares acederem ao tribunal mesmo quando não há qualquer decisão da administração tributária, inclusivamente para reagirem contra a inércia desta. Isto é, para além da reclamação prevista no artigo 276.º do CPPT, que será o meio adequado para impugnar actos praticados no processo de execução fiscal pela administração tributária, deverá reconhecer-se aos interessados a possibilidade de formularem directamente pedidos para os quais não seja adequado aquele meio, designadamente para verem satisfeitos direitos em situações em que não há uma decisão da administração tributária. Esta possibilidade terá cobertura nos arts. 151.º do CPPT e 49.º, n.º 1, e 49.º-A, n.ºs 1, alínea c), 2, alínea c) e 3, alínea c), do ETAF de 2002, que atribuem ao tribunal a competência para decidir os incidentes, a par da impugnação de actos lesivos, nada havendo na lei que obste a que os interessados gerem os incidentes inominados que entenderem adequados, que caberão necessariamente na competência do tribunal quando tiverem por objecto um litígio, mesmo que implícito entre a administração tributária e os interessados”.
No caso em análise, a reclamante/recorrida impugna a decisão de prosseguimento da execução fiscal e consequente levantamento da suspensão em que o mesmo se encontrava por força da prestação de garantia.
Ora, como bem evidencia o MP junto da 1.ª instância na sua pronúncia, resulta do probatório (ponto 10) e dos autos, que existiu um acto material de execução que se traduziu no averbamento da decisão proferida pelo CAAD e na remoção da fase suspensiva do processo de execução.
Portanto, em nosso entendimento, existe acto proferido no PEF lesivo dos direitos e interesses legítimos da recorrida susceptível de ser sindicado por via da reclamação de actos do órgão de execução fiscal regulada nos artigos 276.º a 278.º do CPPT.
Assim sendo, ressalvado melhor juízo, não ocorre erro na forma de processo utilizada.
Quanto ao mérito da reclamação – prosseguimento da execução para cobrança coerciva da quantia de € 47.007,87 – a razão está do lado da executada/recorrida.
Efectivamente, a AT entendeu que, apenas, foi parcialmente anulado o acto de liquidação de IRC de 2012 que esteve na génese da instauração da execução fiscal, determinando o prosseguimento da execução na parte, alegadamente, não anulada.
Sucede que, como resulta, claramente, do probatório e dos autos, e ao contrário da interpretação que a AT faz, o tribunal arbitral anulou totalmente (e não, apenas, parcialmente) a liquidação de IRC de 2012 que esteve na origem da execução fiscal.
As decisões dos tribunais são obrigatórias para todas as entidades públicas e privadas e prevalecem sobra as de quaisquer outras autoridades” (artigo 205.º/2 da CRP).
Nos termos do disposto no artigo 100.º da LGT “A Administração Tributária está obrigada, em caso de procedência total ou parcial de reclamação, impugnação judicial ou recurso a favor do sujeito passivo, à imediata e plena reconstituição da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios, nos termos e condições previstos na lei”.
Portanto, a AT, face ao decidido pelo tribunal arbitral, estava obrigada a retirar da anulação total da liquidação exequenda as devidas consequências, ou seja, a extinguir o PEF instaurado para cobrança coerciva da dívida titulada por aquela liquidação, atento o estatuído nos artigos 176.º/1/ b) e 270.º/1 do CPPT.
Para que a execução fiscal pudesse prosseguir no remanescente não anulado com o mesmo título executivo era necessário que a liquidação apenas tivesse sido parcialmente anulada, o que não é, manifestamente, o caso dos autos (acórdão do STA, de 28/04/2010-P. 0297/10, disponível em www.dgsi.pt).
O acto que determinou a remoção da fase suspensiva do PEF não poderia deixar de ser anulado, com consequente extinção do PEF e levantamento da garantia prestada para suspensão daquele.
A sentença recorrida não merece censura».

1.6 Com dispensa dos vistos dos Conselheiros adjuntos, atento o carácter urgente do processo [cfr. art. 36.º, n.º 2, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, aplicável ex vi dos arts. 2.º, alínea c) e 278.º, n.º 6, do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT)] cumpre apreciar e decidir.


* * *

2. FUNDAMENTAÇÃO
2.1 DE FACTO

A sentença deu como provados os seguintes factos:

«1. A Reclamante foi, em 2015, alvo de uma inspecção tributária, ao exercício de 2012, em sede de IRC e de IVA, a qual culminou com a emissão da liquidação de IRC n.º 2016 8310033636, consubstanciada na demonstração de liquidação de IRC n.º 2016 00006175945, demonstração de acerto de contas n.º 2016 00002576069 e demonstração de liquidação de juros compensatórios, referente ao exercício de 2012, no montante de imposto a pagar de € 465.436,53 – facto não controvertido e conforme aos docs. n.ºs 1 e 2 juntos com a petição inicial, cujo teor se considera integralmente reproduzido;

2. Em 03-08-2016, foi instaurado, no Serviço de Finanças de Vila Nova de Famalicão-2, contra a executada A………….., S.A., NIPC ………….., o processo de execução fiscal n.º 3590201601111248, para cobrança coerciva da liquidação de IRC e Juros Compensatórios identificada no ponto anterior – cfr. fls. 1 a 3 do processo de execução fiscal apenso;

3. Tendo em vista a suspensão da execução fiscal identificada em 2), a Reclamante apresentou, em 08-08-2016, penhor sobre os inventários, o qual foi aceite como garantia pela Administração Fiscal – cfr. doc. n.º 3 junto com a petição inicial e fls. 4 a 42 do processo de execução fiscal apenso, cujo teor se considera integralmente reproduzido;

4. A Reclamante apresentou junto do CAAD: Arbitragem Tributária, pedido de pronúncia arbitral contra a liquidação identificada em 1), o qual correu seus termos sob o processo n.º 362/2017.T – facto não controvertido e conforme ao doc. n.º 2 junto com a petição inicial;

5. Em 23-01-2018 o tribunal arbitral proferiu decisão, cujo segmento decisório é do seguinte teor:
Nestes termos acordam neste Tribunal Arbitral em:
a) Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral;
b) Declarar a ilegalidade a anular a liquidação de IRC n.º 2016 8310033636, datada de 16-05-2016, com n.º da compensação 2016 00002576069 e as liquidações de juros compensatórios n.ºs 2016 00000551877 e 2016 00000551878, referentes ao exercício de 2012, onde se evidencia um montante de Imposto a pagar de € 465.436,53, dos quais € 225.746,33 correspondem a Tributação Autónoma (TA) e € 48.465,46 a juros compensatórios” – cfr. doc. n.º 2 junto com a petição inicial, cujo teor se considera integralmente reproduzido;

6. Na fundamentação da decisão arbitral identificada no ponto anterior, sobre o ponto “3.3. Conclusão sobre as liquidações de IRC e tributação autónoma” consignou-se o seguinte:
Do exposto conclui-se que não tem suporte legal a imposição da tributação autónoma, pelo que enferma de vício de violação de lei que justifica a anulação da liquidação, na parte respectiva, e harmonia com o preceituado no artigo 163.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo subsidiariamente aplicável nos termos do artigo 2.º, alínea c), da LGT.
Quanto a liquidação de IRC não tem fundamento no artigo 65.º, n.º 1, do CIRC, mas tem fundamento parcial no artigo 23.º, n.º 1, do mesmo Código, na parte respeitante aos encargos indicados como despesas de transporte na China para Portugal referidas nas facturas emitidas até Setembro de 2012.
Embora a ilegalidade seja apenas parcial, não sendo discriminada no Relatório da Inspecção Tributária nem na liquidação de IRC a parte que se reporta às despesas de transporte referidas nas facturas emitidas até Setembro de 2012, justifica-se a anulação total 1 [1 Sem prejuízo de eventual possibilidade ou não de renovação do acto, em execução do julgado, com «respeito pelos limites ditados pela autoridade do caso julgado» (artigo 173.º, n.º 1, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos)].
A liquidação de juros compensatórios tem por base a liquidação de IRC (artigo 35.º, n.º 8, da LGT), pelo que enferma do mesmo vício, justificando-se também a sua anulação.
A decisão da reclamação graciosa, que manteve as liquidações de IRC, juros compensatórios e tributação autónoma enferma dos vícios que afectam estas liquidações” – cfr. doc. n.º 2 junto com a petição inicial;

7. As partes não interpuseram recurso da decisão arbitral identificada em 5) – facto não controvertido e conforme ao doc. n.º 4 junto com a petição inicial;

8. Na sequência da decisão arbitral identificada em 5), a Administração Fiscal emitiu a “Demonstração de liquidação de IRC” n.º 2018 8310001854, consubstanciada na compensação n.º 2018 00005370205, no montante a pagar de € 47.007,87 – cfr. doc.s n.ºs 4 e 5 juntos com a petição inicial, cujo teor se considera integralmente reproduzido;

9. A Reclamante apresentou reclamação graciosa contra a liquidação de imposto identificada no ponto anterior – cfr. doc. n.º 6 junto com a petição inicial, cujo teor se considera integralmente reproduzido;

10. O processo executivo aludido em 2) prossegue seus termos para cobrança dos valores identificados em 8) – facto não controvertido e conforme aos docs. 4 e 5 juntos com a petição inicial e fls. 110 do processo de execução fiscal apenso;

11. A presente acção foi apresentada no Serviço de Finanças de Vila Nova de Famalicão-2, por carta registada, em 31-08-2018 – cfr. fls. 93 do suporte electrónico dos autos».


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2.2 DE DIREITO

2.2.1 AS QUESTÕES A APRECIAR E DECIDIR

A liquidação de IRC que deu origem à dívida exequenda foi anulada por acórdão do Centro de Arbitragem Administrativa - CAAD (Acórdão proferido em 23 de Janeiro de 2018, no processo n.º 362/2017-T, disponível em
https://caad.org.pt/tributario/decisoes/decisao.php?listPageSize=100&listPage=31&id=3183.), que transitou em julgado.
O órgão da execução fiscal – o Serviço de Finanças de Vila Nova de Famalicão 2 –, tendo interpretado essa decisão como sendo de anulação parcial, fez prosseguir a execução fiscal pelo montante que considera ter permanecido intocado por aquela decisão anulatória.
Foi contra a prossecução da execução fiscal nesses termos que se veio insurgir a Executada, mediante reclamação judicial deduzida ao abrigo do art. 276.º e segs. do CPPT, pedindo ao Juiz do Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga a extinção da execução fiscal e o levantamento da garantia que nele foi prestada em ordem à suspensão do processo na pendência do processo arbitral.
A sentença deu razão à Executada. Em síntese, considerou que, na sequência da anulação total da liquidação, não restava ao órgão da execução fiscal senão julgar extinto o processo, não podendo fazê-lo prosseguir para cobrança de montante algum.
A Fazenda Pública discorda da sentença, quer porque entende que a anulação da liquidação foi meramente parcial – motivo porque a AT estava obrigada, em obediência a essa decisão, a fazer prosseguir a execução fiscal pela parte em que a liquidação permaneceu intocada –, quer porque entende que a Executada apenas podia discutir esta questão em sede de execução de julgado e nunca em reclamação judicial, tanto mais que inexiste decisão ou acto do órgão da execução fiscal susceptível de ser impugnado judicialmente.
As questões a apreciar e decidir gravitam, pois, em torno das consequências que a anulação de uma liquidação pelo tribunal – no caso, arbitral, ou seja, o CAAD (O CAAD, pessoa colectiva de direito privado, é o único centro de arbitragem autorizado em sede de arbitragem tributária.) – tem sobre a execução fiscal em que estava a ser cobrado o montante respeitante a esse acto anulado.
Assim, em face dos termos em que a Fazenda Pública configurou o recurso, as questões a apreciar e decidir são as de saber:
i) se a anulação da liquidação foi parcial ou total e, consequentemente, se a obrigação da AT respeitar o julgado lhe permitia, ou até lhe exigia, fazer prosseguir a execução fiscal em alguma medida;
ii) se a Executada podia reagir directamente mediante reclamação judicial contra a prossecução da execução fiscal, o que passa por apreciar i.1) se a Executada deveria, em primeira linha, ter suscitado a questão perante o órgão da execução fiscal e i.2) se a questão deveria ter sido suscitada em sede de pedido de execução de julgado.


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2.2.2 DA DECISÃO QUE ANULOU A LIQUIDAÇÃO QUE ESTÁ NA ORIGEM DA DÍVIDA EXEQUENDA: SUA INTERPRETAÇÃO (ANULAÇÃO TOTAL OU PARCIAL?) E EFEITOS SOBRE A EXECUÇÃO FISCAL

A Recorrente sustenta que a decisão arbitral que apreciou a legalidade da liquidação que esteve na origem da dívida exequenda não anulou a liquidação totalmente, mas apenas parcialmente.
Salvo o devido respeito, esse entendimento não colhe apoio algum no texto do acórdão arbitral, nem na sua parte decisória nem na sua parte expositiva, motivo por que – sempre sem perder de vista que as decisões dos tribunais, como actos jurídicos, carecem de interpretação e que nesta tarefa se devem observar as regras hermenêuticas aplicáveis às declarações negociais (art. 236.º, n.º 1, do Código Civil, ex vi do art. 295.º do mesmo Código), como tem vindo a afirmar este Supremo Tribunal (Vide, entre outros e com indicação de jurisprudência no mesmo sentido, o seguinte acórdão da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:
- de 22 de Novembro de 2017, proferido no processo n.º 546/16, disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/864bb101f8019591802581e5004ea896.) – se nos afigura insustentável pretender que a anulação da liquidação não foi total.
Na verdade, na parte decisória, ficou dito naquele acórdão: «Nestes termos acordam neste Tribunal Arbitral em: a. Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral; b. Declarar a ilegalidade e anular a liquidação de IRC n.º 2016 8310033636, datada de 16-05-2016, com n.º da compensação 2016 00002576069, a demonstração de acerto de contas n.º 2016 00002576069 e as liquidações de juros compensatórios n.ºs 2016 00000551877 e 2016 00000551878, referentes ao exercício de 2012, onde se evidencia um montante de imposto a pagar de € 465.436,53, dos quais € 225.746,33 correspondem a Tributação Autónoma (TA) e € 48.465,46 a juros compensatórios».
Por outro lado, apesar de no acórdão arbitral se ter ponderado a possibilidade de anulação parcial, a mesma foi expressamente afastada em face das circunstâncias do caso. Assim, aí ficou dito: «Quanto à liquidação de IRC não tem fundamento no artigo 65.º, n.º 1, do CIRC, mas tem fundamento parcial no artigo 23.º, n.º 1, do mesmo Código, na parte respeitante aos encargos indicados como despesas de transporte na China para Portugal referidas nas facturas emitidas até Setembro de 2012.// Embora a ilegalidade seja apenas parcial, não sendo discriminada no Relatório da Inspecção Tributária nem na liquidação de IRC a parte que se reporta às despesas de transporte referidas nas facturas emitidas até Setembro de 2012, justifica-se a anulação total» (sublinhado nosso).
Ou seja, como se verifica da leitura da decisão arbitral, não há no seu texto segmento ou trecho algum que permita sustentar que a liquidação não foi totalmente anulada; como ficou dito no acórdão desta Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo, de 28 de Abril de 2010, proferido no processo n.º 297/10 (Acórdão também referido na sentença e pelo Procurador-Geral Adjunto no seu parecer e disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/76e3957223bac3d48025771a00550913.), nela não descortinamos «qualquer expressão a que se pudesse atribuir sentido equivalente ao de “anulação parcial” da liquidação ou de “manutenção parcial do acto impugnado”, isto sem prejuízo de se reconhecer ser correcta a tese da possibilidade de anulação meramente parcial dos actos sindicados», como reconhece o legislador no art. 100.º da Lei Geral Tributária (LGT).
Se a Recorrente entendia que a decisão não deveria ter sido de anulação total da liquidação, mas apenas de anulação parcial, para fazer valer esse entendimento não lhe restava alternativa ao recurso dessa decisão (Vide o acórdão citado na nota anterior. Sendo certo que o legislador não contemplou a possibilidade de recurso da decisão arbitral para o Supremo Tribunal Administrativo senão por oposição de julgados (cfr. art. 25.º do RJAT), se a AT entendia que a situação era de anulação parcial poderia ter lançado mão desse recurso, como o tem feito em situações idênticas (v.g., o acórdão do Pleno da Secção de Contencioso Tributário de 30 de Janeiro de 2019, proferido no processo n.º 436/18.0BALSB, disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/91af7fd04cbdd0cd80258397005c1599).); o que, seguramente, não pode, em face de uma decisão de anulação total, é pretender restringir o âmbito dessa decisão e conferir-lhe efeito anulatório meramente parcial. A tanto obsta o princípio do respeito pelo caso julgado que, relativamente à justiça arbitral tributária, encontra expressão no art. 24.º do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (RJAT), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro.
Podemos, pois, concluir, com a sentença recorrida – que deu resposta adequada e bem fundamentada à questão –, que a decisão arbitral (bem ou mal, não releva aqui) anulou totalmente, que não em parte, a liquidação subjacente ao processo de execução fiscal.
O que significa que, tal como se concluiu no já citado acórdão de 28 de Abril de 2010, proferido no processo n.º 297/10, que perante a anulação total da liquidação subjacente à dívida exequenda, a AT «estava obrigada a cumprir o que aí se determinou (artigo 205.º da Constituição da República Portuguesa) e a retirar da anulação judicial da liquidação de IRC […] impugnada as devidas consequências, quais sejam, atento o disposto nos artigos 176.º, n.º 1, alínea b) e 270.º n.º 1 do CPPT, a de extinguir o processo de execução fiscal instaurado para cobrança coerciva da dívida titulada por aquela liquidação».
Perante uma decisão que anulou totalmente a liquidação, não pode a execução fiscal onde estava a ser cobrada a dívida que teve origem naquele acto prosseguir para cobrança de qualquer “remanescente”, como se a liquidação tivesse sido apenas anulada em parte.
É certo que a AT, na sequência da decisão anulatória e se os termos desta lho permitirem (i.e., se for viável a renovação do acto sem violação do caso julgado), pode e deve (Poderes da AT que já não são os de conformação autónoma da situação jurídica que detinha ao praticar o acto, conferidos para o desempenho da sua missão de prossecução do interesse público (cfr. art. 266.º da CRP) em conformidade com a sua interpretação da legalidade, mas sim poderes dependentes e limitados que derivam da obrigatoriedade de retirar as consequências jurídicas da decisão judicial anulatória, que lhe impõe reconstituir a situação que existiria se o acto anulado não tivesse sido praticado.), em execução do julgado e dentro do prazo deste – de 90 dias, atento o disposto no n.º 1 do art. 162.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), aplicável ex vi do n.º 1 do art. 102.º da LGT –, praticar acto (nova “liquidação”) que reconstitua a situação que existiria se o acto anulado não tivesse sido praticado com ilegalidade [cfr. art. 100.º da LGT e art. 173.º do CPTA, este aplicável ex vi da alínea c) do art. 2.º do CPPT].
Mas, se o fizer, deve notificá-lo ao sujeito passivo e permitir-lhe o pagamento voluntário; só se este não for efectuado dentro do prazo fixado para o efeito poderá a AT recorrer à cobrança coerciva mediante execução fiscal, de acordo com o disposto no art. 84.º do CPPT.
Do que deixámos dito resulta que o pressuposto em que a Recorrente fez assentar o seu recurso – que a anulação foi meramente parcial – não se verifica, o que inquina a sua tese e obsta a que o recurso seja provido com esse fundamento: a anulação da liquidação foi total e, por isso, a execução fiscal em que estava em cobrança a dívida que teve origem nesse acto não podia prosseguir em medida alguma.


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2.2.3 DO USO DA RECLAMAÇÃO JUDICIAL

2.2.3.1 PODIA A EXECUTADA RECLAMAR JUDICIALMENTE SEM ANTES ARGUIR A NULIDADE PERANTE O ÓRGÃO DA EXECUÇÃO FISCAL?

A Recorrente sustenta que não podia a Executada ter lançado mão da reclamação judicial uma vez que inexiste qualquer decisão ou acto do órgão da execução fiscal que possa constituir o seu objecto.
Salvo o devido respeito, não podemos concordar. Desde logo, porque na sequência da anulação total da liquidação que esteve na origem da dívida exequenda, a execução fiscal deixou de ter título que autorize a sua prossecução. O título executivo com base no qual foi instaurada padece de nulidade superveniente pois, se era válido à data em que foi extraído e a execução foi instaurada, após a anulação da liquidação deve ter-se por nulo, atento o disposto no art. 161.º, n.º 2, alínea i), do Código do Procedimento Administrativo (CPA).
A nulidade do título executivo tem como consequência que o mesmo «não produz quaisquer efeitos jurídicos, independentemente da declaração de nulidade», e «é invocável a todo o tempo por qualquer interessado e pode, também a todo o tempo, ser conhecida por qualquer autoridade e declarada pelos tribunais administrativos ou pelos órgãos administrativos competentes para a anulação» (cfr. art. 162.º, n.ºs 1 e 2, do CPA, respectivamente).
Assim, apesar de a nulidade do título executivo não constar do rol das nulidades do processo de execução fiscal do art. 165.º do CPPT é inquestionável que essa invalidade, porque objectivamente mais grave do que a «falta de requisitos essenciais do título executivo, quando não puder ser suprida por prova documental», não pode merecer tratamento menos favorável (na óptica do executado) do que esta. Ou seja, nos termos do n.º 4 do art. 165.º do CPPT (e de acordo com o citado n.º 2 do art. 162.º do CPA), é do conhecimento oficioso e pode ser arguida até ao trânsito em julgado da decisão final.
Será que a Executada deveria ter arguido primariamente essa nulidade perante o órgão da execução fiscal e só eventual decisão desfavorável lhe abria a via da reclamação judicial prevista no art. 276.º e segs. do CPPT?
Salvo melhor opinião, a resposta é negativa.
Como vimos já, perante a anulação da liquidação que esteve na origem da extracção do título executivo, deveria ter sido oficiosamente julgada extinta a execução fiscal [cfr. arts. 176.º, n.º 1, alínea b), e 270.º, n.º 1, do CPPT].
Não o tendo sido, não se torna necessário que a nulidade por falta de título executivo seja previamente suscitada perante o órgão da execução fiscal, podendo ser invocada, em primeira linha, directamente perante o juiz do tribunal tributário da área da execução fiscal, pois a mera prossecução do processo constitui um acto imediatamente lesivo (Sobre o conceito de acto lesivo como objecto da reclamação judicial prevista no art. 276.º e segs. do CPPT, vide o seguinte acórdão da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:
- de 24 de Setembro de 2014, proferido no processo n.º 890/14, disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/8303729693fbfe4280257d620030043a.) e, por isso, não poderá deixar de se reconhecer ao interessado (à Executada no caso sub judice) o direito de solicitar imediatamente a intervenção do tribunal, como modo de assegurar a tutela judicial efectiva garantida pelo n.º 1 do art. 20.º da Constituição da República Portuguesa.
Disso bem deu conta a sentença recorrida, em discurso que também nós subscrevemos e que ora nos dispensamos de reproduzir, citando a doutrina em abono da sua tese (JORGE LOPES DE SOUSA, Código de Procedimento e de Processo Tributário anotado e comentado, Áreas Editora, 6.ª edição, IV volume, anotação 4 a) e b), págs. 269/272.).
O recurso não pode, pois, ser provido com fundamento na inexistência de acto do órgão da execução fiscal susceptível de ser objecto da reclamação judicial.

2.2.3.2 A EXECUTADA DEVERIA TER RECORRIDO AO INCIDENTE DE EXECUÇÃO DO JULGADO?

A Recorrente sustenta ainda que a questão suscitada pela Executada em sede de reclamação não podia ser suscitada senão em incidente de execução do julgado, na medida em que traduz uma divergência relativamente ao alcance do caso julgado.
Salvo o devido respeito, não vislumbramos, nem a Recorrente esclarece, como a pretensão da Executada – de ver extinta a execução fiscal – poderia ser atendida em execução de julgado. Note-se que a Executada não questiona em momento algum que a liquidação foi anulada, mas apenas a repercussão ou os efeitos desse julgado anulatório sobre a execução fiscal.
Como salientou em sede de contra-alegações, o que iria ela peticionar em execução de julgado? O que pretende é que a execução fiscal não prossiga contra ela.
Em face da pretensão aduzida não se suscitam dúvidas relativamente à propriedade do meio processual utilizado, tudo como bem deu conta o Juiz do Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga, que na sentença não atendeu a arguição do erro na forma do processo.
O recurso também não pode ser provido com esse fundamento.


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2.2.4 CONCLUSÕES

De acordo com o que deixámos dito, a bem fundamentada sentença não é merecedora de censura alguma, motivo por que o recurso não merece provimento e, preparando a decisão, formulamos as seguintes conclusões:
I - A anulação total da liquidação que esteve na origem da dívida exequenda tem como consequência inelutável a extinção da execução fiscal onde estava a ser cobrada tal dívida [cfr. arts. 176.º, n.º 1, alínea b), e 270.º, n.º 1, do CPPT].
II - Eventual novo acto a que a AT proceda em execução da decisão anulatória não permite a prossecução daquela execução fiscal, em qualquer medida, e nunca poderá ser cobrado o respectivo montante coercivamente (em nova execução fiscal instaurada com base em novo título) sem que se mostre esgotado o prazo para o pagamento voluntário.
III - Caso a execução prossiga ao arrepio do que deixámos dito em I e II, porque estamos perante um comportamento imediatamente lesivo dos direitos do executado, este pode arguir essa ilegalidade directamente perante o juiz e através do meio processual previsto no art. 276.º e segs. do CPPT, não tendo previamente que suscitar a questão perante o órgão da execução fiscal.


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3. DECISÃO

Em face do exposto, os juízes do Supremo Tribunal Administrativo, em conferência, acordam em negar provimento ao recurso.

Custas pela Recorrente.

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Lisboa, 24 de Abril de 2019. – Francisco Rothes (relator) – Isabel Marques da Silva – Ana Paula Lobo.