Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0649/12
Data do Acordão:11/28/2012
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:FRANCISCO ROTHES
Descritores:IRS
BENEFÍCIO DE PERDÃO FISCAL
DIREITOS DE AUTOR
Sumário:I – Nos termos do disposto nos n.ºs 1 e 2 do art. 56.º, n.ºs 1 e 2 do EBF, na redacção anterior à republicação de que este diploma foi objecto pelo Decreto-Lei n.º 108/2008, de 26 de Junho (hoje, correspondem-lhe os mesmos números do art. 58.º), os rendimentos provenientes das obras literárias beneficiam da redução de 50% para efeito de englobamento e incidência do IRS.
II – A finalidade daquele benefício fiscal é a de incentivar a criação artística ou literária, por forma a melhorar o nível de desenvolvimento cultural do país, finalidade esta de relevo e de interesse público e que apenas pode ser realizado pelas obras reconhecidas como integrando a qualificação de obras literárias.
III – Em face das consabidas dificuldades de distinção entre obra de carácter literário e sem esse carácter, deve privilegiar-se um critério objectivo: serão consideradas como obras literárias as que, prima facie, se apresentem como tal (criadas e apreciadas como arte, como actividade e produção estética), privilegiando-se, pois, o valor facial da obra; admitimos, no entanto, que em casos contados, essa distinção não possa prescindir duma avaliação do mérito da obra, sob pena de sermos conduzidos a resultados indesejados e indesejáveis.
IV – Em regra, porque não são criadas nem apreciadas como arte, não podem ter-se como obras literárias as crónicas publicadas num jornal, pelo que os rendimentos auferidos pela sua autoria não podem beneficiar da não sujeição parcial dita em I.
Nº Convencional:JSTA00067971
Nº do Documento:SA2201211280649
Data de Entrada:06/11/2012
Recorrente:FAZENDA PÚBLICA
Recorrido 1:A....
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:REC JURISDICIONAL
Objecto:SENT TAF LISBOA
Decisão:NEGA PROVIMENTO
Área Temática 1:DIR FISC - IRS
Legislação Nacional:EBFISC01 ART56 N1 N2.
Aditamento:
Texto Integral: 1. RELATÓRIO

1.1 A……. (adiante Contribuinte, Impugnante ou Recorrido) apresentou impugnação judicial na sequência do indeferimento da reclamação graciosa que deduziu contra a liquidação adicional de Imposto Sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS) do ano de 2004, que lhe foi efectuada na sequência da correcção da matéria tributável por a Administração tributária (AT) ter considerado que o Contribuinte excluiu indevidamente do englobamento 50% dos rendimentos que lhe advieram da redacção de crónicas publicadas em jornais, que considerou enquadrarem-se na previsão do art. 56.º, n.º 1, do Estatuto dos Benefícios Fiscais (EBF), na redacção em vigor à data (Actualmente, e após a republicação do EBP pelo Decreto-Lei n.º 108/2008, de 26 de Junho, corresponde-lhe o art. 58.º.).
Pediu ao Juiz do Tribunal Tributário de Lisboa a anulação daquele acto por considerar que os seus referidos escritos são subsumíveis ao conceito de obra literária constante naquele preceito legal e, como tal, beneficiam do desagravamento (não sujeição parcial) de IRS nele previsto.

1.2 A Juíza do Tribunal Tributário de Lisboa julgou a impugnação judicial procedente. Para tanto, em resumo, considerou que aquelas crónicas integram o conceito de obra literária, pelo que os rendimentos auferidos pelo Contribuinte com a redacção das mesmas se enquadram na previsão do art. 56.º do EBP.

1.3 A Fazenda Pública recorre da sentença para o Supremo Tribunal Administrativo e o recurso foi admitido, com subida imediata, nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.

1.4 A Recorrente apresentou as alegações, que resumiu em conclusões do seguinte teor:

«4. Conclusões

4.1 – O presente recurso, visa reagir contra a decisão proferida pelo Tribunal “a quo”, julgando procedente a impugnação deduzida, e em consequência, condenando a Fazenda Publica no pedido.

4.2 – Após determinar que a questão a decidir seria a de apurar se os rendimentos auferidos ano de 2004, pela redacção de crónicas nos jornais “……..” e “…….”, são susceptíveis de enquadramentos no artigo 58.º, n.º 1 do EBF (à data artigo 56.º).

4.3 – Compulsando os autos, constata-se, contrariamente, ao entendimento do Tribunal “a quo”, que a posição da AT teve por base fundamentos definidos no ordenamento legal, nomeadamente no Código dos Direitos de Autor e de Direitos Conexos e no Estatuto dos Benefícios Fiscais (sublinhando o seu enquadramento histórico), por onde se constata que as crónicas jornalísticas, na senda do defendido no douto Parecer do Ministério Publico, não se enquadram na definição de “obra literária”, demonstrando-se assim que os rendimentos auferidos pelo sujeito passivo, no âmbito da prestação de serviços jornalísticos como colaborador de diversos jornais, não podem beneficiar do desagravamento fiscal previsto no artigo 58.º do EBF.

4.4 – Do exposto, resulta que não andou bem o Tribunal neste âmbito, ao proferir a sua decisão baseada no erro de interpretação do conceito de “carácter literário”, violando o direito aplicável, no caso errada interpretação do art. 58.º, n.º 2 do Estatuto dos Benefícios Fiscais».

1.5 O Impugnante não contra alegou.

1.6 Recebidos neste Supremo Tribunal Administrativo, os autos foram com vista ao Ministério Público e o Procurador-Geral Adjunto proferiu parecer no sentido de que seja concedido provimento ao recurso e revogada a sentença recorrida, com a seguinte fundamentação (Por razões de ordem prática, as notas de rodapé serão transcritas no próprio texto entre parêntesis rectos.):

«A questão controvertida consiste em saber se as crónicas jornalísticas que estiveram na génese dos rendimentos sujeitos a tributação têm ou não carácter literário para os efeitos do estatuído no artigo 58.º do EBF.
Nos termos do estatuído no artigo 42.º da CRP é livre a criação intelectual sendo que essa liberdade compreende o direito à produção da obra literária, incluindo a protecção legal dos direitos de autor.
Nos termos do disposto no artigo 1.º do CDADC consideram-se obras as criações intelectuais no domínio literário, por qualquer modo exteriorizadas, que como tais são protegidas nos termos do CDADC, incluindo-se nessa protecção os direitos dos respectivos autores, sendo certo que, para efeitos do código, a obra é independente da sua divulgação, publicação, utilização ou exploração.
De acordo com o disposto no artigo 2.º do mesmo código as criações intelectuais do domínio literário compreendem, nomeadamente, livros, folhetos, revistas e outros escritos.
São excluídos de protecção, nos termos do artigo 7.º do CDADC, as notícias do dia e os relatos de acontecimentos diversos com carácter de simples informações de qualquer modo divulgados.
Por força do estatuído no artigo 174.º do CDDC o direito de autor sobre trabalho jornalístico produzido em cumprimento de um contrato de trabalho que comporte identificação de autoria, por assinatura ou outro meio, pertence ao autor.
“Na literatura e no jornalismo, uma crónica (português europeu) ou crônica (português brasileiro) é uma narração curta, produzida essencialmente para ser veiculada na imprensa, seja nas páginas de uma revista, seja nas páginas de um jornal. Possui assim uma finalidade utilitária e predeterminada; agradar aos leitores dentro de um espaço sempre igual e com a mesma localização, criando-se assim, no transcurso dos dias ou das semanas, uma familiaridade entre o escritor e aqueles que o lêem.
A palavra crónica deriva do Latim chronica que significava, no início do cristianismo, o relato de acontecimentos em sua ordem temporal (cronológica). Era, portanto, um registro cronológico de eventos.
No século XIX, como desenvolvimento da imprensa, a crónica passou a fazer parte dos jornais. Ela apareceu pela primeira vez em 1799 no Journal des Débats, publicado em Paris.
A crónica é, primordialmente, um texto escrito para ser publicado no jornal. Assim o facto de ser publicada no jornal já lhe determina vida curta, pois à crónica de hoje seguem-se outras nas próximas edições.
Há semelhanças entre a crónica e o texto exclusivamente informativo. Assim como o repórter, o cronista se inspira nos acontecimentos diários, que constituem a base da crónica. Entretanto, há elementos que distinguem um texto do outro. Após acercar-se desses acontecimentos diários, o cronista dá-lhes um toque próprio, incluindo em seu texto elementos como ficção, fantasia e criticismo elementos que o texto essencialmente informativo não contém.
Com base nisso, pode-se dizer que a crónica situa-se entre o jornalismo e a literatura, e o cronista pode ser considerado o poeta dos acontecimentos do dia-a-dia.
A crónica, na maioria dos casos, é um texto curto e narrado em primeira pessoa, ou seja, o próprio escritor está «dialogando» com o leitor. Isso faz com que a crónica apresente uma visão totalmente pessoal de um determinado assunto: a visão do cronista. Ao desenvolver seu estilo e ao seleccionar as palavras que utiliza em seu texto, o cronista está transmitindo ao leitor a sua visão de mundo. Ele está, na verdade, expondo a sua forma pessoal de compreender os acontecimentos que o cercam” 1.
[1http://wikipedia.org/wikiCr%C3%B4nica (literatura e jornalismo)].
Na definição de António José Saraiva e Óscar Lopes 2 [2 História da Literatura Portuguesa, pág. 7] “Uma obra pode considerar-se literária na medida em que, além do pensamento lógico, discursivo, abstractamente conceptual, adequado a problemas científicos, filosóficos e, em geral, doutrinários, estimular também os impulsos mais afectivos e menos conscientes, os hábitos ou valores enraizados através do aprendizado, decisivamente formativo, da língua materna e de uma dada vida social”.
Como se referiu no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 1057/96, a finalidade do benefício em questão é “incentivar a criação artística ou literária, por forma a melhorar o nível de desenvolvimento cultural do país, finalidade esta de relevo e de interesse reconhecidamente público. Este objectivo, apenas as obras reconhecidas como integrando a qualificação de obras literárias, o podem realizar, pelo que se justifica que só os rendimentos resultantes destas obras possam beneficiar da redução de 50% para efeito de englobamento e incidência de IRS”.
“As obras não literárias – desde logo, todas as que estão excluídas da protecção legal do Código do Direito de Autor, como também as obras que não tenham prima facie a categoria de literárias – não podem realizar a finalidade pretendida com o benefício fiscal em causa pelo que o diferente tratamento fiscal tem uma justificação racional bastante”.
Face a tudo quanto vem referido, nomeadamente, a finalidade do benefício fiscal em questão e à noção de obra literária que se recorta da definição transcrita, temos que as crónicas que o recorrido, colectado, também, na actividade de «Criação Artística e Literária», produziu para o “…….” e “…….” e que estão na génese dos rendimentos não são obras com carácter literário, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 58.º/2 (actual) do EBF.
De facto, embora não estejamos perante notícias do dia ou relatos de acontecimentos diversos com carácter de simples informações, excluídos de protecção pelo artigo 7.º do CDADC, pois que o recorrido, apropriando-se dos acontecimentos dá-lhes um toque pessoal, incluindo nos seus textos elementos como ficção, fantasia e criticismo e, portanto, criatividade, o certo é que as crónicas em causa não têm prima facie a categoria de literárias, situando-se antes entre o jornalismo e a literatura.
Como se refere na informação de fls. 36 do apenso PA, por obra com carácter literário deve entender-se, para efeitos do disposto no artigo 58.º/2 do EBF, o texto escrito pertencente à literatura, enquanto actividade e produção estética, ou seja, a narrativa que foi concebida e produzida como arte – e como arte é apreciada – não servindo outra finalidade, pelo menos de modo dominante, como será o caso do romance, poesia, peça de teatro, etc. ...
Assim sendo, como nos parece ser, a sentença recorrida merece censura.
Termos em que deve ser dar-se provimento ao presente recurso jurisdicional, revogar-se a sentença recorrida e julgar-se improcedente a impugnação judicial, com consequente manutenção na ordem jurídica da liquidação sindicada».

1.7 A questão que cumpre apreciar e decidir é a de saber se a sentença recorrida incorreu em erro de julgamento quando considerou que os rendimentos auferidos pelo Contribuinte em 2004 pela redacção de crónicas publicadas em jornais podem beneficiar do desagravamento à data previsto no art. 56.º do EBF, o que, como procuraremos demonstrar, passa por indagar se pode reconhecer-se a essas crónicas o carácter de obras literárias.


* * *

2. FUNDAMENTAÇÃO

2.1 DE FACTO

Na sentença recorrida o julgamento da matéria de facto foi efectuado nos seguintes termos:

«Dos autos resulta provada a seguinte factualidade com relevância para a decisão:

A) O impugnante está colectado com a actividade de “Criação Artística e Literária”, CAE 90.030, exercendo também a actividade de prestação de serviços de advogados, CIRS 6010 (cfr. informação no relatório da Direcção de Finanças de Lisboa - Inspecção Tributária, a fls. 13 do pat);

B) O sujeito passivo exerce a profissão em nome individual - categoria B - e encontra-se enquadrado no regime simplificado em IRS (cfr. informação no relatório da Direcção de Finanças de Lisboa - Inspecção Tributária, a fls. 13 do pat);

C) Em cumprimento da Ordem de Serviço n.º OI200802467, os Serviços de Inspecção Tributária (SIT) deram início a uma acção de inspecção de âmbito interno, ao IRS e IVA do ano de 2004, tendo a final sido elaborado o competente relatório de inspecção (cfr. informação no relatório da Direcção de Finanças de Lisboa - Inspecção Tributária, a fls. 10 e 13 do pat);

D) Tal como melhor resulta do teor do referido relatório, os SIT detectaram, em sede de IRS, as seguintes infracções:
- Omissão de parte dos rendimentos da categoria B na declaração de 2004, infracção ao art. 57.º do C.LR.S., punível pelo artigo 119.º do Regime Geral das Infracções Tributárias (R.G.I.T.)
(cfr. informação no relatório da Direcção de Finanças de Lisboa - Inspecção Tributária, a fls. 17 do pat)

E) Do teor do relatório da Inspecção Tributária resulta que da análise interna efectuada à declaração de rendimentos do ano de 2004, o sujeito passivo não declarou todas as verbas recebidas e declarou parte dos rendimentos auferidos no anexo H, como sendo rendimentos isentos ao abrigo do artigo 56.º do Estatuto dos Benefícios Fiscais - rendimentos da propriedade intelectual (cfr. informação no relatório da Direcção de Finanças de Lisboa - Inspecção Tributária, a fls. 15 do pat);

F) A Inspecção Tributária corrige os rendimentos auferidos e declarados como sendo referentes a propriedade intelectual, indicando, designadamente, a seguinte fundamentação (cfr. informação no relatório da Direcção de Finanças de Lisboa - Inspecção Tributária, a fls. 15 do pat):
«Da análise efectuada à declaração de rendimentos Modelo 3, e aos Modelos 10 entregues pelas entidades pagadoras de rendimentos (anexo 3 de 1 página - fls. 25), verificamos que o Sujeito Passivo não declarou todas as verbas recebidas. Além deste facto verifica-se que declarou parte dos rendimentos auferidos no anexo H, como sendo rendimentos isentos ao abrigo do artigo 56.º do Estatuto dos Benefícios Fiscais - rendimentos da propriedade intelectual. Pela análise de todos os elementos constantes do processo verificamos que os rendimentos auferidos e declarados como sendo referentes a propriedade intelectual, não podem ser considerados como tal, senão vejamos:
Para uma interpretação do Artigo 56.º do EBE, recorremos ao código do Direito de Autor, e verificamos que o artigo 173.º, aplicável aos colaboradores eventuais e independentes, atribui ao respectivo titular o direito de autor sobre obra publicada em jornal ou publicação periódica.
Mas, importa ainda considerar o disposto nos artigos 19.º e 7.º do mesmo código. Nos termos do n.º 3 do artigo 19.º, os jornais e outras publicações periódicas presumem-se obras colectivas, pertencendo às respectivas empresas o direito de autor sobre as mesmas. Por sua vez o artigo 7.º exclui da protecção legal, nomeadamente as notícias do dia e os relatos de acontecimentos diversos com carácter de simples informação de qualquer modo divulgados, os textos propostos e os discursos proferidos perante assembleias, ou em debates públicos sobre assuntos de interesse comum e, também, os discursos políticos.
Os artigos para jornal ou outra publicação periódico, desde que não caiam na previsão do artigo 7.º, e, portanto, sejam mais do que notícias do dia e/ou relatos de acontecimentos diversos com carácter de simples informação, são verdadeiras obras para efeitos da aplicação da protecção conferida pelo código do Direito de Autor. Contudo, não poderão beneficiar do desagravamento fiscal por serem escritos sem carácter literário, artístico ou científico.
Em conclusão, de acordo com o Código do Direito de Autor, os trabalhos jornalísticos seguem o regime específico previsto no artigo 174.º.
As notícias do dia e os relatos de acontecimentos diversos com carácter de simples informação de qualquer modo divulgados, estão nos termos do artigo 7.º do Código do Direito de Autor excluídos de protecção legal.
Os textos escritos para jornais, não são uma criação livre, no sentido em que são instrumentalizados à função informativa/formativa, que visam prosseguir e têm uma função predominantemente utilitária, e por isso caiem na previsão do n.º 2 do Artigo 56.º do EBF, por serem escritos sem carácter literário».

G) Na sequência das correcções descritas na alínea antecedente, foi emitida em 26 de Novembro de 2008, e com referência ao ano de 2004, a liquidação de IRS n.º 5004693528, no montante de imposto de € 1.519,19, respeitando € 1.336,80 a imposto e € 182,39 de juros compensatórios (cfr. print do documento de cobrança, a fls. 39 dos autos e cfr. doc. de liquidação a fls. 6 do pat);

H) Em 06 de Janeiro de 2009, o impugnante apresentou reclamação graciosa contra o acto tributário de liquidação referido em G), peticionando a sua anulação (cfr. articulado de reclamação graciosa, a fls. 2 a 5 do processo de reclamação graciosa);

I) Em 20 de Abril de 2009, foi proferido pela Divisão de Justiça Administrativa - Direcção de Finanças de Lisboa parecer no sentido de indeferimento da reclamação graciosa, onde consta designadamente, a seguinte fundamentação:

«3. ANÁLISE

3.1 A liquidação reclamada teve origem numa correcção efectuada à liquidação de IRS do ano de 2004 pelo Documento de Correcção Único n.º 100064566/2004 por sua vez resultante de uma acção de inspecção levada a efeito pelos serviços de inspecção tributária da Direcção de Finanças (ordem de serviço 01200802467 de 19/05/2008).
No relatório da inspecção afirma-se, em síntese, que os artigos para um jornal ou outra publicação periódica mesmo quando não caiam na previsão do artigo 7.º (“exclusão de protecção”) do Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos (CDADC), “não poderão beneficiar do desagravamento fiscal por serem escritos sem carácter literário, artístico ou científico”. Afirmava-se, ainda, que os “textos para jornais não sendo uma criação livre, no sentido em que são instrumentalizados à função informativa/formativa, que visam prosseguir e têm uma função predominantemente utilitária, e por isso caiem na previsão do n.º 2 do Artigo 56.º do EBF, por serem escritos sem carácter literário” (fls 15).
Por sua vez, o reclamante pretende que o rendimento por si obtido com a publicação de um conjunto de crónicas na imprensa periódica beneficie do desagravamento previsto no artigo 58.º, n.º 1, (à data dos factos, o 56.º), por considerar que “são indiscutivelmente um género literário, de carácter pessoal, desprovido de valor informativo ou formativo”, encontrando-se “evidentemente abrangida pela definição de obra resultante” do Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos (artigos 1.º, 2.º, n.º 1, alínea a)” (fls 24).
Junta à sua petição dois exemplares de crónicas publicadas no “……..”, segundo parece a 7/8/2008 (A Arte do Conselho) e a 18/12/2008 (O Cais das Colunas) (fls. 23 e 24). Não fornece qualquer crónica publicada em 2004, o ano a que respeita a liquidação reclamada.
3.2 Sob a epígrafe, “propriedade intelectual”, dispõe-se no artigo 58.º, n.º 1, do EBF, que os “rendimentos provenientes da propriedade literária, artística e científica (...) quando auferidos por autores residentes em território português, desde que sejam os titulares originários, são considerados no englobamento, para efeitos de IRS, apenas por 50 % do seu valor, líquido de outros benefícios”
No n.º 2 do mesmo artigo exclui-se do disposto no n.º 1 “os rendimentos provenientes de obras escritas sem carácter literário, artístico ou científico, obras de arquitectura e obras publicitárias”.
Nas normas citadas, o termo literário é empregue duas vezes: a primeira, quando se estabelece que apenas 50% dos rendimentos provenientes da propriedade literária são considerados no englobamento para efeito de tributação em IRS; a segunda vez, quando se exclui daquele benefício os rendimentos provenientes de obras escritas sem carácter literário.
Impõe-se interpretar o termo literário na norma do n.º 2 com um sentido distinto, mais restrito, do que no n.º 1, sob pena de se concluir que o legislador se contradisse, ao prever que algo possa ter e não ter determinada característica.
Significa isto que pode haver rendimentos de propriedade literária que, por a obra a que respeitam não revestir natureza literária (num outro sentido), não estão abrangidos pelo desagravamento previsto no n.º 1 do artigo 8.º do EBF.
3.3 Embora o reclamante assente a sua argumentação na “natureza intelectual e literária” (n.º 13) dos trabalhos publicados e no disposto no n.º 1 do artigo 58.º do EBF (n.º 16 e 17), a questão fundamental a resolver no processo consiste em saber, se, para efeitos do n.º 2 daquele artigo, as crónicas jornalísticas enquanto género possuem “carácter literário” no sentido que a expressão possui neste n.º 2.
Por obra com carácter literário deve entender-se, para efeito de aplicação daquela norma, o texto escrito pertencente à literatura, enquanto actividade e produção estética. Por outras palavras, deve entender-se que tem carácter literário a narrativa que foi concebida e produzida como arte - e como arte é apreciada - não servindo outra finalidade, pelo menos de modo dominante. É este, de resto, o sentido mais comum do termo literário.
Neste sentido aponta também a história do preceito. Com efeito, na sua redacção original, o então artigo 45.º (com um único número) previa o desagravamento para os “rendimentos provenientes da propriedade intelectual, quando auferidos por pintores, escultores ou escritores (...)”.
Escritores era o termo então empregue. Ora, no seu sentido mais comum designa-se por escritores os autores da escrita artística (da literatura) ou científica, tipicamente divulgada não através de jornais, mas de livros (romances, poesia, peças de teatro...). Como se declarava na introdução do DL 215/89, de 1/7, que aprovou o EBF, o desagravamento tinha por objectivo “incentivar a criação artística ou literária”.
3.4 Já os textos divulgados através das publicações periódicas incidem, por regra, sobre os factos que vão ocorrendo nos vários domínios, noticiando-os, interpretando-os ou comentando-os. Pode, por isso, dizer-se, como no relatório da inspecção, que tais escritos desempenham uma função utilitária. Registe-se, a propósito, que a lei também exclui (expressamente) do desagravamento os rendimentos de obras de arquitectura, as quais, sendo arte, possuem uma componente utilitária.
É aquela, também, a característica da crónica jornalística tal como geralmente é entendida e vem definida no Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea da Academia de Ciências de Lisboa (2001): uma “rubrica de jornal, revista, edição especializada, emissão televisiva ou radiofónica” (ou o artigo inserido nessa rubrica), “onde são relatados e comentados, de um ponto de vista pessoal, notícias ou episódios relativos a uma determinada área”.
3.5 Em suma, como resposta à questão acima colocada (ponto 3.3), pode afirmar-se que os rendimentos provenientes das crónicas jornalísticas não estão abrangidos pelo benefício consagrado no n.º 1 do artigo 58.º do EBF, por força do n.º 2, dado o carácter utilitário, ou não literário do género, num sentido restrito do último termo, que não envolve qualquer juízo de mérito».

J) Por despacho de 21 de Abril de 2009, e de acordo com a Informação referida em I) a reclamação referida em H), foi objecto de indeferimento expresso (cfr. despacho de indeferimento expresso a fls. 42 do processo de reclamação graciosa);

K) O despacho referido em J) foi recebido pelo impugnante a 24 de Abril de 2009 (cfr. aviso de recepção a fls. 48 dos autos);

L) As crónicas jornalísticas têm a configuração e o conteúdo dos textos juntos com a petição inicial, cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido (facto constante no artigo 4.º da pi e não impugnado; cfr. Docs. 1 e 2 a fls. 18 e 19 dos autos);

M) A presente acção deu entrada na Direcção de Finanças, em 12 de Maio de 2009 (cfr. carimbo aposto na pi a fls. 5 dos autos);

Factos não provados

Inexistem factos não provados com interesse para a decisão».


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2.2 DE FACTO E DE DIREITO

2.2.1 A QUESTÃO A APRECIAR E DECIDIR

A AT, na sequência de uma acção de fiscalização, verificou que, relativamente ao ano de 2004, o Contribuinte não englobou 50% dos rendimentos que auferiu com a redacção de crónicas publicadas em jornais e que apresentou o anexo H em que declarou os restantes 50%, tudo no pressuposto de que tais rendimentos eram abrangidos pela não incidência parcial de IRS nos termos do disposto no art. 56.º do EBF, na redacção em vigor à data.
Considerando que, contrariamente ao que entendera o Contribuinte, tais rendimentos provêm da redacção de crónicas jornalísticas que não integram o conceito de obra com carácter literário, motivo por que não lhes era aplicável a não sujeição parcial prevista naquele preceito, a AT procedeu à correcção da matéria tributável declarada e à consequente liquidação adicional de IRS.
O Contribuinte discorda desse entendimento e sustentou, quer em sede de reclamação graciosa quer em sede de impugnação judicial, que as crónicas publicadas em jornais constituem um «género literário» que integra o conceito de obra com carácter literário.
A 1.ª instância deu-lhe razão, tendo a Juíza do Tribunal Tributário de Lisboa acolhido a tese de que as crónicas jornalísticas integram o conceito de obra literária para os fins previstos no art. 56.º do EBF, motivo por que anulou a liquidação impugnada.
A Fazenda Pública não se conformou com a sentença e dela recorreu para este Supremo Tribunal Administrativo. Continua a sustentar o bem fundado do acto de liquidação adicional impugnado.
A questão que cumpre apreciar e decidir, em ordem a aferir da legalidade da liquidação impugnada, é a de saber se as referidas crónicas podem ou não ser qualificadas como obras literárias para os efeitos previstos no art. 56.º do EBF.


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2.2.2 DO BENEFÍCIO FISCAL

O art. 56.º do EBF, na redacção aplicável à situação sub judice dizia nos seus n.ºs 1 e 2:

«1- Os rendimentos provenientes da propriedade literária, artística e científica, considerando-se também como tal os rendimentos provenientes da alienação de obras de arte de exemplar único e os rendimentos provenientes das obras de divulgação pedagógica e científica, quando auferidos por autores residentes em território português, desde que sejam o titular originário, são considerados no englobamento para efeitos de IRS apenas por 50% do seu valor, líquido de outros benefícios.
2- Excluem-se do disposto no número anterior os rendimentos provenientes de obras escritas sem carácter literário, artístico ou científico, obras de arquitectura e obras publicitárias».

Do citado preceito resulta que os rendimentos provenientes das obras escritas com carácter literário, desde que verificadas as demais condições aí referidas, beneficiam da redução de 50% para efeito de englobamento e incidência do IRS
A finalidade daquele benefício fiscal é a de incentivar a criação artística ou literária, por forma a melhorar o nível de desenvolvimento cultural do país (Cfr. F. PINTO FERNANDES e J. CARDOSO DOS SANTOS, EBF Anotado, Rei dos Livros, pág. 231.
No mesmo sentido, o acórdão do Tribunal Constitucional com o n.º 1057/96, de 16 de Outubro de 1996, proferido no processo com o n.º 347/91, publicado no Diário da República, 2.ª série, n.º 272, de 23 de Novembro de 1996 (http://dre.pt/pdfgratis2s/1996/11/2S272A0000S00.pdf), págs. 16.408 a 16.413, também disponível em
http://www.tribunalconstitucional.pt/tc//tc/acordaos/19961057.html. ), finalidade esta de relevo e de interesse público e que apenas pode ser realizado pelas obras reconhecidas como integrando a qualificação de obras literárias. Daí que o legislador, expressamente, tenha excluído do âmbito do benefício fiscal as obras sem carácter literário.
É em torno da distinção entre obra de carácter literário e obra sem carácter literário, com a consequente distinção no tratamento dado aos rendimentos provenientes de uma e outra, que se joga a sorte do presente recurso.
A distinção entre obra com carácter literário e obra sem carácter literário não é tarefa simples. Ensaiando uma tentativa de resposta: «Uma obra pode considerar-se literária na medida em que, além do pensamento lógico, discursivo, abstractamente conceptual, adequado a problemas científicos, filosóficos e, em geral, doutrinários, estimular também os impulsos mais afectivos e menos conscientes, os hábitos ou valores enraizados através do aprendizado, decisivamente formativo, da língua materna e de uma dada vida social» (ANTÓNIO JOSÉ SARAIVA e ÓSCAR LOPES, História da Literatura Portuguesa, pág. 7.).
Em face das consabidas dificuldades de distinção entre obra de carácter literário e obra sem esse carácter, em ordem a aferir da aplicabilidade ou não do benefício previsto no art. 56.º (hoje, 58.º) do EBF deve privilegiar-se um critério objectivo: serão consideradas como obras literárias as que, prima facie, se apresentem como tal (criadas e apreciadas como arte, como actividade e produção estética, ou seja, que não sirvam outra finalidade, pelo menos de modo dominante, como será o caso do romance, poesia, peça de teatro, etc., tudo como salientou a Fazenda Pública), privilegiando-se, pois, o valor facial da obra.
Só assim se evitará a difícil tarefa de avaliação do mérito, se bem que admitimos, no entanto, que em casos contados, essa distinção não possa prescindir duma avaliação do mérito da obra, sob pena de sermos conduzidos a resultados indesejados e indesejáveis.
No caso sub judice estamos perante crónicas jornalísticas.
Note-se, desde já, que, de acordo com o critério que vimos de expor, o meio por que as referidas crónicas são divulgadas – publicação em jornais – não será decisivo para excluir a qualificação desses escritos como obra literária.
Decisivo será, sim, como deixámos já dito, o terem sido criadas e apreciadas como arte, não cumprindo, do modo dominante, outra finalidade.
A propósito do género crónica jornalística – que se situa entre o jornalismo e literatura – dizem-nos os dicionários que se trata de um «texto literário breve, em geral narrativo, de trama quase sempre pouco definida e motivos, na maior parte, extraídos do quotidiano imediato» (Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa.) ou «uma rubrica de jornal, revista, edição especializada, emissão televisiva ou radiofónica […], onde são relatados e comentados, de um ponto de vista pessoal, notícias ou episódios relativos a uma determinada área» (Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea da Academia de Ciências de Lisboa.).
Não questionamos de modo algum que as crónicas jornalísticas são manifestações da criatividade do seu autor, que nestas verte a sua mundividência dos acontecimentos do quotidiano, a sua forma pessoal de compreender os acontecimentos que o cercam, transmitindo ao leitor, geralmente em tom coloquial, a sua visão de um determinado assunto ou facto do dia-a-dia. Parafraseando o Procurador-Geral Adjunto neste Supremo Tribunal Administrativo, o cronista, após se acercar dos acontecimentos diários, dá-lhes um toque próprio, incluindo no seu texto elementos como ficção, fantasia e criticismo, elementos que o texto essencialmente informativo não contém.
Mas, a verdade é que, em regra, essas crónicas jornalísticas não são criadas nem apreciadas como arte, prosseguindo outras finalidades, quais sejam as de comentarem os acontecimentos do quotidiano, proporcionando aos leitores uma visão crítica das notícias, e de agradarem aos leitores dentro de um espaço predeterminado (geralmente há periodicidade na publicação das crónicas, que ocupam a mesma localização dentro do jornal), estabelecendo uma relação entre o escritor e os seus leitores e, assim, entre o jornal e estes, com vista à sua fidelização.
Admitimos como possível que, em concreto, pudesse fazer-se a demonstração do carácter literário das crónicas em causa, mas o ora Recorrido nem sequer ensaiou essa tentativa, que sempre lhe exigiria a alegação de factualidade que não foi invocada, sendo inclusive que os dois exemplares de crónicas suas que apresentou nem sequer respeitam ao ano de 2004, que é o que está em causa.
Reconhecemos as dificuldades suscitadas pela qualificação de um escrito como obra com carácter literário ou obra sem carácter literário, mas afigura-se-nos que o critério proposto pela AT e por nós sufragado, não só se mostra conforme à letra e ao espírito da norma do EBF sob apreciação, como, porque assente em pressupostos objectivos, é o que permite maior segurança na aplicação da lei.
Face ao exposto, porque não ficou demonstrado que as crónicas jornalísticas em causa possam qualificar-se como obras literárias para os efeitos previstos no art. 56.º (hoje 58.º) do EBF, entendemos que os rendimentos delas auferidos pelo seu autor, ora Recorrido, não podem beneficiar da não incidência parcial prevista naquele artigo. A liquidação adicional impugnada, que arrancou desse entendimento e, em consequência, considerou que não podem ser excluídos do englobamento 50% dos rendimentos auferidos pelo ora Recorrido pela redacção dessas crónicas, não enferma da ilegalidade que lhe foi assacada na petição inicial.
A sentença recorrida, que decidiu em sentido contrário, não pode manter-se na ordem jurídica, motivo por que, a final, será revogada e a impugnação judicial será julgada improcedente.

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2.2.3 CONCLUSÕES

Preparando a decisão, formulamos as seguintes conclusões:
I - Nos termos do disposto nos n.ºs 1 e 2 do art. 56.º, n.ºs 1 e 2 do EBF, na redacção anterior à republicação de que este diploma foi objecto pelo Decreto-Lei n.º 108/2008, de 26 de Junho (hoje, correspondem-lhe os mesmos números do art. 58.º), os rendimentos provenientes das obras literárias beneficiam da redução de 50% para efeito de englobamento e incidência do IRS.
II - A finalidade daquele benefício fiscal é a de incentivar a criação artística ou literária, por forma a melhorar o nível de desenvolvimento cultural do país, finalidade esta de relevo e de interesse público e que apenas pode ser realizado pelas obras reconhecidas como integrando a qualificação de obras literárias.
III - Em face das consabidas dificuldades de distinção entre obra de carácter literário e sem esse carácter, deve privilegiar-se um critério objectivo: serão consideradas como obras literárias as que, prima facie, se apresentem como tal (criadas e apreciadas como arte, como actividade e produção estética), privilegiando-se, pois, o valor facial da obra; admitimos, no entanto, que em casos contados, essa distinção não possa prescindir duma avaliação do mérito da obra, sob pena de sermos conduzidos a resultados indesejados e indesejáveis.
IV - Em regra, porque não são criadas nem apreciadas como arte, não podem ter-se como obras literárias as crónicas publicadas num jornal, pelo que os rendimentos auferidos pela sua autoria não podem beneficiar da não sujeição parcial dita em I.


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3. DECISÃO

Face ao exposto, os juízes da Secção do Contencioso Tributário deste Supremo Tribunal Administrativo acordam, em conferência, conceder provimento ao recurso, revogar a sentença recorrida e julgar improcedente a impugnação judicial.

Custas pelo Recorrido, mas apenas em 1.ª instância, uma vez que não contra alegou neste Supremo Tribunal Administrativo.


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Lisboa, 28 de Novembro de 2012. – Francisco Rothes (relator) – Fernanda MaçãsCasimiro Gonçalves.