Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0471/14
Data do Acordão:03/22/2017
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:PEDRO DELGADO
Descritores:JUROS INDEMNIZATÓRIOS
ERRO IMPUTÁVEL AOS SERVIÇOS
INCONSTITUCIONALIDADE
Sumário:I - Estando a Administração Tributária sujeita ao princípio da legalidade - arts. 266º, nº 2 da CRP e 55º da LGT – não pode deixar de aplicar uma norma com fundamento em inconstitucionalidade, a menos que o Tribunal Constitucional já tenha declarado a inconstitucionalidade da mesma com força obrigatória geral (artº 281º da CRP) ou se esteja perante a violação de normas constitucionais directamente aplicáveis e vinculativas, como as que se referem a direitos liberdades e garantias (artº 18º, nº 1 da CRP).
II - Não podendo a errada consideração (no apuramento do imposto a pagar) de uma norma posteriormente julgada inconstitucional, ser atribuída a ilegal conduta da Administração Tributária, também não pode legitimar a condenação nos juros indemnizatórios pedidos ao abrigo do artº. 43 da LGT por se não verificar um pressuposto de facto constitutivo de tal direito – o erro imputável aos serviços.
Nº Convencional:JSTA00070088
Nº do Documento:SA2201703220471
Data de Entrada:04/16/2014
Recorrente:FAZENDA PÚBLICA
Recorrido 1:A............, SA
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:REC JURISDICIONAL
Objecto:SENT TAF SINTRA
Decisão:PROVIDO PARCIALMENTE
Área Temática 1:DIR PROC TRIBUT CONT - IMPUGN JUDICIAL.
Legislação Nacional:LGT ART43 ART100 ART55.
L 64/2008 ART5.
CONST76 ART103 ART18 ART281 ART207 ART266.
CPPT ART111.
CCIV66 ART8.
Jurisprudência Nacional:AC STA PROC026233 DE 2001/02/12.; AC STA PROC0319/05 DE 2005/05/11.; AC STA PROC039/07 DE 2007/04/26.; AC STA PROC01007/11 DE 2012/03/14.; AC STA PROC01509/13 DE 2015/11/18.; AC TC 617/12 DE 2012/12/19.; AC STA PROC0481/13 DE 2014/02/26.; AC STA PROC01916/13 DE 2014/03/12.; AC STA PROC0843/14 DE 2015/01/21.; AC STA PROC0703/14 DE 2015/01/21.; AC STA PROC0704/14 DE 2016/05/11.; AC STA PROC01352/14 DE 2016/06/01.
Referência a Doutrina:JORGE LOPES DE SOUSA - OS JUROS NAS RELAÇÕES TRIBUTÁRIAS - PROBLEMAS FUNDAMENTAIS DO DIREITO TRIBUTÁRIO PAG160.
J. C. VIEIRA DE ANDRADE - DIREITO CONSTITUCIONAL (1977) PAG270.
JOÃO CAUPERS - OS DIREITOS FUNDAMENTAIS DOS TRABALHADORES E A CONSTITUIÇÃO (1985) PAG157.
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo

1 – Vem a Fazenda Pública recorrer para este Supremo Tribunal da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra que, julgou procedente a impugnação deduzida pela A………… S.A., melhor identificada nos autos, contra o indeferimento da reclamação graciosa relativa à autoliquidação de IRC do exercício de 2008.

Apresenta as suas alegações de recurso, formulando as seguintes conclusões:

«I) A sentença ora recorrida determinou, na sua parte decisória, a anulação da liquidação colocada em crise. Tal não só vai para além do pedido formulado pela impugnante como determinaria a devolução por parte desta dos montantes reembolsados pela AT na sequência da autoliquidação efectuada pela Impugnante.
II) Afigura-se-nos assim que deverá nesta parte ser rectificada a sentença, de molde a determinar a correcção da autoliquidação nos termos peticionados, e não a anulação da liquidação na sua totalidade, ou seja determinando o reembolso do valor de € 135.477,33.
III) No caso concreto, contudo não se verificam, as condições de que depende o pagamento de juros indemnizatórios por parte da Administração Tributária, previstas no art. 43° da LGT.
IV) Como resulta do n.º 2 do artigo 43° da LGT, se o erro praticado pelo contribuinte tiver na sua base orientações genéricas da administração tributária, devidamente publicadas, haverá lugar a juros indemnizatórios a favor daquele, por se considerar que a responsabilidade na entrega de imposto em excesso cabe à AT por ter emitido orientações sem correspondência com a legislação vigente
V) No caso dos presentes autos, em que se está perante um erro na autoliquidação praticado pelo próprio contribuinte, erro esse derivado exclusivamente da aplicação de uma norma que se veio posteriormente a considerar inconstitucional, e em que não está em causa o cumprimento de quaisquer instruções administrativas genéricas da AT, nem esta teve qualquer intervenção no âmbito dos seus poderes de autoridade no apuramento do Imposto a entregar pelo contribuinte, não tendo inclusivamente na autoliquidação resultado imposto a pagar por parte do Impugnante, não se vislumbra como se pode integrar a pretensão indemnizatória formulada pelo contribuinte no âmbito do disposto no artigo 43º da LGT.
VI) Até porque, nos termos do artigo 111º n.º 2 b) do CPPT, a administração fiscal, na qualidade de órgão da Administração Pública, não tem competência para decidir da não aplicação de normas relativamente às quais sejam suscitadas dúvidas de constitucionalidade.
VII) Com efeito, nos termos do artigo 266°, n.º 2 da CRP, os órgãos e agentes administrativos estão subordinados à Constituição e à lei, diferentemente do que sucede com os Tribunais que, nos termos do disposto no artigo 266°, n.º 2 da CRP, estão impedidos de aplicar normas inconstitucionais sendo-lhes atribuída a competência para a fiscalização difusa e concreta da conformidade constitucional.
VIII) A sentença recorrida, ao assim não entender, apresenta-se ilegal por desconformidade com os preceitos acima assinalados, não merecendo por isso ser confirmada.»

2 – A entidade recorrida, A…………, S.A. vem apresentar as suas contra alegações com o seguinte quadro conclusivo:
«A. O segmento decisório da sentença do Tribunal a quo não necessita de ser retificada, uma vez que resulta com mediana clareza do mesmo que o ato tributário impugnado foi anulado, não na sua totalidade, mas na medida em que foi colocado em crise,
B. Com efeito, compulsado o teor do segmento fáctico-jurídico da sentença, é clarividente que o thema decidendum se encontra cingido à sujeição dos encargos dedutíveis declarados pela ora Recorrida a uma tributação autónoma superior à devida e legalmente admissível, pelo que resulta também claro que o comando decisório se cinge àquela parte.
C. Quanto aos juros indemnizatórios, nem a circunstância de estar em causa nos autos um ato de autoliquidação constitui um óbice ao pagamento daqueles juros ao abrigo do preceituado no artigo 43.º da LGT, nem tão-pouco poderá sustentar-se a inexistência de erro imputável aos serviços com fundamento na adstrição da Administração Tributária ao cumprimento da lei e no facto de estar na base da ilegalidade do ato de autoliquidação impugnado a inconstitucionalidade material de uma norma.
D. A este respeito pronunciou-se já por diversas vezes este Supremo Tribunal no sentido de o dever de obediência da Administração Tributária à lei compreender todas as fontes normativas (de quanto resulta um dever de obediência, prima facie, à Constituição da República Portuguesa, enquanto Lei Fundamental do Estado) e de o direito do contribuinte a juros indemnizatórios, atenta a função reparadora dos mesmos em face de uma atuação ilegal da Administração Tributária, estar dependente apenas da existência de um comportamento ilegal por parte da Administração Tributária de quanto resultem prejuízos para o contribuinte, como sucedeu no caso sub judice.»

3 O Ministério Público emitiu parecer com o seguinte conteúdo:
«1. Questões a apreciar:
- se é de retificar a sentença de modo a se determinar a anulação da liquidação sem ser na totalidade, mas apenas em termos de ocorrer o reembolso de € 135.477,33;
- se não são devidos juros indemnizatórios, nos termos previstos nos artigos 43.º da L.G.T..
2. Emitindo parecer:
Os pedidos formulados na impugnação apresentada foram referentes à anulação do ato de indeferimento impugnado e de correção da autoliquidação referente ao exercício de I.R.C. de 2008, bem como ainda de devolução da quantia acima referida.
Pelo decidido foi julgada procedente a impugnação e anulada a liquidação “posta em crise”.
Com tal fórmula resulta claramente ter sido deferida a anulação da liquidação tal como a mesma tinha sido impugnada.
Da mesma resulta ainda a correção da autoliquidação referente ao exercício de I.R.C. de 2008.
Por outro lado, o decidido assenta no previsto no art. 43.º n.º 1 da L.G.T., em que a atribuição de juros indemnizatórios resulta de ter havido “erro imputável aos serviços”, reconhecido em reclamação graciosa.
Opina a doutrina que esses serviços são de considerar globalmente e que a Administração Tributária tem o dever genérico de atuar em conformidade com a lei e deve obediência ao princípio da legalidade, conforme previsto nos artigos 266.º n.º 1 da C.R.P. e 55.º da L.G.T.- neste sentido, Freitas do Amaral em Direito Administrativo, vol. III, p. 503.
Por outro lado, no sentido de que a declaração de inconstitucionalidade implica o pagamento de juros indemnizatórios na devolução do imposto que seja devido, conforme se decidiu no acórdão do S.T.A. de 9/10/02, proferido no proc. 0789/02, acessível em www.dgsi.pt
Certo é que a recorrida apresentou reclamação graciosa a 15-2-2011, em que se pediu ainda a restituição da dita quantia de imposto com fundamento na inconstitucionalidade da norma em que a autoliquidação se baseava.
E se esta veio a ser indeferida a 29-7-2011, em face da declaração de inconstitucionalidade proferida, com força obrigatória geral, pelo Acórdão n.º 617/2012, do Plenário do Tribunal Constitucional de 19-12-2012, é de reconhecer direito à atribuição de juros indemnizatórios, tal como foi peticionado.
Com efeito, o contribuinte atuou, primeiramente incluindo na liquidação os valores que serviram para o apuramento do dito imposto e depois apresentando a dita reclamação graciosa, em que pediu a restituição do imposto, pelo que parece ter agido sempre segundo a boa fé.
No sentido de que ocorre então erro dos serviços, nos termos do art. 43.º nº 1 da L.G.T., se pronuncia ainda Jorge Lopes de Sousa em Juros nas Relações Tributárias, em Problemas Fundamentais do Direito Tributário, Vislis, 1999, p. 163.
3. Concluindo:
Parece que o recurso é de improceder, sendo de manter o decidido.»

4. Colhidos os vistos legais, cabe decidir.

5. No Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra foram dados como provados e com interesse para a decisão os seguintes factos:
A) Em 50.06.2009, a Impugnante preencheu o Campo 365 do Quadro da sua declaração periódica de rendimentos (declaração de substituição) referente ao exercício de 2008 com o valor de € 299.474,75, o qual inclui o montante de € 295.689,45, correspondente à tributação autónoma aplicada sobre os encargos a que se referem os n.ºs e 4 do artigo 81º do CIRC. (Doc. nº 1 junto à p.i.)
B) No dia 15.02.2011, a Impugnante deduziu reclamação graciosa da autoliquidação a que alude a al A) do probatório, requerendo a anulação parcial da mesma, nos seguintes termos e fundamentos: “(...) determinando em consequência a correcção da autoliquidação referente ao exercício de 2008 e o reembolso do valor que resulta da diferença de aplicação, aos encargos dedutíveis relativos a despesas de representação e aos encargos dedutíveis relativos a despesas de representação e aos relacionados com viaturas ligeiras de passageiros ou mistas, motos ou motociclos, incorridos entre 1 de Janeiro e 30 de Novembro de 2008, das antigas taxas de tributação autónoma em substituição das novas taxas de tributação autónoma; o qual ascende a € 135.477,33 (cento trinta cinco mil quatrocentos e setenta sete euros e trinta três cêntimos).” (Doc. n.º 2 junto à p.i.)
C) No dia 29.07.2011, por despacho da Directora de Finanças Adjunta da Direcção de Finanças de Lisboa foi a reclamação graciosa a que alude a al. B) do probatório indeferida. (Doc. n.º 4 junto à p.i.)
D) Em 03.08.2011, a Impugnante foi notificada do despacho a que alude a al. C) do probatório. (Doc. fls. 97/99 do processo de reclamação graciosa apenso)
E) Em 01.09.2011, deu entrada neste tribunal a petição inicial que originou os presentes autos. (cfr. carimbo aposto a fls. 2 dos autos)

6. Do objecto do recurso
Da análise do segmento decisório da sentença e dos fundamentos invocados pela Fazenda Pública para pedir a sua alteração, podemos concluir que que são duas as questões objecto do presente recurso:
a) Saber se padece de erro de julgamento, por exceder o pedido formulado, a sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra que julgou procedente a impugnação deduzida pela A………… SA e, alegadamente, determinou a anulação da liquidação sindicada na sua totalidade;
b) Apurar se a referida sentença incorreu em erro de julgamento, por errada interpretação do disposto no artigo 43º, nºs 1 e 2 da LGT, ao condenar a administração tributária no pagamento de juros indemnizatórios, tendo em conta que a anulação da liquidação se fundou na inconstitucionalidade do artigo 5º, nº 1, da Lei nº 64/2008, de 5 de Dezembro.

O Tribunal Tributário de Sintra, perante a questão que lhe era proposta e que se prendia com a legalidade da autoliquidação de IRC, referente ao exercício de 2008, fundada na inconstitucionalidade do artigo 5º, nº 1, da Lei nº 64/2008, de 5 de Dezembro, por violação do artigo 103º, nº 3, da CRP, anulou a liquidação colocada em crise, com fundamento na invocada inconstitucionalidade, acolhendo a jurisprudência do Tribunal Constitucional exarada no acórdão nº 617/12, de 19.12.2012, e, consequentemente, condenou a administração tributária a pagar à impugnante juros indemnizatórios nos termos artigo 43º da LGT.

Não conformada vem a Fazenda Pública interpor o presente recurso.
A base da sua argumentação assenta nas seguintes proposições:
- deverá ser rectificada a sentença, de molde a determinar a correcção da autoliquidação nos termos peticionados, e não a anulação da liquidação na sua totalidade, ou seja determinando o reembolso do valor de € 135.477,33
- No caso dos presentes autos, em que se está perante um erro na autoliquidação praticado pelo próprio contribuinte, erro esse derivado exclusivamente da aplicação de uma norma que se veio posteriormente a considerar inconstitucional, e em que não está em causa o cumprimento de quaisquer instruções administrativas genéricas da AT, nem esta teve qualquer intervenção no âmbito dos seus poderes de autoridade no apuramento do Imposto a entregar pelo contribuinte, não tendo inclusivamente na autoliquidação resultado imposto a pagar por parte do Impugnante, não se vislumbra como se pode integrar a pretensão indemnizatória formulada pelo contribuinte no âmbito do disposto no artigo 43º da LGT.
- Até porque, nos termos do artigo 111º n.º 2 b) do CPPT, a administração fiscal, na qualidade de órgão da Administração Pública, não tem competência para decidir da não aplicação de normas relativamente às quais sejam suscitadas dúvidas de constitucionalidade.

6.1 Do pedido de rectificação da decisão recorrida
Alega a Fazenda Pública que a sentença ora recorrida determinou, na sua parte decisória, a anulação da liquidação colocada em crise.
E que tal não só vai para além do pedido formulado pela impugnante como determinaria a devolução, por parte desta, dos montantes reembolsados pela AT na sequência da autoliquidação efectuada pela Impugnante.
Entendemos, porém, que, neste segmento do recurso não assiste razão à Fazenda Pública.
Na verdade resulta da petição inicial que a recorrida pugnava pela correcção da autoliquidação referente ao exercício de 2008 e, consequentemente, pela devolução do montante de 135.477,33, correspondente a tributação autónoma indevidamente liquidada
Ora da sentença recorrida decorre, com mediana clareza, que apenas um segmento da liquidação em causa é atingido pela decisão anulatória — o referente à tributação autónoma incidente sobre determinados encargos, no montante de € 135.477,33.
Só este segmento é colocado em crise na impugnação, resultando claro que o thema decidendum se encontra cingido à sujeição dos encargos dedutíveis declarados pela Recorrida a uma tributação autónoma superior à devida e legalmente admissível.
E resulta também claro que só a ele se podia referir e refere a sentença recorrida quando determina a anulação da “liquidação colocada em crise”.
Assim sendo, não se vislumbrando qualquer excesso que determine a rectificação da sentença, não merece, nesta parte, provimento a pretensão da Fazenda Pública.

6.2 Da condenação em juros indemnizatórios
A sentença recorrida, com base na singela argumentação de que o erro imputável aos serviços envolve o erro de facto ou o erro de direito, julgou procedente o pedido de condenação em juros indemnizatórios.
Mas a Fazenda Pública contrapõe que o erro na autoliquidação invocado pelo contribuinte deriva exclusivamente da aplicação de uma norma que se veio posteriormente a considerar inconstitucional não podendo integrar a pretensão indemnizatória formulada no âmbito do disposto no artigo 43º da LGT.
Vejamos.
De harmonia com o disposto no nº 1 do artº 43.º da LGT, «são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido».
Por sua vez dispõe o artº 100º da LGT (Redacção dada pela Lei n.º 64-B/2011, de 30 de Dezembro) que a administração tributária está obrigada, em caso de procedência total ou parcial de reclamações ou recursos administrativos, ou de processo judicial a favor do sujeito passivo, à imediata e plena reconstituição da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios, nos termos e condições previstos na lei.
A atribuição de uma indemnização ao contribuinte, quando se detecta um vício respeitante à relação jurídica tributária, radica no facto de esse vício implicar a lesão de uma situação jurídica subjectiva, consubstanciada na imposição ao contribuinte da efectivação de uma prestação patrimonial contrária ao direito.
Por isso, justifica-se que, nestas situações, não havendo dúvidas em que a exigência patrimonial feita ao contribuinte implica para ele um prejuízo não admitido pelas normas fiscais substantivas, se dê como assente a sua existência, e se presuma o montante desse prejuízo, fazendo-se a sua avaliação antecipada através da fixação de juros indemnizatórios a seu favor (Neste sentido, Lopes de Sousa, Os Juros nas Relações Tributárias, in Problemas Fundamentais do Direito Tributário, Vislis Editora, pag. 160.).
O direito aos juros indemnizatórios previsto no art. 43.º da LGT depende assim da existência de um erro num acto de liquidação de um tributo, que esse erro seja imputável aos serviços e que do mesmo tenha resultado (à luz de um nexo de causalidade) o pagamento de imposto indevido.
Sobre o denominado “erro imputável aos serviços” tem a jurisprudência desta secção uniforme e reiteradamente afirmado que o respectivo conceito compreende não só o lapso, o erro material ou o erro de facto, como também o erro de direito, e que essa imputabilidade é independente da demonstração da culpa dos funcionários envolvidos na liquidação afectada pelo erro (Vide, entre outros, os seguintes Acórdãos da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo: de 12.02.2001, recurso nº 26.233, de 11.05.2005, recurso 0319/05, de 26.04.2007, recurso 39/07, de 14.03.2012, recurso 01007/11 e de 18.11.2015, recurso 1509/13, todos in www.dgsi.pt.).

No caso vertente, resulta dos autos que a recorrente entregou em 30/6/2009 a declaração modelo 22 de IRC relativa ao exercício de 2008, nela fazendo constar no Campo 365 do Quadro da sua declaração periódica de rendimentos (declaração de substituição) referente ao exercício de 2008 com o valor de € 299.474,75, o qual inclui o montante de € 295.689,45, correspondente à tributação autónoma operada, nos termos do artº 5º, nº 1 da Lei 64/2008, mediante a aplicação das novas taxas de tributação autónoma a todos os encargos suportados desde 1 de janeiro a 31 de Dezembro de 2008.
Mais se constata (cfr. als. B e c do Probatório) que em 15/2/2011 a recorrente deduziu reclamação graciosa contra a dita autoliquidação, a qual veio a ser indeferida por despacho de 29/7/2011, por se ter entendido ser de aplicar aquele art. 5º, n.º 1 da Lei n.º 64/2008.
Resulta também dos autos que a autoliquidação não foi determinada pelo facto de a recorrente ter seguido quaisquer orientações genéricas da AT, devidamente publicadas, nos termos do disposto no art. 43º, n.º 2 da LGT, antes se tendo fundado na aplicação da Lei então vigente- artº 5º, nº 1 da Lei 64/2008.
Tendo a recorrida impugnado o acto de indeferimento da reclamação graciosa do acto de autoliquidação referido, o Tribunal Tributário de Sintra julgou procedente a impugnação e anulou a liquidação colocada em crise com fundamento na inconstitucionalidade do referido artigo 5º, nº 1, da Lei nº 64/2008, de 5 de Dezembro, por violação do artigo 103º, nº 3, da CRP, acolhendo a jurisprudência do Tribunal Constitucional exarada no acórdão nº 617/12, de 19.12.2012, e, subsequentemente, condenou a administração tributária a pagar à impugnante juros indemnizatórios nos termos artigo 43º da LGT.

Ou seja a anulação da liquidação ocorreu por razões inerentes à própria relação jurídica tributária: a autoliquidação ancorou-se em norma legal que veio a ser declarada inconstitucional (por violação do princípio da proibição da retroactividade fiscal – art. 103º, n.º 3 da CRP).
E a questão suscitada pela recorrente é a de saber se esse “erro sobre os pressupostos de direito” (se a errada consideração, no apuramento do imposto a pagar, de norma posteriormente julgada inconstitucional) pode ou não ser imputável aos serviços da Administração Tributária, argumentando a Fazenda Pública que a administração fiscal, na qualidade de órgão da Administração Pública, não tem competência para decidir da não aplicação de normas relativamente às quais sejam suscitadas dúvidas de constitucionalidade.
Este Supremo Tribunal Administrativo já se pronunciou por diversas vezes sobre questão semelhante à ora suscitada e sempre no sentido de que o para efeitos de pagamento de juros indemnizatórios ao contribuinte, não pode ser imputado aos serviços da AT erro que, por si, tenha determinado o pagamento de dívida tributária em montante superior ao legalmente devido, quando não estava na sua disponibilidade decidir de modo diferente daquele que decidiu- cfr., para além do Acórdão 1529/14, citado pelo Exmº Procurador-Geral Adjunto, os acórdãos de 26/2/2014, rec. nº 0481/13; de 12/3/2014, rec. nº 01916/13; de 21/1/2015, rec. nº 0843/14; de 21/1/2015, rec. nº 0703/14, de 11.05.2016, recurso 704/14 e de 01.06.2016, recurso 1352/14, todos in www.dgsi.pt.

Com efeito, como se deixou exarado no supra citado Acórdão 481/13, em que o presente relator teve intervenção como adjunto, «…a menos que esteja em causa o desrespeito por normas constitucionais directamente aplicáveis e vinculativas, como as que se referem a direitos, liberdades e garantias (cfr. art. 18.º, n.º 1, da CRP, a AT não pode recusar-se a aplicar a norma com fundamento em inconstitucionalidade (Com interesse sobre a questão, vejam-se os pareceres do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República referidos na Colectânea dos Pareceres da Procuradoria-Geral da República, volume V, pontos 10, 3, 3.2 – respectivamente, com as epígrafes «Fiscalização da constitucionalidade», «Fiscalização sucessiva» e «(In)aplicação de norma inconstitucional (poderes e deveres da Administração Pública)» –, cuja doutrina seguimos.).
É que a Administração em geral está sujeita ao princípio da legalidade, consagrado constitucionalmente e a AT está-lo também por força do disposto no art. 55.º da LGT.
A nosso ver, a AT deverá aguardar a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral, a emitir pelo Tribunal Constitucional (TC), nos termos do art. 281.º da CRP.
É que, como diz VIEIRA DE ANDRADE, «Este conflito [entre a constitucionalidade e o princípio da legalidade] não pode resolver-se através da prevalência automática do direito constitucional sobre o direito legal. Não é disso que se trata, porque o que está em causa é não a constitucionalidade da lei, mas o juízo que sobre essa constitucionalidade possam fazer os órgãos administrativos. Por um lado, a Administração não é um órgão de fiscalização da constitucionalidade; por outro lado, a submissão da Administração à lei não visa apenas a protecção dos direitos dos particulares, mas também a defesa e prossecução de interesses públicos […]. A concessão ao poder administrativo de ilimitados poderes para controlo da inconstitucionalidade das leis a aplicar levaria a uma anarquia administrativa, inverteria a relação Lei-Administração e atentaria frontalmente contra o princípio da divisão dos poderes, tal como está consagrado na nossa Constituição» (Direito Constitucional, Almedina, 1977, pág. 270.)
No mesmo sentido, JOÃO CAUPERS afirma que «a Administração não tem, em princípio, competência para decidir a não aplicação de normas cuja constitucionalidade lhe ofereça dúvidas, contrariamente aos tribunais, a quem incumbe a fiscalização difusa e concreta da conformidade constitucional, demonstram-no as diferenças entre os artigos 207º [hoje, 204.º] e 266º, nº 2, da Constituição. Enquanto o primeiro impede os tribunais de aplicar normas inconstitucionais, o segundo estipula a subordinação dos órgãos e agentes administrativos à Constituição e à lei.
Afigura-se claro que a diferença essencial entre os dois preceitos decorre exactamente da circunstância de se não ter pretendido cometer à Administração a tarefa da fiscalização da constitucionalidade das leis. O desempenho de tal função, por parte daquela tem de ser visto como excepcional» (Os Direitos Fundamentais dos Trabalhadores e a Constituição, Almedina, 1985, pág. 157.).
Concluímos, assim, que no Direito Constitucional Português não existe a possibilidade de a Administração se recusar a obedecer a uma norma que considera inconstitucional, substituindo-se aos órgãos de fiscalização da constitucionalidade, a menos que esteja em causa a violação de direitos, liberdades e garantias constitucionalmente consagrados, o que não é manifestamente o caso quando está em causa a aplicação de norma eventualmente violadora do princípio da não retroactividade da lei fiscal…» (fim de citação).
Concordamos com esta jurisprudência e doutrina, que tem plena aplicação no caso vertente e, com base na respectiva fundamentação subjacente, concluímos, atendendo também ao disposto no nº 3 do art. 8º do Código Civil, que a Administração Tributária não poderia ter decidido de modo diferente a reclamação graciosa que a recorrente lhe dirigiu, quer porque não lhe assiste o direito a recusar a aplicação de norma que no seu entender poderia ser inconstitucional, porque não lhe é permitido formular um juízo sobre essa constitucionalidade.
Assim, se o contribuinte no cumprimento duma norma legal procede a uma liquidação que a lei lhe impõe e essa norma vem posteriormente a ser declarada inconstitucional todos os efeitos decorrentes de uma aplicação viciada apesar de serem obrigatoriamente anulados, o certo é que tal a anulação não decorre de qualquer conduta da Administração Tributária nem de erro por si praticado que se reflectiria na esfera da Administração Tributária.
E não podendo a errada consideração (no apuramento do imposto a pagar) de uma norma posteriormente julgada inconstitucional, ser atribuída a ilegal conduta da Administração Tributária, também não pode legitimar a condenação nos juros indemnizatórios pedidos ao abrigo do artº. 43 da LGT por se não verificar um pressuposto de facto constitutivo de tal direito – o erro imputável aos serviços.
O recurso merece, pois, provimento pelo que haverá que revogar, nesta parte, a decisão recorrida.

7. Decisão
Termos em que acordam os Juízes da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo em conceder parcial provimento ao recurso e revogar a sentença recorrida na parte em que condenou a Administração Tributária no pagamento de juros indemnizatórios.

Custas pela recorrida que contra-alegou neste Supremo Tribunal Administrativo.

Lisboa, 22 de Março de 2017. – Pedro Delgado (relator) – Dulce Neto – Isabel Marques da Silva.