Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0489/14
Data do Acordão:10/23/2014
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:JOSÉ VELOSO
Descritores:ARGUIÇÃO DE NULIDADE
LEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO
EXCESSO DE PRONÚNCIA
Sumário:I – Por interpretação extensiva do que dispõe o artigo 141º, nº 1, do CPTA, é de reconhecer ao Ministério Público o direito de «arguir nulidades» da decisão jurisdicional prevista nessa norma, sempre que ela não seja passível de recurso ordinário.
II – Não incorreu em «excesso de pronúncia» o acórdão do STA que em sede de recurso de revista procedeu à ponderação de interesses prevista no artigo 120º, nº 2, do CPTA.
Nº Convencional:JSTA000P18089
Nº do Documento:SA1201410230489
Data de Entrada:06/06/2014
Recorrente:A............
Recorrido 1:SERVIÇO DE ESTRANGEIROS E FRONTEIRAS - MINISTÉRIO DA ADMINISTRAÇÃO INTERNA
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: I. Relatório
O Ministério Público junto deste STA, uma vez notificado do acórdão proferido a 30.07.2014, veio invocar a sua nulidade por excesso de pronúncia, ou seja, por ter conhecido de questão de que não poderia tomar conhecimento [artigos 615º, nº 1 alínea d), do CPC, ex vi artigos 1º e 140º do CPTA].

O alegado excesso consubstanciar-se-á, a seu ver, em o acórdão ter conhecido da «ponderação de interesses» que é exigida pelo nº 2 do artigo 120º do CPTA, pois que tal ponderação se reconduz a juízos de facto que não podem ter lugar em sede de recurso de «revista».

Requereu, pois, o reconhecimento da invocada nulidade, por parte deste STA, e a «baixa» do processo ao TCAS para ali prosseguir o julgamento do caso com a efectivação da referida «ponderação de interesses».

As partes, devidamente notificadas desta arguição de nulidade, nada disseram.

Por despacho proferido pelo Relator, em 10.09.2014, foi recusada a apreciação da nulidade «por falta de legitimidade do Ministério Público» para a suscitar.

É deste despacho que vem interposta, pelo Ministério Público, reclamação para a conferência [artigos 27º, nº 2, do CPTA, e 652º, nº 3, do CPC], por entender que, ao contrário do que nele foi decidido, lhe assiste legitimidade para arguir aquela nulidade ao abrigo do artigo 141º do CPTA, e na decorrência do estipulado nos artigos 1º e 3º, alínea f), do seu Estatuto, e 219º, nº 1 in fine, da CRP.

As partes, devidamente notificadas desta reclamação, nada disseram.

Cumpre apreciar e decidir.

II. Apreciação

1. É do seguinte teor o despacho reclamado:

[…]

«De facto, assim foi. Julgado procedente o erro de julgamento de direito que foi imputado ao acórdão do TCA Sul, e verificados, desse modo, os dois requisitos da concessão da providência cautelar pretendida [fumus boni juris/periculum in mora], este STA passou a realizar a referida ponderação de interesses e danos de forma a dar uma solução final ao litígio urgente.

Porém, independentemente da bondade, ou não, da questão vertida na referida arguição de nulidade, cremos que o Ministério Público carece, no caso concreto, de legitimidade para a poder suscitar.

Efectivamente, no âmbito do contencioso administrativo incumbe ao Ministério Público defender a legalidade democrática e promover a realização do interesse público, exercendo, para tal efeito, os poderes que a lei processual lhe confere.

E a lei confere-lhe, no artigo 141º do CPTA, legitimidade para «recorrer» de decisões dos tribunais administrativos, e centraliza esta legitimidade activa na defesa da «legalidade democrática», ou seja, permite-lhe «recorrer» quando a decisão judicial for violadora de «disposições ou princípios constitucionais ou legais».

E no artigo 146º, nº 1, do CPTA, atribui ao Ministério Público legitimidade para emitir parecer sobre o mérito de recurso interposto por terceiros, sempre que, em seu entender, assim o imponha a defesa de algum dos direitos, interesses, valores ou bens, nele referidos.

Esta intervenção do Ministério Público, ao abrigo do artigo 146º, nº 1, do CPTA, encontra-se, portanto, limitada ao pronunciamento sobre o mérito do recurso, e encontra-se condicionada à existência, no caso, de uma situação em que esse pronunciamento se justifique na defesa dos direitos fundamentais dos cidadãos, em interesses públicos especialmente relevantes ou valores ou bens referidos no nº 2 do artigo 9º do CPTA [saúde pública, ambiente, urbanismo, ordenamento do território, qualidade de vida, património cultural e bens do Estado, das regiões autónomas e das autarquias locais].

Ora, no caso concreto, estamos perante a suscitação de uma nulidade que não foi invocada por qualquer das partes nem é cognoscível oficiosamente.

Deste modo, não integrando recurso jurisdicional legitimado ao abrigo do artigo 141º do CPTA nem integrando o âmbito substantivo legitimador do artigo 146º, nº 1, do CPTA, o Ministério Público carece de legitimidade para a arguir.

Termos em que recusamos a apreciação da nulidade por excesso de pronúncia, por falta de legitimidade do Ministério Público para a suscitar.»

[…]

2. Como se diz no despacho reclamado, a legitimidade para recorrer concedida ao Ministério Público no artigo 141º do CPTA tem directamente a ver com a sua competência para «defender a legalidade democrática», prevista na parte final do nº 1 do artigo 219º da CRP e replicada no artigo 1º dos seus Estatutos.

Verdade é também que, como alega o Ministério Público, a defesa da legalidade democrática se concretiza, designadamente, na «defesa da independência dos tribunais, na área das suas atribuições, e velar para que a função jurisdicional se exerça em conformidade com a Constituição e as leis» [artigo 3º, alínea f), do EMP].

Este entendimento jurídico, que brota cristalino da lei, não está questionado no despacho reclamado, no qual, cremos, apenas se efectuou uma interpretação e aplicação demasiado restritiva da «legitimidade para recorrer» que é concedida ao Ministério Público pelo artigo 141º do CPTA.

A questão que se coloca, e que alimenta a divergência de entendimento entre o Ministério Público e o decidido no despacho reclamado, tem a ver, pois, com a possibilidade do Ministério Público arguir nulidades da sentença ou acórdão, nos termos do actual artigo 615º do CPC [ex vi artigos 1º CPTA], nos casos em que de tais decisões não há recurso ordinário.

3. A lei processual exige que as nulidades previstas nas alíneas b) a e) do nº 1 do artigo 615º do CPC sejam suscitadas «no âmbito do recurso» interposto da sentença ou acórdão a que são imputadas, só podendo ser arguidas perante o tribunal que proferiu esta decisão «se ela não admitir recurso ordinário» [artigos 615º, nº 4, e 617º, do CPC, ex vi 1º do CPTA].

E permite também, nos termos do artigo 616º do CPC [aplicável ex vi 1º do CPTA], que qualquer das partes possa requerer a reforma da sentença quando houver um manifesto lapso do juiz na determinação da norma aplicável, ou na qualificação jurídica dos factos, ou constem do processo meios de prova plena que, só por si, impliquem necessariamente decisão diversa da proferida.

Temos, pois, que apesar de não haver recurso ordinário da sentença, as partes não ficam inibidas de reagir quanto a erros graves e ostensivos nela cometidos, devidos «a manifesto lapso do juiz», nem ficam inibidas de apontar nulidades à mesma, embora devam fazer isso perante o próprio tribunal decisor.

Este direito de reacção ao decidido já não se inscreve, formalmente, no âmbito do direito de recurso, que exige a apreciação do decidido por parte de tribunal superior, mas inscreve-se, materialmente, no direito de reagir a decisões que, tudo leva a crer, padecem de ilegalidades graves e manifestas.

Seria um contra-senso, pois, reconhecer ao Ministério Público legitimidade para «recorrer» sempre que estivessem em causa erros de julgamento ou nulidades atinentes à violação de disposições ou princípios constitucionais ou legais, e não lhe reconhecer legitimidade para «reagir», e perante o tribunal decisor, no caso de ilegalidades ostensivas e graves, tanto assim que sancionadas com nulidade.

Deste jeito, a legitimidade para recorrer, que é concedida ao Ministério Público pelo artigo 141º, nº 1, do CPTA, e que emerge da competência para defender a legalidade democrática que lhe é atribuída pelo artigo 219º, nº 1, da CRP, deve ser interpretada no sentido de integrar a legitimidade para arguir a nulidade da decisão em causa sempre que esta não seja passível de recurso ordinário. Pelo que, por interpretação extensiva do que dispõe o artigo 141º, nº 1, do CPTA, é de reconhecer ao Ministério Público o direito de «arguir nulidades» da decisão jurisdicional prevista nessa norma, sempre que ela não seja passível de recurso ordinário.

O que significa que, neste caso, não deveria ter sido recusada a apreciação da nulidade por excesso de pronúncia com fundamento na falta de legitimidade do Ministério Público.

Deverá, destarte, ser revogado o despacho reclamado, passando a conhecer-se do alegado excesso de pronúncia.

4. E a verdade é que este não ocorre.

Efectivamente, a invocada omissão de pronúncia repousa na premissa segundo a qual este STA não poderia ter conhecido da questão relativa à ponderação de interesses exigida, no caso, pelo artigo 120º, nº 2, do CPTA.

Mas o que o STA não pode, em sede de recurso de revista, é fazer julgamentos de facto, uma vez que «conhece apenas de matéria de direito» [artigos 12º, nº 4, do ETAF, e 150º, nº 3, do CPTA].

Assim, se o STA neste recurso de revista, após ter julgado procedente o erro de julgamento de direito imputado ao acórdão do TCA, e, desse modo, verificados os dois requisitos da concessão da providência cautelar conservatória, passou a realizar a referida «ponderação de interesses» de forma a dar uma solução final ao litígio urgente, é porque entendeu não lhe ser imposto qualquer julgamento de facto mas somente juízos de direito.

E avançou, em sede substitutiva, porque tal lhe foi expressamente pedido pelo recorrente que, ao terminar as suas alegações de recurso de revista, solicitou o provimento do recurso e o decretamento do pedido de suspensão de eficácia do acto que decidiu o seu afastamento coercivo do território nacional.

Ora bem. O entendimento que subjaz à «ponderação de interesses» feita pelo STA até poderá estar errado, mas, se o estiver, isso apenas envolverá erro de julgamento sobre a natureza da intervenção por ele desenvolvida e não excesso de pronúncia no tocante a essa intervenção.

Deve improceder, pois, a arguição de nulidade deduzida pelo Ministério Público.

III. Decisão

Nos termos do exposto, decidimos conceder provimento à reclamação deduzida pelo Ministério Público, e em consequência revogar o despacho reclamado, mas julgar improcedente a nulidade por excesso de pronúncia por ele arguida.

Sem custas.

Notifique.

Lisboa, 23 de Outubro de 2014. – José Augusto Araújo Veloso (relator) – Joaquim Casimiro GonçalvesMaria Benedita Malaquias Pires Urbano.