Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0798/13.6BELLE 0805/17
Data do Acordão:06/03/2020
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:NUNO BASTOS
Descritores:IRC
SOCIEDADE
INSOLVÊNCIA
Sumário:I - O ato de liquidação resultante de determinação da matéria tributável por métodos indiretos que não tenha sido precedido da sua revisão pode ser diretamente impugnado com fundamento em erro sobre a verificação dos pressupostos de incidência do imposto respetivo;
II - Não parece de erro de julgamento a sentença que não considera a tributação da falida com base no seu rendimento global, nos termos dos artigos 3.º, n.º 1, alínea b), e 48.º, ambos do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas, se do ato impugnado não deriva que o rendimento global tivesse sido a base de tributação da falida.
Nº Convencional:JSTA000P26011
Nº do Documento:SA2202006030798/13
Data de Entrada:07/05/2017
Recorrente:AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Recorrido 1:A............
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam em conferência na Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:
1. Relatório

1.1. A Representante da Fazenda Pública interpôs recurso para o Supremo Tribunal Administrativo da sentença que julgou procedente a impugnação judicial interposta por Massa Falida de B…………, Lda., pessoa coletiva n.º ………, representada pelo liquidatário judicial A…………, com escritório na Av.ª ………, n.º …… – …..., 1050-…… Lisboa, deduzida contra a liquidação de imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas n.º 2012 8310015026, relativa ao exercício de 2009, no montante de € 826.893,85.

Recurso este que foi admitido com subida imediata nos próprios autos e com efeito devolutivo.

Notificada da sua admissão, apresentou alegações e formulou as seguintes conclusões: «(…)

a) O acto impugnado não padece de qualquer vício de violação da lei, por inexistência de qualquer erro nos pressupostos da tributação, já que:

b) A impugnante MASSA FALIDA DE B…………, LDA., com o NIF ………, é contribuinte de direito em IRC, nos precisos termos previstos na alínea b) do n.º 1, do art.º 2.º do CIRC, conjugado com o n.º 2 do mesmo artigo;

c) O IRC incide sobre o rendimento global, conforme é previsto na alínea b) do art.º 3.º do CIRC;

d) Os rendimentos dos imóveis detidos pela massa falida, bem como os ganhos resultantes da sua transmissão onerosa, estão sujeitos às regras da incidência, nos termos da alínea a) do n.º 3, do art.º 4.º do CIRC;

e) Não tendo o representante da impugnante apresentado a declaração de rendimentos do ano de 2009 a que estava obrigado, por força do art.º 109.º do CIRC, foi a matéria tributável apurada pela Autoridade Tributária, nos termos previstos no n.º 4 do art.º 16.º do CIRC;

f) Por tal motivo, falta da declaração de rendimentos, foi a matéria tributável apurada por avaliação indirecta, por estarem verificados os pressupostos previstos no art.º 87.º, n.º 1, alínea b) e art.º 88.º alínea a) ambos da Lei Geral Tributária.

g) A impugnante não solicitou a revisão da matéria colectável fixada por métodos indirectos, como dispõe o n.º 1 do art.º 91.º da LGT;

h) Nos termos do n.º 3 do art.º 86.º da LGT, a avaliação indirecta não é susceptível de impugnação indirecta, uma vez que originou liquidação de imposto.

i) Verifica-se não existir qualquer irregularidade, e, ou ilegalidade, na liquidação do imposto impugnado, pelo que deveria ter sido julgado procedente a excepção da inimpugnabilidade do acto de liquidação.».

Pediu fosse dado provimento ao presente recurso e fosse revogada a douta sentença recorrida, mantendo-se a liquidação impugnada.

O recorrido contra-alegou tendo concluído do seguinte modo:

1. «1. A AT não poderia ter fixado em relação ao ano fiscal de 2009 qualquer matéria tributável à sociedade B…………, Lda., por a mesma ter sido declarada falida por sentença judicial de 12/11/1999, transitada em julgado em 02/12/1999;

2. Encontra-se provado nos autos que as demonstrações de liquidação de IRC de 2009 da sociedade B…………, Lda. provém exclusivamente de artigos matriciais urbanos destinados a habitação e de artigos matriciais referentes a lotes de terreno, que foram apreendidos nos autos de falência para a Massa Falida de B…………, Lda., em 09/11/2005 (auto de apreensão junto como documento n.º 6 com a p.i.) e vendidos por mandado do Meritíssimo Juiz dos autos de liquidação do activo n.º 1248-A/1994 do Tribunal Judicial de Albufeira;

3. Ora, a venda de bens que integram o activo imobilizado de uma sociedade entretanto declarada falida, efectuada nos autos de liquidação do respectivo activo, não é considerado um facto tributário subsumível no conceito de mais-valias, previsto no artigo 43º do CIRC, e, portanto, não pode ser tributado em sede de IRC,

4. Mormente porque a partir da data da declaração de falência não há mais activo/imobilizado, como tal, porque o activo imobilizado compreende o conjunto de bens e direitos que a sociedade comercial afecta à sua actividade e, portanto, à prossecução do seu objecto social;

5. Depois, porque declarada a falência de uma sociedade os bens apreendidos passam a integrar a chamada Massa Falida, que, nos termos da lei, é um acervo de bens e direitos retirados da disponibilidade da sociedade falida, que serve única e exclusivamente para, depois de liquidado, pagar, primeiramente, as custas processuais e as despesas de administração e, depois, os créditos reconhecidos no processo de falência;

6. Assim sendo, a referida venda dos artigos matriciais urbanos e dos artigos matriciais de lotes de terreno, por ter sido mandatada pelo Meritíssimo Juiz titular dos autos de liquidação do activo da Massa Falida de B…………, Lda, é uma venda de bens da Massa Falida e não da sociedade B…………, Lda, e o seu rendimento líquido visou, nomeadamente e sobretudo, a satisfação dos credores, em concurso universal;

7. Em virtude do exposto, o rendimento líquido obtido com a venda dos bens da Massa Falida de B…………, Lda., não integra, assim, o conceito de rendimento global subjacente à tributação das mais-valias, previsto no artigo 43° do CIRC (Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 29/10/2003, proferido no processo 01079/03, e publicado em www.dgsi.pt), razão pela qual o Tribunal deve concluir que a AT ficcionou um rendimento global inexistente para fixar a matéria tributável de € 3.035.013,26 e liquidar IRC à sociedade B…………, Lda.;

8. Ademais, para determinação do rendimento global da Massa Falida de B…………, Lda., não foram deduzidos, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 48º do CIRC, os prejuízos fiscais anteriores à data da falência e com referência a todo o período de liquidação, nem foram considerados os prejuízos inerentes à situação claramente deficitária da sociedade B…………, Lda., que determinaram a sua inviabilidade económica e, consequentemente, a sua declaração de falência em 12/11/1999;

9. Por outro lado, a tributação de IRC de rendimentos não reais ou presumidos, sem a consideração dos respectivos prejuízos, é claramente inconstitucional, por violar o disposto nos artigos 103º n.º 3 e 104º n.º 4º da Constituição da República Portuguesa;

10. Nestes termos, quando a AT fixou a matéria colectável da sociedade B…………, Lda., referente ao ano de 2009, em € 3.035.013,26 e lhe liquidou IRC no valor total de €826.893,85 violou, entre outras, as normas constantes dos artigos 15º, n.º 1 alínea b), 20º, 23º, 43º, 48º e 65º do CIRC, nos artigos 9º, n.º 1 alínea a) e 10º, n.º 1 alínea a) do CIRS, no artigo 1º do CPEREF e nos artigos 103º, n.º 3 e 104º, n.º 4 da CRP.

1.2. Recebidos os autos neste tribunal, foi ordenada a abertura de vista ao Ministério Público.

O Ex.mo Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer no sentido de que o presente recurso deve ser provido, consubstanciando a sua posição na seguinte argumentação:

«1. A impugnabilidade do acto de liquidação sob análise, resultante da determinação da matéria tributável com base em avaliação indirecta, tem fundamento legal:

- na impugnação do acto tributário de liquidação em que a matéria tributável tenha sido determinada com base em avaliação indirecta pode ser invocada qualquer ilegalidade desta (art. 86º nº 4 LGT);

- porém, em caso de erro na quantificação ou nos pressupostos da determinação indirecta da matéria tributável, a impugnação judicial da liquidação depende de prévia reclamação (art.86º nº 5 LGT)

- no caso concreto, tendo a impugnação judicial como fundamento questão de direito emergente da inexistência de facto tributário (suscitada com a alegação de que a venda de bens integrante da massa falida não é apta a gerar lucro tributável), não está dependente de prévio pedido de revisão da matéria colectável (art. 91º nº 14 LGT)

2. A massa insolvente é um acervo de bens e direitos subtraídos à disponibilidade da sociedade insolvente, destinado à satisfação dos credores da insolvência cujos créditos sejam reconhecidos, após pagamento das dívidas da própria massa insolvente (arts. 46º nº 1 e 51º CIRE)

A sociedade insolvente mantém a sua personalidade jurídica até ao encerramento da liquidação podendo, temporariamente, exercer a sua actividade social (arts. 146º nº 2, 152º nº 2 al. a) e 160º nº 2 CSC);

A alienação de bens integrantes do activo imobilizado da sociedade insolvente transitado para a massa falida gera rendimento que não pode ser classificado como mais-valias: as vendas foram efectuadas, não no exercício da actividade social da empresa, mas para obtenção de receita destinada à satisfação dos credores com créditos reconhecidos (art. 43º nº 1 CIRC numeração e redacção vigentes em 2009; acórdãos STA-SCT 29.10.2003 processo nº 1079/03; 3.11.2016 processo nº 448/14)

Não obstante, a sociedade insolvente continua vinculada ao cumprimento de obrigações declarativas, nada impedindo que no exercício da actividade social subsequente à declaração de insolvência gere rendimentos que, concorrendo para a formação de lucro tributável, sejam susceptíveis de tributação em sede de IRC, segundo o regime aplicável às sociedades em liquidação (art. 73º numeração e redacção vigentes em 2009; acórdãos STA-SCT 3.11.2016 processo nº 448/14; 14.06.2012 processo nº 816/11; 24.02.2011 processo nº 1145/09)

O legislador, sem ignorar a natureza específica da massa insolvente, não excluiu a tributação da sociedade insolvente que prossegue a sua actividade económica, harmonizando o interesse do Estado na obtenção da receita tributária com os interesses dos credores da insolvente; sob pena de violação do princípio da igualdade, na medida em que a sociedade insolvente seria discriminada favoravelmente (em relação a outras sociedades em actividade) sem fundamento material bastante.

Disposições legislativas dispersas apontam igualmente no sentido da sujeição das sociedades insolventes a imposto sobre o rendimento (arts. 65º e 268º CIRE; arts.117º a 125º e IRC contendo o regime das obrigações respeitantes à apresentação da declaração periódica de rendimentos)

3. No caso concreto a liquidação impugnada de IRC, efectuada em conformidade com o regime legal aplicável, não enferma de ilegalidade, pelos motivos seguintes:

a) os 50 prédios urbanos vendidos integravam o activo circulante (e não o activo imobilizado) da sociedade insolvente que tinha como objecto social a compra e venda de bens imobiliários (relatório de inspeção tributária, fls. 66);

b) o produto da venda dos prédios tem a natureza de proveito e não de mais-valias (art. 20º nº 1 al. a) CIRC numeração e redacção em vigor à data dos factos);

c) foi considerado o VPT dos prédios urbanos vendidos (€ 7 212 483,99) porque superior ao valor constante da escritura de compra e venda (€ 4 352 735,00) (art. 58º-A nº 1 CIRC; actualmente art. 64º nº 1 CIRC).

d) não tendo o sujeito passivo formulado pedido de revisão da matéria tributável, a apreciação dos pressupostos e do critério para a determinação indirecta da matéria tributável está precludida no âmbito da impugnação judicial, onde apenas deve ser apreciada a alegada inexistência de facto tributário (art. 86º nº5 LGT),

e) a dedução de prejuízos fiscais de exercícios anteriores não era possível porque desconhecidos pela AT, em virtude da omissão de apresentação das declarações mod.22 IRC pelo sujeito passivo; e igualmente por imperativo legal decorrente do apuramento do lucro tributável por métodos indirectos (art. 47º nº 2 CIRC; actualmente art. 52º nº3 CIRC).»

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.



2. Dos fundamentos de facto

Na douta sentença recorrida foram julgados provados os seguintes factos: «(...)

1. Em 1982, B…………, Lda., iniciou a sua actividade de compra e venda de bens imobiliários - facto admitido por acordo.

2. B…………, Lda., foi declarada insolvente por sentença do Tribunal Judicial de Albufeira de 2 de Dezembro de 1999, processo n.º 1248/1994 - facto admitido por acordo.

3. Em 31 de Dezembro de 2001, foi cessada a actividade de B…………, Lda., para efeitos de IVA - facto admitido por acordo.

4. No dia 25 de Março de 2009, no âmbito do processo de liquidação de activos n.º 1248-J/1994, do Tribunal Judicial de Albufeira, em que era Executada B…………, Lda., foi ordenada a venda de 50 prédios urbanos, o que foi feito pelo preço de € 4.352.735,00 - cfr. fls. 67 do apenso.

5. Em 21 de Março de 2011, o Director de Finanças Adjunto de Faro determinou a realização de acção inspectiva de âmbito parcial, relativo ao IRC de 2009, atendendo à alienação de imóveis sem apresentação da declaração Modelo 22 - cfr. fls. 65 do apenso.

6. A…………, na qualidade de administrador judicial de B…………, Lda., foi notificado do projecto de relatório da inspecção tributária - cfr. fls. 37 do apenso.

7. A………… exerceu o seu direito de audição prévia através de mandatário que constituiu para o efeito - cfr. fls. 52-59 do apenso.

8. No dia 17 de Setembro de 2012, foi elaborado o Relatório de Inspecção que aqui se dá por integralmente reproduzido e que, no que ora interessa, fixou, através de métodos indirectos, a matéria colectável do IRC de 2009 em € 3.035.013,26 - cfr. fls. 61-73 do apenso.

9. O Relatório foi notificado a A………… - cfr. fls. 60 do apenso.

10. Não foi requerida a revisão da matéria colectável - facto admitido por acordo.

11. Em 5 de Novembro de 2012, foi emitida a liquidação de IRC n.º 2012.1811149 (acto impugnado), no valor de € 757.190,81 - cfr. fls. 80 do apenso.».



3. Dos fundamentos de Direito

3.1. Vem o presente recurso interposto da douta sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Loulé que julgou diretamente impugnável o ato tributário de liquidação de imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas efetuada com recurso à avaliação indireta, por não estarem em causa os pressupostos legais do recurso a essa forma de avaliação; e que julgou ilegal a mesma liquidação por a venda de bens da massa falida não se integrar nos pressupostos da tributação respetiva.

Com o assim decidido não se conforma a Recorrente Fazenda Pública, por entender que o tribunal de primeira instância incorreu em erro de julgamento. Erro quanto à impugnabilidade do ato uma vez que, nos termos do artigo 86.º, n.º 3, da Lei Geral Tributária, a avaliação indireta não é suscetível de impugnação contenciosa direta. Erro quanto à ilegalidade do ato, uma vez que a venda dos bens de entidades que não exerçam uma atividade empresarial encontra-se sujeita a tributação a coberto dos artigos 3.º, n.º 1, alínea b) e 48.º, ambos do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas [doravante identificado pela abreviatura “CIRC”].

A primeira questão sobre a qual este Supremo Tribunal é chamado a pronunciar-se é, por isso, a de saber se a Recorrida poderia impugnar diretamente a liquidação.

A segunda questão é a de saber se a venda de bens que compõem a massa falida de uma sociedade em liquidação está sujeita a tributação.

Sobre estas duas questões nos pronunciaremos separadamente nos dois pontos seguintes.

3.2. A Recorrente não esclarece integralmente a sua posição quanto à primeira questão, porque não é totalmente claro se defende que a impugnação da liquidação oficiosa efetuada com recurso a métodos indiretos depende (sempre) de prévia reclamação, ou defende que os fundamentos em concreto da impugnação dizem respeito ao procedimento de determinação da matéria tributável e teriam, por isso, que ser primeiro levados ao sub-procedimento de revisão da matéria tributável a que aludem os artigos 90.º e 91.º da Lei Geral Tributária.

Deve, porém, contrapor-se desde já que nenhuma destas posições poderia merecer acolhimento.

Não poderia merecer a primeira, porque só carece de revisão prévia a impugnação da avaliação indireta propriamente dita ou a impugnação da liquidação subsequente com fundamento em ilegalidade da avaliação indireta.

Não poderia merecer a segunda, porque os fundamentos da impugnação não contendem com a avaliação indireta.

Que só carece de revisão prévia a impugnação da avaliação indireta propriamente dita resulta do n.º 5 do artigo 86.º da Lei Geral Tributária e do n.º 1 do artigo 117.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário. Segundo os quais a impugnação judicial da liquidação com fundamento em erro na quantificação da matéria tributável ou nos pressupostos de aplicação de métodos indiretos depende de prévia reclamação.

O que se retira destes dispositivos é que o erro tem que estar sempre localizado na aplicação dos métodos indiretos, seja ele relacionado com a decisão administrativa de a ele recorrer ou com o método de quantificação indireta escolhido.

O que é, de alguma forma, confirmado pelo n.º 14.º do artigo 91.º da Lei Geral Tributária, ao dispor que só estão abrangidas pelo que nele se dispõe (isto é, só cabem no objeto do procedimento de revisão respetivo) as questões de direito que estão referidas aos pressupostos de determinação indireta da matéria tributável. Pelo que as demais questões de direito podem ser levadas diretamente à impugnação da liquidação subsequente.

Ora, a Impugnante não apontou nenhum vício à decisão de recorrer a métodos indiretos nem a escolha do método de quantificação e nem mesmo às operações de quantificação indireta. O que a Impugnante vinha clamando desde o início era que o rendimento líquido obtido com a venda dos imóveis em processo de falência não podia ser tributado em IRC.

Ou seja, a Impugnante suscitou uma questão relacionada com a incidência e não com a determinação da matéria tributável.

A incidência diz respeito à existência e qualificação de sujeitos e de factos como realidades jurídicas sujeitas a tributação, como elementos da obrigação de contribuir. No caso, dizia respeito à questão de saber se a massa falida é sujeito passivo de IRC e se a venda de bens do ativo imobilizado a empresa constitui facto tributário para os efeitos deste imposto.

Pelo seu lado, a determinação da matéria tributável diz respeito a um conjunto de atos de que dependa a definição em concreto do valor em que se concretiza a respetiva obrigação de contribuir, no pressuposto de que exista. No caso, diria respeito aos atos que comprovam ou justificam a impossibilidade da determinação direta da matéria tributável, a escolha do método de avaliação indireta e sua execução.

O problema da incidência reclama um processo lógico que convoca regras de previsão ou de predeterminação legal do dever de contribuir (normas jurídicas materiais) e a subsunção dos factos à sua configuração típica. A doutrina chama, por vezes, a este processo lógico de concretização (de factualização da norma ou de normativização do facto) uma «determinação em abstrato» [cit. Alberto Pinheiro Xavier, in «Manual de Direito Fiscal», Almedina 1981, pág. 253] da obrigação de contribuir.

O problema da determinação da matéria tributável surge quando a convergência entre a norma e o facto não opera automaticamente e reclama a realização e um conjunto de atos formais de que depende a revelação do valor concreto da obrigação tributária. São então convocadas um conjunto de normas que se dizem instrumentais, porque servem instrumentalmente o procedimento de liquidação propriamente dito e porque disciplinam o (sub)procedimento de avaliação indireta.

Estando assente que só carece de revisão prévia a determinação da matéria coletável e não tendo sido imputado nenhum vício à determinação da matéria coletável, também não se pode pretender que a presente impugnação judicial dependia de prévia revisão da matéria tributável.

Pelo que o recurso não merece provimento nesta parte.

3.3. A segunda questão colocada pela Recorrente é a de saber se o tribunal de primeira instância incorreu em erro de julgamento ao concluir pela inexistência de facto tributário.

Na essência, o tribunal recorrido concluiu pela inexistência de facto tributário porque os bens vendidos não podiam integrar o ativo imobilizado da empresa (porque os bens do ativo imobilizado são os que se destinem a ser um instrumento da produção, e os bens apreendidos no processo de falência são destinados à venda) e não podiam, por isso, gerar mais valias nos termos do artigo 43.º do CIRC.

Em bom rigor, este não é um problema relacionado com a existência de ganhos tributáveis mas com a sua qualificação. Da resposta a esta questão não deriva que não exista rendimento tributável, mas que não pode ser qualificado como mais-valia para efeitos deste imposto.

Ora, o tribunal recorrido não interpretou corretamente o ato impugnado, nesta parte. Porque, como se referiu no relatório de inspeção tributária em resposta a objeção colocada pelo sujeito passivo no exercício do direito de audição, a Administração Tributária nunca referiu «que os imóveis vendidos integravam o imobilizado do contribuinte, nem tão pouco que tal venda constitui uma mais valia» (ver a pág. 9 do relatório). Até porque o sujeito passivo estava coletado pela atividade de “Compra e venda de bens imobiliários” (e os imóveis fariam, por isso, parte do seu ativo permutável).

Deve entender-se, no entanto, que não é esta a única razão que levou a primeira instância a anular o ato impugnado. Porque também ali se diz (fazendo uso da citação de um acórdão deste Supremo Tribunal que tratou de outro caso) que, «decretada a falência, cessa a prossecução do objecto social da empresa e, portanto, a obtenção de lucros que é a base de IRC – artigos 1.º e 3.º do CIRC».

Ou seja, o tribunal de primeira instância não concluiu apenas que os imóveis vendidos não integravam o imobilizado da empresa e não podiam, por isso, ter gerado mais valias: concluiu também que a empresa tinha cessado a sua atividade e que os imóveis vendidos foram destinados à sua liquidação. Liquidação esta que não tem como objetivo a obtenção de lucro mas o pagamento aos credores da falida. E que, por isso, não pode integrar a base tributável em IRC. Atento o disposto nos artigos 1 e 3.º do Código respetivo.

E é contra este entendimento que se insurge a Fazenda Pública. Começando, desde logo, por assinalar que a base tributável em IRC não é apenas constituída pelo lucro tributável, podendo ser também constituída pelo rendimento global [nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 3.º do CIRC], aplicável às sociedades ou patrimónios autónomos que não exerçam, a título principal, uma atividade de natureza comercial, industrial ou agrícola.

Ou seja, a Fazenda Pública veio ao recurso defender algo muito próximo do que a Impugnante já vinha defendendo na petição inicial: que a base tributável em IRC de sociedades falidas (ou dos patrimónios autónomos constituídos pelas massas falidas, na versão da Impugnante) é constituída pelo seu rendimento global e que, por isso, estas entidades se encontram sujeitas a IRC (desde que os seus rendimentos, se fossem obtidos por pessoas singulares, se encontrassem sujeitos a IRS).

Mas essa é uma questão que não importa abordar no presente recurso. Porque não foi esse o fundamento do ato impugnado. A Administração Tributária não apurou o rendimento global do sujeito passivo nos termos do artigo 48.º do CIRC. Apurou proveitos ou ganhos derivados de operações em consequência de uma ação normal da empresa, a coberto do artigo 20.º, n.º 1, alínea a), do Código. Corrigiu o valor das vendas respetivas apurando os valores normais de mercado a considerar para determinação do lucro tributável, nos termos do artigo 58.º-A do Código. Deduziu os custos das mercadorias vendidas e das matérias consumidas apurado com recurso ao rácio R01 (Margem Bruta na Venda de Mercadorias). E obteve uma margem média de lucro líquido nos termos conjugados das alíneas a) e d) do n.º 1 do artigo 90.º da Lei Geral Tributária. Ao qual aplicou a taxa normal em IRC (artigo 80.º, n.º 1, do Código) e não a que é aplicável ao rendimento global das entidades que não exerçam atividades comerciais industriais ou agrícolas (n.º 5 do mesmo dispositivo legal).

Nenhuma dúvida, por isso, de que a Administração Tributária apurou lucro tributável e não o rendimento global. Pelo que não se pode vir agora defender a legalidade do ato com base nas regras aplicáveis às entidades sujeitas a tributação em IRC com base no seu rendimento global. Aliás, a confirmação da tese da Recorrente confirmaria a ilegalidade da liquidação impugnada, ainda que com fundamento diverso do invocado na decisão recorrida.

No mais, a Recorrente veio reafirmar que a Impugnante é sujeito passivo em IRC. O que não vem ao caso, porque o ato não foi anulado porque a falida não devesse ser considerada sujeito passivo. Questão que nem sequer chegou a ser abordada na sentença recorrida porque, embora tivesse sido colocada na petição inicial, o tribunal de primeiro de instância julgou prejudicada, no seu conhecimento, pela procedência da impugnação com base na inexistência de base tributável.

Assim, e porque também não é questionada a conclusão, tirada na decisão recorrida, de que decretada a falência, cessa a prossecução do objeto social e, por essa razão, a (possibilidade de) obtenção do lucro apurado no ato impugnado (conclusão esta que, por isso, não faz parte do objeto do recurso e não pode ser aqui sindicada), importa negar provimento ao recurso.



4. Conclusões

4.1. O ato de liquidação resultante de determinação da matéria tributável por métodos indiretos que não tenha sido precedido da sua revisão pode ser diretamente impugnado com fundamento em erro sobre a verificação dos pressupostos de incidência do imposto respetivo;

4.2. Não parece de erro de julgamento a sentença que não considera a tributação da falida com base no seu rendimento global, nos termos dos artigos 3.º, n.º 1, alínea b), e 48.º, ambos do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas, se do ato impugnado não deriva que o rendimento global tivesse sido a base de tributação da falida.



5. Decisão

Nos termos e com os fundamentos expostos, acordam os juízes da Secção Tributária deste Tribunal em negar provimento ao recurso.

Custas pela Recorrente.

D.n.

Lisboa, 3 de Junho de 2020. – Nuno Filipe Morgado Teixeira Bastos (relator) – Gustavo André Simões Lopes Courinha - Pedro Nuno Pinto Vergueiro.