Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:066/19.0BALSB
Data do Acordão:11/04/2020
Tribunal:PLENO DA SECÇÃO DO CT
Relator:SUZANA TAVARES DA SILVA
Descritores:IVA
CESSÃO DE CRÉDITOS
ACTO CLARO
Sumário:Não existe identidade no quadro factual que permita afirmar que estamos perante situações fácticas substancialmente idênticas (um pressuposto para a existência de oposição de julgados) a respeito da incidência ou não do IVA à luz do direito e da jurisprudência europeia sobre negócios que envolvem a cessão de créditos quando num caso estamos perante um negócio jurídico sobre créditos de cobrança incerta e no outro ante um negócio jurídico cuja caracterização o Supremo Tribunal Administrativo considerou duvidosa face às suas especificidades, e em que o crédito se encontra judicialmente reconhecido, pelo que a incerteza neste caso se circunscreve à solvabilidade do devedor.
Nº Convencional:JSTA000P26693
Nº do Documento:SAP20200411066/19
Data de Entrada:09/17/2019
Recorrente:AT - AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Recorrido 1:Z......, S.A.
Recorrido 2:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral:
Acordam no Pleno da Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:

I - Relatório

1 – A Directora-Geral da Autoridade Tributária vem, nos termos dos artigos 25.º n.ºs 2 e 4 do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária (RJAT), interpor recurso para a uniformização de jurisprudência para o Pleno da Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo da decisão arbitral n° 625/2018-T, proferida em 28 de Junho de 2019, pelo Cento de Arbitragem Administrativa, por considerar que esta decisão colide com o decidido no acórdão de 8 de Novembro de 2017, processo n.º 0674/16, proferido no Supremo Tribunal Administrativo apresentando, para tanto, alegações que concluiu do seguinte modo:
I - O presente Recurso para Uniformização de Jurisprudência tem como objeto a decisão arbitral proferida no processo n.º 625/2018-T, por Tribunal Arbitral em matéria tributária constituído sob a égide do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD), na sequência de pedido de pronúncia arbitral apresentado ao abrigo do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro.
II - A mencionada decisão arbitral, aqui sindicada, colide frontalmente com a jurisprudência firmada pelo Supremo Tribunal Administrativo no Acórdão proferido no âmbito do processo n.º 0674/16, datado de 08 de Novembro de 2017, já transitado em julgado, na parte em que não procede à suspensão da instância arbitral até à prolação de decisão no processo de reenvio prejudicial nos termos do disposto nos artigos 269.º, n.º 1, alínea c), e 272.º, n.º 1, do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, al. e), do RJAT.
III - A Recorrente defende, com o devido respeito, que a decisão de mérito de procedência do pedido formulado pela ora Recorrida, está em total contradição com jurisprudência dimanada do Acórdão fundamento.
IV - Ali se consignou a seguinte factualidade:
(...) 7 - No dia 29 de Setembro de 2010, A…, LDA., cedeu a B…, Lda., o crédito que se encontrava a ser executado por apenso à acção identificada no n.° 5 supra, nos termos que aqui se dão por reproduzidos (cfr. documento junto a fls. 18 a 20 dos presentes autos);
8 - Ficou declarado naquela cessão que tal negócio foi efectuado no valor de € 351.619,90, pagos pela B… à A…, LDA., através de cheque na mesma data (cfr. documento junto a fls. 18 a 20 dos presentes autos);
9 - No dia 11 de Fevereiro de 2011, foi entregue, via internet, a declaração periódica de IVA relativa ao período 2010/12T de A…, LDA (cfr. informação junta a fls. 60 a 67 dos presentes autos e lavrada no âmbito de processo de recurso hierárquico); (...)
(...) no caso dos autos, conforme decorre nos 7 e 15 do probatório fixado e supra reproduzido, está em causa a cessão, a título oneroso, de uma posição processual numa acção executiva para cobrança de um crédito reconhecido judicialmente resultante do incumprimento de um contrato de mediação imobiliária, acrescido de IVA à taxa em vigor à data em que for efectuado o pagamento e de juros de mora vencidos e vincendos até integral pagamento, tendo o cedente recebido do cessionário em contrapartida da cessão um valor inferior ao valor da acção.(...)» (sublinhado nosso)
V - Tendo delimitado que, no caso em apreço, «(...) a questão a decidir é a da aplicabilidade da norma de isenção constante da alínea a) do n.º 27 do artigo 9.º do Código do IVA a operações de cessão de créditos realizadas por entidades que não sejam instituições financeiras, importando apurar sobretudo se a interpretação adotada pela AT e pelo acórdão recorrido é conforme ao artigo 135.º da Diretiva IVA na interpretação que dele vem fazendo o TJUE e que importa ponderar no presente caso, ponderação a que o tribunal recorrido não procedeu e que importa proceder.»;
VI - E concluído que inexiste «(...) acto claro quanto à questão de saber se uma operação com as especificidades da que está em causa é ou não subsumível do conceito de "concessão" "negociação" ou "gestão" de créditos para efeitos do disposto no artigo 135.º, n.º 1, alínea b) da Directiva IVA, impõe-se a este STA, em cumprimento do disposto nos artigos 19.º, n.º 3, alínea b) e 267.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia proceder ao reenvio prejudicial da questão em análise para o TJUE (...)».
VII - Em confronto, a decisão arbitral ora recorrida também apreciou, e decidiu, de mérito, a mesma questão, exatamente idêntica, nos factos e no direito, àquela que originou o pedido de reenvio prejudicial efetuado no âmbito do referido processo 0674/16, isto é, no acórdão fundamento.
VIII - Na análise, a decisão recorrida fixou, como relevantes, os seguintes factos:
«(...) D. No âmbito da sua actividade, (...) a Requerente era titular de créditos em mora por falta de pagamento dos seus clientes/locatários devedores, tendo estes mesmos contratos cessado por incumprimento.
E. A 10/1/2018, a Requerente celebrou um contrato de cessão de créditos com a X…………, S.A., enquanto cessionária, através do qual a Requerente cedeu à cessionária "que aceita a cessão, os créditos e direitos de que a primeira das referidas sociedades é titular, à data da assinatura do presente contrato, emergentes dos contratos cuja lista está junta como Anexo I ao presente contrato, do qual faz parte integrante" (Cláusula Primeira, n.º 1, do referido contrato; vd. Doc. 3 apenso).
F. Segundo o supra referido contrato, "o valor nominal dos créditos cedidos corresponde ao valor que consta na lista anexa como Anexo I" (Cláusula Primeira, n.º 2; vd. Doc. 3), valor este que foi fixado, à data de celebração do contrato, em €2.367.840,29 (vd. Anexo I). (...)
J. Pela cessão definitiva de créditos efectuada pela Requerente à cessionária foi acordado um preço global de €130.000, valor correspondente a 5% do valor nominal total da carteira de contratos a ceder (vd. Cláusula Segunda, n.º 2). (...)"
IX - Perante esta factualidade, considerou o Tribunal que a questão essencial era a de decidir se «(...) a cessão definitiva de créditos ora em análise constitui, ou não, uma operação sujeita a IVA (i.e., constitui, ou não, uma transmissão de bens ou prestação de serviços sujeita a este imposto)? »
X - Tendo acabado por concluir que:
«30. Em síntese: A) no Acórdão MKG, o TJUE conclui pela existência de um «nexo directo» entre a actividade do factor e a importância que este recebeu em contrapartida sob a forma de um pagamento (uma comissão de factoring e uma taxa del credere) - contudo, no caso ora em análise, está demonstrado que nenhuma comissão ou contrapartida por um serviço prestado (ou a prestar) foi (requerida ou) recebida pela Requerente na sequência da cessão de créditos;
B) no Acórdão GFKL, o TJUE - ainda que analisando a questão aí em causa pelo lado do adquirente dos créditos cedidos - conclui que "o cessionário de créditos não recebe nenhuma contrapartida por parte do cedente, de modo que não exerce uma actividade económica na acepção do artigo 4.º da Sexta Directiva, nem efectua uma prestação de serviços na acepção do artigo 2.º, ponto 1, desta directiva", salientando, ainda, que "uma prestação de serviços só é efectuada «a título oneroso», na acepção do artigo 2.º, ponto 1, da Sexta Directiva, e só é assim tributável, se existir entre o prestador e o beneficiário uma relação jurídica durante a qual são realizadas prestações recíprocas".
31. Sabendo-se que, como se disse acima, o conceito de «prestações de serviços efectuadas a título oneroso», na acepção do artigo 2.º, ponto 1, da Sexta Directiva, pressupõe a existência de uma «ligação directa» entre o serviço prestado e o contravalor recebido (e que tal ligação, no caso dos presentes autos, não existe, porque ao valor recebido não se demonstrou estar associada a prestação de qualquer serviço), e que, mesmo que ocorra uma diferença entre o valor nominal dos créditos adquiridos e o preço de aquisição dos mesmos, tal diferença não constitui, necessariamente, "uma remuneração destinada a retribuir directamente um serviço fornecido pelo adquirente dos créditos cedidos" (veja-se Acórdão GFKL, §24) - assim se demonstrando que inexiste, entre os (alegados) prestador e beneficiário, uma relação jurídica durante a qual são realizadas prestações recíprocas, dado que a (alegada) retribuição recebida pelo prestador (seja esta entendida como o preço pago ou "apurada" pela mera diferença entre o valor nominal dos créditos adquiridos e o preço de aquisição dos mesmos) não pode ser vista como sendo contravalor por um serviço (que, como se disse, no caso destes autos não se demonstrou ter sido realizado) fornecido ao beneficiário -, conclui-se que assiste razão à ora Requerente. (...)»
XI - Ao contrário do que foi decidido no acórdão fundamento, o Tribunal arbitral julgou não ser de fazer o reenvio prejudicial ao TJUE, apesar de estar pendente de apreciação, naquele Tribunal superior, um processo sobre os mesmos factos e a mesma questão de direito.
XII - Razão pela qual este entendimento está em total contradição com o aresto fundamento que perante idêntica factualidade considerou a existência de motivo para «suspender a instância até à pronúncia do TJUE».
XIII - Resulta, assim, demonstrada a identidade da questão fundamental de direito na decisão recorrida e no acórdão fundamento, já que, em ambos os casos, em concreto, foram tomadas decisões opostas - perante idêntica situação de facto e igual questão de direito.
XIV - Decisões essas que se prendem com a suspensão da instância até à prolação de decisão num processo de reenvio prejudicial pendente, no âmbito do qual se discutem idênticas questões jurídicas, tal como determinam os artigos 269.º, n.º 1, alínea c), e 272.º, n.º 1, do CPC.
XV - Pelo que, existindo, entre a decisão recorrida e o acórdão fundamento, uma patente e inarredável contradição sobre a mesma questão fundamental de direito, importa dirimi-la mediante a admissão do presente recurso e consequente anulação da decisão contestada, com substituição da mesma por nova decisão que determine o reenvio prejudicial ou,
XVI - em alternativa, a suspensão da instância arbitral até à prolação de decisão no processo de reenvio prejudicial pendente, nos termos do disposto nos artigos 269.º, n.º 1, alínea c), e 272.º, n.º 1, do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, al. e), do RJAT.
XVII - A infração a que se refere o n.º 2 do artigo 152.º do CPTA, consiste em erro de julgamento, por violação do disposto nos artigos 269.º, n.º 1, alínea c), e 272.º, n.º 1, do CPC.
XVIII - A decisão arbitral recorrida fundamenta a sua posição na existência, no seu entender, de jurisprudência que ilustra de modo claro a posição do TJUE.
XIX - A fundamentação aduzida pelo Tribunal arbitral não cumpre integralmente o disposto no n.º 1 do artigo 272.º do Código de Processo Civil, nos termos do qual, «o tribunal pode ordenar a suspensão quando a decisão da causa esteja dependente do julgamento de outra já proposta ou quando ocorrer outro motivo justificado».
XX - Com efeito, o intuito do legislador ao conferir ao Juiz a possibilidade de decretar a suspensão da instância foi o de evitar a prolação de decisões judiciais contraditórias.
XXI - Ora, com o devido respeito, o Tribunal não pode deixar de valorar o facto ter sido chamado a pronunciar-se sobre uma questão que será objeto de decisão do TJUE no processo de reenvio prejudicial determinado pelo STA no acórdão fundamento aqui evocado.
XXII - Tanto mais que tal questão é, como se referiu já, exatamente idêntica, nos factos e no direito, àquela que originou o pedido de reenvio prejudicial no âmbito do supra referido processo n° 0674/16.
XXIII - O Tribunal deve assim determinar a suspensão da instância não unicamente na perspetiva da existência de questão prejudicial mas, essencialmente, na perspetiva da utilidade da uniformidade de julgados e da não contradição entre decisões.
XXIV - Tanto mais que se trata de jurisdição na qual as possibilidades de recurso são extremamente limitadas.
XXV - Com efeito, estando em causa uma questão de direito, assim delimitada pelo próprio tribunal arbitral, e sendo esta uma instância cujas decisões, por força do RJAT, não admitem recurso ordinário, sempre se imporia ao Tribunal que submetesse a apreciação da matéria ao TJUE.
XXVI - Aliás, sobre a obrigação do reenvio prejudicial, o TJUE, no Acórdão de 09.09.2015, proferido no Processo n.º C-160/14, teve ocasião de sublinhar o seguinte: «(...) a verdade é que, quando não exista recurso judicial de direito interno da decisão de um órgão jurisdicional nacional, este é, em princípio, obrigado a submeter uma questão ao Tribunal de Justiça, em conformidade com o artigo 267.º, terceiro parágrafo, TFUE, quando uma questão relativa à interpretação do direito da União seja suscitada perante esse órgão jurisdicional.(...)».
XXVII - Por tudo o exposto, resta concluir que a decisão recorrida incorreu em erro de julgamento por violação das normas legais aplicáveis, encontrando-se em manifesta oposição quanto à mesma questão fundamental de direito com a jurisprudência firmada pelo STA no Acórdão fundamento, devendo ser substituído por nova decisão que determine a suspensão da instância arbitral até à prolação de decisão no processo de reenvio prejudicial pendente no TJUE, nos termos do disposto nos artigos 269.º, n.º 1, alínea c), e 272.º, n.º 1, do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, al. e), do RJAT.
Termos em que deve o presente Recurso para Uniformização de Jurisprudência ser aceite e posteriormente julgado procedente, por provado, devendo, em consequência, nos termos e com os fundamentos acima indicados, ser revogada a decisão arbitral recorrida e substituída por outra consentânea com o quadro jurídico vigente.

2 - A recorrida, Z…………, S.A., contra-alegou concluindo nos seguintes termos:
A. Visam os autos a anulação do acto tributário de demonstração de liquidação de IVA com o n.º 2018 024738952, emitido pela Recorrente, com referência ao período de tributação de Janeiro de 2018, por tal acto tributário assentar numa ilegal correcção de IVA, no montante de € 29.900, por considerar a Recorrente que existia uma falta de liquidação deste imposto numa operação de cessão definitiva de créditos efectuada pela Recorrida.
B. O Tribunal a quo deu provimento à pretensão da Recorrida, reconhecendo que o acto tributário de IVA em apreço assenta em erros nos pressupostos de facto e de direito, sendo correcto o enquadramento em IVA conferido pela Recorrida à operação de cessão definitiva de créditos sub judicei.e. esta operação não se encontra sujeita a IVA, conforme a jurisprudência do TJUE vertida no Acórdão GFKL Financial Services AG (processo C-93/10).
C. A Recorrente discorda da douta sentença recorrida, invocando erro de julgamento por violação das normas legais aplicáveis, por alegada oposição quanto à questão fundamental de direito com a jurisprudência firmada pelo STA no Acórdão Fundamento referido nas Alegações apresentadas pela Recorrente (Acórdão de 8 de Novembro de 2017, no âmbito do processo n.º 674/16).
D. Concretamente, a Recorrente considera que (i) a Decisão Arbitral em crise deveria ser anulada e substituída por outra que determine o Reenvio Prejudicial dirigido para o TJUE, ou (ii), alternativamente, tal Decisão deveria ser anulada e substituída por uma nova decisão que determine a suspensão da instância arbitral até à prolação de decisão no processo de Reenvio Prejudicial pendente no TJUE no âmbito do processo referente ao Acórdão Fundamento invocado.
E. Ora, tal entendimento da Recorrente não deve proceder, já que tal pretensa contradição entre a Decisão Arbitral Recorrida e o Acórdão Fundamento – i.e. a contradição sobre a questão fundamental de direito - não se verifica de todo, não estando, por conseguinte, preenchidos os requisitos para a admissibilidade do presente Recurso para Uniformização de Jurisprudência.
F. Nos termos dos n.os 2 e 3 do artigo 25.º do RJAMT, conjugado com o n.º1 do artigo 152.º do CPTA, é essencial que a contradição entre a decisão arbitral e o acórdão fundamento do STA se consubstancie numa efectiva contradição sobre a “mesma questão fundamental de direito".
G. A jurisprudência constante do STA relativamente aos recursos para uniformização de jurisprudência, tem definido, de forma clara e precisa, os requisitos cumulativos que uma pretensa contradição entre decisões deverá preencher para que se considere que ocorre uma efectiva, e não meramente aparente, contradição sobre a mesma questão fundamental de direito.
H. Os requisitos essenciais e cumulativos para a verificação de uma efectiva contradição sobre a mesma questão fundamental de direito entre uma decisão arbitral e um acórdão do STA que justifique a admissibilidade do recurso para uniformização de jurisprudência, são os seguintes.
a. Existência de identidade da questão de direito (identidade jurídica) apreciada nas decisões em apreço;
b. Existência de identidade substancial das situações fácticas (identidade factual) apreciadas nestas decisões;
c. Não tenha ocorrido alteração substancial da regulamentação jurídica;
d. Existência efectiva de soluções opostas perfilhadas pelas decisões que estão a ser comparadas;
e. Tal oposição deverá decorrer de decisões expressas - i.e. uma oposição expressa entre decisões
I. Ora, para efeitos de existência de oposição, “exige-se que a mesma norma jurídica tenha sido interpretada e aplicada diversamente numa idêntica situação de facto, não podendo ser considerada quando relativamente a um dos acórdãos em oposição vier a ser detectada uma divergência sobre a factualidade apurada que puder ser determinante para a aplicação de um diferente regime jurídico'' (realce e sublinhado nossos) – cf. Acórdão do STA de 3 de Julho de 2019, proferido no processo n.º 0527/18.8BALSB.
J. Conforme conclui o STA na sua vasta e constante jurisprudência sobre esta matéria, "este tipo de recurso pressupõe uma identidade dos factos subjacentes (que terão de ser essencialmente os mesmos do ponto de vista do seu significado jurídico) e uma identidade do regime jurídico aplicado (ainda que em invólucros legislativos diferentes), pois sem essa identidade não será possível vislumbrar a emissão de proposições jurídicas opostas, sobre a mesma questão fundamental de direito, que careça de uniformização jurisprudencial" (realces nossos) - cf. Acórdão do STA de 25 de Janeiro de 2017, proferido no processo n.º 0589/16.
K. Tal significa que se as situações fácticas apreciadas não forem substancialmente idênticas - e damos especial ênfase à necessidade, jurisprudencialmente exigida, de uma identidade substancial e não uma qualquer semelhança entre os factos - e se das diferenças entre estas situações fácticas resultar uma aplicação e interpretação diferenciada das normas jurídicas que incidam sobre as mesmas.
L. Deste modo, no caso vertente, é patente que as (i) situações de facto apreciadas na Decisão Recorrida não correspondem à factualidade subjacente à apreciação realizada no Acórdão Fundamento, e, consequentemente, (ii) o enquadramento jurídico-tributário em sede de IVA conferido no âmbito da Decisão Recorrida não poderia corresponder ao enquadramento em IVA sufragado no Acórdão Fundamento - i.e. tal diferenciação do tratamento jurídico conferido às factualidades diversas em apreço não permite uma "identidade na questão fundamental de direito" apreciada na Decisão Recorrida e no Acórdão Fundamento.
M. Ademais, enquanto que a Decisão Recorrida (bem como a própria argumentação da Recorrida na sua petição inicial apresentada junto do Tribunal a quo) assenta na jurisprudência do TJUE aplicável, em sede de IVA, ao caso concreto e específico da Recorrida - concretamente, o Acórdão GFKL Financial Services AG, de 27 de Outubro de 2011, no processo C-93/10 -, o Acórdão Fundamento assenta numa factualidade distinta que determinou a opção do STA de proceder ao reenvio prejudicial para o TJUE sobre o enquadramento em IVA a conferir à situação de facto ali em análise, reenvio entretanto apreciado por este Tribunal no Acórdão Paulo Nascimento Consulting, de 17 de Outubro de 2019 (processo C-692/17)).
N. Neste âmbito, cumpre notar que no Acórdão Paulo Nascimento Consulting, o próprio TJUE reconheceu que o enquadramento em IVA da situação de facto apreciada no âmbito do reenvio prejudicial era distinta dos factos (nas palavras do TJUE, da "operação") que serviram de base factual para o entendimento proferido no Acórdão GFKL Financial Services AG!
O. Face à prolação do Acórdão Paulo Nascimento Consulting, importa, desde já, destacar que o pedido apresentado pela Recorrente, de que a decisão recorrida deveria ser substituída "por uma nova decisão que determine a suspensão da instância arbitral até à prolação de decisão no processo de reenvio prejudicial pendente do TJUE", reenvio este suscitado pelo Acórdão Fundamento, se tornou entretanto inútil já que a suspensão da instância arbitral não é passível de ser actualmente concretizada em resultado de inexistência de qualquer reenvio prejudicial pendente junto do TJUE.
P. Ora, face às factualidades supra expostas, é inequívoco que, ao contrário do alegado pela Recorrente, a Decisão Recorrida e o Acórdão Fundamento não assentam em factos análogos – i.e. não há uma identidade substancial das situações de facto entre ambas as decisões a comparar –, e, consequentemente, não podem, nem devem, assentar na mesma questão fundamental de direito.
Q. Com efeito, na Decisão Recorrida apreciou-se uma simples cessão definitiva de créditos, enquanto que no Acórdão Fundamento o douto Tribunal apreciara uma operação de cessão de uma posição processual numa acção executiva para cobrança de um crédito reconhecido judicialmente.
R. Para efeitos de IVA, e conforme reconhecido pela própria jurisprudência do TJUE no Acórdão GFKL Financial Services AG (processo C-93/10), e adoptada pelo douto Tribunal a quo, a cessão definitiva de créditos será não sujeita a IVA se estiver reunido o pressuposto factual fundamental de que o preço acordado entre cedente e o cessionário é inferior ao valor nominal total dos mesmos créditos cedidos,
S. Entendimento este igualmente preconizado pela própria Recorrida por Informações Vinculativas por si emitidas, determinando que "a cedência de créditos, a título definitivo, a uma sociedade comercial, legalmente constituída para a atividade de prestamista, realizada ao valor nominal da "cautela" de crédito, se encontra abrangida pelo acórdão citado, pelo que, não chega a considerar-se uma atividade económica abrangida pelo âmbito de aplicação da Diretiva, ficando, portanto, excluída do campo do imposto (n.º 1 do art 1.º, a contrario, do CIVA)" (realces e sublinhados nossos) - cf. Informação Vinculativa nº 12798, de 5 de Fevereiro de 2018.
T. Deste modo, o facto do preço da cessão dos créditos ser inferior ao valor nominal dos mesmos, constitui um facto incontornavelmente essencial para determinar o enquadramento em IVA a conferir a tal operação - i.e. para que esta operação de cessão não seja sujeita a IVA.
U. Com efeito, na cessão definitiva de créditos realizada pela Recorrente e conforme o facto dado como provado pelo Tribunal a quo, o montante do preço devido pelo cessionário é (bastante) inferior ao valor nominal dos créditos; enquanto que no factos fixados como provados no Acórdão Fundamento, o preço da cessão da posição processual na acção executiva para cobrança de um crédito reconhecido judicialmente (€ 351.619,90), foi superior ao valor nominal do crédito objecto desta acção executiva (€ 125.000, acrescido de IVA no valor de € 26.250,00).
V. Deste modo, enquanto que na Decisão Recorrida foi apreciada uma operação de cessão definitiva de créditos, o Acórdão Fundamento tinha como objecto uma operação referente a uma cessão de posição processual numa acção executiva - i.e. estas duas operações têm naturezas jurídicas e contornos contextuais bastante distintos entre si.
W. Diferença factual e jurídica esta confirmada pelo próprio TJUE no âmbito do reenvio prejudicial apresentado pelo Acórdão Fundamento e entretanto apreciado no Acórdão Paulo Nascimento Consulting, de 17 de Outubro de 2019, no processo C-692/17, onde este Tribunal determinou lapidarmente que, "[t]endo em conta as especificidades da operação em causa no processo principal, conforme expostas nos n.ºs 31 a 35 do presente acórdão, quer esta seja qualificada de prestação de serviços quer de entrega de bens, a mesma é, por natureza, diferente da que esta em causa no processo que deu origem ao Acórdão de 27 de outubro de 2011, GFKL Financial Services (C-93/20, EU:C:2011:700). Com efeito, a operação que foi objeto de análise pelo Tribunal de Justiça nesse acórdão consistia na aquisição, por um operador, por sua conta e risco, de créditos duvidosos, a um preço inferior ao valor nominal, e a respeito da qual o Tribunal de justiça concluiu, no n. ° 26 desse acórdão, que um operador que compra esses créditos não efetua uma prestação de serviços a título oneroso nem exerce uma atividade económica abrangida pelo âmbito de aplicação da Sexta Diretiva quando a diferença entre o valor nominal dos referidos créditos e o preço de compra destes reflete o valor económico efetivo dos créditos em causa no momento da cessão. Em contrapartida, a operação em causa no processo principal consiste na cessão, a favor de um terceiro, mediante remuneração, de todos os direitos e obrigações decorrentes da posição que um sujeito passivo detém numa ação executiva para cobrança de um crédito reconhecido judicialmente"cf. Acórdão Paulo Nascimento Consulting, de 17 de Outubro de 2019, no processo C- 692/17, p.36.
X. Em suma, mais do que duas decisões distintas, mas não opostas, estamos perante duas posições diferentes face a diferentes operações praticadas pelos sujeitos passivos de IVA, a saber:
a. a posição assumida pelo TJUE na sua jurisprudência exposta no Acórdão GFKL Financial Services AG (processo C-93/10) e adoptada pelo douto Tribunal a quo na Decisão agora Recorrida, relativamente a operações de cessão definitiva de créditos, que constitui uma operação não sujeita a IVA;
b. a posição do TJUE adoptada no âmbito do Acórdão Paulo Nascimento Consulting (processo C- 692/17) e que respondeu ao reenvio prejudicial suscitado pelo STA no Acórdão Fundamento, relativamente a operações de cessão de posição processual no âmbito de uma acção executiva, que constitui uma operação sujeita e tributada em IVA.
Y. Cumpre notar que, enquanto na Decisão Recorrida a questão de direito suscitada era de se saber se a operação de cessão definitiva de créditos constituía ou não uma operação sujeita a IVA - i.e. se era ou não uma transmissão de bens ou prestação de serviços abrangida pelo escopo de incidência do IVA - (uma questão de qualificação da operação para efeitos de IVA); no Acórdão Fundamento, a questão de direito suscitada era saber se a operação de cessão da posição processual numa acção executiva para cobrança de crédito reconhecido judicialmente, constituía uma prestação de serviços subsumível na isenção de IVA prevista na alínea a) do n.º 27 do artigo 9.º do Código deste imposto (uma questão de aplicabilidade de uma norma de isenção de IVA).
Z. Consequentemente, face às substanciais diferenças supra explanadas entre as factualidades apreciadas na Decisão Recorrida e no Acórdão Fundamento, não existe uma idêntica situação de facto, e de tal inexistência resulta claramente uma diferença de tratamento jurídico-tributário em sede de IVA das operações sub judice.
AA. Deste modo, inexistindo oposição de julgados quando relativamente a um dos acórdãos em oposição vier a ser detectada uma divergência sobre a factualidade apurada que é determinante para a aplicação de um diferente regime jurídico em sede de IVA, o presente Recurso para Uniformização de Jurisprudência não deve proceder.
BB. Sem prejuízo do supra exposto, cumpre ainda reforçar que, ao contrário do alegado pela Recorrente, a Decisão Recorrida esteve bem ao decidir favoravelmente a pretensão da Recorrida, não estando reunidos os pressupostos para o reenvio prejudicial para o TJUE para clarificar o enquadramento em IVA aplicável à operação de cessão definitiva de créditos sub judice.
CC. De facto, e conforme demonstrado acima, o enquadramento em IVA aferido na Decisão Recorrida resulta directamente da jurisprudência clara do TJUE em matéria de cessão definitiva de créditos, mais concretamente, do Acórdão GFKL Financial Services AG, de 27 de Outubro de 2011 (processo C-93/10).
DD. Neste contexto, na cessão definitiva de créditos, "o cessionário de créditos não recebe nenhuma contrapartida por parte do cedente, de modo que não exerce uma actividade económica na acepção do artigo 4.º da Sexta Directiva, nem efectua uma prestação de serviços na acepção do artigo 2.°, ponto 1, desta directiva" (realces e sublinhado nossos) – cf. Acórdão GFKL Financial Services AG, de 27 de Outubro de 2011, no processo C-93/10, ponto 22.
EE. Deste modo, concluiu o TJUE que, "um operador que adquire, por sua conta e risco, créditos duvidosos, a um preço inferior ao seu valor nominal, não efectua uma prestação de serviços a título oneroso, na acepção do dito artigo 2.º, ponto 1, e não exerce uma actividade económica abrangida pelo âmbito de aplicação desta directiva. quando a diferença entre o valor nominal dos referidos créditos e o seu preço de aquisição reflecte o valor económico efectivo dos créditos em causa no momento da sua cessão" (realces e sublinhados nossos) – cf. Acórdão GFKL Financial Services AG, de 27 de Outubro de 2011, no processo C-93/10, ponto 26.
FF. O entendimento da AT supra explanado é igualmente adoptado na resposta ao pedido de informação vinculativa apresentado por um cedente de créditos, a título definitivo, a uma sociedade comercial (cessionária), apreciado no âmbito do processo n.º 12798, emitida no dia 5 de Fevereiro de 2018 (cf. Documento 1), onde a AT concluiu que, "a cedência de créditos, a título definitivo, a uma sociedade comercial, legalmente constituída para a atividade de prestamista, realizada ao valor nominal da "cautela" de crédito, se encontra abrangida pelo acórdão citado, pelo que, não chega a considerar-se uma atividade económica abrangida pelo âmbito de aplicação da Diretiva, ficando, portanto, excluída do campo do imposto (n.º 1 do art. 1.º, a contrario, do CIVA)" (realces e sublinhados nossos).
GG. Face ao supra exposto, é inequívoco que uma cedência de créditos a título definitivo em que o cessionário adquire, por sua conta e risco e sem direito de regresso, créditos ao cedente, a um preço inferior ao valor nominal total dos mesmos créditos cedidos, constitui uma operação económica não sujeita a IVA, nunca podendo ser considerada uma prestação de serviços tributada em sede deste imposto
HH. I.e. quando na cessão definitiva de créditos o preço corresponde ao valor económico dos respectivos créditos, mesmo que este valor económico não corresponda (como será expectável) ao valor meramente nominal dos mesmos, não existe verdadeira onerosidade na operação em apreço, e, consequentemente não há prestação de serviços.
II. II. De notar que, a Recorrente nunca questionou, e bem, na acção inspectiva por si realizada e cujas conclusões se encontram expostas no Relatório Final de Inspecção Tributária, que o preço da cessão definitiva de créditos em apreço não corresponde ao valor económico / efectivo dos créditos.
JJ. Assim, não poderá a Recorrente defender que existe uma prestação de serviços (que, a existir, sempre seria prestada pelo adquirente) no caso em apreço.
KK. Pelo que é indiscutível que, o TJUE no Acórdão citado e a AT nas Informações Vinculativas invocadas, qualificam uma operação de cessão de créditos como não tributável em IVA quando os créditos resultem do exercício de uma actividade económica desenvolvida pela Recorrida.
LL. Deste modo, e ao contrário do alegado pela Recorrente, não ocorre qualquer inexistência de acto claro que exija um (novo) reenvio prejudicial para o TJUE com vista a clarificar o enquadramento em IVA a conferir à cessão definitiva de créditos efectuada pela Recorrida, e, não deve a Decisão Recorrida ser anulada e ser substituída por uma decisão arbitral que suscite tal desnecessário reenvio prejudicial.
MM. Em suma, a Decisão Recorrida não incorre em nenhum erro de julgamento, não violando o disposto na alínea c) do n.º 1 do artigo 269.º e do n.º 1 do artigo 272.º, ambos do CPC.
Nestes termos, e nos mais de Direito que Vossas Excelências suprirão, deverá o presente Recurso ser dado como improcedente, por não provado e, em consequência, manter-se válida na ordem jurídica a sentença proferida pelo Tribunal a quo, tudo com as legais consequências.

3 - O Excelentíssimo Procurador-Geral Adjunto junto deste Tribunal emitiu parecer no sentido de que o recurso não deve ser admitido

4 - Notificadas as partes do teor desse parecer nada disseram.

5 - Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

II – Fundamentação

1. De facto
Na decisão arbitral recorrida deu-se como assente a seguinte factualidade concreta:
A. A Requerente é uma entidade sediada em Portugal, cujo objecto social inclui a compra e venda e aluguer de bens, equipamentos e veículos automóveis com e sem condutor, a prestação de serviços de gestão de frotas automóveis, bem como o exercício de qualquer actividade acessória ou com esta relacionada.
B. O aluguer operacional de veículos automóveis é a principal actividade desenvolvida pela Requerente desde o início da sua actividade em 1994.
C. A Requerente encontra-se enquadrada no regime normal de periodicidade mensal em sede de IVA.
D. No âmbito da sua actividade, e com referência a vários contratos de aluguer operacional de veículos com diversos clientes e por diferentes quantias, a Requerente era titular de créditos em mora por falta de pagamento dos seus clientes/locatários devedores, tendo estes mesmos contratos cessado por incumprimento.
E. A 10/1/2018, a Requerente celebrou um contrato de cessão de créditos com a X…………, S.A., enquanto cessionária, através do qual a Requerente cedeu à cessionária “que aceita a cessão, os créditos e direitos de que a primeira das referidas sociedades é titular, à data da assinatura do presente contrato, emergentes dos contratos cuja lista está junta como Anexo I ao presente contrato, do qual faz parte integrante” (Cláusula Primeira, n.º 1, do referido contrato; vd. Doc. 3 apenso).
F. Segundo o supra referido contrato, “o valor nominal dos créditos cedidos corresponde ao valor que consta na lista anexa como Anexo I” (Cláusula Primeira, n.º 2; vd. Doc. 3), valor este que foi fixado, à data de celebração do contrato, em €2.367.840,29 (vd. Anexo I).
G. Nos termos da Cláusula Primeira, n.º 3, do supra referido contrato, “a cessão acordada constitui uma transmissão definitiva dos créditos com transferência para a cessionária dos créditos, incluindo suas garantias e direitos acessórios quando existam”.
H. Nos termos da Cláusula Terceira, n.º 2, do supra referido contrato, a cessão “é definitiva e não envolve qualquer promessa de futura restituição do preço (ou de parte dele) pelo que a cessionária não goza do direito de regresso sobre a Z………… quando não consiga cobrar os créditos dos devedores, seus fiadores ou avalistas”.
I. Nos termos da Cláusula Primeira, n.º 4, do supra referido contrato, a cessão “compreende quer o direito da cessionária à cobrança dos créditos que a Z………… possui nesta data sobre os titulares dos contratos, em razão das operações realizadas pelos devedores, quer a assunção pela cessionária dos demais direitos que a Z………… possui em virtude dos mencionados contratos objecto de cessão”.
J. Pela cessão definitiva de créditos efectuada pela Requerente à cessionária foi acordado um preço global de €130.000, valor correspondente a 5% do valor nominal total da carteira de contratos a ceder (vd. Cláusula Segunda, n.º 2).
K. A 31/1/2018, a Requerente emitiu factura à cessionária (factura n.° SMI/3576), com o descritivo “Venda de carteira de contencioso (contrato de cessão de créditos)”, com o valor de €130.000, não liquidando IVA na mesma (v. Doc. 4 apenso). Posteriormente, a Requerente solicitou, na sua declaração periódica de IVA, relativa ao período de tributação de Janeiro de 2018, o reembolso integral do montante de crédito a seu favor neste mesmo período, no montante de €713.517,15.
L. A ora Requerente foi objecto de uma acção de inspecção, de âmbito parcial, em sede de IVA, tendo a análise incidido sobre os períodos de tributação de Novembro e Dezembro de 2017 e de Janeiro de 2018, levada a cabo pelos SIT no âmbito da Ordem de Serviço n.º OI201801792.
M. A ora Requerente foi notificada do Projecto de Correcções do Relatório de Inspecção, através do Ofício n.º 00018467, de 29/6/2018, no âmbito do qual a AT propôs o deferimento parcial do pedido de reembolso solicitado pela Requerente, em face da alegada falta de liquidação de IVA na operação de cessão de créditos supra referida, propondo, em consequência, uma correcção de imposto no montante global de €29.900 - valor este correspondente ao montante de IVA entendido como a liquidar nesta operação, à taxa de 23%, incidente sobre o preço da cessão no montante de €130.000 (vd. Doc. 5 apenso).
N. A ora Requerente exerceu atempadamente o seu direito de audição face às correcções propostas no Projecto acima mencionado, defendendo que a operação de cessão de créditos em causa não constitui uma operação sujeita a IVA, conforme o entendimento veiculado pelo TJUE e pela própria AT relativamente a este tipo de operações (vd. Doc. 6 apenso).
O. A 27/8/2018, a Requerente foi notificada do Relatório de Inspecção, no âmbito do qual a AT consolidou o entendimento prévio acima exposto, mantendo a correcção de IVA no montante de €29.900. Consequentemente, a 12/9/2018 a Requerente é notificada do acto tributário de demonstração de liquidação de IVA em causa nos presente autos (vd. Doc. 1 apenso)
P. Em resultado das correcções efectuadas e da referida demonstração de liquidação de IVA, o montante de crédito de imposto reportado/reembolso solicitado (€713.517,15) na declaração periódica em causa foi reduzido para o montante de €683.617,15.
Q. A Requerente interpôs o seu pedido de constituição de tribunal arbitral em 10/12/2018. IV.2. Factos não provados
R. Inexistem outros factos com relevo para apreciação do mérito da causa que não se tenham provado.

O acórdão do Supremo Tribunal Administrativo no qual a recorrente se apoia, como fundamento do recurso de uniformização de jurisprudência, deu como assente a seguinte factualidade concreta:
1. Em Novembro de 2006, A…………, LDA., no exercício da sua actividade de mediação imobiliária, foi contactada por C…………, tendo ficado acordado que mediaria, em regime de exclusividade, por preço não inferior a € 1.600.000,00, a venda de um prédio rústico sito em Alto de São João (cfr. facto admitido por acordo das partes);
2. Em Março de 2007, a sociedade D…………, SA, manifestou a A…………, LDA., interesse na aquisição do prédio (cfr. facto admitido por acordo das partes);
3. C………… não vendeu o prédio à D……….., SA (cfr. facto admitido por acordo das partes);
4. A…………, LDA, intentou no Tribunal de Família e Menores e de Comarca de Portimão acção declarativa de condenação sob a forma de processo ordinário contra C………… pedindo, além do mais, a condenação desta no pagamento de € 125.000,00, acrescidos de IVA e juros, aí tendo alegado "que prestou integralmente os serviços de mediação imobiliária e que a venda só não foi concretizada por inteira responsabilidade da Ré, pelo que tem direito a receber a comissão acordada" (cfr. facto admitido por acordo das partes);
5. Em 30 de Setembro de 2010, transitou em julgado a sentença proferida na Acção com processo Ordinário n° 765/08.1TBPTM, que correu termos no Tribunal de Família e Menores e de Comarca de Portimão, que condenou C………… a pagar a A…………, LDA, a quantia de € 125.000,00, ”acrescida da quantia devida a título de IVA sobre a mesma, na data em que for efectuado o pagamento, e dos juros de mora vencidos desde a data da citação da Ré e vincendos até integral pagamento" (cfr. facto admitido por acordo das partes);
6. Aquela sentença, que aqui se dá por integralmente reproduzida, tem, no que ora interessa, o seguinte teor:
"(...) Temos, assim, que o contrato de mediação imobiliária celebrado pelas partes é válido e que a Autora tem direito à remuneração acordada por o contrato ter sido celebrado em regime de exclusividade e o negócio visado com o contrato não ter sido concluído com perfeição por causa imputável à Ré. Apenas se dirá, no que respeita ao IVA sobre o valor da remuneração, que ele tem que ser calculado de acordo com a percentagem que legalmente vigorar quando for feito o pagamento, pois é nessa altura que a Autora irá entregar o imposto nos cofres do Estado (e não antes porque ainda não facturou o serviço), sendo certo que actualmente o seu valor não é de 21% mas de 20%. (...)”;
(cfr. facto admitido por acordo das partes);
7. No dia 29 de Setembro de 2010, A…………, LDA, cedeu a B…………, Lda., o crédito que se encontrava a ser executado por apenso à acção identificada no n°.5 supra, nos termos que aqui se dão por reproduzidos (cfr. documento junto a fls. 18 a 20 dos presentes autos);
8. Ficou declarado naquela cessão que tal negócio foi efectuado no valor de € 351.619,90, pagos pela B………… à A…………, LDA., através de cheque na mesma data (cfr. documento junto a fls. 18 a 20 dos presentes autos);
9. No dia 11 de Fevereiro de 2011, foi entregue, via internet, a declaração periódica de IVA relativa ao período 2010/12T de A…………, LDA (cfr. informação junta a fls. 60 a 67 dos presentes autos e lavrada no âmbito de processo de recurso hierárquico);
10. Os serviços de inspecção tributária concluíram que naquela declaração não foi contabilizada correctamente a operação associada à cessão da posição processual (cfr. cópia de relatório de inspecção junta a fls. 45 a 56 dos presentes autos);
11. Consequentemente, em 24 de Junho de 2014 foi emitida a liquidação de IVA n° 14015595 e respectivos juros, no valor global de €83.647,77 (€ 73.840,18 + € 9.807,59) - actos impugnados (cfr. documentos juntos a fls. 16 e 17 dos presentes autos);
12. No dia 17 de Outubro de 2014, A…………, LDA., solicitou três estudos para a prestação de garantias bancárias a favor da Autoridade Tributária e Aduaneira (cfr. documento junto a fls. 92 e seg. dos presentes autos);
13. Em 28 de Novembro de 2014, foi associada garantia ao processo executivo instaurado para cobrança da dívida emergente da falta de pagamento tempestivo da liquidação impugnada (cfr. documento junto a fls. 88 do processo administrativo apenso).
X
Por sua vez, a fundamentação da decisão da matéria de facto constante da sentença recorrida é a seguinte: “...Os documentos referidos não foram impugnados pelas partes e não há indícios que ponham em causa a sua genuinidade...
X
Levando em consideração que a decisão da matéria de facto em 1ª Instância se baseou em prova documental constante dos presentes autos e apenso, este Tribunal julga provada a seguinte factualidade que se reputa igualmente relevante para a decisão do recurso e aditando-se, por isso, ao probatório nos termos do art° 662, n.º 1, do C.P.Civil (“ex vi” do art°. 281, do C.P.P.Tributário):
14. No ano de 2010 a sociedade impugnante, “A…………, LDA, com o n.i.p.c. ………, era sujeito passivo de I.V.A., enquadrado no regime normal e trimestral (cfr. cópia de relatório de inspecção junta a fls. 45 a 56 dos presentes autos);
15. A conclusão a que chegaram os serviços de inspecção tributária e a que alude o n°. 10 supra baseou-se no seguinte (cfr. cópia de relatório de inspecção junta a fls. 45 a 56 dos presentes autos):
“(...)
Tomou esta Direcção de Finanças conhecimento de que o referido contribuinte cedeu, em 29/09/2010, pelo valor de € 351.619,90, a posição processual que detinha junto do processo judicial n°. 765/08. ITBPTM-B, a correr trâmites no 2º. Juízo Cível do Tribunal de Família e Menores e de Comarca de Portimão, com a inclusão de todos os direitos litigiosos daí advenientes (anexo II).
(...)
Analisado o enquadramento em sede de IVA a aplicar à referida cessão de posição processual, foi entendido (...) que “consistindo essa operação na cedência de um direito, a título oneroso, por um sujeito passivo agindo como tal, integra a mesma o conceito de prestação de serviços, tal como este se encontra definido no n.º 1, do art.º 4 do CIVA, estando, assim, sujeita a IVA, nos termos do disposto na al. a), do n°. 1, do art.º 1 do CIVA, e dele não isenta, por não se encontrar abrangida por qualquer isenção prevista no referido Código”.
(...)
Da análise efectuada aos elementos contabilísticos da sociedade em apreço, detectou-se contudo que a operação relativa à comissão de intermediação imobiliária devida segundo decisão do Tribunal e a operação relativa à cessão da posição processual junto do processo judicial n°. 765/08. ITBPTM-B (...) foram ambas contabilizadas em Outubro de 2010 da seguinte forma (anexo III):
1. Lançamento n°. 10.001 - creditada a conta "7211 - Serviços Prestados" pelo valor da comissão de € 125.000,00 e a conta "243511 - IVA Liquidado" pelo valor de € 26.250,00, tendo este último sido declarado na declaração periódica do 4°. trimestre de 2010. (...)
2. Lançamento n° 10.000 - creditada a conta ”78881 - Outros Proveitos não Especificados" pelo valor do remanescente de € 200.369,90 (€ 351.619,90 - € 125.000,00 - € 26.250,00), não tendo procedido a qualquer liquidação de IVA.,
Ora, tratando-se de duas operações tributáveis distintas (comissão de intermediação imobiliária e cessão de posição em processo judicial), apenas se pode concluir que o sujeito passivo em apreço não contabilizou correctamente a operação associada à cessão da posição processual que detinha junto do processo judicial n.º 765/08.1TBPTM-B, daí resultando a seguinte correcção a nível de IVA (4°. Trimestre de 2010, dado a contabilização da operação ter sido em Outubro):




III. De direito
1. Da admissibilidade do recurso

1.1. Constituem requisitos de admissibilidade do presente recurso à data em que o mesmo foi interposto:
1.º que a decisão arbitral se tenha pronunciado sobre o mérito da pretensão deduzida e tenha posto termo ao processo arbitral (artigo 25.º, n.º 2, primeira parte, do Regime Jurídico da Arbitragem em matéria Tributária – doravante identificado pela sigla “RJAT”);
2.º que esteja em oposição, quanto à mesma questão fundamental de direito, com acórdão proferido pelo Tribunal Central Administrativo ou pelo Supremo Tribunal Administrativo ou com outra decisão arbitral (artigo 25.º, n.º 2, segunda parte, do mesmo diploma);
3.º que a orientação perfilhada na decisão arbitral não esteja de acordo com a jurisprudência mais recente consolidada do Supremo Tribunal Administrativo [artigo 152.º, n.º 3, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, aplicável a coberto do n.º 3 do artigo 25.º daquele outro diploma].
4.º que o acórdão fundamento tenha transitado em julgado (artigo 688.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, aplicável por força do disposto no artigo 140.º, n.º 3, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos e do 281.º do CPPT).
Entende-se que é a mesma a questão fundamental de direito quando:
i) as situações fácticas em ambos os arestos sejam substancialmente idênticas, entendendo-se, como tal, para este efeito, as que sejam subsumidas às mesmas normas legais;
ii) o quadro legislativo seja também substancialmente idêntico, o que sucederá quando seja o mesmo o regime jurídico aplicável ou quando as alterações legislativas a relevar num dos acórdãos não interfira, nem directa nem indirectamente, na resolução da questão de direito controvertida.
Finalmente, entende-se que os dois acórdãos estão em oposição entre si quando se opõem as decisões respectivas (e já não será assim quando apenas se oponham os seus fundamentos).
Atenta a complexidade destes requisitos o legislador impõe, além do mais, que na petição do recurso sejam identificados, de forma precisa e circunstanciada, os aspectos de identidade que determinam a contradição alegada – n.º 2 do artigo 152.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, aplicável por força do n.º 3 do artigo 25.º do RJAT (e que reproduz o que actualmente consta do n.º 2 do artigo 284.º do Código do Procedimento e do Processo Tributário).
Cumpre analisar se estão verificados estes pressupostos de admissão do recurso.

Ora, como iremos demonstrar, apesar de os dois processos contenderem com “cessão de créditos” não existe identidade no quadro factual que permita afirmar que estamos perante situações fácticas substancialmente idênticas, o que é suficiente para, em tese, justificar as diferentes soluções de direito alcançadas nas duas decisões cuja oposição entre si vem alegada.

Senão vejamos.

1.2. A decisão arbitral recorrida respeita a um contrato de cessão de créditos pelo qual a aqui Recorrida procedeu à transmissão definitiva de créditos no valor nominal de €2.367.840,29 para a cessionária, incluindo as respectivas garantias e direitos económicos quando existissem, pelo valor de €130.000 e o Tribunal arbitral entendeu que era necessário apurar se esta operação jurídica constituía ou não uma operação sujeita a IVA, tendo concluído que seria de aplicar ao caso o decidido pelo TJUE no acórdão Finanzamt EssenNordOst v. GFKL Financial Services AG (proc. C-93/10), segundo o qual: “Os artigos 2.°, ponto 1, e 4.° da Sexta Directiva 77/388/CEE do Conselho, de 17 de Maio de 1977, relativa à harmonização das legislações dos EstadosMembros respeitantes aos impostos sobre o volume de negócios – Sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado: matéria colectável uniforme, devem ser interpretados no sentido de que um operador que adquire, por sua conta e risco, créditos duvidosos, a um preço inferior ao seu valor nominal, não efectua uma prestação de serviços a título oneroso, na acepção do dito artigo 2.°, ponto 1, e não exerce uma actividade económica abrangida pelo âmbito de aplicação desta directiva, quando a diferença entre o valor nominal dos referidos créditos e o seu preço de aquisição reflecte o valor económico efectivo dos créditos em causa no momento da sua cessão”. Com fundamento na orientação interpretativa fixada no referido aresto do TJUE, o Tribunal Arbitral anulou a liquidação do IVA.
Já o acórdão fundamento deste Supremo Tribunal Administrativo analisou um caso em que o cedente era titular de um crédito judicialmente reconhecido, resultante do incumprimento de um contrato de mediação imobiliária, no valor de €125.000,00 (acrescido de IVA e dos juros de mora vencidos desde a data da citação da Ré e vincendos até integral pagamento) e o cedeu a um terceiro pelo valor de €351.619,90. O Tribunal, na sua decisão, considerou existirem especificidades que o impediam de poder afirmar com segurança se aquela operação estaria ou não incluída nos conceitos de “concessão” “negociação” ou “gestão” de créditos empregues pelo artigo 135.º, n.º 1, alínea b) da Directiva IVA, razão pela qual procedeu ao reenvio prejudicial para o TJUE, formulando a seguinte questão: ““A cessão, efectuada a título oneroso, por um sujeito passivo de IVA a um terceiro, da posição processual que detém numa acção executiva para cobrança de um crédito reconhecido judicialmente resultante do incumprimento de um contrato de mediação imobiliária, acrescido de IVA à taxa em vigor à data em que for efectuado o pagamento e de juros de mora vencidos e vincendos até integral pagamento, cabe no conceito de “concessão” “negociação” ou “gestão” de créditos para efeitos de aplicação da isenção prevista no artigo 135.º, n.º 1, alínea b) da Directiva IVA?”.

1.3. O confronto entre a factualidade subjacente às decisões, os respectivos fundamentos e o seu conteúdo e sentido, que antes procurámos resumir, permite compreender que não existe identidade do quadro factual, porquanto na decisão recorrida está em causa um negócio jurídico sobre créditos de cobrança incerta e no acórdão fundamento um negócio jurídico, cuja caracterização o Supremo Tribunal Administrativo considerou duvidosa, face às suas especificidades e em que o crédito se encontra judicialmente reconhecido, pelo que a incerteza neste caso se circunscreve à solvabilidade do devedor. Acresce que o reenvio se fundamentou na especificidade do negócio jurídico e nas dúvidas que o Tribunal expressou quanto à sua correcta qualificação para efeitos de Directiva IVA; especificidades que não se verificam no caso da cessão de créditos que está subjacente à decisão arbitral impugnada.

Ora, esta diferença no quadro factual, a que se junta a discricionariedade do julgador na interpretação do que seja ou não “acto claro”, é determinante do diferente resultado a que chegam as decisões em confronto quanto à necessidade ou desnecessidade de promover o reenvio prejudicial e impede a verificação nesta sede, do requisito da existência de oposição entre os julgados.



IV. Decisão
Em face do exposto, os juízes do Pleno da Secção do Contencioso Tributário deste Supremo Tribunal Administrativo acordam em não tomar conhecimento do recurso.


Custas pela Recorrente.
Registe-se, notifique-se e comunique-se ao CAAD.

Lisboa, 4 de Novembro de 2020 – Suzana Maria Calvo Loureiro Tavares da Silva (relatora) – Isabel Cristina Mota Marques da Silva – Francisco António Pedrosa de Areal Rothes – Jorge Miguel Barroso de Aragão Seia – José Gomes Correia – Joaquim Manuel Charneca Condesso – Nuno Filipe Morgado Teixeira Bastos – Aníbal Augusto Ruivo Ferraz – Paulo José Rodrigues Antunes – Gustavo André Simões Lopes Courinha – Paula Fernanda Cadilhe Ribeiro – Pedro Nuno Pinto Vergueiro – Anabela Ferreira Alves e Russo.