Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:02445/15.2BELSB
Data do Acordão:11/27/2019
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:MARIA BENEDITA URBANO
Descritores:ATRASO NA JUSTIÇA
RESPONSABILIDADE CIVIL
PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO
Sumário:I – O TEDH já entendeu que a fase procedimental, na medida em que constitua um obstáculo de facto ao acesso aos tribunais, poderá ser contabilizada para efeitos de apuramento do prazo razoável (Golder c. Reino Unido, n.º 4451/70, § 32, 21 fevereiro 1975).
II – O TEDH tem afirmado que o apuramento da razoabilidade da duração do processo nos termos do artigo 6 § 1 da CEDH deve ter em conta as particulares circunstâncias de cada caso (cfr. Frydlender c. França [GC], § 43).
Nº Convencional:JSTA000P25217
Nº do Documento:SA12019112702445/15
Data de Entrada:10/18/2019
Recorrente:A.......
Recorrido 1:ESTADO PORTUGUÊS
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam em conferência na Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo:

I – RELATÓRIO

1. A…….., devidamente identificado nos autos, recorre para este Supremo Tribunal do Acórdão do TCAS, de 21.03.19, que decidiu “conceder provimento ao recurso jurisdicional, e em revogar a sentença recorrida na parte impugnada, ou seja, quanto à indemnização por danos morais”.

Na origem do recurso interposto para o TCAS esteve uma decisão do TAC de Lisboa, de 08.10.18, que julgou parcialmente procedente a acção administrativa comum interposta pelo A., A……… e condenou o R. Estado português a pagar-lhe “a quantia de três mil e quatrocentos euros pelos danos de natureza não patrimonial ocorridos pelo atraso na decisão e ainda na quantia que vier a ser fixada em sede de execução de sentença, a título de honorários do seu Ilustre patrono”; de igual modo, absolveu “o R. da instância relativamente ao pedido de pagamento de 20.000,00€ deduzido «pelo pedido de indemnização rejeitado» pela Comissão”.

2. O A., ora recorrente, apresentou alegações, concluindo do seguinte modo (cfr. fls. … e ss):

“1- a Justiça Portuguesa não pode ser assim! foi proferida Douta Sentença que condenou o Estado Português em consonância com o artº 8º da Lei Fundamental e 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH)...

2-em decisão surpresa, sob teor algo ilegível, veio o TCAS com a bênção do Ministério Publico, decidir que a norma do artº 6º- 1 não tem cabimento nem é aplicável aos procedimentos administrativos……Estranha interpretação esta da CEDH em pleno Séc. XXI....!!!!

3-na Convenção Anotada, 5ª ed do Senhor Juiz Ireneu Cabral Barreto, ed. Almedina, pág 152 podemos ler que: " as garantias do nº 1 do artigo 6º aplicam-se a todo o processo administrativo que se debruce sobre um direito ou obrigação de carácter civil, mesmo que no seu início assuma uma forma unilateral, surgindo a contestação apenas na fase de recurso contra a decisão"- relatório de 17-7-1980, queixa nº 7998/70, dec Rap 21, par. 5

4-no TCAS a CEDH não existe!! ali só é aplicável o ordenamento jurídico nacional; é anómalo que um TRATADO INTERNACIONAL acolhido em 1953 por PORTUGAL, membro da União Europeia, seja ostracizado pelo TCAS e pelo Ministério Público em 2019!!

5-os direitos da Convenção não são teóricos e ilusórios, devem tornar-se efectivos e reais à luz do artº 8º da nossa Lei Fundamental!!! os danos morais presumem-se na Jurisprudência da COUR !!!!

6-a conclusão aposta no ponto 5.10 das Conclusões do Ministério Publico é anómala e surreal! basta os Acórdãos na Língua Portuguesa publicados no site de apoio ao Ministério Publico em www.gddc.pt em que Portugal foi condenado inúmeras vezes para ver como o erro de julgamento é patente na visão, do Estado Português e do TCAS.

7-a decisão deve ser revogada in totum e o réu condenado à luz da COUR EUROPEENNE pois é patente a DESPROTECÇÃO conferida pelo TCAS e pelo M Publico a quem foi agredido, alvo de morosidade inusual por parte do Estado e agora atirado pela janela da INJUSTIÇA como se as "luzes" do Iluminismo sob a Convenção não tivessem sido acolhidas em 1953 na ordem jurídica nacional face ao artº 8º da Constituição da Republica

A Decisão viola os artigos 6º- 1 da Convenção Europeia e 8º da Constituição da República.

Revogando a Decisão e condenando o réu nos precisos termos vertidos na PI e Sentença da I Instância, Vossas Excelências farão a mais Lídima Justiça!”.

3. O recorrido Estado português (EP), representado pelo Ministério Público (MP) produziu contra-alegações, não tendo, todavia, formulado as respectivas conclusões.

4. Por acórdão deste Supremo Tribunal [na sua formação de apreciação preliminar prevista no n.º 1 do artigo 150.º do CPTA], de 27.09.19, veio a ser admitida a revista, na parte que agora mais interessa, nos seguintes termos:

“(…)

3.2. O autor – ora recorrente – intentou contra o Estado Português uma acção pedindo a sua condenação a pagar-lhe uma indemnização por atraso na decisão relativamente a uma pretensão por si formulada junto da Comissão de Protecção de Vítimas de Crimes. Alegou que formulou junto desta entidade um pedido de € 20.000,00 de indemnização, em 4-2-2011,no âmbito de agressões que sofreu e, em 7-9-2015, aquela Comissão rejeitou o pedido, com o fundamento de que o requerente não apresentou uma única prova relativamente ao modo como aquele crime perturbou o seu modo de vida e ainda por o mesmo ter ocorrido no seu local de trabalho.

Por entender que o prazo de 4 anos 7 meses e três era anómalo intentou a presente acção, pedindo a condenação do Estado Português a pagar-lhe o pedido rejeitado (20.000,00 euros) acrescido do montante de 8.000,00 decorrente da violação do direito de obter uma decisão em prazo razoável e 2.000,00 a título de honorários para o seu advogado.

3.3. A primeira instância julgou a acção parcialmente procedente e condenou o Estado Português a pagar ao autor a quantia de € 3.400,00 euros a título de danos não patrimoniais pelo atraso no decisão e a quantia que vier a ser fixada em liquidação, a título de honorários.

3.3. O TCA Sul revogou aquela decisão por entender que o regime jurídico aplicável aos atrasos nas decisões administrativas não faz qualquer referência à exigência de “uma decisão em prazo razoável”. Com efeito, diz o TCA Sul, “Refere a CRP, no seu art. 20º/4 que “todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objecto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo”. Por seu turno art. 268º da mesma CRP, sob a epígrafe, “Direito e garantias dos administrados” refere no seu n.º 6 que “Para efeitos dos nºs 1 e 2, a lei fixará um prazo máximo de resposta por parte da administração” não se fazendo referência à exigência de “uma decisão em prazo razoável” dos procedimentos administrativos referidos.” Deste modo, e por entender que o autor não fez prova de que sofreu danos e de ser seu o respectivo ónus – art. 342º, 1 do CC – revogou a sentença e julgou a acção improcedente

3.4. Expostos os termos da controvérsia, julgamos ser de admitir a revista.

Na verdade, a questão de saber se o direito a uma decisão em tempo útil é ou não aplicável aos procedimentos administrativos é, só por si, uma questão jurídica fundamental que como é evidente pode vir a colocar-se no futuro.

Por outro lado essa mesma questão foi decidida de modo diverso pelas instâncias.

Acresce que as questões relativas ao atraso das decisões são muito frequentes e de importância central no funcionamento das relações entre o Estado e os seus cidadãos, justificando assim – com vista a uniformidade de critérios – a intervenção deste STA”.

5. Colhidos os vistos legais, vêm os autos à conferência para decidir.

II – FUNDAMENTAÇÃO

1. De facto:

Foram os seguintes os factos dados como provados nas instâncias:

Na 1.ª instância:

“Vista a prova documental constante dos autos, dão-se como provados os seguintes factos com interesse para a decisão:

a) Em 28/09/2011, foi registado na Comissão de Protecção às Vítimas de Crimes, um requerimento apresentado pelo A., em que este alega ter sido violentamente agredido por oito indivíduos em 15/06/2011, ter sofrido sequelas físicas ainda não totalmente apuradas, que deram origem ao processo n.º 399/11.3jdlsb junto do M.P. de Torres Vedras. Alega também que a sua vida sofreu uma alteração profunda e que vive com medo de sair à rua por ser procurado por indivíduos de etnia cigana. Pediu que lhe fosse atribuída uma indemnização no valor de 20.000,00€ – fls. 5 doc. junto com a Contestação, que se dá aqui por reproduzido;

b) Juntou com tal requerimento dois ofícios que recebeu da P.J., um a dar-lhe conta da possibilidade de beneficiar de apoio judiciário e outro a notificá-lo para comparecer no INML, a fim de ser submetido a perícia médica – fls. 5 doc. junto com a Contestação;

c) O Presidente da Comissão de Protecção às Vítimas de Crimes proferiu despacho que determinou que se solicitassem à P.J., ao Hospital de Torres Vedras e ao Instituto Nacional de Medicina Legal, os elementos que dispusessem sobre o alegado pelo A. – fls. 6 do doc. junto com a Contestação;

d) O que foi cumprido através de ofícios datados de 14/10/2011 – fls. 7 a 9 do doc. 1 junto com a Contestação;

e) No dia 08.11.2011, foi expedido ofício ao Ministério Público de Torres Vedras, solicitando cópia da queixa crime e cópia da perícia médico-legal realizada em 17/06/2011 - doc. n.º 1 junto com a Contestação;

f) Em 21/10/2011, deu entrada na Comissão de Protecção às Vítimas de Crimes uma comunicação electrónica vinda do Centro Hospitalar de Torres Vedras, com cópia do relatório relativo à entrada do A. na urgência desse hospital em 11/06/20011, onde se descrevem as lesões que o A. à altura apresentava – fls. 10 a 12 do doc. n.º 1 junto com a Contestação;

g) Os serviços do Ministério Público de Torres Vedras responderam à Comissão de Protecção às Vítimas de Crimes em 09.12.2011, enviando cópia do auto de notícia elaborado pela GNR (onde, entre o mais, se diz que o A. era porteiro no estabelecimento "Bar ………..") e cópia do relatório preliminar relativo à perícia médico-legal efectuada ao A., onde se descrevem as lesões e/ou sequelas que o A. apresentava e se marcou a realização de novo exame complementar por serem necessários os relatórios médicos e registos clínicos dos hospitais de Torres Vedras e de S. José, a fim de se poder fazer uma avaliação mais completa – fls. 18 a 28 do doc. n.º 1 junto com a Contestação;

h) Em 03/02/2012 deu entrada na Comissão de Protecção às Vítimas de Crimes um ofício dos serviços do M.P. em que remete certidão extraída do processo de inquérito n.º 399/11.3JDLSB, donde consta, entre o mais:

1 - o relatório da perícia médico-legal efectuada ao A., com indicação das lesões por ele sofridas, as quais, diz-se ali, terão determinado um período de doença fixável em 90 dias, sendo 45 dias com afectação da capacidade para o trabalho geral e 90 dias com afectação da capacidade para o trabalho profissional;

2 - a acusação deduzida, com descrição das circunstâncias em que terão sido praticados os crimes imputados aos arguidos, as lesões que terão provocado na pessoa do A. e o período de doença, com afectação da capacidade para o trabalho do A. – fls. 32 a 52 do doc. n.º 1 junto com a Contestação;

i) Através de Ofício datado de 14/02/2012, a Comissão de Protecção às Vitimas de Crimes pediu ao Serviço de Finanças de Torres Vedras cópia das declarações de IRS do A., relativas aos anos de 2009 e 2010 – fls. 59 do doc. n.º 1 junto com a Contestação;

j) Em 29/02/2012 deu entrada na Comissão de Protecção às Vítimas de Crimes um ofício do Serviço de Finanças de Torres Vedras, com a declaração de rendimentos apresentada pelo A. relativa ao ano de 2009, referindo-se aí que tal constitui a única informação disponível naquele serviço de finanças - fls. 64 do doc. n.º 1 junto com a Contestação;

k) Em 16/07/2012 a Comissão de Protecção às Vítimas de Crimes dirigiu um ofício aos serviços do M.P. de Torres Vedras a pedir informação sobre o estado do processo crime – fls. 65 do doc. n.º 1 junto com a Contestação;

1) No dia 26.07.2012 deu entrada na Comissão de Protecção às Vítimas de Crimes a certidão do acórdão proferido a 24/04/2012, no processo 399/11.3JDLSB, mas com nota de que não estava transitado em julgado – doc. 1, folhas 98, junto com a Contestação;

m) O referido acórdão transitou em julgado no dia 27/11/2012 – doc. 2 junto com a Contestação;

n) E foi comunicado à Comissão de Protecção às Vítimas de Crimes através de ofício que ali deu entrada em 26/07/2012 – fls. 98 do doc. n.º 1 junto com a Contestação;

o) No referido acórdão deu-se como provado, entre o mais, que o A., no dia 11/06/2011, pelas 02.50 h., foi agredido por terceiros com murros e com a coronha de uma pistola em várias partes do corpo, nomeadamente cabeça, costas, braços, mãos, tendo sofrido:

a) Ferida na região occipital à esquerda, medindo 2 cm e cumprimento;

b) Escoriação na região occipital à direita, medindo 2,5 cm de cumprimento;

c) Quatro equimoses na face posterior do hemitórax direito, medindo 3 cm, 3,5 cm, 4 cm, e 5 cm de diâmetro;

d) Duas equimoses na face posterior e na aca anterior do terço médio do antebraço esquerdo, medindo 3 cm e 6 cm de diâmetro;

e) Fractura do 2.2 dedo da mão direita;

f) Equimoses periorbitárias;

g) E outras lesões melhores escritas na douta sentença; - doc. 1 junto com a Contestação;

p) Tais lesões determinaram ao A. um período de doença de 90 dias, sendo 45 com afectação da capacidade de trabalho e 90 dias com afectação da capacidade para o trabalho profissional – doc. 1 junto com a Contestação;

q) No dia 29.09.2014, o A. indagou junto da Ministra da Justiça pelo estado do seu pedido – fls. 101 do doc. 1 junto com a Contestação;

r) E no dia 30/06/2015, junto da Comissão de Protecção às Vítimas de Crimes – fls. 104 do doc. 1 junto com a Contestação;

s) No dia 27.07.2015, a Comissão de Protecção às Vítimas de Crimes emitiu Parecer negativo quando ao deferimento do pedido do A. – fls. 121 do doc. 1 junto com a Contestação;

t) Tal parecer foi notificado ao A. via postal, em 31.07.2015 – fls. 123 do doc. 1 junto com a Contestação;

u) No dia 11.08.2015, o A. deduziu oposição aos argumentos do Parecer – fls. 125 do doc. 1 junto com a Contestação;

v) No dia 07.09.2015 a Comissão de Protecção às Vítimas de Crimes emitiu decisão final, arquivando o processo e não pagando nenhuma indemnização - doc. 1, folhas 142;

w) Tal decisão teve como fundamento a circunstância da situação não preencher o pressuposto do artigo 2.º, n.º 1, alínea b) da Lei 104/2009, de 14 de Setembro (que o facto tivesse representado uma perturbação considerável no nível e qualidade de vida da vítima) e ainda por o crime ter tido lugar no local de trabalho do A., configurando um acidente de trabalho – doc. 1, folhas 142;

x) O que foi notificado ao A. no dia 10/09/2015, por via postal – doc. 1, folhas 143;

y) A Comissão de Protecção às Vítimas de Crimes não funcionou entre Novembro de 2009 a Abril de 2011 – depoimento de B………, Presidente dessa Comissão desde Abril de 2011;

z) Quando reabriu, estavam pendentes para decisão processos de anos anteriores – depoimento de B……….;

aa) Nos últimos anos entraram ali cerca de 300 novos processos por ano – depoimento de B………..;

bb) O número de processos pendentes tem vindo a diminuir – depoimento de B………..;

cc) Actualmente existem ali cerca de 300 processos pendentes para decisão – depoimento de B………..;

dd) A referida Comissão esteve a funcionar com carência de meios humanos, sobretudo de pessoas que ali estivessem a tempo inteiro – depoimento de B………….

Com interesse para a decisão, não se provou que o A. tenha sofrido "ansiedade, incerteza e angústia desde o início ao fim do processo; frustração pela ineficácia do sistema na defesa dos seus direitos; depressão e impaciência durante os 4 anos de vida do caso;", matéria essa alegada no art.º 12.º da P.I., pois o A., convidado a concretizar o ali invocado, não o fez, nem produziu prova”.

Na 2.ª instância:

“A sentença recorrida deu por demonstrada a factualidade assente a fls. 2 a 8, daquela peça processual, que aqui se dá por reproduzida por não se mostrar impugnada pelos recorrentes.

Referindo-se ainda que: “Com interesse para a decisão, não se provou que o A. tenha sofrido «ansiedade, incerteza e angústia desde o início ao fim do processo; frustração pela ineficácia do sistema na defesa dos seus direitos; depressão e impaciência durante os 4 anos de vida do caso;", matéria essa alegada no art.º 12.º da P.I., pois o A., convidado a concretizar o ali invocado, não o fez, nem produziu prova” – cfr. fls. 8”.

2. De direito:

2.1. Cumpre apreciar a questão suscitada pelo ora recorrente – delimitado que está o objecto do respectivo recurso pelas conclusões das correspondentes alegações –, relacionada com o alegado erro de julgamento em que incorre o acórdão recorrido na medida em que nele se entende que o artigo 6, § 1, da CEDH, na parte em que este prescreve o direito a uma decisão judicial em tempo célere, não se aplica ao caso dos autos pois que o alegado atraso que invoca o recorrente não pode ser imputado à actuação de um tribunal, única situação visada pelo âmbito daquele preceito.

Vejamos se lhe assiste razão.

2.2. A título de nota prévia, é importante sublinhar que o TEDH tem afirmado que o apuramento da razoabilidade da duração do processo nos termos do artigo 6, § 1, da CEDH, deve ter em conta as particulares circunstâncias de cada caso (cfr. Frydlender c. França [GC], § 43). É, pois, com base nesta orientação que nos propomos apreciar o caso vertente.

O 6, § 1, da CEDH, na parte que agora interessa, estatui no sentido de que “Qualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada, equitativa e publicamente, num prazo razoável por um tribunal independente e imparcial, estabelecido pela lei, o qual decidirá, quer sobre a determinação dos seus direitos e obrigações de caráter civil, quer sobre o fundamento de qualquer acusação em matéria penal dirigida contra ela (…)”.

Como se pode constatar, neste preceito associa-se o direito a uma decisão em tempo célere à prolação de uma decisão de um tribunal independente e imparcial – ou seja, associa-se este direito à actuação de um tribunal. Todavia, desde muito cedo o dispositivo em apreço foi sendo alvo de decisões interpretativas do TEDH, designadamente, e para o que para o caso interessa, no que respeita à contabilização do período de tempo relevante para efeitos de atestar da razoabilidade da duração do processo. E, justamente, já se entendeu que a fase procedimental, na medida em que constitua um obstáculo de facto ao acesso aos tribunais poderá também entrar na equação (Golder c. Reino Unido, n.º 4451/70, § 32, 21 fevereiro 1975). Ora, pode considerar-se que um obstáculo deste tipo existe quando o litígio tem início ou nasce perante autoridades administrativas, cuja actuação tem influência na formação ou na tutela do direito invocado, só em fase ulterior, e em função da actuação das autoridades administrativas competentes, se cogitando ou sendo possível o acesso aos tribunais. Num outro plano, a actuação de autoridades administrativas já foi considerada relevante para efeitos de contabilização do prazo razoável. Assim, em Martins Moreira c. Portugal, § 60, foi dito que o Estado é responsável por todas as suas instituições e não apenas pelos tribunais. Neste último caso questionava-se, entre outras coisas, o tempo de demorou a realização de perícias médico-legais que competiam ao Instituto de Medicina Legal de Lisboa, tendo esse tempo sido tido em consideração com vista ao apuramento da duração razoável do processo. Também em Poiss c. Áustria se admitiu a contabilização, para efeitos de aplicação do artigo 6, § 1, da CEDH, da duração de certos procedimentos administrativos.


No caso dos autos, o ora recorrente, na pendência de processo crime a correr termos no Tribunal de Torres Vedras (processo 399/11.3JDLSB – cfr., em particular, pontos l) e m) da matéria de facto), solicitou à Comissão de Apoio às Vítimas de Crimes um adiantamento de indemnização de que, nos termos do artigo 2.º da Lei n.º 104/2009, de 14 de Setembro, pode beneficiar, precisamente, quem tenha sido vítima de um crime violento. A resposta desta Comissão foi lenta, como a própria reconhece, invocando várias razões como a sobrecarga de trabalho e a circunstância de a Comissão ter estado inactiva durante um período de aproximadamente dois anos (cfr. ponto y) da matéria de facto). Também nos parece claro que o tipo de ataque de que o recorrente foi vítima e as sequelas físicas e psicológicas que dele decorrem (nomeadamente o receio de novos ataques, a circunstância de o seu meio de subsistência ter ficado destruído em virtude do ataque de que foi alvo) é de molde a, em abstracto, preencher um pedido de indemnização por danos morais. Porém, não cremos que a presente situação se enquadre no âmbito de protecção do artigo 6, § 1, da CEDH. Com efeito, e por um lado, a actuação da Comissão não constituiu um entrave ou obstáculo de facto ao acesso aos tribunais. Acresce a isso, por outro lado, que dificilmente podemos aplicar in casu a presunção (ilidível) de danos morais. “Em Apicella v. Itália, o TEDH afirmou que, aquando do apuramento de uma eventual violação da exigência da duração razoável, o Tribunal parte da «presunção sólida, mas ilidível, segundo a qual a duração excessiva de um processo ocasiona um dano moral». Este tribunal europeu foi especialmente sensível à circunstância de que a lentidão da justiça faz com que as pessoas envolvidas em processos judiciais vivam prolongadamente «na incerteza e ansiosas quanto ao desfecho do processo»” (cfr. MARIA BENEDITA URBANO, “Duração excessiva do processo”, in Comentário da Convenção Europeia dos Direitos Humanos e dos Protocolos Adicionais, Vol. II, Universidade Católica Portuguesa Editora, Novembro de 2019, p. 977). No caso em apreço, a actuação da Comissão, causadora que possa ter sido de incómodo e angústia, não implicou sofrimento em termos de resultado de realização da justiça.

Em suma, o Tribunal de Estrasburgo, ciente de que determinados procedimentos, nomeadamente de natureza administrativa, podem impedir ou atrasar o acesso aos tribunais, admite que, em certos casos e de acordo com as suas particulares circunstâncias, o âmbito do artigo 6, § 1, da CEDH, à partida destinado a garantir o direito a um processo equitativo num processo judicial já existente e em curso, deverá ser entendido como uma garantia do próprio acesso à justiça ou como mais uma dimensão do direito a um processo equitativo (na medida em que não haverá processo equitativo se o queixoso nem sequer conseguir aceder a um tribunal). O caso dos autos, todavia, dadas as suas particulares circunstâncias, não se enquadra nesta orientação jurisprudencial do Tribunal de Estrasburgo. Nestes termos, não deve ser dado provimento à pretensão do ora recorrente.



III – DECISÃO


Nos termos e com os fundamentos expostos, acordam os Juízes da Secção de Contencioso Administrativo em negar provimento à presente revista e, em consequência, em manter o acórdão recorrido.



Custas pelo recorrente, sem prejuízo de litigar com apoio judiciário.

Lisboa, 27 de Novembro de 2019. – Maria Benedita Malaquias Pires Urbano (relatora) – Jorge Artur Madeira dos Santos – Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa.