Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0238/14
Data do Acordão:03/24/2014
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:VÍTOR GOMES
Descritores:RECURSO DE REVISTA EXCEPCIONAL
NÃO ADMISSÃO DO RECURSO
Sumário:Não estão preenchidos os requisitos exigidos pelo n.º 1 do art.º 150.º do CPTA para admissão de recurso de acórdão que não apresenta erro evidente ou aplicação de critério ostensivamente inadmissível e em que não é identificada uma questão de direito precisamente determinada que possa assumir importância fundamental.
Nº Convencional:JSTA000P17273
Nº do Documento:SA1201403240238
Data de Entrada:02/26/2014
Recorrente:A....
Recorrido 1:SERVIÇO DE ESTRANGEIROS E FRONTEIRAS
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Formação de Apreciação Preliminar

Acordam na Secção do Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo

1. A………, natural dos Camarões, interpõe recurso, ao abrigo do art.º 150.º do CPTA, do acórdão do TCA Sul de 26/9/2013, que negou provimento a recurso de sentença do TAC de Lisboa que julgou improcedente acção por si instaurada contra o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras relativa ao pedido de asilo e de autorização de residência por razões humanitárias.

Não houve contra-alegaçoes.

2. As decisões proferidas pelos tribunais centrais administrativos em segundo grau de jurisdição não são, em regra, susceptíveis de recurso ordinário. Apenas consentem recurso nos termos do n.º 1 do art.º 150.º do CPTA, preceito que dispõe que das decisões proferidas em segunda instância pelo Tribunal Central Administrativo pode haver, a título excepcional, recurso de revista para o Supremo Tribunal Administrativo “quando esteja em causa a apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental” ou “quando a admissão do recurso seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito”.
Como se refere na exposição de motivos do CPTA "num novo quadro de distribuição de competências em que o TCA passa a funcionar como instância normal de recurso de apelação, afigura-se útil que, em matérias de maior importância, o Supremo Tribunal Administrativo possa ter uma intervenção que, mais do que decidir directamente um grande número de casos, possa servir para orientar os tribunais inferiores, definindo o sentido que deve presidir à respectiva jurisprudência em questões que, independentemente de alçada, considere mais importantes. Não se pretende generalizar o recurso de revista, com o óbvio inconveniente de dar causa a uma acrescida morosidade na resolução dos litígios. Ao Supremo Tribunal Administrativo caberá dosear a sua intervenção, de forma a permitir que esta via funcione como válvula de segurança do sistema".
Para o efeito, constitui questão jurídica de importância fundamental aquela – que tanto pode incidir sobre direito substantivo como adjectivo – que apresente especial complexidade, seja porque a sua solução envolva a aplicação e concatenação de diversos regimes legais e institutos jurídicos, seja porque o seu tratamento tenha suscitado dúvidas sérias, ao nível da jurisprudência, ou da doutrina. E, tem-se considerado de relevância social fundamental questão que apresente contornos indiciadores de que a solução pode corresponder a um paradigma ou contribuir para a elaboração de um padrão de apreciação de casos similares, ou que tenha particular repercussão na comunidade.
A admissão para uma melhor aplicação do direito justifica-se quando questões relevantes sejam tratadas pelas instâncias de forma pouco consistente ou contraditória, com recurso a interpretações insólitas, ou por aplicação de critérios que aparentem erro ostensivo, de tal modo que seja manifesto que a intervenção do órgão de cúpula da justiça administrativa é reclamada para dissipar dúvidas acerca da determinação, interpretação ou aplicação do quadro legal que regula certa situação.

3. Convém ter presente o teor do acórdão recorrido que é, na parte pertinente, o seguinte:

“Veio o presente recurso jurisdicional interposto da sentença do TAC de Lisboa que julgou improcedente por não provada a acção de condenação à prática de acto devido intentada pelo ora Recorrente contra o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), tendente à anulação do seu pedido de asilo e de autorização de residência por razões humanitárias.
A questão a dilucidar prende-se assim em saber se, no caso concreto, se mostram preenchidos os requisitos para a concessão do direito de asilo ou de autorização de residência por razões humanitárias conforme a Lei nº 27/2008, de 30 de Junho, diploma que estabelece as condições e procedimentos de concessão de asilo ou protecção subsidiária.
A propósito do direito de asilo estatui o artigo 3º da referida Lei o seguinte:
1 - É garantido o direito de asilo aos estrangeiros e aos apátridas perseguidos ou gravemente ameaçados de perseguição, em consequência de actividade exercida no Estado da sua nacionalidade ou sua residência habitual em favor da democracia, da libertação social e nacional, da paz entre os povos, da liberdade e dos direitos da pessoa humana.
2 - Tem ainda direito à concessão de asilo os estrangeiros e os apátridas que, receando com fundamento ser perseguidos em virtude da sua raça, religião, nacionalidade, opiniões políticas ou integração em certo grupo social, não possam ou, por esse receio, não queiram voltar ao Estado da sua nacionalidade ou da sua residência habitual”.
Constata-se do nº 1 do citado artigo 3º que os actos de perseguição mencionados só fundamentam o pedido de asilo quando a pessoa perseguida tenha tido uma actividade em prol da democracia, da libertação social e nacional, da paz entre os povos, da liberdade e dos direitos da pessoa humana.
Por sua vez, os actos de perseguição mencionados no nº 2 do artigo 3º devem constituir uma flagrante violação dos direitos humanos, sob pena de qualquer cidadão comum vítima de perseguição, por qualquer motivo, poder vir a pedir asilo. O que vale por dizer que o instituto do asilo não visa propriamente substituir-se ao regime criminal dos países de onde os cidadãos que requerem o asilo são originários.
A propósito o artigo 5º da mesma Lei esclarece que os actos de perseguição susceptíveis de fundamentar o direito de asilo, para efeitos do artigo 3º, devem constituir, pela sua natureza ou reiteração, grave violação de direitos fundamentais, ou traduzir-se num conjunto de medidas que, pelo seu cumulo, natureza ou repetição, afectem o estrangeiro ou apátrida de forma semelhante à que resulta de uma grave violação de direitos fundamentais (cfr. n 1), podendo tais actos, nomeadamente, assumir as formas de actos de violência física ou mental, inclusive de natureza sexual ou actos cometidos especificamente em razão do género (cfr. nº 2).
No caso em apreço o Autor ora Recorrente não alegou no seu requerimento de asilo, nem nos depoimentos que produziu nos Serviços de Estrangeiros e Fronteiras que tenha alguma vez exercido no Estado da sua nacionalidade e residência habitual, nos Camarões, qualquer actividade em prol da democracia, da libertação social e nacional, da paz entre os povos, da liberdade e dos direitos da pessoa humana.
Do mesmo modo, também não foi eventualmente perseguido por ser cristão, mas sim, segundo alega, por estar em desacordo com os rituais em uso no seu país no tocante à transmissão de poderes e usos post mortem de pais para filhos.
Assim, a alegada perseguição não é religiosa, étnica ou política mas antes decorrente do facto de o ora recorrente não querer seguir a tradição do país de origem, a qual sendo embora difícil de aceitar pelo padrão civilizacional europeu, por certo não constitui o que se designa de “actos violentos”.
Por outro lado ainda, cabe ao requerente do pedido de asilo o ónus da prova dos factos que alega, face ao disposto no artigo 18º nº 4 da citada Lei, sendo certo porém que o mesmo nº 4 excepciona tal prova quando estejam reunidas cumulativamente as condições referidas nas suas diversas alíneas, entre elas “ as declarações prestadas pelo requerente forem consideradas coerentes, plausíveis, e não contraditórias face às informações disponíveis e a credibilidade geral do requerente”.
Importa ainda salientar que o “ beneficio da duvida” a que alude o manual de procedimentos e critérios a aplicar para determinar o estatuto de refugiado de acordo com a Convenção de 1951 e o Protocolo de 1967 relativos ao estatuto dos refugiados, Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados, Genebra, Janeiro de 1992, deverá, apenas, ser concedido quando todos os elementos de prova disponíveis tenham sido obtidos e confirmados e “ quando o examinador esteja satisfeito no respeito à credibilidade geral do requerente. As declarações do requerente deverão ser coerentes e plausíveis e não deverão ser contraditórias face à generalidade dos factos conhecidos”:
Do exposto infere-se que a opinião do funcionário que procede à audição do peticionante é relevante dado que só o contacto directo com este permitirá aferir a credibilidade do seu depoimento, bem como da sua credibilidade geral como pessoa.
E assim sendo, salvo caso de erro grosseiro por parte da entidade aqui recorrida, não pode o tribunal sindicar a opinião desta no tocante a este requisito (credibilidade do depoimento) a qual é de vital importância para a concessão do asilo peticionado.
Por ultimo, valem os argumentos utilizados também para o pedido de autorização de residência uma vez que, nos termos do artigo 34º da citada Lei nº 27/2008 “As disposições constantes das Secções I, II, III, e IV do presente Capítulo são correspondentemente aplicáveis às situações previstas no artigo 7º.”
Assim, nos termos do artigo 7º:
1 - É concedida autorização de residência por razões humanitárias aos estrangeiros e aos apátridas a quem não sejam aplicáveis as disposições do artigo 3º e que sejam impedidos ou se sintam impossibilitados de regressar ao país da sua nacionalidade ou da sua residência habitual, quer atendendo à sistemática violação dos direitos humanos que aí se verifique, quer por correrem o risco de sofrer ofensa grave.
2 - Para efeitos do nº 2 considera-se ofensa grave, nomeadamente:
a) A pena de morte ou execução;
b) A tortura ou pena ou tratamento desumano ou degradante do requerente no seu país de origem; ou
c) A ameaça grave contra a vida ou a integridade física do requerente, resultante de violência indiscriminada em situações de conflito armado internacional ou interno ou de violação generalizada e indiscriminada de direitos humanos.”
Ora, como bem observou o Mmo. Juiz a quo no tocante à verificação dos pressupostos contidos no artigo 7º, “ O Autor nada refere quanto à incapacidade ou passividade das autoridades do seu país de origem em conferir-lhe protecção, para alem de que, como também assinala a entidade demandada, não apresenta argumentos válidos para não ter ficado num dos países africanos por onde alegadamente passou ou não ter solicitado protecção às referidas autoridades, sendo que permaneceu vários dias em alguns desses países, o que nos permite pôr em causa a necessidade de protecção.
Quando lhe perguntaram porque é que não ficou num dos países de África por onde passou respondeu que em alguns não ficou por causa da insegurança, noutros por serem países muçulmanos, sendo ele cristão. Nos presentes autos disse que os países africanos por onde passou, não sendo Estados laicos, nunca poderão ser considerados países seguros para quem professa a religião cristã. A perseguição religiosa, por ser comum face ao proselitismo islâmico, é notícia diária nos órgãos de informação e não espanta.
Sendo que, como também refere a entidade demandada, é sobre o requerente que incide o ónus da alegação e de comprovação dos factos concretos tendentes ao preenchimento dos pressupostos essenciais com vista à concessão de autorização de residência por razões humanitárias, de modo a permitir à Administração a aplicação do direito e a correcta subsunção desses factos ao direito aplicado”.
Tais considerandos não merecem em nosso entender qualquer censura, pelo que não se evidencia nenhuma situação limite exigida pelo nº 2 do artigo 7º para ser concedida residência por razões humanitárias ao aqui Recorrente.”


4. A questão central que o recorrente pretende ver apreciada gira, nas palavras do recorrente, “em torno da aplicação do benefício da dúvida, na qual haverá que aferir da sua coerência e plausibilidade [ entende-se, dos fundamentos concretos da pretensão de asilo ] em face dos factos públicos e conhecidos sobre o seu país de origem. Esta ponderação permitir-nos-á decidir pela justeza da invocação do recorrente, do princípio do benefício da dúvida, nomeadamente no que se refere aos factos do seu relato, constitutivos do direito à protecção subsidiária”. Insurge-se o recorrente contra a relevância atribuída pelo acórdão à opinião do examinador por, no seu entender, se tratar de “pessoa que não detém quaisquer conhecimentos sobre o país de origem, existindo o sério receio do recorrente, como um estado de espírito, logo uma condição subjectiva e outro objectivo na determinação se esse receio existe”.

Vistas as alegações em confronto com o decisão contra que se insurge, forçoso é concluir que o recorrente não logra identificar questões jurídicas precisamente determinadas sobre o direito de asilo e concessão de residência por razões humanitárias e respectivo procedimento com viabilidade de repercussão no caso concreto. Formula genéricas considerações a este propósito e sobre os pressupostos do recurso excepcional de revista, mas com directa incidência sobre o acórdão recorrido a crítica recai sobre matéria excluída do âmbito possível do recurso interposto. Efectivamente, o erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objecto de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova ( n.º 4 do art.º 150.º do CPTA). Ora, o que poderá estar em causa, face aos termos da alegação de recurso e no confronto com o acórdão recorrido, é a concreta valoração das provas e não o critério jurídico da sua apreciação. Na verdade, o acórdão reconheceu o critério do “benefício da dúvida” na determinação dos pressupostos de facto invocados pelo requerente do estatuto de refugiado, mas afastou criticamente a pretensão considerando que nada lhe permitia contrariar a opinião do funcionário que procedeu à audição do peticionante quanto à insubsistência objectiva de justo receio de regressar ao país de que é nacional. Opinião essa que é fundada na natureza dos factos invocados e na falta de credibilidade do relato. Trata-se inquestionavelmente de valoração global e concreta dos elementos de prova e não de uma questão de direito sobre a prova, ainda que se atribua – o que agora não importa averiguar – natureza de princípio juridicamente vinculante ao referido “benefício da dúvida”.

Assim, não incorrendo o acórdão, nos raciocínios lógicos e jurídicos que suportam a decisão proferida, em erro evidente ou em aplicação de critério ostensivamente inadmissível e não identificando o recorrente uma questão de direito precisamente determinada que possa assumir importância fundamental, não estão preenchidos os requisitos exigidos pelo n.º 1 do art.º 150.º do CPTA para admissão do recurso.

5. Decisão
Pelo exposto, decide-se não admitir a revista.

Sem custas, por isenção objectiva.
Lisboa, 24 de Março de 2014. – Vítor Gomes (relator) – Abel Atanásio – Alberto Augusto Oliveira.