Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:01172/17
Data do Acordão:09/12/2018
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:CASIMIRO GONÇALVES
Descritores:DIREITO DE SUPERFÍCIE
FACTO TRIBUTÁRIO
IMPOSTO MUNICIPAL SOBRE TRANSMISSÃO ONEROSA DE IMOVEIS
Sumário:A norma de incidência do imposto municipal sobre as transmissões onerosas de imóveis (IMT) tem por objecto as transmissões, a título oneroso, do direito de propriedade ou de figuras parcelares do direito (incluindo direito de superfície), sobre bens imóveis situados no território nacional.
Nº Convencional:JSTA000P23573
Nº do Documento:SA22018091201172
Data de Entrada:10/24/2017
Recorrente:A....., S.A.
Recorrido 1:FAZENDA PÚBLICA
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:

RELATÓRIO
1.1. A………., S.A., contribuinte fiscal n° …………, com sede na Rua………, ......., Santa Maria da Feira, recorre da sentença que, proferida em 31/01/2017 no TAF de Aveiro, julgou improcedente a impugnação por aquela sociedade deduzida contra a liquidação adicional de IMT n° 0000001395019, de 24/10/2007, no montante de 66.075,75 Euros, referente à aquisição de figuras parcelares do direito de propriedade sobre imóveis (direito de superfície sobre o prédio urbano - terreno para construção - então inscrito na matriz predial urbana de Espinho sobre o artigo 04036 - 010702), liquidação adicional essa que resultou da correcção do valor patrimonial desse mesmo prédio, operada em resultado de avaliação.

1.2. Termina as alegações formulando as Conclusões seguintes:
«A. A decisão do Mmo. Juiz a quo assenta essencialmente na seguinte fundamentação:


B. No entanto, no caso em apreço, não houve tradição do imóvel para a impugnante, nem posse, nem fruição por parte desta, não sendo, portanto, susceptível de ser aplicado o disposto na alínea a) do n.º 2 do Art. 2.º do CIMT, que estabelece “Para efeitos do n.º 1, integram ainda, o conceito de transmissão de bens imóveis: a) As promessas de aquisição e de alienação, logo que verificada a tradição para o promitente adquirente, ou quando este esteja usufruindo os bens (...).”;
C. Assim, não se verificou o facto tributário da transmissão previsto na alínea a) do n.º 2 do Art. 2.º do CIMT;
D. A questão coloca-se em saber se, no caso em apreço, a constituição do direito de superfície ocorreu com a outorga da escritura pública ou se a sua constituição está condicionada ao termo inicial de início da exploração dos parques de estacionamento subterrâneos;
E. Tendo o Tribunal a quo concluído que “Ora, como se conclui das normas supra citadas, a obrigação tributária de pagamento de IMI por transmissão da figura parcelar de direito de propriedade - direito de superfície - nasce no momento em que ocorrer a transmissão.” bem andou, tendo, contudo, concluído depois em sentido contrário ao esperado, na medida em que, ao arrepio do estabelecido ao abrigo do princípio da liberdade contratual pelas partes contratantes, que previram um termo inicial para a constituição e contagem do direito de superfície (constituído pelo prazo de cinquenta anos a contar do início de exploração dos parques), deu por assente que o direito de superfície foi transmitido à data do contrato;
F. Sobre a liquidação adicional de IMT, referente ao prédio urbano inscrito na matriz sobre o artigo 4053° de Espinho, o mesmo Tribunal, sobre o mesmo contrato - a escritura pública de 2 de Dezembro de 2005, no processo n° 579/08.9BEVIS, em sentido diametralmente oposto:


H. Sendo a matéria de facto e a prova pacífica e idêntica nos dois processos (os presentes autos e o processo 579/08.9BEVIS), não se compreende - com o devido respeito - que, tendo por base o mesmo documento nos dois processos, se considere num caso (o dos autos) ao arrepio do que foi a vontade expressa das partes contratantes, que a constituição do direito de superfície ocorreu com outorga da escritura pública, sem atender ao termo inicial estabelecido pelas partes de que a constituição do direito de superfície ocorre apenas com a exploração de um dos parques subterrâneos (que, sublinhe-se, nunca foram construídos);
J. O facto tributário, no caso em apreço - porque não se verificou o termo inicial previsto pelas partes, não houve tradição nem posse dos terrenos (que, aliás, estavam ocupados e não pertencem na totalidade ao Município de Espinho) - não ocorreu e, sem ter ocorrido o respectivo facto tributário, não se podia ter verificado a tributação, com o que saiu violado o artigo 5.º do Código do Imposto Municipal sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis.
Termina pedindo a procedência do recurso e a consequente revogação da sentença, a substituir por outra que julgue a impugnação procedente.

1.3. Não foram apresentadas contra-alegações.

1.4. O MP emite parecer nos termos seguintes:
«Recorrente: A…….., SA
Objecto do recurso: sentença declaratória da improcedência da impugnação judicial deduzida contra liquidação de IMT no montante de € 66.075,75.
FUNDAMENTAÇÃO
1. Quadro normativo
O IMT incide sobre as transmissões, a título oneroso, do direito de propriedade OU de figuras parcelares desse direito, sobre bens imóveis situados em território nacional (art. 2° n° 1 e 2 do CIMT).
A incidência do IMT regula-se pela legislação em vigor ao tempo em que se constituir a obrigação tributária; a obrigação tributária constitui-se no momento em que ocorrer a transmissão (art. 5° nº 1 e 2 CIMT).
O direito de superfície consiste na faculdade de construir ou manter, perpétua ou temporariamente, uma obra em terreno alheio, ou de nele fazer ou manter plantações (art. 1524° CCivil).
O direito de superfície pode ser constituído por contrato, testamento ou usucapião (art. 1528° CCivil).
2. Caso concreto
O direito de superfície, enquanto figura parcelar do direito de propriedade, constituiu-se na esfera jurídica da recorrente por contrato titulado por escritura celebrada em 2.12.2005, conforme a designação desta e a 5° cláusula do contrato (factos provados al. A).
É irrelevante que o prazo de 50 anos de constituição do direito apenas se inicie a partir da data do início da exploração dos parques de estacionamento pelo superficiário.
A constituição do direito na esfera jurídica do superficiário, a qual opera a transmissão e a formação da obrigação tributária, é cronologicamente anterior à construção a obra em terreno alheio, a qual corresponde ao exercício do direito do qual é titular.
O recurso não merece provimento.
A sentença impugnada deve ser confirmada.».

1.5. Corridos os vistos legais, cabe decidir.

FUNDAMENTOS
2. Na sentença recorrida julgou-se provada a factualidade seguinte:
A). Entre a Impugnante e o Município de Espinho foi celebrada a seguinte escritura, que consta de fls. 16 a 41 dos autos (p.f.) e aqui se dá por integralmente reproduzida:














B). A Impugnante foi notificada da seguinte liquidação de IMT, paga em 31-01-2008 (cfr. teor de fls. 9 e 10 do p.f.):



C). A Impugnante nunca realizou as obras referidas no documento citado em A), cfr. prova testemunhal.
D). A presente impugnação foi apresentada no TAF de Viseu em 11-04-2008, cf. teor de fls. 6 dos autos.

3.1. Enunciando como única questão a que se prende com «a possibilidade de tributação em sede de IMT da constituição do direito de superfície», a sentença considerou o seguinte:
- Do disposto nos arts. 2.º e 5.º do CIMT e 1524.º do CCivil, conclui-se que a obrigação tributária de pagamento de IMT por transmissão de figura parcelar de direito de propriedade - direito de superfície - nasce no momento em que ocorrer a transmissão.
- Por isso carece de razão a impugnante ao sustentar que esse momento só ocorreria aquando do início da exploração dos parques a construir e não com a outorga da escritura, pois que, consistindo o direito de superfície na faculdade de construir ou manter obra em terreno alheio, o mesmo não se constitui depois da construção, mas necessariamente antes da mesma, já que o superficiário não poderia contruir sobre terreno alheio se não fosse titular do direito de superfície sobre o mesmo. E sendo assim, não é a definição do prazo de duração da concessão do direito de superfície que releva para efeito de nascimento da obrigação tributária, mas a própria concessão imediata do direito de superfície, que é independente da realização ou não, após, da obra e das contingências adstritas a essa não realização.

3.2. Do assim decidido discorda a recorrente que, como se viu, continua a sustentar que, não tendo havido tradição do imóvel para a impugnante, nem posse, nem fruição por parte desta, não se verifica o facto tributário da transmissão previsto na al. a) do n° 2 do art. 2° do CIMT, sendo que, no caso, a constituição do direito de superfície não ocorreu com a outorga da escritura pública, pois que a respectiva constituição está condicionada ao termo inicial de início da exploração dos parques de estacionamento subterrâneos, os quais, aliás, acabaram por não ser construídos. Ou seja, na tese da recorrente, não ocorreu o facto tributário (porque não se verificou o termo inicial previsto pelas partes e não houve tradição nem posse dos terrenos), pelo que não poderia a AT operar a liquidação do IMT.
Vejamos.

4. De acordo com o disposto no art. 1.º e no nº 1 do art. 2.º do Código do Imposto Municipal sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis (CIMT), este imposto incide sobre as transmissões, a título oneroso, do direito de propriedade ou de figuras parcelares do direito, sobre bens imóveis situados no território nacional.
E nos termos do art. 5.º do mesmo Código a incidência deste imposto regula-se pela legislação em vigor ao tempo em que se constituir a obrigação tributária, sendo que esta se constitui no momento em que ocorrer a transmissão.
Sendo certo, também, que o direito de superfície «consiste na faculdade de construir ou manter, perpétua ou temporariamente, uma obra em terreno alheio, ou de nele fazer ou manter plantações» (art. 1524º do CCivil), podendo ser constituído por contrato, testamento ou usucapião (art. 1528º do CCivil).
No caso, o Município de Espinho e um designado consórcio de empresas (integrando a recorrente, em relação à qual foi operada a liquidação impugnada) outorgaram, em 2/12/2005, mediante escritura pública, um contrato em que o primeiro declarou atribuir «a constituição do direito de superfície e concepção, construção e exploração de dois parques de estacionamento subterrâneo para viaturas e a concessão de exploração de lugares de estacionamento à superfície na cidade de Espinho...».
Especificamente em relação ao direito de superfície, a respectiva Cláusula 5ª do contrato refere: «Pelo presente Contrato a representante do primeiro outorgante constitui a favor do segundo outorgante o Direito de Superfície, pelo prazo de cinquenta anos, contados a partir da data do início da exploração dos parques (...)».
Ora, não cabendo aqui sequer apreciar eventuais vicissitudes do contrato ou do seu objecto (à luz do disposto nos arts. 1525º e 1526º do CCivil) e sabendo-se que o direito de superfície reveste um carácter autónomo (Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. III, 2ª ed. revista e actualizada (reimpressão), Coimbra Editora, 1987, anotação 6 ao art. 1524º, p. 590.) (constituindo um direito real autónomo em relação ao direito de propriedade do dono do terreno, sendo que esse terreno, não obstante continuar, no que ao solo se refere, pertença do proprietário, pode ser ocupado pelo superficiário, com a construção ou com a plantação que tenha direito a fazer ou manter, não podendo, aliás, o direito ter por objecto a construção de obra no subsolo, a menos que ela seja inerente à abra superficiária), também não deve esquecer-se que, (i) uma coisa é o uso e a fruição da superfície (de acordo com o disposto no art. 1532º do CCivil, enquanto não se iniciar a construção da obra, o uso e a fruição da superfície pertencem ao proprietário do solo, pelo que, no caso vertente, se compreende a forma como as partes estipularam o início daquele prazo de 50 anos, já que a fruição do direito de superfície só ocorreria com o início das obras de construção ou com a exploração do equipamento construído), (ii) outra coisa é a constituição do próprio direito de superfície, ocorrendo esta com a celebração do contrato, como resulta do disposto no citado art. 1528º do CCivil.
Nas palavras do acórdão do STJ, de 6/11/2007, proc. nº 07A1564, «o direito de superfície, sendo além do mais direito de construir ou de fazer plantações em terreno alheio, existe antes de concretizadas as construções ou as plantações, período de tempo em que incide apenas sobre o espaço aéreo ou o subsolo, embora incida posteriormente também sobre as aludidas construções ou plantações, como de forma pelo menos implícita resulta do disposto no art. 1528º do Cód. Civil ao dizer, além do mais, que o direito de superfície pode resultar da alienação de obra ou árvores já existentes, separadamente da propriedade do solo, e do art. 1538º, nº 1, ao dispor que, sendo o direito de superfície constituído por certo tempo, o proprietário do solo, logo que expire o prazo, adquire a propriedade da obra ou das árvores (propriedade essa que, portanto, antes de findo o prazo não lhe pertencia, mas ao superficiário)
Em suma, como bem sublinha o MP, é irrelevante que o prazo de 50 anos de constituição do direito apenas se inicie a partir da data do início da exploração dos parques de estacionamento pelo superficiário: a constituição do direito na esfera jurídica do superficiário (constituição que opera a transmissão e a formação da obrigação tributária) é cronologicamente anterior à construção a obra em terreno alheio, a qual corresponde ao exercício do direito do qual é titular. Ou seja, a obrigação tributária aqui em questão constituiu-se na data em que foi outorgada a mencionada escritura pública, não dependendo a mesma da construção dos parques de estacionamento em causa, e nem sequer da “traditio” das parcelas de terreno (sendo inócua, aliás, a referência - cfr. Conclusões F - à impugnação judicial que correu termos sob o proc. n° 579/08.9BEVIS, além de que também não está aqui em causa o conceito de transmissão de imóvel decorrente de “contrato promessa” de aquisição do mesmo).
No mesmo sentido se decidiu, aliás, no acórdão deste STA, de 06/06/2018, no proc. 0718/17, que apreciou idêntica questão, e cuja fundamentação seguimos.
Improcedem, portanto, todas as Conclusões do recurso.

DECISÃO
Nestes termos, acorda-se em, negando provimento ao recurso, confirmar a sentença recorrida.
Custas pela recorrente.

Lisboa, 12 de Setembro de 2018. – Casimiro Gonçalves (relator) – Francisco Rothes – Aragão Seia.