Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0533/12
Data do Acordão:10/10/2012
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:VALENTE TORRÃO
Descritores:IMPUGNAÇÃO DE LIQUIDAÇÃO
ANULAÇÃO PARCIAL
IRS
Sumário:I – Embora o ato tributário, enquanto ato divisível, tanto por natureza como por definição legal, seja suscetível de anulação parcial, esta só poderá ter lugar quando o ato tributário só em parte estiver inquinado de invalidade.
II – Deste modo, se a decisão recorrida entendeu que a liquidação ofendia o direito comunitário, deveria ter anulado o ato na totalidade.
Nº Convencional:JSTA00067826
Nº do Documento:SA2201210100533
Data de Entrada:05/15/2012
Recorrente:A....
Recorrido 1:FAZENDA PÚBLICA
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:REC JURISDICIONAL
Objecto:SENT TAF PORTO
Decisão:PROVIDO
Área Temática 1:DIR PROC TRIBUT CONT
DIR FISC - IRS
Legislação Nacional:CIRS01 ART43 N2.
TFUE ART63.
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:

I – A……, com os demais sinais dos autos, veio recorrer da decisão da Mmª juíza do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto, que julgou parcialmente procedente a impugnação judicial que deduziu contra a liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares relativa ao ano de 2006, no valor de € 4.924,54, apresentando, para o efeito, alegações nas quais conclui:

A) - Tendo a Administração Fiscal liquidado imposto à impugnante pela taxa prevista para os não residentes sobre o montante total da mais-valia realizada e não apenas sobre 50% deste valor (artigo 43°, n.º 2 do Código do IRS), fê-lo ao arrepio do (então) artigo 56º do TJCE (atual artigo 63° do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia), pelo que terá que ser anulado o ato tributário respetivo, dado o primado do direito comunitário.

B) - Em caso algum, poderia a sentença do processo de impugnação, ao abrigo do artº. 100° da LGT, ou qualquer outra norma, estabelecer uma anulação parcial do ato impugnado, (na prática fazendo uma liquidação aplicando a legislação fiscal prevista para os residentes em Portugal), atenta a natureza meramente anulatória da impugnação judicial.
Foi, pois, entre o mais, incorretamente aplicado o artº. 100º da LGT.
Em tal conformidade, deve o presente recurso ser julgado procedente, declarando a anulação do ato tributário impugnado, devendo ser restituído à Impugnante o montante pago acrescido dos juros respetivos.

II - A Fazenda Publica não contra alegou.

III - O MP emitiu o parecer constante de fls. 69/70, no qual se pronuncia pela procedência do recurso.

IV - Colhidos os vistos legais, cabe decidir.

V - Com interesse para a decisão foram dados como provados os seguintes factos:

1º). Aquando da entrega da declaração Modelo 3 de IRS, referente ao ano de 2006, a ora Impugnante, A……, declarou:
- ter residência fiscal no estrangeiro;
- ter obtido rendimentos de mais-valias resultantes da alienação onerosa da quota-parte de 50% do direito de propriedade sobre um bem imóvel sito em Portugal, pelo preço de € 40.000,00;
- que o imóvel em questão havia sido adquirido em fevereiro de 2002, pelo montante de € 12 469,95;
- ter tido despesas e encargos no montante de €5.213,23 – cfr. Declaração Modelo 3 apresentada pela Impugnante com referência ao exercício de 2006, a fls. 10-12 do processo administrativo junto aos autos.

2º). O rendimento global apurado pela Administração Tributária (AT), decorrente da mais-valia realizada pela ora impugnante na venda do imóvel, foi de € 19.698,13 - cfr. linha 1 da demonstração de liquidação de IRS n.º 2007 00001 159933, a fls. 5 do processo físico.

3º). A AT considerou a totalidade dessa mais-valia na determinação do rendimento coletável da Impugnante - cfr. linha 6 da demonstração de liquidação de IRS n.º 2007 00001159933, a fls. 5 do processo físico.

4º). A AT apurou imposto a pagar no montante de €4.924,54, sendo a data limite de pagamento 19/09/2007 - cfr. linha 23 da demonstração de liquidação de IRS n.º 2007 00001159933, a fls. 5 do processo físico.

5º). Em 18/09/2007, a impugnante pagou o imposto liquidado - Cfr. documento 1 junto com a petição inicial, a fls. 4 do processo físico.

6º). Em 12/12/2007, foi deduzida a presente impugnação judicial - cfr. carimbo aposto no cabeçalho da respetiva petição inicial e registo informático no SITAF.

VI. A única questão a conhecer no presente recurso é a de saber se, julgada a norma do nº 2 do artº 43º do CIRS desconforme com o direito comunitário, deveria a liquidação impugnada ser totalmente anulada ou se o Mmº Juiz poderia anulá-la parcialmente de modo a equiparar a recorrente a residente em território português, aplicando o mesmo regime que se aplica aos residentes.

A recorrente entende que a liquidação deveria ter sido totalmente anulada, uma vez que tem por fundamento norma violadora de direito comunitário e atendendo a que estamos perante contencioso de anulação. Deste modo, ao aplicar o regime vigente para os residentes, a decisão recorrida efetuou, na prática, uma nova liquidação ofendendo a natureza meramente anulatória da impugnação judicial.

O MºPº, por sua vez, no parecer que consta de fls. 69/70, defende também este entendimento, louvando-se na seguinte fundamentação:

Parece ponto assente em termos doutrinários e jurisprudenciais que o ato de liquidação enquanto ato divisível é suscetível de anulação parcial. Porém, tal anulação parcial só poderá ser juridicamente admissível quando o fundamento da anulação valha apenas em relação a uma parte do ato, isto é, quando haja uma ilegalidade apenas parcial...
No entanto, se o ato de liquidação tem um único fundamento jurídico, não sendo nele possível distinguir entre uma parte que está conforme à lei e outra que a viola, não se pode decretar a anulação parcial, mesmo que se entenda que, por força de outras disposições legais, uma liquidação poderia ter lugar.
Será por exemplo, o caso de uma liquidação se ter baseado em determinada tabela de taxas de imposto e se vir a entender que a tabela legalmente aplicável seria outra. Nestas circunstâncias, toda a liquidação assentará em fundamentos jurídicos errados, pelo que o ato deve ser integralmente anulado, com fundamento em erro sobre os pressupostos de direito (vício de violação de lei). A prática de novo ato, com base la tabela tida como legal, caberá à administração tributária e não ao tribunal, não podendo o interessado ser privado da possibilidade de discutir a legalidade do novo ato que eventualmente, venha a ser praticado, utilizando todos os meios de impugnação administrativa e contenciosa que a lei lhe proporciona.
Ora, a sentença recorrida, reconhecendo que a liquidação violava o direito comunitário em lugar de anular, integralmente, o ato tributário, como seria devido anulou-o apenas, parcialmente, aplicando a legislação fiscal prevista para os residentes em Portugal, dessa forma invadindo a área de competência da administração tributária e confrontando a natureza meramente anulatória da impugnação judicial.

Vejamos então se este entendimento colhe o apoio legal.

VII. Conforme resulta da decisão recorrida, foi entendido que o artº 43º, nº 2 do CIRS, ao tributar apenas 50% do valor das mais valias auferidas por residentes em Portugal e a totalidade em relação a não residentes em Portugal, mas residentes no espaço comunitário ofendia o direito comunitário, maxime o artº 56º do Tratado que instituiu a Comunidade Europeia (atual artigo 63º do TFUE).

E, assim sendo, entendeu-se que a liquidação era ilegal.

Porém, acrescentou-se o seguinte: “Não obstante estar o ato em apreço ferido de anulabilidade, tornando-se apenas necessária uma operação aritmética para repor a respetiva legalidade e constituindo a liquidação do imposto por natureza um ato divisível, é a mesma suscetível de anulação parcial”.

E, deste modo, a decisão recorrida entendeu que a forma de ultrapassar a ilegalidade era a de aplicar também à impugnante o nº 2 do citado artº 43º do CIRS.

Porém, com o devido respeito, e como salientam a recorrente e o MºPº, tal não poderia ser feito, pelo que apenas haveria que anular o ato de liquidação na totalidade.

Com efeito, e como se escreveu no Acórdão de 12.01.2012 – Processo nº 965/10 “o ato tributário, enquanto ato divisível, tanto por natureza como por definição legal, é suscetível de anulação parcial. É esta, aliás, a posição consensual da doutrina e da jurisprudência da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo, a qual, para além de apelar a essa divisibilidade (Cfr., entre outros, os acórdãos proferidos em 9/07/1997, no processo n.º 5874; em 22/09/1999, no processo n.º 24101; em 16/05/2001, no processo n.º 25532; em 26/03/2003, no processo n.º 1973/02; em 27/09/2005, no processo n.º 287/05; e em 12/01/2011, no processo n.º 583/10.), apela, também, à natureza de plena jurisdição da sentença de anulação parcial do ato, invocando razões ligadas aos princípios processuais da economia processual (para que da sentença ou acórdão do tribunal saia logo uma definição da situação que não careça de qualquer nova pronúncia da administração tributária) e ligadas ao próprio âmbito do contencioso de mera anulação (no qual os limites à plena jurisdição só serão de aceitar em relação àqueles aspetos da ação administrativa em que a plena jurisdição implique para o juiz tributário, enquanto juiz administrativo, a prática de atos que afrontem o núcleo essencial da função administrativa) (Cfr. o Prof. Saldanha Sanches, in Fiscalidade, 7/8, Julho-Outubro de 2001, págs. 63 e segs., e o Prof. Casalta Nabais, in Direito Fiscal, 2ª ed., pág. 397.).
Deste modo, se o juiz reconhecer que o ato tributário está inquinado de ilegalidade que só em parte o invalida, deve anulá-lo apenas nessa parte, deixando-o subsistir no segmento em que nenhuma ilegalidade o fira.
No caso presente, os fundamentos de anulação reconhecidos na sentença recorrida valem apenas em relação a uma parte do ato impugnado, isto é, valem somente em relação ao ato de compensação que ali se encontra incorporado, não afetando a validade do ato de liquidação adicional do imposto em falta e dos juros compensatórios.

Como bem nota o Exm.º Procurador Geral Adjunto no seu douto parecer, sendo a liquidação adicional de IVA ato distinto e não consequente do ato anulado de compensação de créditos, não podia ser abrangida pela eficácia da anulação deste, subsistindo na ordem jurídica. A solução da questão da legalidade da liquidação adicional de IVA não ficou prejudicada pela anulação do ato de compensação, impondo-se a sua apreciação.
Assim, e não obstante não estarmos perante dois atos autónomos, mas perante um único ato tributário, este não devia ter sido anulado na totalidade, mas apenas na parte inquinada de ilegalidade”.

No caso dos autos, porém, estamos perante um único fundamento de anulação, sendo certo que a ilegalidade é total. Sendo assim, não pode alegar-se, como se fez na decisão recorrida, que o ato é divisível, apenas porque no entender do Mmº Juiz havia que aplicar a taxa a 50% das mais valias e não à sua totalidade.

Anulada a liquidação caberá à Fazenda Pública efetuar nova liquidação, aplicando ou não o nº 2 do artº 43º do CIRS e podendo eventualmente a recorrente impugnar essa nova liquidação.

Deste modo, porque no caso concreto não existe ilegalidade parcial do ato de liquidação, não podia ser o mesmo anulado parcialmente pelo que a decisão recorrida não pode manter-se.

VIII. Nestes termos e pelo exposto, concede-se provimento ao recurso, revogando-se a decisão recorrida e julgando-se procedente a impugnação com a anulação total do ato de liquidação impugnado.

Sem custas.

Lisboa, 10 de Outubro de 2012. – Valente Torrão (relator) – Ascensão Lopes – Pedro Delgado.