Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:01046/17.5BEPRT 0710/18
Data do Acordão:03/13/2019
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:DULCE NETO
Descritores:LEI
JOGOS DE FORTUNA OU AZAR
CONSTITUCIONALIDADE
Sumário:I - A "contrapartida anual" prevista no DL n.º 275/2001, de 17/10, reconduz-se a uma prestação de natureza patrimonial.
II - O DL n.º 422/89, de 2.12 (Lei do Jogo), bem como o DL n.º 275/2001, de 17.10, não enfermam de inconstitucionalidade orgânica e/ou material.
Nº Convencional:JSTA000P24320
Nº do Documento:SA22019031301046/17
Data de Entrada:07/11/2018
Recorrente:A............, SA
Recorrido 1:TURISMO DE PORTUGAL, IP
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo

1. A…………, S.A., com os demais sinais dos autos, recorre da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto, proferida em 19/04/2018, que julgou improcedente a impugnação judicial que instaurou contra o acto de liquidação de "contrapartida anual" relativa ao ano de 2016, efectuada pelo TURISMO DE PORTUGAL, IP, e que engloba o "imposto especial sobre o jogo", no montante global de € 3.241.292,11.

1.1. Formulou alegações que rematou com o seguinte quadro conclusivo:

1. Na presente impugnação judicial, a ora recorrente contestou a liquidação efectuada pelo Turismo de Portugal, IP, referente à chamada "contrapartida anual" exigida às empresas concessionárias da actividade do jogo;

2. A referida contrapartida anual está prevista e regulada no Decreto-Lei nº 275/2001, de 17/10 e é constituída por 50% das receitas brutas dos jogos explorados nos Casinos;

3. O referido Decreto-Lei nº 275/2001, de 17/10, estabelece, também, que a referida contrapartida anual não pode ser inferior a um determinado montante, mesmo que o valor dos 50% das receitas brutas dos jogos não atinja esse mínimo;

4. Essa contrapartida anual tem a natureza de um imposto, desde logo porque, ao menos em parte, é pago através das liquidações de Imposto do Jogo e, fundamentalmente, porque se trata de uma prestação definitiva, pecuniária, unilateralmente determinada, coerciva e que não corresponde a uma contraprestação específica;

5. Ao invés do defendido na douta sentença recorrida, não obstante exista um contrato de concessão celebrado entre o Estado e a recorrente para a exploração de jogos de sorte e azar, essa contrapartida anual não tem matriz contratual;

6. O contrato de concessão limita-se a reproduzir o conteúdo de actos legislativos anteriores - o Decreto-Regulamentar nº 29/88, de 3/8 e o Decreto-Lei nº 275/2001, de 17/10;

7. A exigência do pagamento da contrapartida anual e a sua fórmula de cálculo estão estabelecidos nos referidos instrumentos legais;

8. Além de que, recorde-se, o pagamento, ao menos em parte, dessa contrapartida é feita com os pagamentos do Imposto de Jogo, imposto esse previsto em acto legislativo - DL nº 422/89, de 2/12;

9. A circunstância de haver um contrato de concessão e de o recorrente ter "aceite" o pagamento de tributos, não sana as inconstitucionalidades e/ou ilegalidades dos tributos (Imposto do Jogo e contrapartida anual) já que o Estado e os particulares apenas podem validamente obrigar-se dentro dos limites que a Constituição lhes permite;

10. Aliás, o STA, a propósito da questão da competência da jurisdição fiscal, já se pronunciou no sentido de que a contrapartida é um tributo;

11. Não há, assim, ao invés do decidido na douta sentença recorrida, qualquer impossibilidade de se apreciar as ilegalidades que a recorrente considera existirem na impugnada liquidação da contrapartida;

12. É que a referida liquidação é ilegal porque o diploma, com base na qual foi emitida tal liquidação (Decreto-Lei nº 275/2001, de 17/10) é organicamente inconstitucional por violação dos arts 103º, nº 2 e 165°, nº 1, i), da Constituição da República Portuguesa;

13. É que o Decreto-Lei nº 275/2001, foi aprovado sem ser com base em qualquer autorização legislativa concedida pela Assembleia da República ao Governo;

14. Acresce que, conforme referido, uma parte da contrapartida anual é paga através de pagamentos do Imposto do Jogo;

15. Ora, o Imposto do Jogo está previsto no Decreto-Lei nº 422/89, de 2/12, diploma esse aprovado com base na autorização legislativa concedida ao Governo pela Lei nº 14/89, de 30/6;

16. Porém, essa autorização legislativa é amplamente genérica, não cumprindo o requisito constitucionalmente expresso de definir com rigor e precisão, "o objecto, o sentido, a extensão e a duração da mesma" (cf., à época, o art.º 168º, nº 11 e, hoje, o art.º 165º da Constituição).

17. Na medida em que está em causa matéria fiscal, que é da competência da Assembleia da República, o referido Decreto-Lei nº 422/89, é organicamente inconstitucional e, portanto, ilegais as liquidações de Imposto do Jogo e, deste modo, ilegal a contrapartida, na parte em que ela é constituída por tal imposto;

18. Por outro lado, sendo, como é, a "contrapartida anual" um imposto, a sua exigência/liquidação é inconstitucional por violação dos princípios da capacidade contributiva e da tributação do rendimento real;

19. Na verdade, a "contrapartida anual" incide sobre as receitas brutas obtidas pela recorrente e o valor de tal contrapartida nunca pode ser inferior a um mínimo estabelecido na lei;

20. O que quer dizer, portanto, que a recorrente é tributada de forma completamente desligada do seu rendimento real/efectivo, podendo ocorrer, até, uma relação inversamente proporcional entre as receitas que obtém e o tributo que é forçado a suportar;

21. No limite, com a consagração de uma "contrapartida mínima" poderia a recorrente não ter qualquer receita e, não obstante, está obrigada a pagar a contrapartida;

22. Aliás, o próprio imposto de jogo que, conforme referido, "integra" a contrapartida anual, é também inconstitucional por violação desses princípios da capacidade contributiva e da tributação pelo rendimento real;

23. É que, como decorre do art.º 85º da Lei do Jogo (Decreto-Lei nº 422/89), a tributação sobre os chamados "jogos bancados" incide sobre a receita bruta, afastando-se, assim, do lucro real e efectivo;

24. E, quanto à tributação sobre as máquinas automáticas, ela incide sobre um "capital" fixado administrativamente pelo Turismo de Portugal, IP, havendo, deste modo, uma tributação sobre meras presunções de rendimento;

25. Deste modo, a impugnada liquidação é ilegal, pelo que não pode manter-se a douta sentença recorrida.

1.2. O recorrido Turismo de Portugal, I.P., apresentou contra-alegações e onde, em suma, sustenta a manutenção do julgado.

1.3. O Exmo. Magistrado do Ministério Público emitiu douto parecer no sentido de ser negado provimento ao recurso, esgrimindo com a seguinte argumentação:

«II. DO OBJETO DO RECURSO

II. 1. Veio, pois, a Recorrente A…………, S.A. imputar, à sentença sob censura deste Colendo Supremo Tribunal ad quem, erros de julgamento de direito, consubstanciados na violação dos normativos legais convocados para a decisão e, ainda, dos já mencionados princípios gerais da legalidade, da capacidade contributiva, da tributação pelo rendimento real e da igualdade, com assento na Lei Fundamental e, outrossim, na lei ordinária.

Defende, pois, o desacerto da decisão judicial em crise, no que concerne à interpretação e aplicação do direito que foram efetuadas pelo tribunal a quo.

Ora, o Ministério Público avança, desde já, que secunda inteiramente as posições doutrinárias veiculadas na decisão judicial sob recurso.

II. 2. No que concerne à invocada inconstitucionalidade orgânica da Lei do Jogo, o Ministério Público enfatiza que o imposto especial sobre o jogo foi aprovado ao abrigo da Lei n.º 14/89, de 30 de junho, que concedeu ao Governo Autorização para legislar em matéria de jogos de fortuna ou azar em casinos e de exploração e prática ilícita de jogos de fortuna ou azar.

Sucede que, maxime no âmbito da conclusão 16.ª (vide fls. 432 do p. d.), a Recorrente veio insurgir contra a citada Lei n.º 14/89, invocando que aí não foi explicitado, com rigor e precisão, o objeto, o sentido, a extensão e a duração da autorização, com o que se mostraria infringido o comando ínsito no n.º 2 do artigo 165.º da Constituição da República Portuguesa (CRP).

Todavia, trata-se aqui de uma alegação meramente retórica, porquanto carecida de consistência lógica e jurídica.

Assim, examinados os artigos 1.º, 2.º e 3.º, da mesma Lei, constata-se que tais matérias, atinentes ao objeto, ao sentido, à extensão, à duração e à execução da autorização, não apenas estão aí previstas, como também se mostram reguladas com pormenor, clareza e objetividade.

Nesta esteira, a citada Lei, no seu artigo 2.º definiu e delimitou o sentido e extensão da referida autorização, sendo que, nesta matéria, nos termos do n.º 5, alínea a), veio atribuir à lnspeção-Geral de Jogos a competência para fixar "a base da incidência do imposto especial de jogo, bem como as taxas aplicáveis quanto aos jogos bancados e não bancados, matéria em que não se pode inovar em resultado de compromissos contratuais existentes".

Ora, analisada a Lei do Jogo, aprovada a coberto desta Lei, não se descortina que hajam sido infringidos os limites legais assim traçados.

De resto, a própria Recorrente, embora refira que a autorização legislativa é amplamente genérica, não logrou enunciar em que medida é que a subsequente Lei do jogo desrespeitou o sentido e alcance da autorização, designadamente prevendo critérios distintos dos anteriormente fixados em função dos "compromissos contratuais existentes".

II. 3. Por seu turno, conforme refere o Preâmbulo do Decreto-Lei n.º 275/2001, de 17 de outubro, o Estado visou autorizar a prorrogação dos prazos dos contratos de concessão das zonas de jogo do Algarve, Espinho, Estoril, Figueira da Foz e Póvoa de Varzim, e, bem assim, estabelecer em decreto-lei as condições dessa prorrogação.

Ademais, decorre, ainda, do referido Preâmbulo, que o Governo aproveitou o ensejo para alterar o regime contratual de tais concessões e para introduzir um regime especial de deduções nas contrapartidas anuais de exploração a liquidar pelas concessionárias.

O que significa que o legislador, neste diploma, não regulou, pelo menos de modo inovatório, o imposto especial sobre o jogo, razão por que não foi invadida a esfera de competência própria e exclusiva da Assembleia da República, que, de resto, radica, tão-somente, na "criação de impostos e sistema fiscal e regime geral das taxas e demais contribuições financeiras a favor das entidades públicas", de harmonia com o que dispõe a alínea i) do n.º 1 do artigo 165.º da CRP (o sublinhado é nosso), o que, de facto, não ocorreu.

Termos em que se impõe concluir pela improcedência da argumentação aduzida pela Recorrente, em prol da pretensa inconstitucionalidade dos citados Decretos-Leis n.º 422/89, de 02 de dezembro e n.º 275/2001, de 17 de outubro.

II. 4. Ademais, ao decidir como decidiu, a julgadora do TAF a quo acolheu e secundou a inúmera doutrina e, outrossim, a jurisprudência do Colendo Tribunal Constitucional e deste Preclaro STA, que citou e reproduziu, as quais militam a favor do seu entendimento doutrinário.

Efetivamente, da hábil fundamentação jurídica aduzida no douto Acórdão deste Colendo STA, de 12/04/2012, tirado no Processo n.º 077/12, retira-se a sagaz argumentação de que nos permitimos transcrever o seguinte excerto: "(...) A tributação do jogo sempre esteve no plano fiscal sujeita a um regime próprio atentos os "sérios inconvenientes morais da exploração dos jogos de fortuna ou azar″, de tal modo que a partir da reforma de 1948 o legislador renunciou ao apuramento do lucro real, libertando-se, nas palavras de SÉRGIO VASQUES (Cfr. Os Impostos do Pecado o Álcool, o Tabaco, o Jogo e o Fisco, Almedina, 1999, pp. 88-9.), "da situação desairosa de ser interessado nos rendimentos do jogo ou nas vicissitudes dos jogadores". Ainda segundo o autor, "É portanto, um juízo de censura moral que subjaz à criação de um regime fiscal exclusivo da indústria do jogo, bem como à adoção das suas particulares técnicas tributárias″, passando a tributar-se "capitais de giro, lucros e receitas brutas com taxas elevadas, tratando-se o jogo como um sector de exceção".

Atualmente as empresas concessionárias das zonas de jogo encontram-se sujeitas ao regime fiscal que consta do Decreto-Lei n.º 422/89, de 2 de Dezembro, emitido ao abrigo da Lei de Autorização nº 14/89, de 30 de Junho.

(...)

O regime do diploma assenta numa técnica excecional na medida em que em vez de tributar as empresas pelo lucro real, tal como refere o art.º 104º da CRP, tomando como base tributária o lucro apurado a partir da contabilidade (art.º 17º do CIRC), o imposto do jogo incide, no caso dos jogos bancados, sobre o capital em giro inicial e sobre os lucros normais das bancas; no caso dos jogos não bancados sobre a receita bruta (cfr. arts. 85º a 87º)." (disponível in www.dgsi.pt, tal como o que iremos citar de seguida).

Acresce que esta opção do legislador não é materialmente inconstitucional, conforme emerge do, também douto, aresto deste Colendo Supremo Tribunal, de 02/07/2003, prolatado no Recurso n.º 047836, que, arguta e expressivamente, refere, a dado passo da respetiva fundamentação, que "(...) A lei quis desconsiderar o valor dos prémios pagos aos jogadores, mandando calcular as contrapartidas a pagar pelo concessionário sobre a totalidade da receita do jogo. O que, entre outras razões, sem dúvida que contribui para tornar esse apuramento mais fácil, simplificando também as eventuais ações de fiscalização.

É certo que isso implicará, forçosamente, que o concessionário pague em contrapartidas mais do que 50% do valor dos seus reais ganhos, mas é preciso não esquecer que ele desenvolve uma atividade altamente lucrativa, com uma margem de risco desprezível. Como bem se diz no Acórdão deste Supremo Tribunal de 6.2.03, proc.º n.º 47.563, "essa é a principal razão imediata para que a regulamentação da exploração do jogo pelo Estado sempre tenha sido acompanhada da captação pública de uma elevada parcela dos rendimentos que produz, seja através de disposições fiscais especiais, seja através da afetação direta de uma percentagem dos rendimentos auferidos pelos concessionários a fins de interesse público". Importa também não olvidar que foi nesse pressuposto que a empresa se candidatou à concessão, e celebrou com o Estado o contrato respetivo.

São, aliás, estes motivos que retiram pertinência à arguição da recorrente de que as normas do aludido Decreto Regulamentar, na interpretação que lhes é dada, violam os princípios constitucionais da igualdade e da proporcionalidade. A situação da recorrente não é, manifestamente, igual à do vulgar empresário sujeito aos riscos normais do mercado, e daí que haja sobejas justificações para que seja submetida a um tratamento diferenciado.

O peso aparentemente excessivo das contrapartidas pagas pelo concessionário, quando olhado na perspetiva de um negócio como qualquer outro, também não pode impressionar, pois está na proporção da magnitude dos proventos obtidos com a exploração do jogo, que como se disse já é atividade reservada ao Estado. Se não estivesse, decerto que a recorrente não teria aspirado à concessão, e aceite as regras sobre contrapartidas constantes da regulamentação do concurso e do contrato. (...)″.

A ser assim, falece razão à Recorrente, quando imputa à sentença recorrida a afronta às disposições e aos princípios constitucionais e legais atrás enunciados.

II. 5. Efetivamente, reafirma-se que a imputada violação do princípio da capacidade contributiva carece de suporte fáctico e/ou legal, mormente por desrespeito à Lei Fundamental.

Na verdade, a norma do n.º 2 do art.º 104.º da CRP, ao proclamar que a tributação das empresas incide fundamentalmente sobre o seu rendimento real, constitui o reconhecimento de que essa tributação não está, necessária e integralmente, balizada por esse critério constitucional e que os desvios ou entorses previstos na lei ordinária têm guarida na Lei Fundamental.

Ademais, cumpre enfatizar que, por força do que dispõem os n.ºs 1, 2 e 3 do artigo 84.º da citada Lei do Jogo, o imposto sobre o jogo tem uma natureza distinta da dos impostos sobre o rendimento das empresas.

É que, com a criação do referido imposto, o Estado visou tributar as receitas diretamente resultantes da atividade do jogo - bem como de quaisquer outras atividades conexas, a que as empresas concessionárias estejam obrigadas, nos termos dos contratos de concessão -, estando, assim, excluídas da esfera de incidência de qualquer tributo sobre o rendimento, nomeadamente, do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas.

Acresce que, atentas as finalidades de natureza económica e social dessas receitas, as mesmas ficam legalmente afetas, ainda que parcialmente, à realização de obras de interesse para o turismo, na área dos municípios em que se localizem os casinos, facto que demonstra a sua natureza extrafiscal e, destarte, impõe a preterição da aplicação, em termos estritos, dos princípios da capacidade contributiva e da tributação pelo rendimento real.

II. 6. Em adição, o Ministério Público não divisa a assacada violação dos princípios da proporcionalidade, da igualdade e da legalidade.

Com efeito, à luz e sob a égide do princípio da proporcionalidade, compreende-se e aceita-se a aplicação de taxas diferenciadas, de acordo com o desenvolvimento turístico das áreas geográficas em causa, de modo a desagravar fiscalmente as menos desenvolvidas e/ou a potenciar um maior desenvolvimento turístico.

Por outro lado, essa diferenciação na aplicação das taxas não se revela violadora do princípio da igualdade, porquanto o mesmo não exige o tratamento igual de todas as situações, mas, antes, implica que sejam tratados igualmente os que se encontram em situações iguais e tratados desigualmente os que se encontram em situações desiguais, de maneira a não serem criadas discriminações arbitrárias e irrazoáveis, porque carecidas de fundamento material bastante.

O princípio da igualdade não proíbe, pois, que se estabeleçam distinções, mas sim, distinções que se mostrem desprovidas de justificação objetiva e racional.

De resto, na esteira de GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, o mesmo constitui princípio estruturante do sistema constitucional global, que, na sua dimensão democrática, exige a explícita proibição de discriminações, constituindo a proibição do arbítrio um limite externo da liberdade de conformação dos poderes públicos (in «Constituição da República Portuguesa Anotada», págs. 125 e segs.)

Ora, não se vislumbra, nesta matéria, a consagração de soluções desproporcionadas, arbitrárias e injustas, razão por que o presente recurso terá, forçosamente, que soçobrar, também quanto a esta vertente.

II. 7. Por último, do mesmo modo, inexiste qualquer afronta ao princípio da legalidade, alegadamente consubstanciada no facto de, nas máquinas automáticas, o "capital em giro" ser fixado administrativamente pelo Recorrido Instituto do Turismo de Portugal, I.P.

Para assim concluir, bastará atentar no facto de que, nessa fixação, a autoridade administrativa não dispõe de qualquer margem de discricionariedade, mostrando-se a sua atuação balizada pelos critérios definidos pela própria lei, como denotam os artigos 85.º a 87.º da Lei do Jogo.

Assim sendo, não nos resta senão concluir que o tribunal a quo não errou na interpretação e aplicação do direito, que operou na decisão judicial sob recurso.

O que vale por dizer que, na perspetiva do Ministério Público, não se mostram verificados os imputados erros de julgamento de direito e, como consequência, que sentença recorrida deverá ser inteiramente confirmada.».

1.4. Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir em conferência.

2. Na sentença recorrida consta como provada a seguinte matéria de facto:

1. A impugnante é concessionária da exploração de jogos de fortuna ou azar, na zona de jogo permanente da Póvoa de Varzim, conforme resulta do contrato de concessão que foi celebrado em 29/12/1988 e publicado no Diário da República, II Série, nº 37 de 14/02/1989.

2. O contrato referido em a) foi objecto de revisão e prorrogação em 14/12/2001, o qual foi publicado por Aviso no Diário da República nº 27, de 01/02/2002, III Série, com o título "Contrato de concessão da exploração de jogos de fortuna ou azar na zona de jogo permanente da Póvoa de Varzim à A…………, SA" (cfr. fls. 175 e 175 (verso) dos autos cujo teor se dá por íntegra reproduzido).

3. Resulta da cláusula 3ª do contrato referido em 2) que "A concessionária aceita todas as obrigações impostas pela legislação em vigor, designadamente, as estabelecidas nos Decretos-Leis nºs 422/89, de 2 de Dezembro e 184/88 de 25 de Maio, e legislação complementar, bem como pelos Decretos-Leis nºs 274/88 de 3 de Agosto e 275/2001 de 17 de Outubro, e pelo Decreto Regulamentar nº 29/88 de 3 de Agosto" (cfr. fls. 175 dos autos).

4. Resulta da cláusula 4ª do contrato que a concessionária obriga-se, designadamente, a "1) Prestar uma contrapartida inicial (...) para além da contrapartida referida no número anterior, prestar, em cada ano, contrapartida no valor de 50% das receitas brutas declaradas dos jogos explorados no casino, todavia, em caso algum a contrapartida prestada nos termos deste número poderá ser inferior aos valores indicados no anexo...; A contrapartida referida neste número realiza-se pelas seguintes formas: a) através do pagamento do imposto especial sobre o jogo, nos termos da legislação em vigor; (...)" - (cfr. fls. 175 e 175 verso dos autos).

5. Foi remetido, pelo Serviço de Regulação e Inspeção de Jogos, à impugnante, em 26/01/2017, um ofício com o seguinte teor:





(cfr. fls. 28 e 29 dos autos).

6. Impugnante pagou a quantia referida no nº anterior (cfr. fls. 32 dos autos).

7. A presente impugnação foi intentada em 28/04/2017 (cfr. fls. 3 dos autos).

3. O presente recurso vem interposto pela sociedade A…………, S.A., ora Recorrente, da sentença que julgou improcedente a impugnação judicial que deduziu contra a liquidação de "contrapartida anual" relativa ao ano de 2016, efectuada pelo Turismo de Portugal, IP, e que engloba o "imposto especial sobre o jogo", no montante global de € 3.241.292,11.

As questões que a Recorrente coloca reconduzem-se a saber se a sentença padece erro de julgamento em matéria de direito ao ter decidido que a liquidação não padece dos vícios que a Impugnante lhe imputara e que decorrem, essencialmente, da invocada inconstitucionalidade orgânica do Dec.Lei nº 422/89, de 2.12 (regime jurídico da exploração dos jogos de fortuna ou azar nos casinos, abreviadamente "Lei do Jogo") e do Dec.Lei nº 275/2001, de 17.10 (que autorizou a prorrogação dos prazos dos contratos de concessão das zonas de jogo do Algarve, Espinho, Estoril, Figueira da Foz e Póvoa de Varzim) e, bem assim, da invocada ilegalidade da contrapartida anual por violação dos princípios da legalidade, da capacidade contributiva, da tributação pelo rendimento real, e da igualdade.

Tais questões foram já apreciadas e decididas em recente acórdão desta Secção - de 23.10.2019, no processo nº 0891/17 - proferido perante idêntico quadro factual e jurídico e perante análogas alegações e conclusões do recurso.

Acórdão cuja motivação jurídica merece a nossa inteira adesão. Acresce que, ponderada a regra constante nº 3 do art.º 8º do Código Civil- que impõe ao julgador o dever de considerar todos os casos que mereçam tratamento análogo, a fim de obter uma interpretação e aplicação uniformes do direito - e verificada a ausência de argumentos que nos levem a divergir do entendimento ali firmado, impõe-se remeter para essa motivação jurídica, inteiramente transponível para o presente caso.

«3.4. Atendendo ao teor das Conclusões do recurso a primeira questão a enfrentar é, portanto, a que se prende com a natureza da "contrapartida anual″, prevista no DL nº 275/2001, de 17/10.

E da resposta que a tal questão for dada, dependerá a apreciação, ou não, das demais questões suscitadas pela recorrente.

Vejamos.

4.1. Considerando a evolução histórica da regulamentação jurídica das concessões do jogo e do modo como foram legal e contratualmente definidas as respectivas contrapartidas, o que se constata é que embora a exploração do jogo não se reconduza a uma actividade de interesse público, ela tem sido objecto de intervenção legislativa por parte do Estado, com vista à regulação (sobretudo através do instrumento jurídico da "concessão") dos vários sectores em que aquela se desenvolve, bem como à diminuição do interesse pelo jogo ilícito e clandestino.

Por isso, como sublinha o Prof. Vieira de Andrade (no parecer junto aos autos), a concessão da exploração de jogos de fortuna e azar haveria de operar-se num contrato pré-regulado por lei «(não constituindo a prestação de um serviço público), mediante uma forte contrapartida patrimonial, dado o alto potencial lucrativo da actividade (exercida em exclusivo territorial), com receitas consignadas ao desenvolvimento do turismo. E, neste contexto, também a necessária tributação desta actividade concessionada, enquanto actividade económica, haveria de ser especial: opta-se, desde sempre, no que respeita à exploração do jogo, pela substituição dos impostos regulares (hoje, IRC, IVA, Imposto de selo) por um imposto de regime especial, também com receitas consignadas ao desenvolvimento do turismo.»

Sendo que, no entanto, cada uma das prestações financeiras (a contrapartida patrimonial fixada no contrato de concessão do direito e o imposto estabelecido pela lei) «tem a sua estrutura específica, independentemente da finalidade comum e das suas interconexões práticas: uma, a contrapartida, tem natureza administrativa e contratual, outra, o imposto, tem natureza tributária e legal.»

E neste entendimento as contrapartidas pecuniárias (quer a inicial, quando prevista, quer a anual) não terão natureza tributária mas, antes, patrimonial, reconduzindo-se à «contraprestação devida pela atribuição do direito de explorar, em exclusivo a concessão numa zona territorial pré-determinada», independentemente até de o pagamento do imposto de jogo contribuir, juntamente com outros pagamentos, para a realização e preenchimento da contrapartida anual (casos há, aliás, em que não há que pagar qualquer contrapartida anual, mas somente imposto de jogo).

E nem a circunstância de no Decreto nº 14.643, de 3/12/1927 (diploma que inicialmente regulou a actividade do jogo) se considerar na epígrafe que antecede os arts. 44º e seguintes, a menção «Imposto sobre o jogo. Sua consignação», não obstante o art.º 45º se reportar ao pagamento das contrapartidas, nem a circunstância de os valores destas poderem ser consignados às mesmas entidades e finalidades do imposto de jogo, tem a virtualidade de determinar a mutação da natureza jurídica da prestação financeira patrimonial em prestação tributária. Estas obrigações financeiras (contrapartidas financeiras mínimas ou de natureza não pecuniária devidas como contraprestação pela concessão da exploração de jogos de fortuna ou azar, bem como o modo de pagamento das mesmas - cfr. o art.º 11º, nº 4 e) da Lei do Jogo - e assumidas pela concessionária por efeito da concessão) têm fundamento diferente do imposto e constituem receitas de natureza patrimonial.

Acresce que, como igualmente se acentua no parecer citado, a distinção entre ambas as figuras também não é afectada pelo facto de existir uma pré-fixação legal dos montantes e das formas de cálculo e de pagamento: tal prática é frequente nos contratos de concessão, «cujas bases contratuais são, em regra, estabelecidas na lei» e «a obrigação de pagamento destes montantes não nasce coactivamente da lei, mas do contrato de concessão, dado que só existe, a título de remuneração do exclusivo concedido, para as empresas que aceitam, nas condições estabelecidas na lei, ser concessionárias do Estado na exploração do jogo», sendo normal «que a contrapartida pela outorga de um direito de exclusivo para a exploração de um bem ou de um serviço seja calculada a partir de uma percentagem da receita das concessionárias», sendo que também as «receitas patrimoniais podem em regra ser consignadas a finalidades específicas de interesse público - as limitações orçamentais à consignação reportam-se, essencialmente, ao domínio dos impostos» (aliás, relativamente à contrapartida, prevêem-se casos em que o pagamento do imposto do jogo se soma integralmente ao pagamento da contrapartida anual, e casos em que o pagamento deste é deduzido no cálculo da contrapartida anual, o que bem mostra que imposto e contrapartida não são a mesma coisa e não têm, por isso, de ser da mesma natureza).

E em todo o caso, dado que o modo de cálculo da contrapartida não altera a sua natureza jurídica de prestação contratual, também fica desprovida de relevância a argumentação da recorrente no que respeita à unilateralidade da própria contrapartida mínima, não relevando, igualmente, a invocação de jurisprudência do STA no sentido da ilegalidade da liquidação: com efeito, como bem realça a recorrida, em termos do que foi expressamente decidido e no que respeita a liquidações relativas a contrapartidas idênticas à ora impugnada, o STA pronunciou-se apenas quanto à competência dos tributais tributários (de acordo com os termos em que a autora configura a relação material), não se pronunciando sobre o mérito da pretensão ali formulada.

E neste contexto, dando resposta àquela primeira questão suscitada no recurso, conclui-se agora que a "contrapartida anual″, prevista no DL nº 275/2001, de 17/10, se reconduz a uma prestação de natureza patrimonial.

4.2. Daí que (considerando as demais questões suscitadas no recurso), por não estarmos perante pagamento de uma qualquer quantia destinada a afastar uma proibição legal (a quantia não é paga para que a concessionária fique autorizada a explorar os jogos de fortuna ou azar, mas sim porque foi ela a adjudicatária no concurso público aberto para a concessão da respectiva zona de jogo) e por a contrapartida impugnada também não assumir natureza unilateral e/ou coactiva, então mesmo por referência ao enquadramento legal sustentado pela recorrente (que faz equivaler a contrapartida a uma taxa ou a integra no âmbito do próprio imposto de jogo), também não pudessem proceder a impugnação, e consequentemente o recurso, quer face à inexistência dos pressupostos para a qualificação como imposto e como taxa, quer face à não verificação das ilegalidades imputadas à liquidação, alegadamente decorrentes da violação dos princípios e normas constitucionais invocados [inconstitucionalidade orgânica do DL nº 275/2001, de 17/10; inconstitucionalidade orgânica do DL nº 422/89, de 2/12, por assentar numa autorização legislativa genérica que não cumpre o requisito (nº 11 do art.º 168º - actual 165º - da CRP) de definir com rigor e precisão, "o objecto, o sentido, a extensão e a duração da mesma" e inconstitucionalidade material, quer daquele mesmo diploma, por violação dos princípios da capacidade contributiva e da tributação do rendimento real, quer do próprio imposto, por ter sido criada uma tributação sobre meras presunções de rendimento].

Aliás, neste âmbito, sempre o recurso teria que improceder, atendendo à jurisprudência, com a qual se concorda, firmada no acórdão deste STA, de 5/12/2018 [em julgamento ampliado com a intervenção de todos os juízes desta Secção de Contencioso Tributário, realizado ao abrigo do disposto no art.º 148º do CPTA, no processo n.º 2224/13.1BEPRT (1457/15) e para o qual se remete ao abrigo do disposto no n.º 5 do art.º 663º do CPC], sendo que, naquela perspectiva da recorrente, as questões suscitadas no presente recurso também seriam substancialmente idênticas às que foram objecto de tal julgamento ampliado, mediante o qual se visa, precisamente, «garantir a uniformidade de jurisprudência perante a possibilidade de decisões de sentido divergente ou, pelo menos, com variação substancial do tratamento das questões submetidas e de fundamentação da decisão (...)».

Face à transcrita motivação, que aqui se acolhe e reitera, impõe-se negar provimento ao recurso.

Julgamos, todavia, que se verificam, no caso vertente, os requisitos contidos no nº 7 do artigo 6º do Regulamento das Custas Processuais para a dispensa de pagamento do remanescente da taxa de justiça devida, tendo em conta, por um lado, que a conduta processual das partes não merece censura que obste a essa dispensa e, por outro lado, que ocorre uma menor complexidade do recurso, porquanto as questões em discussão foram já objecto de análise e decisão noutro recurso deste Supremo Tribunal.

4. Pelo exposto, acordam os juízes da Secção de Contencioso Tributário deste Supremo Tribunal Administrativo em negar provimento ao recurso.

Custas pelo Recorrente, com dispensa do remanescente da taxa de justiça.

Considerando que o texto do referenciado acórdão do STA proferido em 5.12.2018 no processo n.º 2224/13.1BEPRT se encontra disponível na base de dados da DGSI, dispensa-se a junção da respectiva cópia.

Lisboa, 13 de Março de 2019. – Dulce Neto (relatora) – Pedro Delgado – Isabel Marques da Silva.