Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:044757
Data do Acordão:10/13/2004
Tribunal:PLENO DA SECÇÃO DO CA
Relator:ANTÓNIO SAMAGAIO
Descritores:JOGOS DE FORTUNA OU AZAR.
CONCESSIONÁRIO.
ACESSO A SALA DE JOGOSS.
TUTELA.
Sumário:I - À Inspecção Geral do Turismo assiste o direito ao controlo da recusa, pela concessionária do jogo nos termos do nº 1 do art. 36º do DL nº 422/89, de 2 de Dezembro, da emissão de cartões de acesso à sala de jogos tradicionais dos casinos.
II - A tutela exercida pelo Governo sobre um concessionário de zona de jogo, em regime de exclusivo, não tem carácter excepcional, constituindo antes o regime-regra, que se justifica por o direito de explorar o jogo se achar reservado ao Estado, não se inscrevendo nos poderes próprios do ente tutelado.
III - Por isso, não existe obstáculo à integração analógica de lacunas de regulamentação em matéria de fiscalização de concessionários pelo concedente e, no caso em apreço, à aplicação do regime previsto no nº 2 do art. 37º do DL nº 422/89 à situação prevista no nº 1 do seu art. 36º - os actos de recusa de emissão de cartão de entrada ou de acesso à sala de jogos, estão sujeitos a confirmação pelo Inspector-Geral dos Jogos, com recurso para o membro do Governo responsável pelo sector do turismo.
Nº Convencional:JSTA00062099
Nº do Documento:SAP20041013044757
Data de Entrada:03/09/1999
Recorrente:A...
Recorrido 1:SE DO TURISMO E OUTROS
Recorrido 2:OUTROS
Votação:UNANIMIDADE
Ref. Acórdãos:
Meio Processual:REC JURISDICIONAL.
Objecto:AC 3 SUBSECÇÃO DO CA DE 2003/11/26.
Decisão:NEGA PROVIMENTO.
Área Temática 1:DIR ADM CONT - ACTO.
Legislação Nacional:DL 422/89 DE 1989/02/12 ART36 N1 ART29 ART37 ART95.
DL 10/95 DE 1995/01/19.
L 14/89 DE 1989/07/30 ART1 ART2.
Jurisprudência Nacional:AC STAPLENO PROC44798 DE 2003/11/12.; AC STA PROC47836 DE 2003/07/02.; AC STA PROC44798 DE 2002/05/22.
Referência a Pareceres:P PGR 44/98 DE 1998/09/24.
Referência a Doutrina:SÉRVULO CORREIA LEGALIDADE E AUTONOMIA CONTRATUAL NOS CONTRATOS ADMINISTRATIVOS PAG365 PAG419.
Aditamento:
Texto Integral: ACORDAM NO PLENO DO SUPREMO TRIBUNAL ADMINISTRATIVO
RELATÓRIO
A..., concessionária da exploração de jogos de fortuna e azar na zona de jogo do Estoril, interpôs neste Supremo Tribunal recurso contencioso pedindo a anulação do despacho n.º 17/99/SET do Sr. Secretário de Estado do Turismo, de 12/1/99, que lhe indeferiu o recurso hierárquico da decisão do Sr. Inspector Coordenador da Inspecção que decidiu não confirmar o acto pelo qual a Recorrente recusara a emissão de cartão de acesso às salas de Jogos Tradicionais e à Sala de Máquinas a 76 frequentadores, imputando-lhe vício de violação de lei.
Por acórdão da 1ª Secção (3ª Subsecção) de 26/11/2003 (fls. 553 e segs.) foi negado provimento a tal recurso.
Inconformada com a referida decisão interpôs da mesma recurso para este Tribunal Pleno, tendo concluindo, desta forma, as suas alegações:
"a) A recorrente é concessionária da exploração de jogos de fortuna e azar na zona de jogo do Estoril;
b) Nessa qualidade e por decisão sua recusou o acesso às salas de jogos tradicionais e de máquinas a 76 jogadores, através da não emissão de cartões, por considerar inconveniente a sua presença;
c) Tal decisão foi comunicada ao Serviço de Inspecção de Jogos junto do Casino do Estoril;
d) Na sequência desta comunicação, o Senhor Coordenador da Equipa da Inspecção Geral de Jogos naquele Casino proferiu, em 30-12-1998, despacho em que decidia não confirmar a medida de recusa;
e) Inconformada, a recorrente interpôs o competente recurso hierárquico para Sua Excelência o Senhor Secretário de Estado do Turismo;
f) Em 12/01/1999 o Senhor Secretário de Estado do Turismo, indeferiu o recurso interposto pela recorrente, confirmando o despacho da Inspecção-Geral de Jogos e aderindo na integra aos seus fundamentos;
g) Notificada, a recorrente interpôs o competente recurso contencioso para o Supremo Tribunal Administrativo;
h) O Tribunal negou provimento ao recurso com os seguintes fundamentos:
- o entendimento defendido pela recorrente só aparentemente seria sustentável, numa análise mais profunda ao Decreto-Lei n.º 422/89, constata-se que tal entendimento tornava o diploma incongruente; isto porque,
- o Inspector-Geral de Jogos encontra-se colocado, no âmbito do referido diploma, numa situação de supremacia, pelo que, não é congruente que o artigo 38º no n.º 3, do mesmo diploma, estabeleça que dos actos praticados pelo Inspector-Geral de Jogos ao abrigo do artigo 36º cabe recurso para o hierárquico e os mesmos actos praticados pelas concessionárias não se encontrem sujeitos a nenhum tipo de controle Administrativo;
- a confirmar o entendimento supra exposto está o princípio geral sobre o âmbito dos poderes de inspecção enunciado no artigo 95º do referido diploma, que atribui expressamente à Inspecção Geral de Jogos competência fiscalizadora da actividade das concessionárias em matéria de aplicação de medidas preventivas e cautelares de inibição de acesso às salas de jogo, e que, portanto se incluem na matéria prevista no referido artigo 36º;
- apenas existe uma lacuna relativamente à regulamentação do modo de exercício dessa tutela;
- não existe qualquer obstáculo ao preenchimento dessa lacuna com recurso à analogia.
A recorrente não se conformou e interpôs o presente recurso jurisdicional;
i) O Douto acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Administrativo, seguindo a orientação do acórdão de 12/11/2003 do mesmo tribunal, salvo o devido respeito, não fez uma correcta interpretação e aplicação dos preceitos legais aplicáveis;
j) Pese embora ter considerado, tal como a recorrente, que era manifesto que "(..) no artigo 36º se não prevê que a recusa de emissão de cartões de entrada ou de acesso às salas, determinada pelo director do serviço de jogos, isto é, pelo concessionário, seja sujeita a confirmação por outra entidade", considerou que só aparentemente se podia admitir essa solução; porque,
k) O nº 3 do artigo 29º e no nº 2 deste 37º prevêem expressamente a necessidade de confirmação pelos serviços de inspecção das decisões das concessionárias;
l) Daí ter concluído que, literalmente, a comparação dos artigos favorece a conclusão defendida pela recorrente de que a decisão do director do serviço de jogos, nas situações previstas neste artigo 36º não necessita de confirmação, pois não está ali expressamente prevista, ao contrário do que sucede naqueles artigos 29º e 37º;
m) Mas, de imediato, vem concluir que da interpretação literal resultaria uma "incongruência na lei" uma vez que das decisões tomadas pelo inspector-geral de jogos cabe recurso para o membro do Governo, logo as decisões do director de serviço de Jogos têm de ter controle administrativo e este tem de ser exercido pela Inspecção Geral de Jogos por via de tutela;
n) Ao concluir nestes termos, o Tribunal, sem suporte legal, partiu do princípio que o legislador pretendeu disciplinar o controlo das decisões do Inspector-Geral de Jogos nos mesmos termos em que pretendeu disciplinar as do director de serviço de Jogos;o) Não atendeu o facto do Inspector Geral de Jogos estar integrado na hierarquia da pessoa colectiva Estado e o Director do Serviço de Jogos ser um órgão de uma pessoa colectiva privada investida em poderes de autoridade por via da concessão;
p) Não atendeu a que esta diferença de natureza não implicava igualdade de tratamento no que respeita ao controle dos actos que praticam;
q) Não atendeu a que os destinatários dos actos do Inspector Geral de Jogos podem recorrer hierarquicamente e os destinatários dos actos do Director do Serviço de Jogos podem fazê-lo, desde logo, contenciosamente porque se consideram praticados pela concessionária, e em caso algum deixam de estar garantidos os meios de defesa;
r) Assim, a previsão de recurso hierárquico fixada no nº 3 do artigo 38º, relativamente aos actos do Inspector Geral de Jogos, nada tem de incongruente, nem determina a necessidade de controle administrativo das decisões de não emissão de cartões, nos termos do artigo 36º, por parte do Director do Serviço de Jogos; logo,
s) É ilegítimo e ilegal chamar à colação o artigo 95º, n.º 4, do Decreto-Lei n.º 422/89, quer pela desnecessidade, quer pelo facto do Tribunal considerar que ali se encontra um "princípio geral sobre o âmbito dos poderes de inspecção" ........ "atribuída(o) globalmente, para toda a matéria em que se enquadra a situação em apreço".
t) O Tribunal adultera o preciso sentido desta norma. Onde a norma diz que a Inspecção pode aplicar "medidas preventivas e cautelares de inibição de acesso às salas de jogo", o Tribunal interpreta que a Inspecção pode confirmar os actos do director de serviços do Casino em sede de medidas preventivas e cautelares de inibição de acesso às salas de jogo. O que, com o devido respeito, é ilegal.
u) O Tribunal, por esta via, pretendeu afastar uma pretensa lacuna de competência e a necessidade de recurso à analogia, sem atender a que o artigo 95º confere um poder inspectivo, enquanto o caso dos autos implicava um poder integrativo, ou, dado o caracter negativo do acto, revogatório ou substitutivo;
v) A extensão dos poderes tutelares, preconizada pelo acórdão recorrido, contraria toda a jurisprudência e doutrina que defende que a tutela só existe nos casos e nos termos expressamente previstos na lei, "os actos de uma pessoa colectiva só estão sujeitos à tutela nos termos expressamente fixados na lei, isto é, apenas os actos que a lei dispuser, pela forma e para os efeitos nela estabelecidos e pelos órgãos aí designados" Marcello Caetano (Manual de Direito Administrativo, Vol. I, 10ª Edição, Livraria Almedina, pág. 232 e 233) ;
w) Como facilmente se constata, a competência atribuída em termos genéricos pelo artigo 95º n.º 4 do Decreto-Lei n.º 422/89, é uma competência fiscalizadora, que conceitualmente se designa por tutela inspectiva, enquanto os actos praticados pela Inspecção-Geral de Jogos, à semelhança das competências estabelecidas pelos artigos 29º e 37º do referido diploma, consubstanciam uma tutela correctiva ou integrativa;
x) A diferença entre estes dois tipos de tutela não meramente conceitual, é também substancial: a tutela inspectiva "consiste no poder de fiscalizar os órgãos e os serviços da pessoa colectiva, para o efeito de promover a aplicação de sanções contra ilegalidades ou má gestão" (Marcello Caetano, obra cit. Pág. 232);
v) A tutela correctiva ou integrativa, por sua vez, traduz-se "no poder de autorizar ou aprovar os actos da entidade tutelada" (Freitas do Amaral, op. cit., pág. 703), ou seja, "o órgão resolve e só necessita do consentimento tutelar para por em prática a sua resolução" (Marcello Caetano, op. cit. pág. 231).
z) Ora, tratando-se de formas de tutela distintas, não podia o Tribunal, pelo facto de o legislador conferir uma, inferir a existência da outra, sob pena de se violar o princípio da legalidade da competência que exige a prescrição normativa da competência, incluindo o seu modo de exercício.
aa) A tutela não se presume, não existem lacunas de tutela, pelo que, só pode existir quando expressamente conferida e só nos termos em que for conferida.
bb) A Inspecção-Geral de Jogos só se poderia considerar competente para não confirmar os actos da recorrente praticados no âmbito do artigo 36º do referido diploma, se tal competência se encontrasse expressamente prevista na lei, o que, como já vimos e o Supremo Tribunal Administrativo reconheceu, não acontece;
cc) Afirma o Prof. Freitas do Amaral que "existe um princípio geral da maior importância em matéria de tutela administrativa, e que é este: a tutela administrativa não se presume, pelo que só existe quando a lei expressamente a prevê e nos precisos termos em que a lei a estabelecer. Isto significa que, por exemplo, pelo facto de a lei prever uma tutela inspectiva, não se segue que exista tutela disciplinar, revogatória ou substitutiva. A tutela só existe nas modalidades que a lei a consagrar, e nos termos e dentro dos limites que a lei impuser. " (Op. cit. pág. n.º 706 e 707).
dd) O princípio da legalidade encontra-se constitucionalmente consagrado, nomeadamente no n.º 2 do artigo 266º da Constituição da República Portuguesa que expressamente impõe "que os órgãos e agentes administrativos estão subordinados à Constituição e à Lei";
ee) A interpretação levada a efeito pelo Tribunal não é conforme àquele preceito constitucional e, uma vez que admite uma competência tutelar não expressa na lei e sem regulamentação do seu exercício, viola-o frontalmente;
ff) A interpretação do pensamento legislativo defendido pela Recorrente é conforme à lei, não só literalmente, como o Tribunal a considerou, mas em conformidade com o pensamento legislativo;
gg) Assim sendo, e tendo em conta o princípio da legalidade que está subjacente ao instituto da tutela administrativa, teremos que concluir que a interpretação defendida pela recorrente, não só não padece de nenhuma incongruência, mas foi, efectivamente, aquela que o legislador quis consagrar, para além de se encontrar ao abrigo da presunção legal plasmada no nº3 do artigo 9 do Código Civil.
hh) A integração analógica levada a efeito pelo Tribunal para suprir a lacuna de regulamentação de exercício também não é legítima, uma vez que as normas que estabelecem a tutela e a regulam têm a mesma natureza jurídica e são igualmente normas excepcionais; assim,
ii) O acórdão recorrido é ilegal por erro de interpretação e aplicação das normas legais aplicáveis, nomeadamente os artigos 36º, 37, 38, 29º e 95, entre outros, todos do Decreto-Lei n.º 422/89, de 2 de Dezembro, na redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 10/95, de 19 de Janeiro, por erro de interpretação e aplicação dos artigos 9º, 10º e 11º do Código Civil, e ainda o nº 2 do artigo 266 da Constituição da República Portuguesa.".
II - O Secretário de Estado do Turismo contra-alegou, tendo concluído assim:
"1. A tese que a Recorrente vem novamente defender no presente recurso foi já objecto de vários Acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo, nomeadamente Acórdãos de 24/02/02 (rec. 45972), de 25/05/02 (rec. Nº 44798) de 30/09/03 (rec 45972) e do Tribunal Pleno de 12/11/03 (rec. 44798), todos concluindo pela improcedência da mesma.
2. A Inspecção Geral de Jogos tem competência para intervir em matéria de recusa de acesso às salas de jogos, designadamente através da confirmação ou não da decisão de não emissão de cartões de acesso previamente proferida pela ora Recorrente,
3 - Tal competência vem expressa no art. 95º nº 4 do DL nº 422/89 de 2 de Dezembro, com a alteração dada pelo D.L. nº 10/95 de 19 de Janeiro e no art. 13º nº 1 Al. i) do D.L. nº 184/88 de 25 de Maio, que conferem à Inspecção Geral de Jogos o poder de aplicar medidas preventivas e cautelares de inibição de acesso às salas de jogos dos casinos.
4 - Sendo pois irrelevante a discussão que a Recorrente pretende trazer aos Autos com a invocação de que no artº 95º do D.L. n.º 422/89 de 2 de Dezembro, com a alteração dada pelo D.L. n.º 10/95 de 19 de Janeiro, se consagra uma tutela inspectiva.
5. Até porque o poder, conferido no artº 95º nº 4 do citado diploma, à Inspecção Geral de Jogos de tomar as medidas necessárias no que se refere à inibição de acesso às salas de jogo, nelas se incluindo o poder ultimo de confirmar ou não as decisões da concessionária, enquadra-se na tutela correctiva.
6. Acresce que dos artºs 29º e 30º do D.L. nº 422/89 de 2 de Dezembro, com a redacção dada pelo D.L. nº 10/95 de 19 de Janeiro ressalta a preocupação do legislador em manter sob o controlo do Estado através da Inspecção Geral de Jogos a permanência e proibição de entrada nas salas de jogo, em que se configura o acesso ou não às mesmas, controlo esse também expresso no artº 95º nº 4 da mesma Lei.
7 - Ainda que assim não se entendesse, tal competência da Inspecção Geral de Jogos resultaria sempre da aplicação por via analógica do artº 37º do D.L.nº 422/89 de 2 de Dezembro, com a alteração dada pelo D.L. nº 10/95 de 19 de Janeiro à previsão do artº 36º do mesmo diploma, dada a coincidência de situações neles previstas de que resulta evidente analogia que exige o mesmo tratamento do direito. ( artº 9º e 10º do Cód. Civil)
8 - É aliás este o entendimento do Parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria Geral da Republica nº 44/98, de 24 de 8. É aliás este o entendimento do Parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria Geral da Republica nº 44/98, de 24 de Setembro, que tendo sido homologado pelo despacho nº 780/SET de 16 de Novembro do Secretário de Estado de Turismo, constitui interpretação oficial ex vi do nº 1 do artº 43º da Lei 60/98 de 27 de Agosto.
9. Como refere o Parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria Geral da Republica nº 44/98, de 24 de Setembro, a supremacia do controlo do órgão tutelar relativamente ao acesso às salas de jogos dos casinos resulta também da evolução legislativa relativa ao jogo de fortuna e azar e nem o pedido de autorização legislativa do Governo para legislar sobre a matéria do jogo, nem a autorização conferida se referem a qualquer retirada ao órgão da tutela do poder último de controlar a forma e o mérito da decisão das concessionárias relativamente a esse acesso.
10. Aliás no recente acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 2.7.03 (Proc.º nº 47.836) decidiu-se, na linha de outros arestos (v.g., o Ac. de 22.5.02, proc.º nº 44.798) que "a tutela exercida pelo Governo sobre um concessionário de zona de jogo, em regime de exclusivo, não tem carácter excepcional, constituindo antes o regime-regra, que se justifica por o direito de explorar o jogo se achar reservado ao Estado, não se inscrevendo nos poderes próprios do ente tutelado".
11. E como refere o citado Parecer nº44/98, os argumentos da Recorrente da impossibilidade de uma interpretação extensiva ou a integração de lacunas das disposições que prevêem a tutela administrativa, também não procedem porque in casu não se trata da tutela sobre uma pessoa colectiva de direito publico detentora em nome próprio de poderes de autoridade, mas do exercício pelas concessionárias de poderes públicos, e mesmo de autoridade, nunca em nome próprio, mas em nome da Administração.
12 - Com efeito, atentas a natureza e características do jogo
13. Trata-se de um contrato de colaboração subordinada, pelo qual o concessionário se obriga a proporcionar ao concedente uma colaboração temporária no desempenho das funções administrativas.
14. Pelo que permanecendo os poderes e deveres públicos na titularidade da Administração, as restrições e rigor exigidos pela doutrina na interpretação e integração das normas que prevêem a tutela não se aplicam no caso das concessões de exploração de jogo de fortuna e azar.
15. Assim e atentos os grandes princípios que há muito norteiam o regime do jogo, ao facto de nem do pedido de autorização legislativa do Governo para legislar sobre a matéria do jogo, nem a autorização conferida se referirem à alteração desse regime da tutela do interesse público na exploração do jogo e do poder de supremacia do Estado exercido através da Inspecção Geral de Jogos nessa exploração, e à coerência e lógica do sistema jurídico, também pela via analógica se teria de concluir pelo poder da Inspecção Geral de Jogos de controlar o acesso às salas de jogos, confirmando ou não a decisão prévia das concessionárias sobre esta matéria, com recurso para o membro do Governo da tutela.
16. O entendimento da Recorrente de que o artº 36º da Lei do jogo lhe atribui um poder de recusar o acesso à sala de jogos sem qualquer controlo por parte da Inspecção Geral de Jogos não procede também porque implicaria que o referido normativo estaria nessa parte ferido de inconstitucionalidade, ao restringir a liberdade de acesso dos cidadãos às salas de jogo, atribuindo tal poder de decisão sem controlo administrativo às concessionárias.
17. Na verdade, como refere o citado Parecer n.º 44/98 do Conselho Consultivo da Procuradoria Geral da República, impondo-se à Inspecção Geral de Jogos a audição obrigatória do interessado inexistem razões ou excepções legais que permitam procedimento diferente para as concessionárias no âmbito do contrato administrativo.
18. O entendimento da recorrente implicaria também uma desigualdade de tratamento dos frequentadores dos casinos nas situações dos artºs 36º e 37º da mesma lei, violadora do princípio constitucional do artº 13º da Constituição da República Portuguesa, bem como dos princípios da imparcialidade e justiça que a mesma impõe à Administração na sua actuação (artºs 265º e 266º nº2 da CPR), e bem ainda do artº 267º nº2 desta, que determina que a descentralização administrativa não pode prejudicar a eficácia e unidade da acção da Administração e dos poderes de direcção, superintendência e tutela dos órgãos competentes.
19. Com efeito, a medida de restrição de acesso aos casinos constitui uma providência ablativa da esfera jurídica dos particulares e como tal sujeita ao principio da audiência dos particulares e ao princípio da fundamentação dos actos que afectem os direitos e interesses legítimos destes (artºs 100º e 124º do D.L. nº 9/96 de 31 de Janeiro-C.P.A.)
20. De qualquer modo e como bem decidiu o Acórdão recorrido a proibição de determinada pessoa de jogar e entrar na sala de jogos é um acto ablativo da liberdade da mesma, mais próprio da autoridade pública originária do Estado, do que da autoridade delegada do concessionário, o que justifica a submissão do acto a ratificação do Inspector Geral de Jogos, com recurso para o membro do Governo e se integra na competência deste ex vi do artº 95º da aplicação de medidas preventivas e cautelares de inibição de acesso às salas de jogo.
21. Competindo pois à Inspecção Geral de Jogos na qualidade de entidade que tem a seu cargo o exercício da superintendência na exploração do jogo, proibir, por sua iniciativa ou a pedido justificado das concessionárias, o acesso às salas de jogo, proibição de que uma das formas é a não emissão dos respectivos cartões de acesso. (D.L. nº 184/88 de 25 de Maio, artºs 36º, 37º, 38º e 95º da Lei do Jogo e artºs 3º e 19º do D.L. nº 186/2003 de 20 de Agosto)
22. Não se verificam pois no Acórdão recorrido o erro de interpretação e de aplicação das normas legais invocadas pela Recorrente.
Termos em que deve ser negado provimento ao Recurso, mantendo-se na integra o Acórdão recorrido.”
O Ex.º magistrado do M.P. emitiu parecer no sentido do acórdão recorrido não merecer censura.
Deu o acórdão recorrido como provada a seguinte matéria de facto, que este Pleno, por ser tribunal de revista, tem de acatar :
Com interesse para a decisão da causa julgam-se provados os seguintes factos :
1. A Recorrente é concessionária da exploração dos jogos de fortuna e azar da zona de jogo do Estoril
2. Nessa qualidade decidiu recusar o acesso às suas salas de jogos a 76 dos seus frequentadores por considerar que esse acesso e a sua presença nessas salas era inconveniente, recusa cuja concretização se faria pela não emissão dos respectivos cartões de acesso.
3. Através dos documentos juntos de fls. 41 a 116 especificou as razões dessa recusa e indicou a respectiva prova testemunhal
4. Em 29/12/98 a Recorrente informou a Inspecção Geral de Jogos de que "iremos recusar o acesso à Sala de Jogos Tradicionais e à Sala de Máquinas, a partir do próximo dia 1/1/99, aos indivíduos discriminados na relação anexa"– vd. ofício junto a fls. 38 dos autos que se dá como integrado.
5. Em resposta a essa comunicação o Sr. Coordenador da Equipa de Inspecção de Jogos do Casino do Estoril oficiou à Recorrente informando-a que " .... determinou a instauração de processo de averiguações e decidiu não confirmar a medida adoptada pela A... de recusar o acesso aos 76 indivíduos constantes da relação anexa à mesma comunicação ... "– vd. doc. de fls. 117 que se dá por reproduzido.
6. Inconformada, a Recorrente interpôs recurso hierárquico dessa decisão para o Sr. Inspector Geral de Jogos. – vd. doc. de fls. 118 a 134 que se dá por reproduzido.
7. Este remeteu, oficiosamente, esse recurso hierárquico à Autoridade Recorrida juntamente com a Informação que se encontra a fls. 33 a 35, que se dá por reproduzida.
8. Em 12/1/99 foi proferido o despacho ora recorrido cujo teor se encontra a fls. 32 que, também, se dá por reproduzido.
II - O DIREITO
A Recorrente, concessionária da exploração dos jogos de fortuna e azar do Casino Estoril recusou a emissão de cartão de acesso às suas salas de jogos tradicionais a 76 frequentadores, por considerar a sua presença inconveniente, ao abrigo do que dispõe o nº 1 do art. 36º do DL nº 422/89, de 2/12, na redacção que lhe foi dada pelo DL nº 10/95, de 19/01, decisão esta que não foi confirmada pelo Coordenador da Equipa de Inspecção, decisão esta que veio depois a ser mantida pelo despacho recorrido pelo Secretário de Estado do Turismo, ao indeferir o respectivo recurso hierárquico.
Contra o assim decidido se insurgiu a Recorrente interpondo recurso para a 1ª Secção deste STA com fundamento em carecer a Entidade recorrida de competência para intervir em matéria de recusa de acesso de frequentadores às salas de jogos, tendo o acórdão recorrido negado provimento ao mesmo.
Daí o presente recurso para este Pleno.
A questão da competência da Direcção Geral dos Jogos para intervir quanto à recusa de emissão de cartões de acesso às salas de jogos tradicionais dos casinos a frequentadores já foi decidida pelo STA várias vezes sempre em sentido positivo, como salienta a Entidade recorrida nas suas contra-alegações. Ainda recentemente este Tribunal Pleno, pelo seu acórdão de 12/11/2003, Proc. nº 44 798, decidiu questão idêntica em relação ao Casino da Póvoa de Varzim. E, porque não se vislumbram razões que justifiquem a alteração da solução dada a tal questão segue-se a linha argumentativa do referido aresto, tanto mais que as conclusões do presente recurso são um decalque perfeito das conclusões apresentadas naquele recurso para o Pleno.
Sustenta-se em tal aresto que “A recusa de acesso às salas de jogo foi decidida pela recorrente ao abrigo do disposto no nº 1 do art. 36º do Dec-Lei nº 422/89, de 2.12, na redacção do Dec-Lei nº 10/95, de 19.1. Além deste art. 36º, importa trazer à colação os arts. 29º e 37º deste diploma, que também versam sobre a matéria de acesso aos casinos e expulsão das salas de jogos.
Estas disposições legais prescrevem da seguinte forma:
Art. 36º
1 - O acesso às salas de jogos de fortuna ou azar é reservado, devendo o director do serviço de jogos ou a Inspecção-Geral de Jogos recusar a emissão de cartões de entrada ou o acesso aos indivíduos cuja presença nessas salas considerem inconveniente, designadamente nos casos do nº 2 do artigo 29º.
2 - Independentemente do disposto no número anterior, é vedada a entrada nas salas de jogos, designadamente, aos indivíduos:
a) Menores de 18 anos;
Incapazes, inabilitados e culpados de falência fraudulenta, desde que não tenham sido reabilitados;
c) Membros das Forças Armadas e das corporações paramilitares, de qualquer nacionalidade, quando se apresentem fardados;
d) Empregados das concessionárias que prestam serviço em salas de jogos, quando não em serviço;
e) Portadores de armas, engenhos ou matérias explosivas e de quaisquer aparelhos de registo e transmissão de dados, de imagem ou de som.
Art. 29º
1 - As concessionárias podem cobrar bilhetes de entrada nos casinos, cujo preço não deverá exceder um montante máximo a fixar anualmente pela Inspecção-Geral de Jogos.
2 - O acesso aos casinos é reservado, devendo as concessionárias não permitir a frequência de indivíduos que, designadamente: a) A partir das 22 horas, sejam menores de 14 anos, excepto quando maiores de 10 anos, desde que acompanhados pelo respectivo encarregado de educação;
b) Não manifestem a intenção de utilizar ou consumir os serviços neles prestados;
c) Se recusem, sem causa legítima, a pagar os serviços utilizados ou consumidos;
d) Possam causar cenas de violência, distúrbios do ambiente ou causar estragos;
e) Possam incomodar os demais utentes do casino com o seu comportamento e apresentação;
f) Sejam acompanhados por animais, exerçam a venda ambulante ou prestem serviços;
3 - Sempre que a direcção do casino exerça o dever que lhe é imposto no número anterior, deverá comunicar a sua decisão ao serviço de inspecção no casino, no prazo de vinte e quatro horas, indicando os motivos que a justificam e as testemunhas que possam ser ouvidas sobre os factos, pedindo a confirmação da medida adoptada.
Art. 37º
1 - Todo aquele que for encontrado numa sala de jogos em infracção às disposições legais, ou quando seja inconveniente a sua presença, será mandado retirar pelos inspectores da Inspecção-Geral de Jogos ou pelo director do serviço de jogos, sendo a recusa de saída considerada crime de desobediência qualificada, no caso de a ordem ser dada ou confirmada pelos referidos inspectores.
2 - Sempre que o director do serviço de jogos tenha de exercer o poder que lhe confere o nº 1, deve comunicar a sua decisão ao serviço de inspecção no prazo de vinte e quatro horas, indicando os motivos que a justificam e as testemunhas que possam ser ouvidas sobre os factos, pedindo a confirmação da medida adoptada.
3 - A expulsão das salas de jogos por força do disposto nos números anteriores implica a proibição preventiva de acesso a essas salas, a decretar nos termos do artigo seguinte, e dá lugar: a) A processo contra-ordenacional, nos termos dos artigos 144.º e seguintes, quando a expulsão se funde na prática de contra-ordenação;
b) A processo criminal, quando a expulsão se funde na prática de um crime.
Tal como o acórdão recorrido começa por salientar, enquanto no art. 36º se não prevê que a recusa de emissão de cartões de entrada ou de acesso às salas, determinada pelo director do serviço de jogos, isto é, pelo concessionário, seja sujeita a confirmação por outra entidade, quer o art. 29º (nº 3), quer o art. 37º (nº 2) mandam que tais decisões sejam confirmadas pelo serviço de inspecção de jogos, cabendo à própria concessionária suscitar essa intervenção. Todavia, o acórdão, na linha do Parecer do Conselho Consultivo da P.G.R. nº 44/98, de 24.9.98 (D.R., II série, nº 64, de 17.3.99), não aceita que dessa diferença se possa retirar que nas situações previstas pelo art. 36º não haja necessidade de confirmação; o que existe é uma lacuna de regulamentação, que deve ser preenchida através da analogia com as situações reguladas naquelas outras normas, dado estar em causa o relacionamento entre as mesmas entidades e haver perfeita identidade dos interesses que estão em causa.
Doutra maneira – diz o acórdão – haveria incongruência na lei, pois no artigo 38º estabelece-se que das decisões do Inspector-Geral dos Jogos tomadas, além do mais, nos termos do art. 36º cabe recurso para o membro do Governo responsável pela área do turismo. Ora, sendo a posição desse Inspector-Geral de supremacia relativamente aos directores do serviço de jogos, não se compreenderia que as suas decisões proferidas directamente ao abrigo do art. 36º estivessem sujeitas a controlo hierárquico por uma entidade governamental e as decisões daqueles, tomadas no uso de poderes idênticos aos dos inspectores de jogos, estivessem excluídas de qualquer controlo administrativo, mesmo que por entidade subalterna.
Esta argumentação é criticada pela recorrente, mas sem razão. Vários elementos concorrem no sentido de que o silêncio do art. 36º quanto à necessidade de confirmação pela Inspecção-Geral dos Jogos não significa que o legislador optou por prescindir dessa intervenção nas hipóteses reguladas neste artigo, assim afastando os órgãos estaduais de fiscalização e inspecção do poder último de decisão em matéria de entrada nas salas de jogos.
Desde logo, porque no pedido de autorização legislativa do Governo para legislar sobre a matéria do jogo de fortuna e azar não se refere a intenção de por essa via romper com a tradição de apertada fiscalização do acesso, permanência e proibição de entrada nas salas de jogo – cf. os arts. 1º e 2º da Lei nº 14/89, de 30./7 (reportamo-nos a este Decreto-Lei, e não ao Dec-Lei nº 10/95, de 19.1, porque a inovação, a existir, estaria já contida neste diploma, e não no Dec-Lei nº 10/95, de 19.1, cujas alterações ao art. 36º não se prendem com a questão agora suscitada).
O mesmo sucede com o próprio diploma regulador do jogo, em qualquer das suas versões – a de 1989 e a de 1995.
É certo que o legislador veio dizer, naquele art. 36º, que a recusa de acesso tanto poderia dimanar do Estado (pela Inspecção-Geral de Jogos) como da concessionária (por intermédio do director do serviço de jogos). Mas a instituição dessa partilha com o agente do concessionário – o director do serviço de jogo – do poder de recusar o acesso à sala não tem o sentido da outorga da prerrogativa de última decisão. O que se teve em vista foi, como se escreve no Parecer da P.G.R. atrás citado, “chamar as concessionárias à co-responsabilidade de, numa primeira análise e ponderadas as circunstâncias, elas próprias colaborarem na selecção qualitativa dos frequentadores, através da não emissão de cartões de entrada, ou não permitindo o acesso às salas de jogo, por decisão, porém, sujeita sempre à fiscalização e comprovação últimas por banda da Inspecção-Geral de Jogos”.
Acresce que as situações acauteladas nas várias normas transcritas são em tudo idênticas, não se descortinando nenhuns elementos particularizadores que, tornando-as de algum modo desiguais, justificassem que o legislador quisesse, deliberadamente, adoptar soluções jurídicas também desiguais. Estes preceitos, aliás, nem aparentam ter campos de aplicação rigorosamente delimitados, possuindo antes zonas de incidência em parte coincidentes. Basta ver que, pelo art. 29º, a concessionária pode, e deve, recusar a frequência das salas a indivíduos que “se recusem, sem causa legítima, a pagar os serviços utilizados”, ou que “possam incomodar os demais utentes do casino com o seu comportamento e apresentação”, e que, na mesma situação, efeito rigorosamente igual pode ser alcançado pela mão do art. 36º, que permite a recusa do acesso a essas salas de indivíduos cuja “presença” nelas for considerada “inconveniente”.
Ante esta patente semelhança de realidades, uma das diferenças de tratamento jurídico que não encontraria explicação lógica seria a seguinte: das decisões tomadas ao abrigo do art. 36º pelo Inspector-Geral de Jogos caberia recurso hierárquico; caso, porém, decisão igual tivesse sido tomada pelo Inspector-Geral de Jogos, o recurso a interpor seria contencioso. É que, como bem nota o acórdão, este órgão está funcionalmente colocado numa posição de clara supremacia sobre o director de serviço de jogos, detendo sobre todos os agentes da concessionária poderes de fiscalização que incluem o sancionamento de infracções administrativas por ela praticados – art. 95º do D-L nº 422/89. Dificilmente se compreenderia que uma decisão da concessionária que, por lei, o Inspector-Geral também poderia tomar estivesse resguardada do controlo administrativo governamental, enquanto a mesma decisão, se oriunda do órgão supervisor, já tivesse de ser submetida a esse controlo.
Objecta a recorrente que o acórdão esquece que o Inspector Geral de Jogos está integrado na hierarquia da pessoa colectiva Estado e o Director do Serviço de Jogos é um órgão de uma pessoa colectiva privada investida em poderes de autoridade por via da concessão, e esta diferença de natureza não implica igualdade de tratamento no que respeita ao controle dos actos que praticam. Mas a objecção não tem em conta que o concessionário, e em especial o concessionário de exploração de jogo, não se equipara ao vulgar empresário nas suas relações com o Estado. O concessionário está associado de forma íntima à realização do interesse público, e o concessionário do jogo, enquanto parte num contrato administrativo de colaboração subordinada, sofre as limitações decorrentes duma “cláusula de submissão explícita ou implícita – às leis, regulamentos e actos administrativos que durante a execução do contrato exprimam as exigências do interesse público servido, quanto ao objecto do contrato” – cf. SÉRVULO CORREIA, Legalidade e Autonomia Contratual nos Contratos Administrativos, p.p. 365 e 419. Na raiz da relação administrativa, em lugar de estar o exercício da iniciativa privada e a plena autonomia de vontade da empresa, está o monopólio do Estado do Jogo, que reserva a si próprio esse direito – art. 9º do Dec-Lei nº 422/89. E no desenrolar dessa relação, ou seja, durante a execução do contrato, o Estado mantém sobre o concessionário um apertado controlo que incide sobre o quotidiano dos casinos, com a presença física permanente nas salas de equipas de agentes seus que, entre outras tarefas (como por exemplo as ligadas ao cumprimento das obrigações fiscais do concessionário), se dedicam à chamada polícia do jogo.
Perante o especial recorte destas relações, caracterizadas não pela possibilidade abstracta de intervir ou de o fazer em certas alturas ou momentos típicos da execução do contrato, mas pela ingerência diária do Estado na actividade do concessionário, pouco sentido faz o apelo da dissemelhança entre o regime de revisão dos actos do director de jogos e o dos actos do Inspector-Geral no controlo do acesso às salas de jogo. A própria entrega a qualquer deles, em alternativa, dos poderes para recusar a entrada comprova que ambos participam da mesma função e comungam dos mesmos desígnios de interesse público. Por que haveria então o legislador de instituir o controlo governamental sobre as decisões do Inspector em matéria de recusa de acesso às salas, e de se desinteressar disso quando a proibição dimanasse do concessionário?
O que há aqui de importante, e que leva o Estado a não prescindir da última palavra nessa matéria, pouco tem a ver com o órgão que em primeiro grau se pronuncia – o director do serviço de jogos ou o Inspector-Geral de Jogos. O que se pretende preservar é a legalidade e oportunidade da decisão em si, na justa medida em que ela vai afectar os interesses de pessoas estranhas à relação entre concedente e concessionário. Ao proibir-se determinada pessoa de jogar e entrar na sala (sem que essa pessoa faça parte do universo de indivíduos que por lei não podem a ela ter acesso, ou só o podem ter de forma limitada) está-se a praticar um acto com acentuada carga interferente e ablativa, porventura mais próprio da autoridade pública originária do Estado, do que da autoridade delegada do concessionário. Nada mais natural do que submeter tal acto à ratificação do Inspector-Geral, com recurso para o Governo. Natural e coerente, pois isso integra-se perfeitamente na competência do Inspector-Geral atribuída pelo já falado art. 95º, mormente em matéria de “medidas preventivas e cautelares de inibição de acesso às salas de jogo” – nº 4 deste artigo.
Nem se diga que este entendimento afronta o princípio da excepcionalidade da tutela.
No recente acórdão deste Supremo Tribunal de 2.7.03 (Proc.º nº 47.836) decidiu-se, na linha de outros arestos (v.g., o Ac. de 22.5.02, proc.º nº 44.798) que “a tutela exercida pelo Governo sobre um concessionário de zona de jogo, em regime de exclusivo, não tem carácter excepcional, constituindo antes o regime-regra, que se justifica por o direito de explorar o jogo se achar reservado ao Estado, não se inscrevendo nos poderes próprios do ente tutelado”. É certo que essas relações são de natureza tutelar – a própria lei o diz (arts. 2º e 95º do Dec-Lei nº 422/89), mas a tutela que aqui está em causa assume uma expressão e uma intensidade muito superior à que preside ao relacionamento entre o Estado e os entes autónomos que detêm, em nome próprio, prerrogativas de autoridade, e que, por definição, se reveste de carácter excepcional. Essa intensidade é de tal ordem que leva alguma doutrina a defender que poderes como o que está aqui em causa não são em boa verdade poderes tutelares, mas poderes de autoridade próprios que permanecem na titularidade do Estado (v. o voto de vencido no Parecer da P.G.R a que atrás se fez referência).
Seja como for, é incontestável que a determinação do alcance que deve ter, nesta matéria, a intervenção do Estado não deve sofrer as proverbiais limitações que ao intérprete se colocam na pesquisa do alcance da tutela administrativa.
Reconstituindo o pensamento legislativo a partir dos textos, e procurando captar aquilo que se julga ser a unidade e coerência do diploma, a conclusão que se atinge é a de que os actos de recusa da emissão de cartões de entrada ou de acesso às salas de jogos, quando praticados pelo director do serviço de jogos ao abrigo do art. 36º do Dec-Lei nº 422/89, estão sujeitos a confirmação pelo Inspector-Geral dos Jogos, com recurso para o membro do Governo responsável pelo sector do turismo.”.
Consequentemente, improcedem todas as conclusões das alegações da Recorrente, não tendo o acórdão recorrido violado as normas aí referidas, pelo que o mesmo não merece censura.
Assim, acordam em negar provimento ao recurso, confirmando o acórdão recorrido.
Custas pela Recorrente, fixando-se a taxa de justiça e a procuradoria, respectivamente, em 480 e 350 euros.
Lisboa, 13 de Outubro de 2004. – António Samagaio – (relator) – Azevedo Moreira – Rosendo José – Angelina Domingues – Santos Botelho – Pais Borges – Costa Reis.