Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0483/19.5BELLE-A
Data do Acordão:10/07/2021
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:JOSÉ VELOSO
Sumário:
Nº Convencional:JSTA00071262
Nº do Documento:SA1202110070483/19
Data de Entrada:06/30/2021
Recorrente:A............
Recorrido 1:MUNICÍPIO DE FARO E OUTROS
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:RECURSO DE REVISTA
Objecto:ACÓRDÃO DO TCA SUL
Decisão:CONCEDE PROVIMENTO
Área Temática 1:PROVIDÊNCIAS CAUTELARES
Legislação Nacional:ARTIGO 120º DO CPTA
Aditamento:
Texto Integral: I. Relatório
1. A………… - identificada nos autos -, interpõe «recurso de revista» do acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul [TCAS], de 04.03.2021, que concedeu provimento à sua «apelação», e revogou a sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Loulé [TAF], de 28.12.2019, que tinha julgado improcedente a sua pretensão cautelar, por falta do requisito de periculum in mora e, em substituição, manteve o julgamento de improcedência por falta do requisito de fumus boni juris. Demanda o MUNICÍPIO DE FARO e os contra-interessados B………… e sua mulher C………….

Culmina as suas alegações de revista com as seguintes conclusões:

1- O acórdão ora recorrido concedeu provimento ao recurso de apelação e revogou a sentença que julgou a providência cautelar improcedente por inexistência de «periculum in mora» e em substituição julgou-a improcedente por falta do requisito de «fumus boni iuris», absolvendo do pedido a entidade requerida;

2- Nestes casos, e de acordo com o disposto no artigo 149º, nº4, do CPTA, há lugar, no tribunal superior, à produção da prova que - ouvidas as partes pelo prazo de cinco dias - for julgada necessária;

3- Porém, o acórdão recorrido não se pronunciou sobre essa necessidade de produção de prova, nem as partes foram ouvidas sobre tal matéria;

4- Assim, ao não o fazer, o acórdão não se pronunciou sobre questões que deveria ter apreciado e, como tal, é nulo por omissão de pronúncia nos termos do disposto no artigo 615º, nº1 alínea d), do CPC, aplicável ex vi 140º, nº3, do CPTA;

5- Ora, no caso vertente impunha-se claramente produção de prova - maxime a inquirição das testemunhas arroladas pela requerente, ora recorrente - atenta a fundamentação apresentada para a decisão sobre a improcedência da requerida providência cautelar;

6- Com efeito, o douto acórdão recorrido considerou que «[…] a abertura da janela em causa, existente no prédio da recorrente, constitui, numa análise perfunctória própria do meio processual em uso, uma violação da legalidade urbanística, insusceptível de legalização como alegado pelo Município de Faro na oposição deduzida em juízo porque a abertura dessa janela violaria o disposto no artigo 1360º nº1, do CC, e o artigo 73º do RGEU»;

7- A existência da janela desde a construção do respectivo edifício - início do seculo XX - ou a sua abertura posteriormente a 1984, constitui facto controvertido cujo apuramento era essencial para a boa decisão da causa, atenta a fundamentação do acórdão recorrido sobre a falta de verificação do «fumus boni iuris»;

8- Isto porque, caso se tivesse apurado através da produção de prova, ainda que indiciariamente, que a janela em apreço existe desde a construção do edifício, no início do século XX, seria por demais evidente que a mesma, obviamente, não viola nem o artigo 1360º nº1 do CC, nem o artigo 73º do RGEU, diplomas legais que só entraram em vigor, respectivamente, em 01.06.1967 e em 15.08.1951;

9- Termos em que, ao não determinar a produção de prova, e não ter ouvido sequer as partes sobre essa matéria, o douto acórdão em crise viola o disposto no artigo 149º, nº4, do CPTA e, bem assim, o princípio do contraditório;

10- Mas mais, constituindo facto controvertido a existência da janela desde a construção do edifício - início do século XX - ou a sua abertura posteriormente a 1984, e, atentos os factos assentes constantes das alíneas C), D), E) e F) da sentença do TAF, o acórdão recorrido enferma claramente de erro de julgamento quanto ao não preenchimento do requisito do «fumus boni iuris»;

11- E, independentemente desse facto controvertido, o douto acórdão em crise faz errada interpretação e aplicação do disposto no artigo 73º do RGEU;

12- Com efeito, esse preceito reporta-se ao afastamento das janelas de compartimentos habitacionais relativamente a qualquer muro ou fachada fronteira, pelo que, encontrando-se provado na alínea C) dos factos dados como provados na sentença do TAF que o prédio da requerente, ora recorrente, confronta do lado sul com o logradouro do prédio dos contra-interessados, ora recorridos, é evidente que a janela existente no alçado sul do prédio da recorrente não tem nenhum muro ou fachada fronteira e, portanto, não viola de modo algum o disposto no artigo 73º do RGEU, não constituindo por isso qualquer infracção urbanística;

13- Mas mais ainda, contrariamente ao decidido no acórdão recorrido, dos factos assentes constantes das alíneas C), D), E) e F) da sentença do TAF resulta outrossim a verificação do fumus boni iuris, pelas razões oportunamente expostas no requerimento inicial;

14- Efectivamente, das referidas alíneas C), D), E) e F) dos factos dados como provados na sentença do TAF, resulta que o projecto de obras licenciado pela Câmara Municipal de Faro contempla a construção de um anexo [garagem] com entrada pela Rua do ………, cuja parede norte surge encostada à fachada sul do prédio da ora recorrente, construção que irá tapar e emparedar a janela aí existente ao nível do r/c;

15- Daí resultando sem margem para dúvidas que o acto administrativo que licenciou o referido projecto viola ostensivamente o disposto nos artigos 58º, 60º e 73º do RGEU, e os direitos à habitação, urbanismo, ambiente e qualidade de vida consagrados nos artigos 65º e 66º da Constituição da República;

16- Em suma, o acto posto em crise licenciou a construção de uma garagem sem qualquer afastamento à extrema do prédio, e que, para além disso, prevê uma parede encostada à fachada sul do prédio da recorrente que irá tapar a janela de um compartimento habitacional aí existente;

17- De tudo resultando que o acto de licenciamento em crise ao licenciar o projecto de obras de alteração e ampliação com manutenção de fachada, construção de anexo e piscina - requerido pelos contra- interessados e ora recorridos, B………… e C………… - que contempla a construção de uma garagem [anexo] com entrada pela Rua do ........., sem qualquer afastamento à extrema do prédio e cuja parede norte irá encostar à fachada sul do prédio da recorrente, tapando a janela aí existente ao nível do r/c, viola o disposto nos artigos 58º, 60º e 73º do RGEU, e, bem assim, os respectivos direitos à habitação, urbanismo, ambiente e qualidade de vida, consagrados nos artigos 65º e 66º da Constituição, enfermando de vício de violação de lei e, como tal, é anulável, conforme se peticiona na acção principal;

18- Apreciação dos factos provados e igualmente errada interpretação e aplicação do requisito fumus boni juris previsto no artigo 120º, nº1, do CPTA e, como tal, deve ser revogado e substituído por decisão que julgue a questão controvertida do fumus boni iuris, aplicando os critérios de atribuição das providências cautelares por referência à matéria de facto fixada nas instâncias - ver artigo 150º, nº5, do CPTA;

19- De tudo quanto antecede, resulta que o douto acórdão recorrido viola a lei substantiva e processual, encontrando-se reunidos os requisitos previstos no artigo 150º, nº1, do CPTA, para admissão do presente recurso de revista, a qual é claramente necessária para uma melhor aplicação do direito.

Termina pedindo a admissão da revista, e seu provimento, com a «baixa» dos autos ao tribunal a quo para os devidos efeitos, ou, então, proferindo-se decisão que conceda a pretensão cautelar de suspensão de eficácia.

2. O recorrido MUNICÍPIO DE FARO contra-alegou, concluindo - com interesse para a «apreciação do mérito da revista», neste momento já «admitida» - assim:

[…]

20- Resultando claro e expresso do processo de obras constante dos autos que a janela a que a recorrente se refere não existia em data anterior a 1984, tem aplicação o disposto no nº2 do artigo 393º do CC segundo o qual não é admitida prova testemunhal quando determinado facto estiver plenamente provado por documento não impugnado ou por outro meio com força probatória plena;

21- Neste sentido, a prova testemunhal pretendida pela recorrente é inadmissível para efeitos do disposto naquele preceito legal, donde, por isso, o acórdão não pode ser declarado nulo com esse fundamento;

22- O nº4 do artigo 150º do CPTA é expresso, também, ao vedar a possibilidade de apreciação por este Supremo Tribunal de qualquer erro na apreciação de prova, dispondo que «O erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objecto de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova».

Termina pedindo a não admissão da revista, e, de todo o modo, o seu não provimento.

3. Os contra-interessados também contra-alegaram, retirando as seguintes conclusões - com interesse para «apreciar o mérito desta revista», neste momento já «admitida»:

[…]

h) E para mais, a disposição do nº4 do artigo 149º do CPTA, não obriga o Tribunal Superior à produção de prova, antes, apenas e tão só, possibilita a produção dessa prova;

i) Sendo que, também não colhe, em sede de recurso de revista, a alegação de erro de julgamento quanto ao não preenchimento do requisito do «fumus boni iuris»;

j) Por, nos termos do nº4 do artigo 150º do CPTA, o erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não poder ser objecto de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova;

k) Por fim, o requerido efeito suspensivo do recurso não pode ser concedido, nos termos e para os efeitos da alínea b) do nº2 do artigo 143º do CPTA;

l) Por estar em causa uma decisão respeitante a processo cautelar, o recurso a ser admitido, o que não se concede, terá efeito meramente devolutivo.

Termina pedindo a não admissão da revista, e, de todo o modo, o seu não provimento.

4. O recurso de revista foi «admitido» por este Supremo Tribunal - «Formação» a que alude o nº6, do artigo 150º, do CPTA.

5. O Ministério Público entende que deverá ser mantida a decisão do acórdão recorrido, mas com outra fundamentação - artigo 146º, nº1, CPTA -, sendo que as partes não reagiram a esta pronúncia - artigo 146º, nº2, CPTA.

6. Sem «vistos» - artigo 36º, nº1, alínea f), e nº2, do CPTA -, cumpre apreciar e decidir o recurso de revista.

II. De Facto

São os seguintes os factos que nos vêem das instâncias:

A) A ora requerente é dona do prédio urbano sito na Rua do ........., nº……, e Rua do ……… nºs …… e …… da União das Freguesias de Faro [Sé e São Pedro], concelho de Faro, descrito na Conservatória do Registo Predial de Faro sob o nº……, e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo …… - ver documentos nº3 e 4 juntos pela requerente com o requerimento inicial;

B) Os contra-interessados são os actuais donos de dois prédios urbanos, sendo um deles na Rua de ………, nºs ……, …… e ……, Rua do ………, nºs …… e ……, e Rua ........., nº……, em Faro, e o outro, sito na Rua de ………, nº……, e Rua do ........., nºs …… e ……, em Faro, ambos sitos na União das Freguesias de Faro [Sé e São Pedro], concelho de Faro, descritos na Conservatória do Registo Predial de Faro, sob os nº…… e nº……, respectivamente, e inscritos na matriz predial urbana sob os artigos …… e …… - ver documentos nºs 5, 6, 7 e 8 juntos pela requerente com o requerimento inicial;

C) O prédio da requerente confronta do seu lado sul, na Rua do ........., com o logradouro do prédio dos contra-interessados descrito na Conservatória do Registo Predial de Faro sob o nº….. e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo …… - acordo entre as partes;

D) No desenho do alçado sul do prédio da requerente, por si apresentado junto da Entidade Requerida no âmbito do processo de obras nº07/2011/32, referente ao pedido de licenciamento das obras de alteração por si realizadas - e que aqui se dá por integralmente reproduzido - foi assinalada como existente, ao nível do rés-do-chão, uma janela, conforme se reproduz infra [ver imagem no acórdão recorrido, dada por reproduzida];

E) Em 11.10.2017, os contra-interessados deram entrada, junto da Entidade Requerida, de um pedido de concessão de licença administrativa para a realização de obras de alteração e ampliação de habitação unifamiliar nos prédios supra identificados em B) - ver folhas 1 e seguintes do processo de obras nº325/2017, junto aos autos pela Entidade Requerida;

F) No projecto de arquitectura apresentado pelos contra-interessados junto da Entidade Requerida - e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido - prevê-se a construção de uma garagem no topo norte do edificado dos contra-interessados, que confina com a parede sul do prédio da requerente, sem qualquer afastamento à extrema do mesmo, conforme se reproduz infra [ver imagem no acórdão recorrido, dada por reproduzida];

G) Por despacho de 28.01.2018, proferido pela Vereadora das Infra-estruturas e Urbanismo da Câmara Municipal de Faro, no âmbito do processo de obras 07/2017/325, foi aprovado o projecto de arquitectura apresentado pelos contra-interessados, com referência à realização de obras de alteração e ampliação de um edifício com preservação de fachadas, construção de anexo e piscina - ver processo de obras nº325/2017, junto aos autos pela Entidade Requerida;

H) Por despacho de 29.11.2018, emitido pela Vereadora das Infra-estruturas e Urbanismo da Câmara Municipal de Faro, no âmbito do processo de obras nº07/2017/235, foram deferidos os projectos de especialidades - ver processo de obras nº325/ 2017, junto aos autos pela Entidade Requerida;

I) Por despacho de 21.03.2019, proferido pela Vereadora das Infra-estruturas e Urbanismo da Câmara Municipal de Faro, no âmbito do processo de obras nº07/2017/325, foi deferido o pedido de licenciamento de obras de alteração e ampliação de edifício com preservação de fachadas, construção de anexo e piscina apresentado pelos contra-interessados - ver folhas 298 do processo de obras nº325/2017, junto aos autos pela Entidade Requerida - acto suspendendo;

J) Em 16.04.2019, foi emitido pela Entidade Requerida, em nome dos contra-interessados, no âmbito do processo de obras 07/2017/325, o alvará de licenciamento de obras de alteração e ampliação nº26/2019, que titula a aprovação das obras incidentes sobre os prédios supra identificados em B) - ver documento nº2 junto pela requerente com o seu requerimento inicial;

K) Até à data de entrada em juízo do requerimento inicial da presente providência cautelar, ainda não se tinham iniciado as obras de construção da garagem no prédio dos contra-interessados - acordo entre as partes.

III. De Direito

1. A requerente cautelar – A………… - veio, juntamente com a instauração da acção principal, pedir ao tribunal que decretasse a suspensão de eficácia do despacho de 21.03.2019 [ponto I) do provado] que licenciou obras de alteração e ampliação requeridas pelos contra-interessados, e que - alegadamente - acabam por «emparedar uma janela» pré-existente ao nível do rés-do-chão da sua casa.

Segundo a lei adjectiva aplicável, para ver deferida a sua pretensão cautelar a requerente teria de articular e provar - embora de forma sumária - o preenchimento de três requisitos [artigo 120º do CPTA]:

- Haver fundado receio da constituição de uma situação de facto consumado ou da produção de prejuízos de difícil reparação para os interesses que ela visa assegurar no processo principal - «periculum in mora»;

- Ser provável que a pretensão formulada no seu processo principal - que já intentou - venha a ser julgada procedente - «fumus boni iuris»;

- Mesmo verificados estes dois requisitos, a adopção da providência cautelar é recusada se, ponderados os interesses públicos e privados aqui em presença, «os danos que resultariam da sua concessão se mostrem superiores àqueles que podem resultar da sua recusa, sem que possam ser evitados ou atenuados pela adopção de outras providências».

Estes três requisitos - dois positivos e um negativo - são cumulativos, e, assim, indispensáveis para a concessão da providência cautelar requerida. O que significa que a não verificação de um dos «requisitos positivos» impõe, desde logo, o indeferimento da providência, e que a abordagem do «requisito negativo» apenas se exige no caso de se verificarem os outros dois - «periculum in mora» e «fumus boni iuris».

2. O tribunal de 1ª instância - TAF de Loulé - indeferiu a produção da «prova testemunhal» apresentada pela requerente cautelar - por entender desnecessária, face à documentação existente nos autos - e julgou improcedente a pretensão cautelar de suspensão de eficácia devido à não verificação do indispensável «periculum in mora», único requisito que apreciou.

O tribunal de 2ª instância - TCAS -, para onde apelou a requerente cautelar, deu razão à apelante quanto à sua discordância sobre o julgamento efectuado acerca do «periculum in mora», mas - em substituição - acabou por «manter o julgamento de improcedência da pretensão cautelar» devido à não verificação do indispensável «fumus boni juris».

Novamente discorda a requerente cautelar, e agora, como autora desta «revista», vem apontar nulidade e erro de julgamento ao acórdão recorrido: - nulidade porque, diz, nele não se emitiu pronúncia sobre a alegada necessidade de produção de prova testemunhal [artigo 615º, nº1 alínea d), do CPC, ex vi artigo 140º, nº3, do CPTA]; - erro de julgamento porque, diz, o tribunal de apelação não apreciou correctamente o «fumus boni juris», que defende verificar-se.

3. Na base da omissão de pronúncia, assacada ao acórdão recorrido, está a questão de saber desde quando existe a janela no rés-do-chão da casa da requerente cautelar, que ficará emparedada pela construção da garagem prevista na obra licenciada aos contra-interessados: se desde a construção do respectivo edifício - início do século XX - se depois do ano de 1984.

Mas a verdade é que, como aliás acentuou o acórdão de sustentação emitido pelo TCAS, atenta a provisoriedade e urgência do procedimento cautelar, a apreciação do requisito do bom direito impõe, apenas, um juízo sumário e perfunctório sobre a probabilidade de procedência da acção principal, e, nesta perspectiva, decorre com clareza do «discurso jurídico» do acórdão recorrido que o tribunal de apelação entendeu existirem condições factuais para conhecer em substituição, sem necessidade de lançar mão do poder que lhe é conferido pelo artigo 149º, nº4, do CPTA, nomeadamente porque «a inexistência de qualquer janela em data anterior a 1984» já resultava «do próprio processo de obras, que foi junto aos autos» pelo recorrido, motivo pelo qual a produção de prova sobre a referida questão factual se mostrava irrelevante para a decisão cautelar a proferir.

Deste modo, a omissão de pronúncia não ocorre porque o tratamento formal da questão da necessidade ou não de proceder à produção de prova testemunhal resulta prejudicado em face do entendimento - vertido no acórdão recorrido - de que o tribunal já dispunha de todos os elementos, nomeadamente factuais, para apreciar o requisito do bom direito e decidir a pretensão cautelar. E assim, como é, tudo se reduzirá à apreciação deste alegado «erro de julgamento», pois que já se encontra adquirida nos autos a ocorrência do requisito do «periculum in mora».

4. O acórdão recorrido julgou que não se verificava - no caso - o indispensável requisito do «fumus boni juris» essencialmente com base neste discurso fundamentador:

[…]

«De regresso ao caso dos autos, e como decorre do provado em D) e F), a janela em questão situa-se na empena sul do prédio da recorrente, que constitui o limite daquela propriedade, confinando directamente com a propriedade vizinha. Desta forma deitará directa e imediatamente para o prédio vizinho, em desrespeito e em violação do limite imposto pelo nº1 do artigo 1360º do CC. Preceito que dispõe que o proprietário que no seu prédio levantar edifício ou outra construção não pode abrir nela janelas ou portas que deitem directamente sobre o prédio vizinho sem deixar entre este a cada uma das obras um intervalo de metro e meio.

Do mesmo passo, o disposto no artigo 73º do RGEU: as janelas dos compartimentos das habitações deverão ser sempre dispostas de forma que o seu afastamento de qualquer muro ou fachada fronteiros medido perpendicularmente ao plano da janela e atendendo ao disposto no artigo 75º, não seja inferior a metade da altura desse muro ou fachada acima do nível do pavimento do compartimento, com o mínimo de 3 metros.

Trata-se de restrição imposta pela norma que se aplica aos casos em que os edifícios a construir tenham janelas que deitem para um muro ou fachadas fronteiros, e isto porque de acordo com o espírito deste artigo 73º do RGEU, se pretende evitar a devassa do prédio fronteiro […].

O que equivale por dizer que a abertura da janela em causa, existente no prédio da recorrente, constitui, numa análise perfunctória própria do meio processual em uso, uma violação da legalidade urbanística, insusceptível de legalização como alegado pelo Município de Faro na oposição deduzida em juízo.

Em síntese, apesar de verificado o requisito do «periculum in mora», não se dá por preenchido o requisito do «fumus boni juris».

[…]

Como vemos, o acórdão recorrido - julgando em substituição - apresenta a singularidade de assentar o juízo de provável improcedência da acção principal na ilegalidade urbanística da janela existente no rés-do-chão da requerente cautelar. Ou seja, em vez de apreciar, como é comum, se ocorrem indícios de ilegalidade do acto suspendendo, por violar, como alega a requerente cautelar, os artigos 58º, 60º, e 73º do RGEU, e os artigos 65º e 66º da CRP, considerou não verificado o requisito do «fumus boni juris» com fundamento em que a janela da requerente é, ela própria, ilegal por violação dos artigos 1360º do CC e 73º do RGEU.

Embora não seja de descartar, à partida, a hipótese de vir a ser julgada improcedente a acção principal devido a obstáculos emergentes da ilegalidade da própria situação da autora, emergentes - nomeadamente - da interpretação relacional das normas urbanísticas relativas ao distanciamento entre as edificações, mostra-se algo temerário ultrapassar toda a sua alegação visando evitar o «emparedamento» da sua janela através do juízo sumário sobre a ilegalidade da construção desta. Até porque não está descartada, nos autos, a hipótese de ter sido constituída servidão de vistas, que, a assim ser, cumprirá respeitar.

Importa, pois, atentar aqui, em sede cautelar, naquilo que se mostra nuclear, e que é a situação fáctica, e jurídica, de ter sido licenciada a construção de uma garagem que terá uma parede encostada a uma fachada do prédio de habitação da requerente cautelar, com isso emparedando a janela que tem aberta ao nível do rés-do-chão. E é objectivo, claro, que este resultado do acto de licenciamento está eivado de indícios de ilegalidade, nomeadamente por desrespeitar as ditas normas urbanísticas e constitucionais destinadas a acautelar um padrão mínimo de qualidade ambiental e urbanística. Sendo certo que, neste processo cautelar, o requerido MUNICÍPIO DE FARO não nega a existência da janela, limitando-se a dizer que a sua construção é ilegal e insusceptível de legalização, mas, que conste, ainda nada fez para repor a legalidade ao abrigo das normas urbanísticas.

Por conseguinte, independentemente do aprofundamento desta situação em sede própria, que será a acção principal, na efectivação do juízo perfunctório que nos é pedido nesta sede cautelar impõe-se-nos concluir, em face dos elementos disponíveis, no sentido da probabilidade do julgamento de procedência da pretensão deduzida na acção principal, ou seja, pela verificação do requisito do «fumus boni juris».

5. Como deixamos dito supra, mesmo verificados, como se verificam, os dois requisitos positivos - periculum in mora e fumus boni juris -, a adopção da providência cautelar, no caso o decretamento da pretendida suspensão de eficácia, deve ser recusada se, ponderados os interesses públicos e privados em presença, os danos que resultariam da sua concessão se mostrem superiores àqueles que podem resultar da respectiva recusa, sem que possam ser evitados ou atenuados pela adopção de outras providências.

Ora, a este nível constata-se que não foram alegados nem evidenciados pelos requeridos cautelares quaisquer danos provavelmente resultantes da concessão da pretensão cautelar requerida, sendo verdade que com a sua recusa a requerente vê afectadas condições de salubridade e de qualidade de ambiente na sua habitação. Impõe-se, pois, concluir que os danos que resultariam da recusa suplantam os eventualmente resultantes da concessão.

6. Decorre do exposto, que deverá ser concedido provimento ao recurso de revista, ser revogado o acórdão recorrido na parte em que julga não verificado o «fumus boni juris», e ser julgada procedente a pretensão cautelar.

IV. Decisão

Nestes termos, decidimos conceder provimento à revista, revogar o acórdão recorrido na parte nela impugnada, e deferir a pretensão cautelar.

Custas pelos recorridos.

Lisboa, 7 de Outubro de 2021. - José Augusto Araújo Veloso (relator) - Adriano Fraxenet de Chuquere Gonçalves da Cunha – Maria do Céu Dias Rosa das Neves.