Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:013/11
Data do Acordão:10/20/2011
Tribunal:CONFLITOS
Relator:RUI BOTELHO
Descritores:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO
DIREITO DE SUPERFÍCIE
CONTRATO
DELIBERAÇÃO CAMARÁRIA
COMPETÊNCIA DOS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS
CEDENCIA
Sumário:I - A competência (ou jurisdição) de um tribunal afere-se pela forma como o autor configura a acção, definida pelo pedido e pela causa de pedir, isto é, pelos objectivos com ela prosseguidos.
II - Nos termos da alínea f), n.° 1, do art.º 4 do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), aprovado pela Lei n° 13/2002, de 19.2, na redacção da Lei n° 107-D/2003, de 31.12, “Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objecto questões relativas à interpretação, validade e execução de contratos de objecto passível de acto administrativo, de contratos especificamente a respeito dos quais existam normas de direito público que regulem aspectos do respectivo regime substantivo, ou de contratos que as partes tenham expressamente submetido a um regime substantivo de direito público”.
III - As pessoas colectivas de direito público exprimem as suas posições através de deliberações. Quando essas posições se reportam a contratos assumirão a natureza jurídica do contrato. Serão actos administrativos se os contratos a que se reportam são contratos administrativos; serão declarações negociais se os contratos visados são contratos de direito privado.
IV - A constituição do Direito de Superfície por entidades públicas está subordinada a um regime jurídico de direito público instituído no DL 794/76, de 5.11, encontrando-se os aspectos gerais da sua regulação no art. 19º.
V - Daí que sejam competentes os tribunais administrativos para conhecer de uma providência cautelar em que a pretensão da requerente visa suspender a deliberação camarária que decidiu “Aprovar a revogação do contrato de cedência do direito de superfície e accionar a cláusula de reversão prevista no contrato de cedência do direito de superfície”, deliberação que assim tem de ser qualificada como acto administrativo.
Nº Convencional:JSTA00067205
Nº do Documento:SAC20111020013
Data de Entrada:09/08/2011
Recorrente:ASSOCIAÇÃO A..., NO CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO ENTRE O JUIZ 5 DA 2ª SECÇÃO DO JUÍZO DA GRANDE INSTÂNCIA CÍVEL DA COMARCA DA GRANDE LISBOA - NOROESTE SINTRA E O TRIBUNAL ADMINISTRATIVO E FISCAL DE SINTRA.
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:CONFLITO
Objecto:NEGATIVO JURISDIÇÃO TAF SINTRA - TCIV GRANDE LISBOA NOROESTE
Decisão:DECL COMPETENTE TAF
Área Temática 1:DIR ADM CONT - CONFLITO JURISDIÇÃO
Área Temática 2:DIR JUDIC - ORG COMP TRIB
Legislação Nacional:CPC96 ART115 N1 ART66
ETAF02 ART4
CONST76 ART211 N1
LOFTJ99 ART18 N1
CPA91 ART178 N2
CCIV66 ART1524
DL 794/76 DE 1976/11/05 ART19
Jurisprudência Nacional:AC TCF PROC8/04 DE 2004/10/21
Aditamento:
Texto Integral: Acordam no Tribunal dos Conflitos:
I Relatório
A ASSOCIAÇÃO A…, Instituição Particular de Solidariedade Social, com melhor identificação nos autos, veio pedir a resolução do conflito negativo de jurisdição - art. 115º do CPC - surgido entre o Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra e o Juízo de Grande Instância Cível da Comarca da Grande Lisboa Noroeste, tribunais que, por decisões transitadas em julgado, se declararam mutuamente incompetentes em razão da matéria para conhecerem de uma providência cautelar – pedido de suspensão de deliberação tomada pela Câmara Municipal da Amadora em 16.12.09.
Para o efeito alegou o seguinte:
DOS FACTOS
1° A ora Requerente é uma Instituição Particular de Solidariedade Social, que tem por objecto o desenvolvimento de trabalho comunitário tendo em vista a melhoria das condições de vida da população da sua área de influência, dirigindo-se sobretudo a actividades de apoio à infância e aos jovens em situação de risco social.
2° Por escritura pública celebrada em 3 de Julho de 1990, a Câmara Municipal da Amadora transmitiu à Requerente o direito de superfície sobre uma parcela de terreno com a área de 1920 metros quadrados de que era proprietária, sito na …, na freguesia da Mina, concelho da Amadora, descrito na Conservatória do Registo predial da Amadora sob o n° 405/150488. (Doc. 1)
3º De acordo com o n° 1 da cláusula primeira dessa mesma escritura pública, o objectivo da concessão de tal direito visava a construção de um Jardim de Infância para crianças dos Bairros de Santa Filomena, Encosta Nascente e Estrada Militar da Mina, a qual, com ajuda de muitos donativos de particulares, a Requerente concretizou, tendo construído um Jardim de Infância e um espaço de ATL na parcela de terreno que lhe foi cedida.
4º Ainda de acordo com o n° 3 da mesma cláusula, à Requerente incumbia prestar apoio à comunidade, sobretudo aos jovens em risco, no combate ao insucesso escolar, criando actividades de tempos livres para crianças, como complemento da escola, promovendo actividades de educação de adultos e culturas, procurando melhorar as condições de vida da população residente.
5º Por sua vez, e de acordo com o n° 1 da cláusula segunda, o direito de superfície foi constituído por 50 anos, prorrogável por iguais períodos.
6° Finalmente, e com interesse para os presentes autos, determinava o n° 2 da cláusula sexta que a extinção da Requerente, a cessação da actividade ou o desvio dos fins a que aquela se obrigava, implicava a reversão do terreno e equipamento para a Câmara Municipal da Amadora.
7º Sendo certo que, nos termos do n° 1 da cláusula seguinte, no caso de resolução do contrato pela Câmara Municipal da Amadora, a Requerente teria direito a uma indemnização correspondente, basicamente, ao valor das obras efectuadas.
8° No entanto, por deliberação de 16 de Dezembro de 2009 da Câmara Municipal da Amadora, notificada à Requerente em 30 de Abril de 2010, a Câmara Municipal da Amadora decidiu “Aprovar a revogação do contrato de cedência do direito de superfície e accionar a cláusula de reversão prevista no contrato de cedência do direito de superfície.” a que acima se alude, “de acordo com previsto no artigo 6° e em conjugação com o disposto nos artigos 1° e 4º do contrato de cedência do direito de superfície”. (Doc 2)
9º E nessa sequência a Câmara Municipal da Amadora (i) fez deslocar às instalações da Requerente a Polícia Municipal, expulsando-a e encerrando as referidas instalações, e (ii) procedeu à demolição de parte das instalações construídas pela ora Requerente a coberto do direito de superfície de que é titular, o que concretizou com a deslocação da Polícia Municipal e maquinaria da própria Câmara! (Doc. 3)
10º A Requerente viu-se, assim, de forma violenta, sem as instalações que, por via daquele contrato de direito de superfície, é proprietária.
11° E tal sucedeu sem que a Câmara Municipal da Amadora tivesse qualquer razão que fundamentasse o accionamento da cláusula de reversão e, muito menos, o accionamento de mecanismos de “justiça privada”, com recurso à sua própria Polícia Municipal para expulsar a Requerente, de forma violenta, das instalações que, no uso legítimo do direito de superfície que titula, esta construiu e a esta lhe pertencem.
12° Com efeito, considerou a Câmara Municipal da Amadora, no n° 6 da deliberação que accionou a cláusula de reversão, que desde “Dezembro de 2006, a referida Associação perdeu os acordos e tem dívidas à Segurança Social (...) tendo tido como consequência o encerramento das valências de Pré - escolar e ATL, as quais eram o principal objecto do Contrato de Cedência de Direito de Superfície firmado com a autarquia..”.
13° Para além disso, considerou a Câmara Municipal da Amadora, no n° 7 da mesma deliberação, que a Requerente não tem corpos sociais eleitos e que, de acordo com o número seguinte, o espaço cedido estaria a ser utilizado para fins diferentes dos inicialmente considerados, nomeadamente através da cedência do mesmo a terceiros para a realização de cultos religiosos.
14° Finalmente, referiu a Câmara Municipal da Amadora que a Polícia Municipal teria recebido diversas queixas de moradores, que reportariam ruído excessivo na sequência da realização de Festas.
15º Acontece que, dos factos invocados pela Câmara Municipal da Amadora para accionar a cláusula de reversão, a maior parte dos mesmos não corresponde à realidade, e os demais se devem a actos praticados ou permitidos pela própria Câmara Municipal da Amadora e que impediram a Requerente de cumprir integralmente o contrato de concessão do direito de superfície.
16° Com efeito, parece esquecer-se a Câmara Municipal da Amadora que a actividade da Requerente, principalmente no que respeitava ao Jardim de Infância, dependias pelo próprio local onde o mesmo se desenvolve, da existência das necessárias condições de segurança, que lhe eram garantidas pela existência de uma vedação que protegia o espaço cedido de qualquer tentativa de vandalismo.
17º Esquece-se também a Câmara Municipal da Amadora que, para além do registo de queixas de moradores relativamente a ruídos, à Polícia Municipal, que depende da própria Câmara Municipal da Amadora, incumbe também o dever de assegurar a segurança dos residentes no concelho, incluindo, evidentemente, a própria Requerente e os seus utentes.
18º Ora, como a Câmara Municipal da Amadora bem sabe, a vedação que protegia o espaço cedido à Requerente, e no qual esta construiu um Jardim de Infância, que permitiu criar a muitos moradores as condições para, sem custos ou com custos muito reduzidos (de acordo com a sua natureza de IPSS), deixarem em segurança os seus filhos durante o dia de trabalho, foi destruído pela REFER, na sequência de obras autorizadas pela Câmara Municipal da Amadora.
19° Também como a Câmara Municipal da Amadora bem sabe, o referido Jardim de Infância foi imediatamente objecto de vandalismo, tendo sido o seu interior praticamente destruído.
20° A Requerente deu disso imediato conhecimento à Câmara Municipal da Amadora, dando-lhe conta que, nessas circunstâncias e sem que fosse reposta a vedação destruída pela REFER, não conseguiria continuar a desenvolver a actividade de Jardim de Infância, por não conseguir garantir a segurança das crianças que diariamente lhe eram confiadas pelos residentes.
21º Apesar dos sucessivos apelos da Requerente e da sua incapacidade para, sozinha, repor a vedação do espaço cedido (destruída, reitera-se, a coberto de obras autorizadas pela Câmara Municipal da Amadora), a Câmara Municipal da Amadora nada fez, imitando-se a assistir ao esvaziamento do objecto da Requerente, (Docs. 4 a 9)
22° De tacto, perante essas circunstâncias, para as quais a Requerente em nada contribuiu, esta viu-se forçada a suspender a actividade de Jardim de Infância até que fossem repostas as condições de segurança necessárias para esse efeito, de que deu conhecimento à Requerente.
23° Em todo o caso, e como a Câmara Municipal da Amadora bem sabe, a valência Jardim infantil, que já não existe legalmente, foi substituída pela valência do Pré - Escolar.
24° E foi precisamente por via dos problemas surgidos com a vandalização da Instituição, pelos motivos acima enunciados1 que a Requerente não conseguiu manter a valência que tinha de Pré - Escolar.
25° Mas ao contrário do que pretende a Câmara Municipal da Amadora, a Requerente, através do esforço dos habitantes, sem qualquer apoio da Câmara Municipal da Amadora, nem da REFER, reconstruiu parte da vedação, com grande esforço, que, novamente, voltou a ser vandalizada e destruída.
26° Apesar disso, a Requerente não cessou a sua actividade, continuando, em condições muito difíceis, a desenvolver as suas actividades de índole cultural, direccionadas para jovens em risco social, procurando, com evidentes imitações, atingir os objectivos de melhorar as condições de vida da população residente.
27º Com efeito, a Requerente sempre desenvolveu actividades não tipificadas, como o apoio escolar, a actividade de tempos livres das crianças do “bairro” a ocupação de jovens, através da promoção de encontros de leitura, dança, música e jogos, entre outras.
28° Importa, aliás, ter em atenção que a instituição se encontra num dos bairros mais problemáticos da Amadora e que é só através da sua actividade que muitos jovens não andam na rua, como aliás a Câmara Municipal da Amadora bem sabe por ter já considerado a Requerente um modelo a seguir.
29° E como bem refere os n°s 2 e 3 da cláusula primeira do contrato de cedência de superfície, a Requerente deverá «prestar apoio à comunidade, sobretudo aos jovens em risco, no combate ao insucesso escolar, criando actividades de tempos livres (…) promovendo actividades de educação de adultos e culturais, procurando melhorar as condições de vida da população residente...», nos bairros de Santa Filomena, Encosta Nascente e Estrada Militar da Mina.
30° Ora, é isto precisamente que a Requerente continua, apesar de tudo, a assegurar, admitindo-se até que possam ser as actividades de dança e de música, no contexto das actividades de índole cultural, que, por vezes, podem perturbar os vizinhos, sem que, contudo, isso constitua um factor que impeça o salutar relacionamento da Requerente com o meio social onde desenvolve a sua actividade ou que constitua até motivo fundamentado de queixa por parte dos vizinhos mais próximos.
31° Para além disso, também não é verdade que não tenham sido eleitos os órgãos sociais da Requerente.
32° É verdade que os actos de vandalismo de que foram objecto e para os quais a Câmara Municipal da Amadora indirectamente contribuiu, abalaram a vontade de quem, com sacrifício pessoal, abraçaram uma causa tão difícil como aquela a que a Requerente se propôs alcançar, nomeadamente tendo em conta que os órgãos sociais são voluntários neste tipo de instituições.
33° No entanto, mesmo com as maiores dificuldades, a Requerente continuou a sua actividade, mantendo os seus órgãos sociais eleitos, nos termos previstos na legislação aplicável à instituição (DL 119/83).
34° De facto, como dispõe o artigo 57°, n° 2 do DL 119/83, bem como os normativos estatutários da Requerente, mantêm-se em exercício os últimos corpos sociais eleitos que, aliás, têm comparecido em diversas reuniões com a Requerente, ao longo dos últimos anos.
35º Para além disso, e no que respeita às alegadas festas, casamentos, baptizados realizados no espaço em causa, é manifesto que a Câmara Municipal da Amadora apenas pretende arranjar artificialmente razões para expulsar, ilegalmente, a Requerente do espaço de que é superficiária.
36º E isto porque tais alegados eventos não decorrem no espaço em apreço, não só porque a Requerente não existe para esse fim, mas também porque, desde logo, nem sequer esse espaço tem hoje, depois dos actos de vandalismo já atrás referidos, condições para receber esse tipo de eventos!
37º Finalmente, e no que diz respeito à perda dos acordos com a Segurança Social e às dívidas existentes àquela Instituição, a Requerente não pode, efectivamente, negar a veracidade desses factos.
38° Mas tal como acontece em relação à cessação da actividade de Jardim-de-infância, também estes factos têm directamente a ver com a Câmara Municipal da Amadora e com a sua atitude passiva face aos actos de vandalismo praticados sobre a Requerente.
39º Com efeito, é evidente que, após o vandalismo a que foram sujeitas as instalações construídas pela Requerente para a valência de ATL e Pré - Escolar, o acordo de cooperação existente sobre essas matérias com a Segurança Social teve que ser revogado.
40º O que sucedeu, reitera-se, por força dos estragos na vedação do espaço de que a Requerente é superficiária, efectuados pela REFER no contexto da execução de obras autorizadas pela Câmara Municipal da Amadora, e dos actos de vandalismo que, apesar dos avisos feitos pela Requerente, se seguiram sem que a Câmara Municipal da Amadora tivesse feito algo para os impedir.
41° E como é também evidente, as dívidas à Segurança Social decorrem do simples facto de a Requerente ter ficado sem o seu principal meio de subsistência (verbas canalizadas pela Segurança Social para a valência de Jardim de Infância e ATL), ficando incapaz de solver os compromissos que tinha para com aquela Instituição.
42° A verdade é que, sem qualquer razão legal e contratualmente atendível, a Requerente se vê neste momento, por ter sido expulsa pela Câmara Municipal da Amadora, sem acesso às instalações que construiu tendo por base o direito de superfície de que é titular,
43º Inconformada com essa situação, a ora Requerente instaurou contra a Câmara Municipal da Amadora, junto do Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra, no dia 30.07.2010, uma providência cautelar de suspensão de eficácia da deliberação daquela entidade que revogou o contrato de cedência do direito de superfície e determinou a reversão do terreno em apreço, nos termos do requerimento inicial que se junta e se dá por integralmente reproduzido, cujos autos correram os seus termos pela 3 Unidade Orgânica, com o n° 1194/10.2BESNT. (Doc. 10)
44º Em face desse pedido, o Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra veio, contudo, declarar-se incompetente em razão da matéria, em 30 de Novembro de 2010, nos termos da sentença que se junta e se dá por integralmente reproduzida. (Doc. 11)
45º Com efeito, entendeu aquele Tribunal que a relação jurídica existente entre a ora Requerente e a Câmara Municipal da Amadora não se encontrava sujeita à jurisdição administrativa, mas antes à jurisdição comum.
46° A ora Requerente intentou então na Comarca da Grande Lisboa Noroeste, no Juízo de Grande Instância Cível, em 30.03.2011 e exactamente com a mesma factualidade que esteve na base do anterior pedido cautelar de suspensão da deliberação da Câmara Municipal da Amadora, um pedido de restituição provisória da posse, nos termos do requerimento inicial que se junta e se dá por integralmente reproduzido, cujos autos correram os seus termos pela 2ª Secção - Juiz 5, com o n° 686/11,OTVLSB. (Doc. 12)
47º Não obstante, por sentença de 15 de Junho de 2011, veio também este Tribunal considerar-se incompetente em razão da matéria, por considerar que a relação jurídica que subjaz ao pedido formulado pela Requerente se encontra no âmbito da jurisdição administrativa e não no contexto da jurisdição comum. (Doc. 13)
48° O que significa que ambas as jurisdições se consideram incompetentes para resolver o litígio que decorre da relação jurídica existente entre a ora Requerente e a Câmara Municipal da Amadora, Requerida em ambas as acções.
DO DIREITO
49° Nos termos do n° 1 do artigo 115º do Código do Processo Civil, há “conflito de jurisdição quando duas ou mais entidades (.,.) integrados em ordens jurisdicionais diferentes se (...) declinam o poder de conhecer da mesma questão”.
50° Ora, o conflito negativo de jurisdições que resulta da factualidade constante do presente requerimento é evidente: o Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra considera que a relação jurídica em apreço não se subjaz a nenhuma das tipologias de relação jurídica submetida por iC ao foro administrativo, do mesmo modo que o Juízo de Grande Instância Cível de Sintra se considera incompetente para julgar a lide em causa, por entender que essa mesma relação jurídica não se encontra sujeita à jurisdição comum, mas antes e apenas à jurisdição administrativa.
51º Por sua vez, determina o n° 1 do artigo seguinte do mesmo Código que os “conflitos de jurisdição são resolvidos, conforme os casos, pelo Supremo Tribunal de Justiça ou pelo Tribunal de Conflitos”.
52º Tal como se decidiu nos autos com o n° 26/09 que correram os seus termos por esse Tribunal, os conflitos de jurisdição são resolvidos pelo Supremo Tribunal de Justiça se a sua resolução não couber ao Tribunal dos Conflitos, sendo que o Tribunal dos Conflitos tem competência para dirimir os conflitos de jurisdição em que intervenham tribunais judiciais se, no outro pólo, estiverem tribunais administrativos e fiscais, como é o caso ora em apreço.
53º Deste modo, ao ver-se sem foro para julgar o litígio que a opõe à Câmara Municipal da Amadora, a Requerente vê-se assim forçada a recorrer ao Tribunal de Conflitos, tribunal competente para julgar o presente conflito de jurisdições, para que, com efeitos obrigatórios, fixe a jurisdição aplicável à presente relação jurídica”.
Ambas as decisões transitaram em julgado. Para o Tribunal Judicial a competência dos tribunais administrativos filia-se no art. 4º, n.º 1, f) do ETAF. Para o Tribunal Administrativo a competência dos tribunais comuns decorre da impossibilidade de incluir a situação em apreço no âmbito desse preceito ou de qualquer outro donde resultasse a competência dos tribunais administrativos.
A Magistrada do Ministério Público junto deste Tribunal emitiu o seguinte parecer:
“Conforme tem vindo a ser reiteradamente afirmado pelo Tribunal dos Conflitos e pelo STA, a competência em razão da matéria afere-se em função dos termos em que a acção é proposta - cfr, a título de exemplo, os acórdãos do T. Conflitos de 91.01.31 (AD 361) e de 2007.05.17 (conflito n° 05/07), e, os acórdãos do STA de 93.05.13 (proc. nº 31478), de 96.05.28 (proc. nº 39911), de 99.03.03 (proc. n° 40222), de 99.03.23 (proc. nº 43973), de 99.10.13 (proc. n° 44068) e de 2000.09.26 (proc. n° 46024). Através da acção dos autos, pretende a Requerente a suspensão da eficácia da deliberação da Câmara Municipal da Amadora de 2009.04.16, que, aprovando por unanimidade uma proposta apresentada por uma vereadora decidiu: “Aprovar a revogação do contrato de cedência do direito de superfície e accionar a cláusula de reversão prevista no contrato de cedência do direito de superfície sobre lote de terreno com a área de 1920m2, sito no Bairro da Estrada Militar da Mina - Santa Filomena - à Associação A..., de acordo com o previsto no art° 6° e em conjugação com o disposto nos art°s l e 4º do contrato de cedência do direito de superfície”. Conforme se extrai do contrato, celebrado em 3 de Julho de 1990, a cedência do direito de superfície á dita Associação teve como objectivo a construção de um jardim de infância para crianças dos Bairros de Santa Filomena, Encosta Nascente e Estrada Militar, no âmbito do programa de trabalho de desenvolvimento comunitário, previsto nos estatutos daquela Associação, para melhoria das condições de vida da população dos referidos Bairros, em particular das camadas mais desfavorecidas; aí se faz constar o dever da Associação, como instituição particular de solidariedade social, de prestar apoio à comunidade, sobretudo aos jovens em risco, no combate ao insucesso escolar, criando actividades de tempos livres (ATL) para crianças, como complemento da escola, promovendo actividades de educação de adultos e culturais, procurando melhorar as condições de vida da população residente (cfr n°s 1, 2 e 3 da condição primeira - doc. n° 1). Por outro lado, como se conclui pelo teor da proposta aprovada, a revogação do contrato fundou-se, além do mais, no incumprimento da obrigação imposta no n° 3 da condição quarta do contrato, que consistia na obrigação de utilizar integral e ininterruptamente o terreno cedido para os fins referidos nos n°s 1, 2 e 3 da condição primeira (cfr doc. n° 2). Refira-se, ainda, que nos termos do n° 2 da condição sexta do contrato, a extinção da Associação A..., a cessação da actividade ou desvio dos fins referidos, implicava a reversão do terreno e equipamento para a Câmara Municipal da Amadora. Ora, parece resultar de todo o circunstancialismo que envolveu quer o acto de cedência do direito de superfície, quer o acto que revogou o contrato e accionou a cláusula de reversão, que tais actos se inserem na actividade de gestão pública da Administração. Como se escreveu no acórdão do Tribunal dos Conflitos de 2006.04.04, processo n° 8/03: “Actos de gestão pública são os praticados pelos órgãos ou agentes da Administração no exercício de um poder público, isto é, no exercício de uma função pública, sob o domínio de normas de direito público, ainda que não envolvam ou representem o exercício de meios de coerção; actos de gestão privada são os praticados pelos órgãos ou agentes da Administração em que esta aparece despida de poder e, portanto, numa posição de paridade com o particular ou os particulares a que os actos respeitam, nas mesmas condições e no mesmo regime em que poderia proceder um particular com inteira subordinação às normas de direito privado. (Neste sentido, podem ver-se os seguintes acórdãos: - do Tribunal dos Conflitos de 5-11-1981, processo n.° 124, publicado no Boletim do Ministério da Justiça n.° 311, página 195; - do Tribunal dos Conflitos de 20-10-1983, processo n.° 153, publicado em Apêndice ao Diário da República de 3-4-1986, página 18; - do Tribunal dos Conflitos de 12-1-1989, processo n.° 198, publicado em Acórdãos Doutrinais do Supremo Tribunal Administrativo, n° 330, página 845; - do Tribunal dos Conflitos de 12-5-1999, processo a° 338, publicado em Apêndice ao Diário da República de 31-7-2000, página 19; - do Supremo Tribunal Administrativo de 22-11-1994, recurso n.° 33332, publicado em Apêndice ao Diário da República de 18-4-1997, página 8256; - de 29-6-2004, do Tribunal dos Conflitos, recurso n.° 1/04)”. No caso que se analisa, parece não haver dúvida de que aqueles actos se inseriram na actividade de gestão pública do município. Foram proferidos no exercício de uma função pública - relacionada com o apoio a uma entidade estatutariamente dirigida à prossecução de interesses públicos no domínio da educação e apoio social - e ao abrigo de normas de direito público. Com efeito:
Nos termos do art° 8°, alínea e)- 1) e 2), do DL no 77/84, de 08.03, em vigor à data da celebração do contrato, era da competência dos municípios a realização de investimentos no domínio da educação e ensino, no que concerne a centros de educação pré-escolar e a outras actividades complementares da acção educativa na educação pré-escolar e no ensino básico, designadamente nas áreas da acção social escolar e da ocupação de tempos livres. E, nos termos do art° 51°, n° 1, alínea q), do DL n° 100/84, também em vigor à época, competia à câmara municipal, no âmbito da organização e funcionamento dos seus serviços, deliberar sobre as formas de apoio a entidades e organismos legalmente existentes que prosseguissem no município fins de interesse público. Acresce que actualmente os municípios mantêm as suas atribuições nessas áreas, dispondo as câmaras de poderes para esse efeito - cfr art°s 13°, n° 1, alíneas d) e h), 19°, n°s 1 e 3, alínea e) e 23°, n°s 1 e 3, da Lei n° 159/99, de 14.09, e art° 64°, n° 4, alínea a), da Lei n° 169/99, de 18.09.
É possível concluir, pelo exposto, que a deliberação cuja eficácia a requerente pretende ver suspensa constitui um acto administrativo, ou seja, recorrendo à formulação do artº 120° do CPA, uma decisão de um órgão da Administração que ao abrigo de normas de direito público visa produzir efeitos jurídicos numa situação individual e concreta. Ora, no nosso ordenamento jurídico os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e, além disso, têm competência residual para as causas que não estejam atribuídas a outra ordem jurisdicional - art° 211°, nº 1, da CRP e art° 66° do CPC. Logo, considerado o exposto e face ao estatuído no art° 4°, n° 1, alínea b), do ETAF, competente para aferir da legalidade do acto suspendendo será a jurisdição administrativa. Por outra via, o processo cautelar é dependente da causa que tenha por objecto a decisão sobre o mérito, e, se requerido antes de proposta a acção, é apensado logo que a acção seja instaurada - art° 113°, n°s 1 e 3, do CPTA e art° 383°, n°s 1 e 2, do CPC. Assim, competente para apreciar a presente providência cautelar será igualmente a jurisdição administrativa. Nestes termos, emitimos parecer no sentido de que deverá o presente conflito ser resolvido atribuindo-se a competência para conhecer da providência cautelar aos tribunais da jurisdição administrativa.”
Sem vistos, mas com distribuição prévia do projecto de acórdão, cumpre decidir.
II
1. É ponto assente que a competência (ou jurisdição) de um tribunal se determina pela forma como o autor configura a acção, definida pelo pedido e pela causa de pedir, isto é, pelos objectivos com ela prosseguidos (acórdão do Tribunal dos Conflitos de 21.10.04 proferido no Conflito 8/04).
Na providência cautelar a autora pediu ao tribunal que suspendesse uma «deliberação de 16 de Dezembro de 2009 da Câmara Municipal da Amadora, notificada à Requerente em 30 de Abril de 2010» através da qual «a Câmara Municipal da Amadora decidiu “Aprovar a revogação do contrato de cedência do direito de superfície e accionar a cláusula de reversão prevista no contrato de cedência do direito de superfície.” a que acima se alude, “de acordo com previsto no artigo 6° e em conjugação com o disposto nos artigos 1° e 4º do contrato de cedência do direito de superfície».
2. Vejamos então. As pessoas colectivas de direito público, como as demais, exprimem as suas posições através de deliberações. Quando essas posições se reportam a contratos assumirão a natureza jurídica do contrato. Serão actos administrativos se os contratos a que se reportam são contratos administrativos; serão declarações negociais se os contratos visados são contratos de direito privado. Portanto, no caso em apreço, tudo se resume em saber qual a natureza do contrato em causa. Se for um contrato de direito privado estaremos perante uma declaração negocial, sendo aí competente o Tribunal Judicial, no caso inverso, face a um acto administrativo, sendo então competente o Tribunal Administrativo. Quando o objecto de apreciação é um contrato este tipo de conflito surge porque nele se vislumbram características típicas de uns e de outros.
Relembre-se que o contrato, celebrado a 3.7.90, denominado “Cedência do direito de superfície sobre parcela de terreno sita no Bairro da Estrada Militar da Mina-Santa Filomena à Associação A…”, integrado no documento n.º 1 apresentado pela requerente (fls. 15/25 dos autos), é constituído por dez cláusulas, sendo que a Primeira define o “Objecto e fim do Direito de superfície”, a Segunda a “Duração do Direito de superfície”, a Terceira o “Cânon superficiário”, a Quarta as “Obrigações do superficiário”, a Quinta a “Transmissão do direito de superfície”, a Sexta a “Reversão”, a Sétima a “Resolução do contrato pelo superficiário”, a Oitava a “Indemnização”, a Nona a “Legislação aplicável” e a Décima o “Pacto de aforamento”.
Conforme nele se vê a cedência do direito de superfície à requerente teve como objectivo a construção de um jardim de infância para crianças dos Bairros de Santa Filomena, Encosta Nascente e Estrada Militar, no âmbito do programa de trabalho de desenvolvimento comunitário, previsto nos estatutos daquela Associação, para melhoria das condições de vida da população dos referidos Bairros, em particular das camadas mais desfavorecidas; aí se faz constar o dever da Associação, como instituição particular de solidariedade social, de prestar apoio à comunidade, sobretudo aos jovens em risco, no combate ao insucesso escolar, criando actividades de tempos livres (ATL) para crianças como complemento da escola, promovendo actividades de educação de adultos e culturais, procurando melhorar as condições de vida da população residente (n°s 1, 2 e 3 da cláusula primeira). Definiu-se uma duração para o direito, uma remuneração, a possibilidade de reversão, a de resolução do contrato pelo superficiário (“nos termos gerais de direito”) a legislação aplicável (“todas as normas em vigor sobre o direito de superfície, supletivamente”) e estabeleceu-se um pacto de aforamento ( Pacto irrelevante no contexto da competência em razão da matéria (art. 100º do CPC).) (“o Tribunal da comarca de Lisboa”).
3. De acordo com o disposto no n.º 1 do art. 211º da CRP,(Idêntica redacção tem n.º 1 do art. 18º da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais, aprovada pela Lei n.º 3/99, de 13.1 e o art. 66º do CPC.) "Os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais" e nos termos do art. 212º, n.º 3, (No mesmo sentido o art. 1º, n.º 1, do ETAF) "Compete aos tribunais administrativos e fiscais o conhecimento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas". O conceito de relação jurídica administrativa é, assim, erigido, tanto pela Constituição como pela lei ordinária, como operador nuclear da repartição de jurisdição entre os tribunais administrativos e os tribunais judiciais. Todavia não se esgota aí.
O art. 4.° do ETAF delimita o âmbito da jurisdição administrativa, nas suas diversas vertentes, relevando para este efeito face aos contornos da acção (incidência sobre a natureza de um contrato), de entre as várias alíneas do n.° l, a alínea f), onde se diz que “Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objecto questões relativas à interpretação, validade e execução de contratos de objecto passível de acto administrativo, de contratos especificamente a respeito dos quais existam normas de direito público que regulem aspectos do respectivo regime substantivo, ou de contratos que as partes tenham expressamente submetido a um regime substantivo de direito público”. Na interpretação deste preceito, Esteves de Oliveira e outro no seu “Código de Processo nos Tribunais Administrativos e Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, Anotados”, I, enuncia as várias hipóteses possíveis, configuradas na norma, nos seguintes termos. “Subsumem-se na justiça administrativa, em primeiro lugar, os contratos expressamente qualificados pela lei como administrativos” (são os enunciados no art. 178º, n.º 2, do CPA e outros avulsos da mesma natureza); depois, “os contratos de objecto passível de acto administrativo, ou seja, aqueles que versam sobre a produção de efeitos jurídicos que a lei previra serem atingidos mediante a prática de um acto administrativo (são os contratos cuja legitimidade se encontra no art. 179º do CPA); em seguida, os contratos cujo regime substantivo esteja especificamente sujeito a normas de direito público - mais uma vez os do art. 178, n.º 2, do CPA - e, também, de quaisquer outros contratos regulados, em aspectos «substantivos» do seu regime, por normas de direito público; finalmente, “aqueles contratos que as partes tenham expressamente submetido a um regime substantivo de direito administrativo, mesmo que não houvesse lei a prevê-lo”.
Pela simples leitura do clausulado contratual e da peça da requerente logo se conclui que o contrato objecto da acção se integra numa destas categorias, a dos contratos especificamente a respeito dos quais existam normas de direito público que regulem aspectos do respectivo regime substantivo” (art. 4º, n.º 1, alínea f) acima citados). Relembre-se que estamos perante um contrato denominado de Cedência do direito de superfície (figura do direito privado regulada nos art.s 1524º e ss. do CC), cedência levada a cabo por uma entidade pública, um Município, em relação à qual existe um regime legal de direito público, instituído no DL 794/76 de 5.11, que delimita os contornos desse “Direito”, encontrando-se os aspectos gerais dessa regulação no seu art. 19º, epigrafado justamente de “Constituição do direito de superfície”. De resto, se observarmos o que aí se prescreve, logo se vê que o contrato em apreço se limita a transcrever os aspectos essenciais do regime legal. Assim sendo, se o contrato é um contrato administrativo ou, pelo menos, subordinado a normas de direito público nos termos expostos, a deliberação suspendenda é um acto administrativo sujeita a apreciação nos tribunais administrativos.
É, pois, de concluir que os tribunais administrativos são os materialmente competentes para conhecer do pedido formulado contra a requerida.
IV Decisão
Tendo em consideração o disposto no art. 4º, n.º 1, alíneas c) e f), do ETAF, acordam em resolver o presente conflito atribuindo a competência para o conhecimento da acção aos tribunais administrativos.
Sem custas.
Lisboa, 20 de Outubro de 2011. – Rui Manuel Pires Ferreira Botelho (relator) – Manuel Joaquim BrazAlberto Acácio de Sá Costa ReisCarlos Francisco de Oliveira Lopes do RegoAdérito da Conceição Salvador dos SantosIsabel Celeste Alves Pais Martins.