Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0182/09
Data do Acordão:05/27/2009
Tribunal:1 SUBSECÇÃO DO CA
Relator:RUI BOTELHO
Descritores:HOSPITAL PÚBLICO
PERSONALIDADE JURÍDICA
PODER DE SUPERINTENDÊNCIA
PODER TUTELAR
PODER DISCIPLINAR
Sumário:I - Diz-nos o art.º 2 do DL 19/88, de 21.1, que "Os hospitais são pessoas colectivas de direito público, dotadas de autonomia administrativa e financeira, sem prejuízo do disposto no artigo seguinte".
II - E o artigo seguinte, o 3.º, que tem como epígrafe"Superintendência e tutela" define os termos em que estas se exercem, vendo-se no seu n.º 3 que "Compete ainda ao Ministro da Saúde ordenar inspecções e inquéritos ao funcionamento dos hospitais".
III - Não obstante a personalidade jurídica conferida pela lei aos hospitais públicos, com a correlativa autonomia administrativa e financeira, ao Ministro da Saúde são conferidos poderes de superintendência e tutela, designadamente, com a possibilidade de ordenar inspecções e inquéritos ao seu funcionamento.
IV - Donde decorre que detectadas irregularidades no âmbito desses procedimentos inspectivos é-lhe lícito desencadear os correspondentes procedimentos disciplinares cabendo-lhe, igualmente, impor a sanção final.
V - Para o efeito, o DL 312/87, de 18.8, faz intervir a Inspecção Geral dos Serviços de Saúde, órgão central do Ministério da Saúde (art.º 1, n.º 1), que é "um órgão fiscalizador e disciplinar" (n.º 2) que exerce a sua acção "em todos os serviços e estabelecimentos dependentes do MS ou sujeitos à sua tutela" (idem), competindo ao respectivo Inspector-Geral aplicar a sanção disciplinar inferior a aposentação compulsiva (art.º 6, n.º 2, e)), acto sujeito a recurso administrativo necessário, nos termos gerais (art.º 75, n.º 8 do Estatuto Disciplinar aprovado pelo DL 24/84, de 16.1).
VI - Constitui infracção disciplinar, indutora da obrigação de restituir as quantias recebidas, a realização de exames médicos, e consultas, alegadamente efectuados a coberto de um acordo celebrado entre um Hospital Público e um médico, seu funcionário, se essas operações, em desrespeito pelo acordado, são levadas a cabo durante o cumprimento do horário de trabalho do médico.
Nº Convencional:JSTA00065755
Nº do Documento:SA1200905270182
Data de Entrada:02/18/2009
Recorrente:A...
Recorrido 1:MINSAUD
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:REC JURISDICIONAL.
Objecto:AC TCA SUL DE 2008/10/15.
Decisão:NEGA PROVIMENTO.
Área Temática 1:DIR ADM GER - FUNÇÃO PUBL / DISCIPLINAR.
Legislação Nacional:DL 19/88 DE 1988/01/21 ART2 ART3.
DL 312/87 DE 1987/08/18 ART1 ART6.
EDF84 ART75 N8 ART65 N1 ART91 N1 ART92.
CPA91 ART125 ART3 ART10.
CCIV66 ART227 ART334 ART406.
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo:
I Relatório
A… com melhor identificação nos autos, veio interpor recurso do acórdão do TCA Sul, de 15.10.08, que julgou improcedente o recurso contencioso que deduziu do despacho da MINISTRA DA SAÚDE, de 16.9.00, que negara provimento ao recurso hierárquico interposto do despacho do Inspector-Geral de Saúde que lhe determinou a reposição da quantia de 7.998.509.00 Escudos.
Para tanto alegou, concluindo:
a)- Quer o “Acordo de Prestação Funcional Extraordinário no âmbito da Gastroenterologia”, quer a sua “Actualização” ambos constantes do processo administrativo instrutor foram outorgados pelos órgãos de gestão do Hospital Distrital de …, no âmbito das suas competências próprias. Pelo que,
b)- Só os mesmos Órgãos de Gestão daquele Hospital têm competência para determinarem a reposição de quaisquer quantias que entenda terem sido, indevidamente, pagas no âmbito da sua execução atenta a autonomia administrativa e financeira de que goza o respectivo Hospital, face à lei de Gestão Hospitalar (Cf. D.L. n° 19/88 de 4 de Janeiro, na sua redacção actual e D.R. 3/88 de 22 de Janeiro).
c)- Tal competência não cabe, pois, à entidade com competência disciplinar e designadamente ao Inspector-Geral da Saúde, ou ao Ministro respectivo, que não podia, por isso, “condenar” o recorrente a fazer qualquer reposição. Sendo que a isso não obsta a circunstância de o Ministro da Saúde ter a tutela sobre os Hospitais.
d)- Pelo que, ao fazê-lo ficou tal despacho ferido do vício de incompetência, por violação do disposto nos art°.s 2°. e 5°. do D.L. n°. 19/88 e art°. 40º do DR n°. 3/88 e art°.s 29°., 30º e 33°. do CPA;
e)- Sendo que, ao decidir manter o acto recorrido, ficou o Acórdão recorrido a padecer do mesmo vício, pelo que deve ser revogado, com as legais consequências. Por outro lado e sem prescindir:
f)- Quer do despacho do Senhor Inspector-Geral que “condenou” o recorrente a repor as quantias em causa nos presentes autos, quer das informações e pareceres que lhe serviram de suporte, se não vê quais os fundamentos de facto e de direito para que aquela reposição tenha sido ordenada;
g)- Sendo até certo que em todos os relatórios e informações se reconhece designadamente que todos os exames foram efectuados; que houve benefícios para os utentes; que deixou de haver listas de espera; que a gestão do horário de realização dos exames foi deixada ao ora recorrente, ignorando-se, por completo, a supra referida “Actualização” do “Acordo” inicial.
h)- Ora, por força do disposto no art°. 124°. do CPA o despacho recorrido tinha de ser fundamentado de acordo os requisitos expressos no art°. 125°. O que, manifestamente, não acontece no caso em apreço. Pelo que,
i)- Ao ter decidido não padecer o acto recorrido do supra descrito vício violou o Acórdão em apreciação aqueles supra citados dispositivos legais, pelo que deve ser revogado, com as legais consequências. Ainda sem prescindir,
j)- De uma apreciação ponderada da prova produzida no processo disciplinar onde foi proferido o despacho do Inspector-Geral da Saúde que foi mantido pelo acto recorrido, não pode deixar de se considerar provada toda a matéria de facto alegada na Resposta à Acusação também ali deduzida e, em especial, que:
- o recorrente cumpriu o “Acordo" no que toca à realização dos exames, com satisfação e benefício significativo para os utentes e para o Hospital;
- tudo decorreu com normalidade e transparência, sendo o horário e o modo de funcionamento do conhecimento quer dos órgãos de gestão, quer da generalidade dos funcionários e, em especial, daqueles que tinham de dar colaboração à realização dos exames;
- em nenhum caso o atendimento dos utentes provenientes dos Centros de Saúde, prejudicou o atendimento dos doentes do próprio Hospital, nunca tendo havido, nesse período, quaisquer listas de espera.
- tendo os exames sido, efectivamente, realizados, cumprindo-se os objectivos que estiveram subjacentes ao “Acordo” e tendo o HDC, no âmbito do Protocolo estabelecido com a Sub-Região de Saúde de Vila Real, que esteve na sua origem, recebido as correspondentes receitas provenientes da sua realização, não se vê como podia deixar de pagar ao recorrente a percentagem estabelecida.
l)- Efectivamente, pese embora o “cavalo de batalha” que se faz a tal propósito, o horário em que os exames eram, efectivamente, realizados não pode deixar de ser considerado, nas condições concretas alegadas e provadas nos autos, completamente irrelevante, atendendo, para além do mais, ao que se mostra provado quanto à atribuição da responsabilidade da gestão do horário ao próprio recorrente. Na verdade,
n)- se uma das entidades contratantes permite à outra a alteração das condições de prestação dos serviços acordados - como se mostra ter acontecido, no caso concreto - não pode depois vir invocar esse facto para se eximir ao pagamento da contraprestação acordada.
o)- É isso o que resulta dos princípios gerais aplicáveis aos contratos e em especial do princípio da boa fé que deve presidir à celebração dos contratos (Cf. art°. 227°. do C.C.) sob pena de se cair numa clara situação de abuso de direito (Cf. art°. 334°. do C.C.) por parte do respectivo contratante.
p)- Sendo que tais normas não podem deixar de ser aplicadas aos contratos em apreciação nos presentes autos por força, designadamente, do que se encontra disposto nos art°.s 30º e 185°. do CPA.
Por outro lado ainda:
q)- a quantia mandada repor reporta-se à totalidade dos exames, ignorando-se quer o que se dispõe na al. b) do ponto 1 da supra referida “Actualização”;
r)- quer que, após a alteração do horário do recorrente, muitos dos exames foram efectuados fora do seu horário normal, carecendo o Acórdão recorrido de fundamento quando admite que todos tenham sido realizados dentro do horário de trabalho do recorrente. Ora,
s)- a admitir-se a reposição - e não admite, por tudo o que se deixou dito - sempre seria necessário fazer o apuramento rigoroso e exaustivo de todas as situações em que não houve sobreposição de horários e em que, por isso, não houve também violação em qualquer dos aspectos substantivos e mesmo formais de tal “Acordo" Assim:
t)- sempre o despacho recorrido violaria também o princípio da legalidade estabelecido no art°. 3°. do C.P.A., dado que inexiste qualquer norma de direito público ou privado, que justifique a ordenada reposição, padecendo do vício de violação de lei por erro nos pressupostos de facto e de direito, por violação dos supracitados princípios e disposições legais, bem como do “Acordo” e sua "Alteração” outorgados pelo recorrente e pelo HD de …. Pelo que,
u)- ao decidir mantê-lo cometeu o Acórdão recorrido manifesto erro de julgamento, quer no que respeita à apreciação dos factos, quer no que respeita à sua subsunção jurídica, pelo que deve ser revogado, com as legais consequências.
Finalmente e sem prescindir:
v)- de acordo com tudo o que se deixou alegado é manifesto que a execução do Acordo trouxe ao HD … e aos utentes do Serviço Nacional de Saúde significativos benefícios, que foram postos em causa com a revogação do Acordo a pretexto da violação de aspectos meramente formais;
x)- dando-se, assim, prevalência, a ultrapassados princípios burocráticos e formalistas, em clara violação dos princípios da desburocratização e eficiência, princípios esse que cumpre também aos Tribunais apreciar. Pelo que,
w)- se de outros vícios não padecesse o despacho recorrido - e padece, como se deixou sobejamente esclarecido - sempre violaria os princípios da desburocratização e da eficiência estabelecidos no art°. 10º, do CPA. O que sempre determinaria, de igual modo, a sua anulação.
z)- Ao assim o não entender, mantendo o acto recorrido, violou o Acórdão em apreciação aquele supracitado comando legal, devendo, também por isso, ser revogado, com as legais consequências.
Nestes termos e nos mais de direito, sempre com o mui douto suprimento de V.s Exa.s, Venerando Conselheiros, deve ser concedido provimento ao presente recurso, revogando-se o Acórdão recorrido, com as legais consequências, assim se fazendo, JUSTIÇA!
A Ministra da Saúde contra-alegou, formulando as seguintes conclusões:
1. A reposição das quantias devidas foi apurada em sede de procedimento disciplinar pela então Inspecção-Geral dos Serviços de Saúde que é um órgão central do Ministério da Saúde.
2. A IGSS como órgão fiscalizador e disciplinar, tem por objecto assegurar o cumprimento das leis e regulamentos em todos os serviços e estabelecimentos dependentes do MS ou sujeitos à sua tutela, tendo em vista o bom funcionamento dos serviços, a defesa dos legítimos interesses e bem-estar dos utentes, a salvaguarda do interesse público e a reintegração da legalidade violada (V. DL 312/87, de 18 de Agosto, (artigo 1°, n° 1 e 2).
3. Amnistiada a infracção disciplinar praticada pelo ora Recorrente, decorre dessa conduta infractória a obrigação da reposição das quantias indevidamente recebidas.
4. A reposição foi determinada por se haver demonstrado no procedimento disciplinar que o recorrente recebeu as quantias ora a repor, com fundamentos disciplinarmente censuráveis e ilícitos, isto é, numa conduta em contravenção com o clausulado no contrato e/ou o disposto na lei e por causa dessa mesma conduta.
5. A parte do despacho punitivo que manda repor as quantias indevidamente recebidas não tem natureza punitiva e subsiste após a aplicação da amnistia;
6. A entidade decisora da processo disciplinar tem competência para ordenar a reposição;
7. Tal resulta das disposições conjugadas dos artigos 65º, n° 1, 91°, n° 1 e 92.° do Estatuto Disciplinar;
8. Neste sentido se tem pronunciado o Supremo Tribunal Administrativo, nomeadamente nos seguintes Acórdãos:
i. Acórdão de 06/03/1990 (Processo n° 25131); Acórdão de 15/03/1990 (Processo n° 27715);
ii. Acórdão de 22/06/1995 (Processo 31382);
iii. Acórdão de 22/04/2004 (Processo 2025/02).
9. A competência do Inspector-Geral da Saúde para exigir e fazer cumprir a obrigação de reposição (artigos 65°, nº 1, 91°, n° 1 e 92.° do Estatuto Disciplinar) não colide com as competências do Conselho de Administração do Hospital;
10. O Ministro da Saúde tem poderes de superintendência e tutela sobre os órgãos de administração dos hospitais;
11. E compete-lhe, nos termos do artº 3º, n° 1 do DL 19/88, na redacção dada pelo DL 202/89, de 22/06 praticar todos os actos que por lei lhe caibam, no que respeita à “organização e funcionamento dos hospitais” (art. 3° n° 3 do DL 19/88);
12. O Ministro da Saúde tem competência para “ordenar inspecções e inquéritos ao funcionamento dos hospitais” (art. 3° n° 3 do DL 19/88);
13. Em sede de recurso hierárquico, o Ministro da Saúde tem competência para “decidir definitivamente, podendo (...) mandar proceder a novas diligências, manter, diminuir ou anular a pena” (art. 75º, n° 6 do Estatuto Disciplinar);
14. Tal como compete, por consequência, decidir sobre as importâncias que porventura haja a repor constantes do relatório final, nos termos previstos no art. 65°, n° 1 do Estatuto Disciplinar;
15. Não há, assim qualquer erro de julgamento no Douto Acórdão recorrido quando se considera improcedente o alegado vício de incompetência para a prática do acto;
16. A matéria de facto foi minuciosamente apurada pela Inspecção-Geral da Saúde no Processo de Inquérito n° 161/97-1;
17. Bem como no Processo Disciplinar n° …, no qual foi proferido o despacho do Sr. Inspector-Geral da Saúde de 29/07/1999;
18. Limitou-se, assim, o despacho que ordenou a reposição das quantias recebidas a concordar com as conclusões e propostas formuladas pelo Instrutor no Processo Disciplinar n° …;
19. Mesmo que os exames tenham sido feitos, que os utentes não tenham sido prejudicados e que a lista de espera tenha diminuído, tal era, precisamente a finalidade do Acordo celebrado entre o Hospital Distrital de ... e o recorrente;
20. Só que tais exames, ou a sua maioria, foram efectuados durante o horário de trabalho do recorrente, com recurso ao pessoal de apoio;
21. O que implicou que o Hospital Distrital de ... pagasse duas vezes por esses exames:
22. Duplicando as verbas que o salário já pagava no mesmo horário:
23. Os despachos recorridos, tal como o despacho do Senhor Inspector-Geral da Saúde de 29/07/1999 foram antecedidos do processo de inquérito e processo disciplinar que contêm toda a matéria de facto e de direito que lhes serve de fundamentação;
24. Durante mais de dois anos o recorrente agiu na vigência da primeira redacção do Acordo;
25. A 2.ª redacção só vigorou uma semana, de 21/01/97 a 27/01/97, data em que o Acordo foi denunciado;
26. Apesar de todos os exames terem sido efectuados, de ter havido benefício para os utentes e de ter acabado a lista de espera, verificaram-se as infracções provadas nos processos de inquérito e disciplinar;
27. E da existência dessas infracções disciplinares emergiu a obrigação de reposição das quantias indevidamente recebidas, à custa da conduta infractora, com violação das cláusulas 7, 11, 11.1 e 11.2 do Acordo;
28. Pois, contrariamente ao que o acordo impunha, todos os exames foram efectuados durante o horário normal de trabalho do recorrente (cfr. ponto 27 do relatório final);
29. Antes e depois da redacção do acordo dito “Actualização” em 21/01/1997;
30. A nova redacção do acordo dito “Actualização” que vigorou seis dias, só permitia a realização de exames dentro do horário normal em situações excepcionais, a avaliar caso a caso;
31. Entende-se que o despacho, aliás, os despachos, subjudice se encontram fundamentados e não feridos do alegado vício de forma por falta de fundamentação;
32. O recorrente aparenta questionar a falta de fundamentação de facto ou de direito para que tenha sido decidida a reposição daquela quantia concreta (V. página 4 das alegações, em II);
33. Ora, salvo melhor opinião, basta somar as quantias indevidamente recebidas pelo médico pelos exames que em violação das normas do Acordo foram realizados durante o seu horário normal do serviço.
34. Aliás, isso mesmo transparece da sua Defesa, e objecto de apreciação no Relatório Final, artigos 8 a 14.
35. Não é aceitável dizer que o Acordo só não foi cumprido no que respeita a aspectos formais e não essenciais, (violação das cláusulas 7, 11, 11.1 e 11.2 do Acordo (conforme Relatório Final, artigos 1 a 7) estando em causa a reposição da quantia indevidamente recebida apurada em sede de procedimento disciplinar e (conforme documentos juntos aos autos, artigo 3° do referido Relatório Final) então quantificada no total de 7.998.509$00 (sete milhões novecentos e noventa e oito mil e quinhentos escudos).
36. O Recorrente considera “cavalo de batalha” e irrelevante a violação das cláusulas do Acordo, em especial a sétima (V. Conclusão alínea 1) das alegações) que diz respeito à fixação do “horário em que os exames eram efectivamente realizados”.
37. Mas, ao mesmo tempo, argumenta que há abuso de direito por parte do MS ao exigir a reposição da quantia indevidamente recebida pelo Recorrente porque assim se “exime ao pagamento da contraprestação acordada”. (Conclusão alínea n)).
38. Por outro lado, o teor crítico e reticente das conclusões das alíneas q, r e s não resiste a ser contraposto com a prova produzida em sede de disciplinar, em documentos juntos aos autos, como o Relatório Final refere, nos artigos 1 a 7.
39. A conduta infractória foi amnistiada, mas os factos, apurados em sede disciplinar subsistem, e a prova é documental.
40. Aí se refere que o Acordo vigorou entre 01.06.94 e 27.11.97 e que durante esse período e na vigência do Acordo, o recorrente realizou um conjunto de exames médicos pelos quais foi remunerado, respeitando-se o preço previamente convencionado, tendo assim recebido a quantia concreta especificada para reposição.
41. Nem se encontra ferido de vício de violação de lei por erro nos pressupostos de facto porque o recorrente efectuou os exames dentro do seu horário de trabalho e, sendo assim, não podia ter cobrado um centavo.
42. Não existe aqui qualquer erro nos pressupostos de facto e a situação é clara: durante o horário normal de trabalho o recorrente fez-se papar indevidamente honorários pelos exames efectuados.
43. O Hospital de ... ficou lesado no montante cobrado por esses exames como se tivessem sido efectuados no regime de clínica privada;
44. O texto do acordo não deixou ao recorrente a gestão do horário sem limites;
45. Pelo contrário, fixou horário: de 2ª a 6ª feira após as 16 horas e sábados das 8 às treze horas;
46. Ficou provado no processo disciplinar que o recorrente efectuou todos os exames cobrados no regime de clínica privada dentro do horário normal de trabalho;
47. O recorrente não fez qualquer prova em contrário;
48. Pelo contrário, conforme consta dos autos, o recorrente parece mesmo aceitar, como foi demonstrado no processo disciplinar (V. artigo 15.° da sua Defesa) que os exames foram feitos durante o seu horário de trabalho.
49. Quanto à alegada violação dos princípios
50. Entende-se, portanto, que o acto recorrido não padece dos alegados vícios que lhe foram assacados pelo Recorrente, razão pela qual, ao negar provimento ao recurso contencioso o Douto Acórdão recorrido não merece censura.
Termos em que deverá ser negado provimento ao presente recurso jurisdicional e mantido o Douto Acórdão recorrido.”
A Magistrada do Ministério Público junto deste Tribunal emitiu o seguinte parecer:
“1. O presente recurso jurisdicional vem interposto do acórdão do TCA Sul que negou provimento ao recurso contencioso em que era impugnado o despacho da Senhora Ministra da Saúde, de 2000.09.16, que desatendeu o recurso hierárquico interposto do despacho do Senhor Inspector-Geral da Saúde, de 99.07.29, na parte em que ordenou ao interessado a reposição da quantia de Esc. 7.998.509$00. Na censura dirigida à sentença são repostas as questões relacionados com os vícios imputados ao acto recorrido, julgados improcedentes. Vejamos.
2.1. A questão do vício de incompetência. Não tem razão o recorrente. É certo que o Hospital Distrital de ... gozava de autonomia administrativa e financeira ao abrigo do art° 2°, nº 1, do DL n° 19/88, de 21.01. No entanto essa circunstância é irrelevante, bem como o facto de o Acordo de Prestação Funcional Extraordinário ter sido outorgado pelo competente órgão do Hospital. Como refere o acórdão recorrido, o Ministro da Saúde detinha poderes de superintendência e tutela sobre os hospitais, nos termos do art° 3° do citado diploma, competindo-lhe, em conformidade com o n° 3 deste artigo, ordenar inspecções e inquéritos ao respectivo funcionamento. Neste caso, a decisão de reposição foi tomada em sede de processo disciplinar, e, nessa medida era ao órgão competente para decidir disciplinarmente que competia tomá-la, de harmonia com o disposto no art° 65°, n°s 1 e 3, do Estatuto Disciplinar de 1984. O processo disciplinar foi instruído pela Inspecção-Geral da Saúde, nos termos do artº 3, nº 2, alínea b), do DL n° 291/93, de 24.08, tendo o Senhor Inspector-Geral proferido decisão, em 99.04.16, ao abrigo do art° 5°, alíneas h) e j), do mesmo diploma, em que condenava o arguido numa pena de suspensão e ainda na reposição da quantia de Esc. 7.998.509$00. Posteriormente, o Senhor Inspector-Geral despachou no sentido de considerar a infracção disciplinar amnistiada, mas manteve o despacho de 99.04.16 quanto à aludida reposição. Sendo a Inspecção-Geral da Saúde um serviço central do Ministério da Saúde (art° 8°, n° 1, do DL n° 10/93, de 15.01 e artº 1° do DL n° 291/93, de 24.08), desta determinação de reposição cabia recurso hierárquico para o respectivo Ministro, o que de facto aconteceu, tendo sido proferido o acto contenciosamente impugnado. Conclui-se, assim, que quer o acto hierarquicamente recorrido, quer o acto contenciosamente impugnado, foram proferidos pelas entidades competentes para o efeito. Improcede, assim, a alegação produzida quanto a esta parte.
2.2. A questão do vício de falta de fundamentação. Invoca o recorrente que quer do despacho do senhor Inspector-Geral que “condenou” o recorrente a repor as quantias em causa nos presentes autos, quer das informações e pareceres que lhe serviram de suporte, se não vê quais os fundamentos de facto e de direito para que aquela reposição tenha sido ordenada. Não é assim. O despacho do Senhor Inspector-Geral de 99.04.16, contém uma fundamentação por remissão, dando a sua concordância ao relatório final e à informação de 99.02.04, que o antecedeu. Ora, consta do relatório final, designadamente dos seus art°s 27° e 32°, que no período de vigência de um Acordo de Prestação Funcional Extraordinário no âmbito da especialidade de Gastrenterologia, o arguido, Dr. A…, realizou exames endoscópicos em horário coincidente com o horário de trabalho enquanto médico do Serviço Nacional de Saúde, pelos quais foi remunerado pelo preço previamente convencionado, tendo recebido a quantia total de Esc. 7.998.509$00, sendo remunerado pelos dois desempenhos, ou seja, na qualidade de funcionário público e prestador de natureza privada. Parece ser claro, para qualquer destinatário normal, que a reposição ordenada se apoiou nestes factos constantes do relatório, sendo fundada ainda - como refere a informação de 99.02.04, para a qual o despacho do Senhor Inspector-Geral remete - no artº 91°, n° 1, do Estatuto Disciplinar. Tem a jurisprudência deste STA considerado que a fundamentação do acto administrativo é um conceito relativo, cuja densidade varia conforme o tipo de acto e as circunstâncias do caso concreto, mas só é suficiente quando permite a um destinatário normal aperceber-se do itinerário cognoscitivo e valorativo seguido pelo autor do acto para proferir a decisão, isto é, quando aquele possa conhecer as razões por que o autor do acto decidiu como decidiu e não de forma diferente, de forma a poder desencadear os mecanismos administrativos ou contenciosos de impugnação - cfr, por todos, o acórdão do T. Pleno de 2005.12.06, no proc. n° 1126/02, e, os arestos aí citados a este propósito. Cremos que esse objectivo foi atingido no caso que se analisa, considerado o acto do Senhor Inspector-Geral, bem como o acto contenciosamente impugnado, que, em sede de recurso hierárquico, o manteve. Improcede, pois, a censura dirigida à sentença, no tocante a esta parte.
2.3. A questão do vício de violação de lei, por erro nos pressupostos. Na alínea i) das conclusões, último parágrafo, alega o recorrente: Tendo os exames sido, efectivamente realizados, cumprindo-se os objectivos que estiveram subjacentes ao "Acordo" e tendo o HDC, no âmbito do Protocolo estabelecido com a Sub-Região de Saúde de Vila real, que esteve na sua origem, recebido as correspondentes receitas provenientes da sua realização, não se vê como podia deixar de pagar ao recorrente a percentagem estabelecida. Parece-nos, salvo melhor entendimento, que lhe assiste razão. É certo que o referido Acordo de Prestação Funcional Extraordinário no Âmbito da Gastrenterologia (fls. 83 a 85 do processo instrutor) não permitia que o ora recorrente, dentro do seu horário normal de serviço no Hospital Distrital de ..., cumulasse a prestação de cuidados de saúde a utentes desse Hospital com a prestação de cuidados de saúde a utentes do Serviço Nacional de Saúde da Sub-Região de Saúde de Vila-Real. E mesmo a actualização do acordo, em 97.01.21, só o veio permitir em circunstâncias excepcionais, no n° 1, alínea b) (fls 86 a 88 do processo instrutor). Contudo, os actos médicos a que o recorrente se obrigara, nos termos do Acordo, foram de facto realizados, não constando que tal ocorresse em detrimento do atendimento aos doentes do Hospital Distrital de .... Ora, tendo este Hospital sido pago pela Sub-Região de Saúde de Vila Real, pelos exames efectuados, ao abrigo do Protocolo celebrado entre ambos (fls. 76 a 82 do processo instrutor), não vemos como poderá considerar-se indevido o pagamento do montante em causa ao ora recorrente, em face da cláusula 9ª do citado Acordo, nos termos da qual do valor dos actos realizados paga o 1° ao 2° outorgante (respectivamente Conselho de Administração do Hospital e Dr. A…) a percentagem de 60%. Parece-nos, assim, que a reposição ordenada não era permitida à luz dos art°s 65°, n° 1 e 91°, n° 1, do ED de 1984, estando, por esta via, o acto contenciosamente impugnado ferido de vício de violação de lei. Em razão do exposto, emitimos parecer no sentido de que deverá ser concedido provimento ao recurso jurisdicional, revogando-se o acórdão recorrido e anulando-se o acto contenciosamente impugnado.”
Sem vistos, mas com distribuição do projecto de acórdão, cumpre decidir.
II Factos
O acórdão recorrido deu por assente a seguinte factualidade:
i. O recorrente é médico da especialidade de gastrenterologia do Hospital de ....
ii. Na sequência da outorga de um “Acordo de Prestação Funcional Extraordinário no âmbito da Especialidade de Gastrenterologia”, o recorrente efectuou endoscopias e outros exames médicos no âmbito da mesma especialidade, no período compreendido entre 1-6-94 e 27-11-97, período da vigência do acordo.
iii. Na sequência de processo disciplinar que foi instaurado ao recorrente, em 20-1-99, a Instrutora elaborou o “Relatório Final”, junto a fls.14 a 23, aqui dado por reproduzido, donde se destaca:
“...27- Não surgem dúvidas quanto ao facto de no período da vigência do Acordo ter realizado os exames endoscópios aos doentes oriundos da 8178 de Vila Real em horário coincidente com o horário de trabalho enquanto médico do SNS, sendo remunerado pelos dois desempenhos, ou seja na qualidade de funcionário público e prestador de um serviço de natureza privada.
28. Assim como terem tais exames sido efectuados com a colaboração de diferente pessoal de enfermagem e auxiliar e de um médico interno de especialidade sem prévia indicação e elaboração da Lista de colaboradores conforme se previa no Acordo Outorgado...”o que consubstancia a infracção disciplinar por violação continuada dos deveres gerais e, por isso devo ser aplicada a pena de inactividade, por um ano e procederá reposição de Esc. 7988.509$00”.
iv. Em 4.02.99, o Sr. Inspector Superior Principal prestou a informação junta a fls. 24 a 26, aqui dada por reproduzida, no sentido de aplicação ao recorrente a pena disciplinar de suspensão, graduada em 90 dias, e suspensa a execução pelo período de 2 anos, e a obrigação de reposição da quantia de Esc. 7.998.509$00.
v. Por despacho de 16-4-99, o Sr. Inspector-Geral exarou o despacho de fls. 27, aqui dado por reproduzido, que concordando com o relatório e informação supra referida, “aplica-se ao arguido, a pena de suspensão, graduada em 90 (noventa) dias, cuja suspensão se suspende por 2 (dois) anos. Mais condena... na reposição da quantia de Esc. 7.998. 509$00”.
vi. Na sequência de informação complementar do Inspector Superior Principal, em 29-7-99, no rosto dessa informação o Sr. Inspector-Geral de Saúde exarou despacho determinando o arquivamento dos autos, por a infracção disciplinar estar amnistiada e manteve o despacho de 16-4-99, quanto à reposição da quantia de Esc. 7.998.509.00.
vii. Inconformado, o recorrente interpôs recurso hierárquico da V parte do acto referido em vi., o qual foi objecto do parecer 0196199, de 18-10-99, da Srª Consultora Jurídica, junta a fls. 30 a 38, aqui dada por reproduzida, no sentido de ser negado provimento ao recurso.
viii. Com os pareceres de concordância da Secretária-Geral Adjunta e da Secretária-Geral, na parte superior daquele parecer, em 16-9-2000, a Srª Ministra da Saúde exarou o despacho recorrido, negando provimento ao recurso.
III Direito
1. Resulta da matéria de facto que o recorrente, médico da especialidade de gastrenterologia, durante um determinado período de tempo - 1.6.94 e 27.11.97 -, e dentro do seu horário de trabalho desenvolvido no Hospital de ..., efectuou exames da sua especialidade - endoscopias e outros - enquanto profissional liberal, socorrendo-se de pessoal do Hospital para o coadjuvar, vindo a ser remunerado por ambas as actividades, pública e privada. Tendo sido inicialmente punido com a sanção de inactividade por 90 dias, com suspensão durante 2 anos, e obrigado a repor a quantia referente ao custo dos referidos exames, a sanção veio a ser amnistiada, mantendo-se, contudo, a obrigação de repor. Pretende o recorrente que o fez a coberto de um “Acordo de Prestação Funcional Extraordinário no âmbito da Especialidade de Gastrenterologia”, contrapondo a entidade recorrida que a permissão para o exercício de actividades privadas se reportava, apenas, ao período posterior ao fim do seu horário de trabalho. Nas alegações apresentadas neste recurso jurisdicional, o recorrente limita-se a sublinhar os vícios que já havia imputado ao acto recorrido persistindo que o acórdão recorrido incorreu nas mesmas ilegalidades. O conflito em causa nos autos resulta, assim, de se permitir o desenvolvimento de actividades privadas no mesmo espaço físico onde se presta o serviço público. Dir-se-á, desde já, que o decidido é para confirmar. Vejamos então.
2. Diz-nos o art.º 2 do DL 19/88, de 21.1, que "Os hospitais são pessoas colectivas de direito público, dotadas de autonomia administrativa e financeira, sem prejuízo do disposto no artigo seguinte". E o artigo seguinte, o 3.º, que tem como epígrafe "Superintendência e tutela", define os termos em que estas se exercem, vendo-se no seu n.º 3 que "Compete ainda ao Ministro da Saúde ordenar inspecções e inquéritos ao funcionamento dos hospitais". Portanto, não obstante a personalidade jurídica conferida pela lei aos hospitais públicos, com a correlativa autonomia administrativa e financeira, ao Ministro da Saúde são conferidos poderes de superintendência e tutela, designadamente, com a possibilidade de ordenar inspecções e inquéritos ao seu funcionamento. Donde decorre, naturalmente, que detectadas irregularidades no âmbito desses procedimentos inspectivos é-lhe lícito desencadear os correspondentes procedimentos disciplinares cabendo-lhe, igualmente, impor a sanção final. Para o efeito, o DL 312/87, de 18.8, faz intervir a Inspecção Geral dos Serviços de Saúde, órgão central do Ministério da Saúde (art.º 1, n.º 1), que é "um órgão fiscalizador e disciplinar" (n.º 2) que exerce a sua acção "em todos os serviços e estabelecimentos dependentes do MS ou sujeitos à sua tutela" (idem), competindo ao respectivo Inspector-Geral aplicar a sanção disciplinar inferior a aposentação compulsiva (art.º 6, n.º 2, e)), acto sujeito a recurso administrativo necessário, nos termos gerais (art.º 75, n.º 8 do Estatuto Disciplinar aprovado pelo DL 24/84, de 16.1 e Parecer da Procuradoria Geral da República de 5.11.87 proferido no processo 52/87). De resto, foi isso, justamente que sucedeu no caso em apreço (pontos vi./viii. dos factos provados). Ora, apesar da infracção disciplinar haver sido amnistiada o certo é que a obrigação de repor a quantia envolvida se mantém (art.ºs 65, n° 1, 91, n° 1 e 92° do ED), sendo certo que o recorrente, agora, no recurso jurisdicional, nada diz a esse propósito. Improcedem, assim, todas as ilegalidades imputadas à sentença e relacionadas com a competência das entidades envolvidas no procedimento administrativo conducente ao acto punitivo final.
3. A ilegalidade seguinte prende-se com a falta de fundamentação de que padeceria o acto recorrido. As razões que suportaram o acto punitivo primário estão enunciadas nos pontos iii./vi. da matéria de facto. As que fundamentaram o acto impugnado, o acto secundário, que agora apenas visa a devolução da quantia tida como indevidamente cobrada, nos pontos vii/viii. Tudo se traduz, apenas, no entendimento da Administração de que durante um determinado período de tempo o recorrente, encontrando-se no exercício de funções públicas, exerceu actividade privada fazendo-se pagar por umas e por outra. O que o despacho ministerial determinou foi tão só a devolução da quantia percebida respeitante à actividade privada e pelo simples facto de ter sido exercida quando cumpria o seu horário de trabalho como funcionário público. Tudo muito claro e congruente. O facto de algumas peças terem remetido para informações e pareceres dos serviços é absolutamente irrelevante e consentido pela lei. Contrariamente ao pretendido pelo recorrente o acto punitivo impugnado nos autos cumpre fielmente todos os requisitos contemplados no art.º 125 do CPA, não padecendo da ilegalidade que lhe imputou, que assim, também se não transmitiu à sentença recorrida.
4. Seguidamente, o recorrente refere que a sentença padece de outras ilegalidades que já apontara ao acto recorrido, a saber: violação de lei, por erro nos pressupostos de facto e de direito e violação dos princípios de desburocratização e da eficiência e da boa fé. Sobre essa matéria na sentença vê-se o seguinte: "Conforme resulta dos factos apurados, o recorrente, no período compreendido entre 1-6-94 e 24-11-97, realizou e facturou ao Hospital de ... um conjunto de exames no âmbito do Acordo, no horário de funcionamento do SNS, exames que o hospital pagou ao recorrente. Os aludidos exames foram feitos durante o horário de trabalho do recorrente, o que implicou que o mesmo tenha sido duplamente remunerado pelos mesmos. Pelo que, mesmo que tenha havido benefício para os utentes e acabado as listas de espera, as infracções imputadas ao recorrente verificam-se, sendo aquelas circunstâncias factores de ponderação na aplicação concreta da medida da pena". E, mais adiante: "Por esses exames, o recorrente recebeu o seu salário e os honorários, tendo o hospital pago em duplicado. Sustenta contudo o recorrente nas conclusões t), u) e v) que se uma das entidades contratantes permitiu à outra a alteração das condições de prestação dos serviços acordados - como entende ter sido o que aconteceu no caso concreto -, não poderia vir depois invocar esse facto para se eximir ao pagamento da contraprestação acordada, já que é isso o que resulta dos princípios gerais aplicáveis aos contratos e em especial do princípio da boa-fé que deve presidir à celebração dos contratos [artigo 227° do Cód. Civil], sob pena de se cair numa clara situação de abuso de direito [artigo 334° do Cód. Civil), por parte do respectivo contratante. Não lhe assiste, porém, razão. Em primeiro lugar, porque a alteração das condições, ou o aditamento ao Acordo celebrado entre o recorrente e o Hospital de ... só vigorou por um reduzido período de tempo [de 21-1-97 a 27-11-97), até ser denunciado, além do que o aditamento em causa apenas veio permitir a realização de exames da especialidade do recorrente durante o horário normal de trabalho, sempre que as situações clínicas o justificassem, com avaliação caso a caso, o que nunca foi o caso, já que a conduta do recorrente não se alterou depois da introdução da nova cláusula, em 21-1-97, continuando a proceder como sempre havia feito, ou seja, a levar a cabo os referidos exames dentro do seu horário de trabalho. Por isso, se os exames não eram efectuados depois das 16 horas e aos sábados, como estava acordado, visto se ter demonstrado que o recorrente os efectuava dentro do seu horário normal de trabalho, é evidente que o mesmo não podia ter recebido os honorários devidos pela sua realização, já que durante esse período o recorrente estava a ser pago através do seu salário, o mesmo é dizer que foi a sua conduta a violar o princípio da boa-fé, com manifesto abuso de direito da sua parte, e não agora a conduta da Administração, com a qual apenas se visou a reposição da legalidade violada pela conduta do recorrente. Por outro lado, é preciso não esquecer que no momento em que o Hospital Distrital de ... pagou em duplicado a realização dos exames de gastrenterologia - que constituíam o trabalho a fornecer em troca dos salários dos funcionários dentro do horário normal de trabalho - ficou efectivamente prejudicado nos montantes cobrados por esses exames como se tivessem sido efectuados no regime de clínica privada. Daí que a conduta da Administração, pretendendo recuperar do recorrente as quantias que aquele indevidamente recebeu, não é violadora do princípio da boa-fé que deve presidir à celebração dos contratos [artigo 227° do Cód. Civil] e, muito menos, não configura uma situação de abuso de direito [artigo 334° do Cód. Civil)."
Vamos lá ver. Estamos perante um funcionário público, um médico, a quem foi permitido desenvolver actividade médica - justamente a mesma que efectuava como funcionário - de carácter privado, no seu habitual local de trabalho enquanto agente do Estado, mas fora do seu período normal de serviço. O "Acordo" (fls. 83/85 do PA) previa, como não podia deixar de ser, a realização dos exames fora do período normal de trabalho (cláusula 7.ª). Se o recorrente já recebia o seu vencimento como funcionário público correspondente ao exercício de funções durante esse período, evidentemente que não podia ser remunerado por qualquer outro serviço que executasse nesse lapso de tempo pois, por ele, já estava a ser devidamente remunerado pelo Hospital. E, muito menos, se esse serviço fosse exactamente igual àquele que estava obrigado a prestar como funcionário público. Por outro lado, a alteração ao "Acordo" (fls. 86/88), que, excepcionalmente (cláusula 1.ª, a) "Desde que se verifiquem situações clínicas que o justifiquem, de acordo com o parecer do Director do Serviço, sem prejuízo do atendimento dos doentes do Hospital, excepcionalmente poderão ser feitos os exames dento do horário normal de funcionamento".., consentia a realização de exames em tempo de trabalho público, só vigorou durante uma semana e foi absolutamente alheia ao desencadear do processo disciplinar. De todo o modo, os exames correspondentes à quantia cuja devolução se ordenou foram, di-lo a autoridade recorrida no processo disciplinar, e agora, todos eles efectuados em desrespeito com as regras do acordo, competindo ao recorrente identificar, no respectivo processo, os que ali, em sua opinião, estavam indevidamente incluídos. O que não fez, optando antes por sustentar a legalidade do seu comportamento em bloco. Portanto, não ocorreu qualquer erro sobre os pressupostos de facto, ou de direito, do acto impugnado, que se limitou a constatar o incumprimento de um acordo celebrado entre as partes. O recorrente efectuou exames quando o não podia fazer nos termos do Acordo que livremente celebrou com o Hospital de .... E, é absolutamente irrelevante, para efeitos da caracterização da infracção disciplinar e da obrigação de restituir, que o Hospital tenha sido parcialmente pago pela Sub-Região de Saúde de Vila Real nos termos do "Protocolo" com ela celebrado (fls. 76/82) pelos exames (alguns Observe-se que o "Acordo" em causa de modo algum excluía a possibilidade de ali servem observados e examinados doentes não provenientes da Sub-região, estritamente particulares.) efectuados pelo recorrente, pois esse pagamento ocorreu, na pressuposição, errada, de que esses exames haviam sido realizados no pleno cumprimento do acordo celebrado. O que manifestamente não sucedeu. De resto, esse pagamento decorreu no âmbito do relacionamento entre duas entidades públicas, relacionamento a que o recorrente é completamente alheio, sendo que o resultado do processo disciplinar, seguramente, irá determinar o acerto final de contas com a devolução do que indevidamente foi pago.
Também não se vê como pode a Administração ter incorrido na violação do princípio da boa fé se apenas exigiu a devolução daquilo que foi indevidamente cobrado, por ter sido já pago. Esta exigência não se traduz em qualquer procedimento burocrático nem comporta a violação do princípio da desburocratização e da eficiência contemplado no art.º 10 do CPA. Traduz-se, antes, por um lado, na observância do princípio da legalidade a que a Administração está obrigada (art.º 3 do CPA) e por outro, no respeito do princípio pacta sun servanda (art.º 406 do CC) que todos os contraentes devem respeitar. E, sendo assim, também não ocorreu o enriquecimento da Administração ou qualquer actuação sua tradutora de abuso de direito.
Improcedem, por isso, todas as conclusões da alegação do recorrente, não se mostrando violado nenhum dos preceitos e princípios jurídicos nela mencionados.
IV Decisão
Nos termos e com os fundamentos expostos, acordam em negar provimento ao recurso, assim se confirmando a sentença recorrida.
Custas a cargo do recorrente, fixando-se a Taxa de Justiça e a Procuradoria em, respectivamente, 400 e 200 euros.
Lisboa, 27 de Maio de 2009. - Rui Manuel Pires Ferreira Botelho (relator) – Alberto Acácio de Costa Reis – José António de Freitas Carvalho.