Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:01358/12
Data do Acordão:06/20/2013
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:MADEIRA DOS SANTOS
Descritores:OMISSÃO DE PRONÚNCIA
LEGITIMIDADE
DIREITOS DE PERSONALIDADE
HORÁRIO DE ABERTURA DE ESTABELECIMENTO
Sumário:I – O demandado não tem legitimidade para arguir a nulidade da sentença por ela ter omitido pronúncia sobre um pedido contra si formulado.
II – As acções previstas no art. 69º da LPTA pressupunham que o seu autor dispusesse de um direito subjectivo público ou de um interesse protegido numa qualquer norma de direito administrativo.
III – Nessas acções, o órgão administrativo demandado pode ser condenado a cumprir o dever correlativo do direito ou a activar a norma protectiva do interesse – desde que o dever ou a activação se incluam na sua esfera de competências.
IV – Os direitos de personalidade, que em princípio só são defensáveis nos tribunais comuns, não se assumem como direitos subjectivos públicos que obriguem a Administração a fixar os horários de estabelecimentos ou a sinalizar de um certo modo o trânsito rodoviário.
V – Na ausência de uma norma que atribua a uma câmara municipal competência para fixar o horário de um estabelecimento industrial, é impossível dizer-se que um vizinho dele tem um interesse legítimo nessa fixação – pois a falta da norma exclui, «ea ipsa», um círculo de interesses privados que ela protegesse.
VI – A competência autárquica para regulamentar o trânsito na rede viária municipal prossegue interesses gerais, não servindo, ao menos em princípio, para proteger os interesses particulares, facilmente conflituantes, dos moradores das zonas afectadas pela sinalização.
V – Assim, é inviável a acção em que o autor, invocando o direito ao repouso, afectado pelos veículos que demandam de madrugada uma padaria, solicita a condenação da câmara local a proibir que ela labore antes das 8.00h e a vedar as cargas e descargas na rua de acesso ao estabelecimento.
Nº Convencional:JSTA00068312
Nº do Documento:SA12013062001358
Data de Entrada:12/03/2012
Recorrente:B...., LDA
Recorrido 1:C..... E OUTRA
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:REC JURISDICIONAL
Objecto:SENT TAF FUNCHAL
Decisão:PROVIDO
Área Temática 1:DIR ADM CONT - RECONHECIMENTO DIRINT LEGIT.
Área Temática 2:DIR CIV - DIR PERS.
Legislação Nacional:LPTA85 ART69 ART70.
CPC96 ART666 N1 ART670 N3 ART668 N1 E.
DL 292/2000 DE 2000/11/14 ART2 N1.
DL 09/2007 DE 2007/01/17 ART4 N1.
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na 1.ª Secção do Supremo Tribunal Administrativo:
B…….., Ld.ª, interpôs recurso da sentença do TAF do Funchal que, julgando parcialmente procedente a acção para reconhecimento de direito movida por C………, melhor identificado nos autos, contra a Câmara Municipal da Ribeira Brava e a ora recorrente, condenou a câmara a reconhecer o direito do autor ao repouso e ao descanso e condenou ambos os demandados a procederem, em oito dias úteis, à redução do horário do estabelecimento de padaria da recorrente para o período das 7.30h às 8.00h, bem como a limitar ao mesmo horário as cargas e descargas na rua que serve o mesmo estabelecimento.
A recorrente terminou a sua alegação com as seguintes conclusões:
A) Vem o presente recurso interposto da douta sentença proferida pelo Meritíssimo Juiz do Tribunal Administrativo e Fiscal do Funchal que, em suma, julgou parcialmente procedente o pedido deduzido pelo Autor, condenando «a Câmara Municipal de Ribeira Brava a reconhecer o direito do A. ao repouso e ao descanso, e mais condeno a CMRB e a C-I a procederem, em 8 dias úteis, à redução do horário de funcionamento do estabelecimento comercial denominado B………., para o período das 7:30 às 20:00 horas, bem como a limitar a actividade de cargas e descargas na Rua ………. ao mesmo horário, sem prejuízo do fabrico do pão durante a noite no respeito pelo Regulamento Legal do Ruído».
B) Porém, aquela douta decisão judicial é nula, porque condenou em quantidade superior e em objecto diverso do pedido — alínea e), do n.° 1, do artigo 668.° do Código de Processo Civil.
C) Como decorre, claramente, do pedido deduzido nos autos, o Autor não pediu a condenação da Contra-interessada B……., Limitada no que quer que seja;
D) Por isso, não pode ser condenada nos autos no que quer que seja a Contra-interessada B………, Limitada, que,
E) Como contra-interessada, tem que se sujeitar à condenação que nos autos foi proferida contra a Ré Câmara Municipal da Ribeira Brava, mas não pode, sob pena de nulidade da sentença, por condenação em quantidade superior ao pedido — alínea e), do número 1, do artigo 668º do CPC,
F) A sentença viola o princípio dispositivo na vertente relativa à conformação objectiva da instância, pois não observa os limites impostos pelo número 1 do artigo 661.° do CPC, condenando em quantidade superior ao pedido, violando este preceito.
G) Do mesmo pedido, decorre que o Autor não requereu a fixação de nenhum prazo, pelo que não pode ocorrer qualquer fixação de prazo para a redução do horário de funcionamento do estabelecimento comercial da Contra-interessada, bem como para limitar a actividade de cargas e descargas na Rua ……. ao mesmo horário.
H) A condenação contida na aludida douta sentença, fixando tal prazo, condena, manifestamente, em objecto diverso do pedido, assim violando o número 1, do artigo 661.° do CPC.
I) Sendo, por isso, nula, tal como decorre da mesma alínea e), do número 1, do artigo 668.° do CPC.
J) Acresce que a condenação determinada na douta sentença não pode ser cerceadora do exercício da actividade económica da Contra-interessada.
K) É, por isso, uma vez mais, nula a douta sentença proferida nos autos — vd. artigo 661º, n.° 1 e artigo 668.°, número 1, alínea e), ambos do CPC.
L) Posto isto, a haver alguma condenação, face à factualidade apurada, deve a Ré Câmara Municipal da Ribeira Brava, quanto muito, ser condenada a, reconhecendo a tutela dos direitos que o Autor esgrime, tomar medidas que impeçam ou afastem as perturbações e ofensas a tais direitos pela Contra-interessada.
M) Ao decidir como decidiu, não concatenando devidamente os direitos constitucionais da propriedade e da iniciativa económica privada da Contra-interessada com os direitos da personalidade do Autor, violando, consequentemente, o artigo 61.° da Constituição da República Portuguesa e, assim, inconstitucional.
N) Aliás, a respeito desse ponto II do pedido deduzido pelo Autor, a verdade é que e Tribunal a quo não disse, nada decidindo a tal respeito constituindo uma omissão de pronuncia, pelo que, nessa parte, é, também, nula a sentença face ao que dispõe a alínea d) do número 1 do artigo 668.c do CPC.

O autor contra-alegou, pugnando pela manutenção do julgado.

No despacho de fls. 639 a 641, datado de 12/12/2011, em que se pronunciou sobre as nulidades arguidas no recurso, o Mm.º Juiz «a quo» alterou a pronúncia decisória.
Em 12/1/2012, a recorrente interpôs recurso desse despacho, o qual veio a ser admitido em 30/1/2012 e alegado em Março do mesmo ano («vide» fls. 677 e ss.).
Ao contra-alegar nesse recurso, o autor defendeu a sua inadmissibilidade.

Neste STA, o MºPº foi de opinião que, quanto ao fundo, a sentença seria de confirmar.

A matéria de facto pertinente é a dada como provada na sentença «sub censura», a qual aqui damos por integralmente reproduzida – como estabelece o art. 713º, n.º 6, do CPC.

Passemos ao direito.
Conforme vimos, o autor e ora recorrido propôs contra a Câmara Municipal da Ribeira Brava (doravante, CMRB) e a interessada particular B…….– aqui recorrente – a acção dos autos, tipificada no art. 69º da LPTA.
Essa acção foi julgada parcialmente procedente, tendo o Mm.º Juiz emitido a seguinte pronúncia final:
«… condeno a CMRB a reconhecer o direito do autor ao repouso e ao descanso, e mais condeno a CMRB e a C-I a procederem, em oito dias úteis, à redução do horário de funcionamento do estabelecimento comercial denominado B………., para o período das 7.30 às 20.00 horas, bem como a limitar a actividade de cargas e descargas na Rua ……. ao mesmo horário, sem prejuízo do fabrico do pão durante a noite no respeito pelo Regulamento Legal do Ruído».
E a sentença condenou ainda ambas as partes em custas.
A recorrente interpôs recurso dessa sentença, onde, além do mais, lhe imputou várias nulidades. E, através do despacho de fls. 639 a 641, ocasionado pelas arguições de nulidade, o tribunal «a quo» alterou o anteriormente decidido, que substituiu pela seguinte pronúncia:
«Nestes termos, julgo a acção parcialmente procedente e, em consequência, condeno a CMRB a proceder à redução do horário de funcionamento do estabelecimento comercial, denominado B………, para o período das 8.00 às 20.00 horas, bem como a limitar a actividade de cargas e descargas na Rua …….. ao mesmo horário».
«No mais» – e depreende-se que só se referiu à condenação em custas – o despacho manteve «a decisão recorrida».
A recorrente interpôs novo recurso desta decisão, admitido pelo despacho de fls. 648. Ora, e desde logo, o recorrido veio pugnar pela inadmissibilidade deste segundo recurso, por conter «argumentos» novos relativamente ao primeiro. E a resolução desta «quaestio juris» é absolutamente prioritária.
A decisão de fls. 639 a 641 tem de ser havida como «complemento e parte integrante» da sentença (art. 670º, n.º 1, do CPC). É evidente que qualquer sentença só pode ser objecto de um recurso por cada parte e para o mesmo tribunal «ad quem»; donde fatalmente se segue a inadmissibilidade do segundo recurso, deduzido pela recorrente. O que deveras sucedeu foi que a decisão de fls. 639 a 641 inovou – aliás inadmissivelmente (art. 666º, n.º 1, do CPC) – em relação à sentença no que toca ao início do período horário fixado. E a recorrente tinha o direito processual de se insurgir contra essa inovação – alargando o âmbito do recurso já antes interposto, conforme prevê o art. 670º, n.º 3, do CPC.
Mas, e como refere tal norma, esse alargamento devia ser feito no prazo de dez dias. Ao optar por um recurso autónomo daquele despacho, a recorrente acabou por denunciar «in judicio» a inovação, nele inclusa, já muito para além desse prazo. De modo que a segunda minuta de recurso é totalmente imprestável: não serve como recurso autónomo porque ele é inadmissível; e não serve, sequer, como alargamento do âmbito do único recurso «sub specie» porque tal ampliação é extemporânea.
Assim, apenas conheceremos do primeiro recurso interposto pela ora recorrente.
Nas conclusões da respectiva minuta, ela imputou à sentença quatro nulidades.
A primeira delas resulta do facto da sentença, desviando-se do que fora pedido, haver condenado a recorrente, ao lado da CMRB, a proceder à redução do horário da padaria e a limitar a actividade de cargas e descargas na rua limítrofe. Mas esta nulidade já foi sanada pelo despacho de fls. 639 a 641.
A segunda nulidade consiste em a sentença ter fixado um prazo de «8 dias úteis», não pedido, para se proceder àquelas fixação e limitação. Mas esta nulidade também se esvaiu com o despacho de fls. 639 a 641, que afastou tal prazo.
A terceira nulidade adviria da sentença cercear a actividade económica da recorrente e, nessa medida, condenar «em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido» (art. 668º, n.º 1, al. e), do CPC). Mas, na medida em que a sentença condenou basicamente no que o autor pedira, sendo tal cerceamento – aliás manifesto e mal ponderado pelo Sr. Juiz «a quo» – uma mera consequência do «petitum», a arguição mostra-se fantasiosa.
A quarta nulidade radicaria numa omissão de pronúncia da sentença, que nada disse sobre o segundo pedido formulado pelo autor. Mas é óbvio que a recorrente, situada no pólo oposto da lide, não tem legitimidade para arguir essa nulidade, que a não prejudica. Soçobra, por conseguinte, a respectiva denúncia.
Nas restantes conclusões da sua alegação, «maxime» as L) e M), mas também a J), a recorrente insurge-se contra a pronúncia condenatória emitida pelo TAF do Funchal. Trata-se de uma crítica vaga e imperfeita; mas, mesmo assim, suficiente para que revejamos a questão de fundo em toda a sua latitude.
Iniciaremos, pois, um «excursus» demonstrativo de que o processo dos autos constitui uma anomalia, aliás visível no seu resultado, que a sentença indevidamente caucionou.
Foi e é pacífico que as «acções para reconhecimento de direito ou interesse legítimo», previstas nos arts. 69º e 70º da LPTA, possibilitavam a emissão de uma pronúncia judicial condenatória da Administração, desde que tal condenação directamente resultasse daquele reconhecimento. Por outro lado, o que nessas acções se reconhecia – com efeitos declarativos e, porventura, condenatórios, como acabámos de dizer – era uma de duas coisas: ou um direito subjectivo público, naturalmente oponível ao órgão administrativo incumbido do cumprimento do correlativo dever jurídico; ou um interesse legalmente protegido numa norma de direito administrativo e, nessa medida, também exercitável contra o órgão administrativo competente para activar o mesmo preceito.
Na petição inicial, o autor autonomizou quatro pedidos, todos eles dirigidos contra a CMRB. E convém que os analisemos um por um, para detalhadamente vermos os equívocos que a acção apresenta «ab initio».
«Primo», ele pediu que a CMRB fosse condenada a reconhecer os seus direitos «ao descanso e ao repouso». Através desta fórmula, o autor sugeria que a acção dos autos visava o «reconhecimento» desses «direitos». Mas isso era impossível, pois tais «direitos» são de personalidade e a defesa deles faz-se nos tribunais comuns – como a ré CMRB assinalou. Isto mostra de imediato que o autor, ao pretender que a CMRB fosse «condenada a reconhecer os direitos do autor ao descanso e ao repouso», estava a formular um falso pedido. Não só porque seria ridículo supor que os direitos de personalidade estavam dependentes de reconhecimento; mas sobretudo porque esses direitos de personalidade do autor apresentavam-se, na economia da lide, como um mero pressuposto lógico – e, ademais, remoto – das autênticas pretensões dele, relacionadas com a fixação de um horário à padaria da aqui recorrente e com a proibição de cargas e descargas. E é esta, aliás, a posição que consta do saneador. Aí, julgou-se o TAF competente «ratione materiae» por se considerar que, «no caso em apreço», estava «em causa» uma questão administrativa – a qual precisamente consistiria na «autorização municipal para que certo estabelecimento comercial funcione até certas horas», ou seja, «o poder municipal de autorizar os horários de funcionamento do comércio».
E, se o primeiro pedido não podia ser considerado como um pedido vero e autêntico, enquadrável nas acções do presente tipo, o mesmo tem de dizer-se do segundo. Aqui, o autor pediu que a CMRB fosse «condenada a reconhecer a tutela dos direitos do autor à saúde, à qualidade de vida, ao descanso, ao repouso e ao sono, tomando medidas que impeçam ou afastem as perturbações e ofensas a esses direitos perpetrados pela» ora recorrente. É óbvio que este segundo pedido repete, desenvolvidamente, o que já constava do primeiro, apenas lhe acrescentando dois pontos: que os direitos de personalidade do autor estão a ser ofendidos pela aqui recorrente; e que a CMRB deve tomar «medidas» para tutelar esses «direitos». Mas estes pontos, que discursivamente ligavam o primeiro pedido aos terceiro e quarto, não permitem caracterizar essa ligação como imperiosa e necessária. Com efeito, a afirmação de que a aqui recorrente atropelava direitos de personalidade do autor parecia encaminhar o assunto para uma discussão entre eles nos tribunais comuns; e a afirmação de que a CMRB devia tomar «medidas» protectivas desses direitos de personalidade era insatisfatória e gratuita, pois o direito ou o interesse legítimo que o autor exercitasse na acção haveriam de radicar em normas de direito administrativo, como «supra» já dissemos, e não no art. 70º do Código Civil. Deste modo, o segundo pedido também não passava duma aproximação aos dois pedidos autênticos, que vinham a seguir.
O primeiro destes era o de que a CMRB fosse condenada «a ajustar a licença camarária no que respeita aos horários de funcionamento do estabelecimento comercial da B………», de modo que ele só pudesse funcionar entre as 8.00h e as 20.00h. E o segundo, e último, era o de que a CMRB fosse «condenada a proibir actividades de carga e descarga na padaria» da aqui recorrente.
Comecemos pela questão do horário. É manifesto que nenhum cidadão tem o direito subjectivo público de exigir que uma câmara municipal fixe os horários dum estabelecimento alheio desta ou daquela maneira – e confrange termos de enunciar esta evidência. Donde se segue que a pretensão do autor somente poderia proceder se acaso viesse suportada num seu «interesse legalmente protegido». «In casu», e dado o modo como o pedido foi formulado, tal interesse haveria de estar incluído no círculo dos interesses protegidos por determinada norma – mais exactamente aquela que atribuísse à CMRB competência para estabelecer o horário de funcionamento da padaria. Aliás, o próprio pedido admite que isto assim tinha de ser; pois fala em «ajustar a licença camarária», proibindo um funcionamento «antes das 8 horas e depois das 20 horas».
Todavia, não foi alegado nem está provado que a CMRB tenha emitido uma qualquer «licença camarária no que respeita aos horários do estabelecimento comercial» em causa – e até sucede que o autor incoerentemente negou, no art. 41º da sua petição, a existência de tal licença. Aliás, a padaria procede à transformação de bens e é um estabelecimento industrial, como revela o seu alvará junto aos autos. E, sendo ele de natureza industrial, não se conhece – nem o autor indica – uma qualquer norma que atribuísse à CMRB competência para a fixação do seu horário de funcionamento.
É agora claro que a posição do autor raia o absurdo: pede a condenação da CMRB a «ajustar» uma licença camarária que dissera não existir e que não está alegado e provado que existisse ou, sequer, que pudesse existir. E a sentença recorrida, que embarcou na procedência deste pedido, é de uma temeridade absoluta; pois condenou a CMRB a «proceder à redução» de um horário sem previamente se assegurar que essa redução se incluía entre as competências do órgão condenado.
A extravagância deste pedido é agora evidente. Na ausência de uma norma que cometa à CMRB a fixação do horário da padaria, é impossível dizer que o autor tem um interesse protegido ou acautelado nessa norma. E, ante essa impossibilidade, não se pode reconhecer ao autor um interesse legítimo conexo com uma fixação dos horários do género nem, portanto, condenar a CMRB a ajustar o horário em questão ao interesse dele.
Note-se que a sentença acabou por assentar o seu juízo de procedência deste pedido no Regulamento Geral do Ruído (RGR) aprovado pelo DL n.º 292/2000, de 14/11. Mas absteve-se de explicar por que motivo este RGR habilitava o tribunal a condenar a CMRB a proceder à «redução do horário». Concede-se que o RGR constitui as autarquias locais no «dever» de promoverem as medidas de carácter administrativo, técnicas ou outras, adequadas ao «controlo do ruído» (art. 2º, n.º 1, daquele RGR) ou «à promoção, e controlo da poluição sonora» (art. 4º, n.º 1, do RGR aprovado pelo DL n.º 9/2007, de 17/1); mas, em ambos os diplomas, esse dever seria exercido por essas autarquias «no quadro das suas atribuições e das competências dos respectivos órgãos», como consta dos sobreditos arts. 2º, n.º 1, e 4º, n.º 1. Ora, não estando adquirido que a CMRB dispõe de competência legal para fixar o horário de funcionamento do estabelecimento industrial da recorrente, não podia invocar-se o RGR, em qualquer das suas versões, para impor à CMRB uma definição que se situaria «extra legem».
É agora certa a improcedência do pedido em apreço. É que o autor carece de um direito subjectivo público que obrigue a CMRB a ajustar o horário da padaria às suas pretensões; e, não se descortinando uma norma que atribua à CMRB competência na fixação desse horário, é de recusar «in limine» que o autor esteja a prosseguir um interesse protegido nessa norma – que seria, afinal, a única onde o interesse legítimo do autor poderia radicar.
O segundo, e último, pedido autêntico do autor – o de condenar a CMRB a proibir as actividades de carga e de descarga na rua que serve a padaria da aqui recorrente – também se mostrava inviável «ab initio». Este pedido era o que mais directamente se relacionava com a tutela dos direitos de personalidade do autor, porquanto os ruídos de que ele se queixa são provocados, não pelo próprio funcionamento do estabelecimento industrial, mas pelo modo como são utilizados os veículos que o demandam.
Ninguém questionou nos autos que a CMRB é competente para definir a sinalização a adoptar na rede viária municipal – e, portanto, também na rua que serve a padaria em causa. Mas as competências autárquicas do género, ao abrigo das quais se regulamenta a sinalização do trânsito, prosseguem interesses gerais, sendo despropositado supor que se destinam também a proteger os interesses particulares dos moradores das vias assim regulamentadas. Se assim não fosse, qualquer pessoa estaria em condições de discutir «in judicio» a sinalética aposta na rua ou zona onde reside – solução que, em princípio, é inaceitável. É, pois, claro que o autor, para além de não ter um direito subjectivo público neste domínio, também não dispõe, sequer, dum interesse legalmente protegido que o habilitasse a impor à CMRB a adopção de medidas restritivas à circulação automóvel. Aliás, e recusado o que o autor preconiza, sucede até que as queixas dele encontram directamente previsão e resposta no art. 80º do Código da Estrada – onde se caracteriza a denunciada poluição sonora como uma contra-ordenação que deve ser averiguada pelas autoridades policiais.
Sintetizemos o que atrás dissemos: a aparente ideia do autor, de que a acção dos autos visaria reconhecer os seus direitos de personalidade, é errada, pois esses direitos exercitam-se, em regra, nos tribunais comuns. Por outro lado, é claríssimo que o autor carece de um direito subjectivo público, isto é, de um direito radicado numa norma administrativa, que lhe permita exigir da CMRB a fixação do horário de um estabelecimento industrial e a proibição de cargas e descargas numa certa rua. Por fim, ele também carece do interesse legalmente protegido que justificaria tais exigências: isso só ocorreria se, havendo normas que atribuíssem à CMRB competências nesses domínios, nelas se entrevisse que o vizinho da padaria e o morador na dita rua cabiam nos círculos de interesses protegidos nos preceitos. Mas isso não ocorre quanto ao horário por não se detectar uma norma que, nesse âmbito, atribuísse competência à CMRB; e não ocorre quanto à sinalização, porque esse poder regulamentar prossegue interesses gerais, e não os dos moradores da rua sinalizada ou da zona envolvente, aliás facilmente conflituantes entre si.
É, pois, seguro que a acção era inviável, merecendo censura a sentença recorrida, que lhe deu procedência – como a recorrente, no fundo, defende.

Nestes termos, acordam:
a) Em não tomar conhecimento do segundo recurso, interposto pela recorrente do despacho de fls. 639 a 641;
b) Em conceder provimento ao primeiro recurso, em revogar a sentença recorrida e em julgar totalmente improcedente a acção dos autos, absolvendo os demandados dos pedidos respectivos.

As custas do recurso não conhecido ficarão a cargo da recorrente, fixando-se a sua taxa de justiça em 50 euros e a procuradoria em 25 euros.

No demais, as custas da acção e do recurso ficarão a cargo do autor, e aqui recorrido, fixando-se:
Na 1.ª instância: a taxa de justiça em 100 euros e a procuradoria em 50 euros;
Neste STA: a taxa de justiça em 200 euros e a procuradoria em 100 euros.
Lisboa, 20 de Junho de 2013. – Jorge Artur Madeira dos Santos (relator) – António Bento São Pedro – Luís Pais Borges.