Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo | |
Processo: | 088/20.8BALSB |
Data do Acordão: | 09/10/2020 |
Tribunal: | 1 SECÇÃO |
Relator: | SUZANA TAVARES DA SILVA |
Descritores: | INTIMAÇÃO PARA PROTECÇÃO DE DIREITOS LIBERDADES E GARANTIAS DECLARAÇÃO DE ILEGALIDADE DE NORMAS ESTADO DE EMERGENCIA SAÚDE PÚBLICA |
Sumário: | I - A declaração de ilegalidade de normas imediatamente operativas com efeitos circunscritos ao caso concreto pode ter como fundamento a violação de normas e princípios constitucionais, sobretudo se esse pedido visa a desaplicação ao requerente de uma medida proibitiva no âmbito de um processo urgente de intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias; II - A apreciação dos pressupostos processuais no âmbito da intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias tem de atentar nas especiais características deste meio processual enquanto instrumento, entre nós, de obtenção de amparo constitucional; III - A pandemia da COVID19 tem-se caracterizado, juridicamente, pelo surgimento de um Estado de Direito da emergência sanitária, no qual a “limitação” de direitos decorrente das medidas administrativas de combate e mitigação tem de ser avaliada com base nos seguintes pressupostos: i) na excepcionalidade e temporalidade das medidas adoptadas; ii) na existência de uma concreta cadeia ininterrupta de legitimação democrática que as suporta; e iii) na respectiva legitimação por via da internormatividade técnica internacional e da comparação e interdependência entre as medidas adoptadas pelos diversos Estados e Administrações. IV - As medidas administrativas de gestão da pandemia reconduzem-se, também, a um direito administrativo do risco, no âmbito do qual a gestão do risco é prosseguida através da adopção de medidas que se inscrevem no núcleo da função administrativa e cuja proporcionalidade o tribunal sindica sem pôr em causa o núcleo da separação dos poderes. |
Nº Convencional: | JSTA000P26249 |
Nº do Documento: | SA120200910088/20 |
Data de Entrada: | 08/12/2020 |
Recorrente: | A............ |
Recorrido 1: | PRESIDÊNCIA DO CONSELHO DE MINISTROS |
Votação: | UNANIMIDADE |
Aditamento: | |
Texto Integral: | Acordam na secção do Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo: I – Relatório 1 – A…………., com os sinais dos autos intentou neste Supremo Tribunal Administrativo, nos termos do artigo 24.º, n.º 1, al. iii), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais («ETAF»), e dos artigos 109.º e ss. do Código de Processo nos Tribunais Administrativos («CPTA»), intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias, contra a Presidência do Conselho de Ministros, pedindo i) a declaração de inconstitucionalidade, com efeitos circunscritos a si, das normas proibitivas de ajuntamentos retiradas da conjugação dos pontos 1, 2 e 8 da Resolução do Conselho de Ministros n.º 55-A/2020 e ainda a que se encontra no art. 15.º do Anexo àquela Resolução e, bem assim, de quaisquer normas análogas que viessem a ser aprovadas por renovação do conteúdo da mencionada Resolução; e ii) a condenação da Presidência do Conselho de Ministros a exercer a sua competência relativamente às forças policiais e demais autoridades públicas no sentido de não impedirem o Requerente e as pessoas que com ele venham a estar reunidas de exercer plenamente a sua liberdade jusfundamental de reunião. 2 – A Presidência do Conselho de Ministros, citada, veio apresentar a sua defesa por excepção, alegando falta de jurisdição dos tribunais administrativos e fiscais, ilegitimidade passiva da Presidência do Conselho de Ministros, impropriedade do meio processual e incompetência hierárquica do Supremo Tribunal Administrativo para decidir do segundo pedido; e, por impugnação, sustentando a conformidade constitucional das normas impugnadas. 3 – A protecção requerida ao abrigo da intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias vem enunciada como pedido de declaração de ilegalidade por inconstitucionalidade com efeitos pessoais para as “normas” de “proibição de ajuntamentos de mais de 10 ou 20 pessoas em espaço público”, que segundo o Requerente viola o seu direito fundamental a organizar e participar em “reuniões de amigos e família, jantares, tertúlias, sessões lúdicas ou piqueniques”; proibição que resulta da conjugação dos pontos 1, 2 e 8 e do artigo 15.º do anexo da Resolução do Conselho de Ministros n.º 55-A/2020, publicada no Diário da República n.º 148/2020, 1.º Suplemento, Série I de 31 de Julho de 2020, que declara a situação de contingência e alerta, no âmbito da pandemia da COVID-19 e cujos textos dispõem o seguinte: «[…] 1 - Declarar, na sequência da situação epidemiológica da COVID-19, até às 23:59 h do dia 14 de agosto de 2020: a) A situação de contingência na Área Metropolitana de Lisboa; b) A situação de alerta em todo o território nacional continental, com exceção da Área Metropolitana de Lisboa. 2 - Determinar, sem prejuízo das competências do Ministro de Estado, da Economia e da Transição Digital, do Ministro da Administração Interna, da Ministra da Modernização do Estado e da Administração Pública, da Ministra da Saúde, do Ministro do Ambiente e da Ação Climática e do Ministro das Infraestruturas e da Habitação, as quais podem ser exercidas conjuntamente com os membros do Governo responsáveis pelas respetivas áreas setoriais, quando aplicável, a adoção, em todo o território nacional, das seguintes medidas de caráter excecional, necessárias ao combate à COVID-19, bem como as previstas no regime anexo à presente resolução e da qual faz parte integrante: a) Fixação de regras de proteção da saúde individual e coletiva dos cidadãos; b) Limitação ou condicionamento de acesso, circulação ou permanência de pessoas em espaços frequentados pelo público, bem como dispersão das concentrações de 20 ou 10 pessoas, consoante a situação declarada no respetivo local seja de alerta ou contingência, respetivamente, salvo se pertencerem ao mesmo agregado familiar; c) Limitação ou condicionamento de certas atividades económicas; d) Fixação de regras de funcionamento de estabelecimentos industriais, comerciais e de serviços; e) Fixação de regras aplicáveis ao tráfego aéreo e aos aeroportos; f) Racionalização da utilização dos serviços públicos de transportes, comunicações e abastecimento de água e energia, bem como do consumo de bens de primeira necessidade. (…) 8 - Reforçar, sem prejuízo dos números anteriores, que compete às forças e serviços de segurança e às polícias municipais fiscalizar o cumprimento do disposto na presente resolução, mediante: a) O encerramento dos estabelecimentos e a cessação das atividades previstas no anexo i ao regime anexo à presente resolução e da qual faz parte integrante; b) A emanação das ordens legítimas, nos termos da presente resolução, designadamente para recolhimento ao respetivo domicílio; c) A cominação e a participação por crime de desobediência, nos termos e para os efeitos da alínea b) do n.º 1 do artigo 348.º do Código Penal, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de março, na sua redação atual, do artigo 6.º da Lei n.º 27/2006, de 3 de julho, na sua redação atual, por violação do disposto no artigo 3.º do regime anexo à presente resolução, bem como do confinamento obrigatório por quem a ele esteja sujeito nos termos do artigo 2.º do referido regime; d) O aconselhamento da não concentração de pessoas na via pública e a dispersão das concentrações superiores a 20 ou 10 pessoas, consoante a situação declarada no respetivo local seja de alerta ou de contingência, respetivamente, salvo se pertencerem ao mesmo agregado familiar. (…) Artigo 14.º Eventos 1 - Não é permitida a realização de celebrações e de outros eventos que impliquem uma aglomeração de pessoas em número superior a 20 ou 10, consoante a situação declarada no respetivo local seja de alerta e de contingência, respetivamente, salvo se pertencerem ao mesmo agregado familiar, sem prejuízo do disposto no número seguinte. 2 - A DGS define as orientações específicas para os seguintes eventos: a) Cerimónias religiosas, incluindo celebrações comunitárias; b) Eventos de natureza familiar, incluindo casamentos e batizados, quer quanto às cerimónias civis ou religiosas, quer quanto aos demais eventos comemorativos; c) Eventos de natureza corporativa realizados em espaços adequados para o efeito, designadamente salas de congressos, estabelecimentos turísticos, recintos adequados para a realização de feiras comerciais e espaços ao ar livre. 3 - Na ausência de orientação da DGS, os organizadores dos eventos devem observar, com as necessárias adaptações, o disposto nos artigos 8.º a 10.º, bem como no artigo 17.º quanto aos espaços de restauração nestes envolvidos, e os participantes usar máscara ou viseira nos espaços fechados. 4 - Os eventos com público realizados fora de estabelecimentos destinados para o efeito devem ser precedidos de avaliação de risco, pelas autoridades de saúde locais, para determinação da viabilidade e condições da sua realização. 5 - Em situações devidamente justificadas, os membros do Governo responsáveis pelas áreas da administração interna e da saúde podem, conjuntamente, autorizar a realização de outras celebrações ou eventos, definindo os respetivos termos. […]». A Resolução do Conselho de Ministros n.º 55-A/2020 foi entretanto modificada pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 63-A/2020, publicada em 14, de Agosto de 2020, passando a dispor a nova redacção, no que aqui releva, o seguinte: «[…] 1 - Declarar, na sequência da situação epidemiológica da COVID-19, até às 23:59 h do dia 31 de agosto de 2020: (…). E foi posteriormente modificada pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 68-A/2020, publicada em 28, de Agosto de 2020, passando a dispor a nova redacção, no que aqui releva, o seguinte: «[…] 1 - Declarar, na sequência da situação epidemiológica da doença COVID-19, até às 23:59 h do dia 14 de setembro de 2020: (…). Tendo em conta que o Requerente peticiona não apenas a impugnação da redacção em vigor na data da propositura da intimação, mas também “de quaisquer normas análogas que venham a ser aprovadas por renovação do conteúdo da Resolução […] em crise”, analisaremos o pedido à luz da redacção actual das mesmas. Cumpridas todas as diligências deste processo urgente, cumpre decidir. II - Fundamentação 3 – Da falta ou não de jurisdição deste Supremo Tribunal Administrativo para julgar o processo. Alega a Requerida, no essencial, que o pedido formulado pelo Requerente de declaração de ilegalidade por inconstitucionalidade da norma com efeitos pessoais (circunscritos ao Requerente), ou seja, com efeitos limitados ao caso concreto, não pode ser conhecido por este Supremo Tribunal Administrativo, pois a norma do n.º 2 do artigo 73.º do CPTA, em que o mesmo se fundamenta, não admite um tal pedido, conclusão que se alcança, seja a partir da interpretação da norma em conformidade com a CRP, seja por desaplicação desta norma com o fundamento de a mesma violar a reserva de jurisdição constitucional. A excepção que assim vem suscitada pela Requerida – a da interpretação do n.º 2 do artigo 73.º do CPTA e da sua conformidade com a CRP – tem merecido amplo debate doutrinário, como, de resto, a mesma dá nota na sua peça processual, indicando os diversos autores que sufragam as diferentes posições, as quais aqui nos escusamos de repetir. Trata-se de uma questão sobre a qual este Supremo Tribunal Administrativo ainda não se pronunciou e que no âmbito do presente processo urgente, terá de ter a sua análise circunscrita à concreta tutela jusfundamental requerida para garantia (ou modo de reacção contra a violação) do direito, liberdade e garantia, tal como ela é configurada pelo autor. Neste particular, e sem necessidade e oportunidade para maiores desenvolvimentos atento o carácter urgente do processo, é fácil compreender que no âmbito deste processo apenas se discute a pretensão do autor de não lhe ser aplicável a medida de proibição de ajuntamentos de mais de 10 ou 20 pessoas em espaço público, e que ele enuncia sob o pedido de desaplicação das normas relativamente a si, afirmando até, expressamente, que em nenhum momento pretende a desaplicação daquela norma com força obrigatória geral (em relação a todos os destinatários da mesma). Ora, o pedido de declaração de ilegalidade com efeitos pessoais, que, como dissemos, é a formulação adoptada na peça processual para requerer a desaplicação da proibição normativa contemplada em norma administrativa, é a única via processual que, in casu, permite ao autor obter tutela jurisdicional efectiva perante uma norma que, como é o caso, sendo imediatamente operativa, viola, no seu entender, direitos, liberdades e garantias (no caso até, pessoais). Veja-se que, não obstante os argumentos que a doutrina vem esgrimindo desde a entrada em vigor da nova redacção do n.º 2 do artigo 73.º do CPTA, no caso concreto, por maioria de razão (relativamente a um verdadeiro pedido de desaplicação de normas com efeitos circunscritos ao caso concreto, interposto sob a forma de uma acção administrativa de impugnação de normas), a admissão da pretensão do Requerente corresponde, afinal, ao que há muito se previa na lei processual administrativa à luz da anterior redacção da norma, ou seja, a possibilidade de qualquer lesado por uma norma imediatamente operativa poder obter a tutela adequada, mediante a desaplicação judicial da mesma, com fundamento na respectiva ilegalidade (ilegalidade aqui entendida em sentido amplo, abrangendo, por isso, também, a desaplicação com fundamento em inconstitucionalidade), com efeitos circunscritos ao caso concreto. Neste sentido, por todos, o acórdão deste Supremo Tribunal Administrativo de 10 de Outubro de 2018 (proc. 2/15.2BCPRT). Acresce que o meio processual mobilizado pelo Requerente constitui, igualmente, a única forma de assegurar, no âmbito da factualidade concreta, a efectividade do n.º 5 do artigo 268.º da CRP, a qual é também uma norma constitucional dotada de aplicabilidade directa, por consubstanciar um direito análogo a direitos, liberdades e garantias dos administrados. E igualmente não se vislumbra, que da admissão do pedido e do respectivo julgamento decorra uma violação da reserva de jurisdição constitucional. Com efeito, a reserva de jurisdição do Tribunal Constitucional ao conhecimento das questões de constitucionalidade está normativamente delimitada, no âmbito da fiscalização concreta da constitucionalidade – o único processo que aqui importa analisar por estamos apenas a discutir a desaplicação da norma com efeitos circunscritos ao caso concreto – pela via do recurso das decisões que desapliquem normas com fundamento em inconstitucionalidade. Em outras palavras, quando o pedido (e os consequentes efeitos da decisão judicial) se circunscreve à “declaração de inconstitucionalidade com efeitos pessoais ou circunscritos ao caso concreto” (como é o caso aqui, no âmbito do pedido de não aplicação da proibição de ajuntamentos de pessoas na via pública), substancialmente estamos perante uma desaplicação da norma em concreto e não perante uma declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral (essa sim reservada ao Tribunal Constitucional em primeira instância, por via de acção, nos termos dos artigos 281.º, n.ºs 1 e 2 e 282.º da CRP, ou no âmbito de um processo de generalização do controlo concreto, segundo o artigo 281.º, n.º 3 da CRP e 82.º da LTC), pelo que a reserva de jurisdição do Tribunal Constitucional, que está normativamente conformada, quer na CRP, quer na LTC, como uma reserva da última palavra e não como uma reserva total de jurisdição, em nada é afectada ou beliscada. É que ao Tribunal Constitucional está apenas reservada a decisão final quanto à conformidade constitucional de uma norma administrativa que seja imediatamente operativa, em via de recurso da decisão do tribunal a quo, ao qual, por sua vez, compete a primeira palavra quanto à verificação da conformidade constitucional da norma para assegurar a sua desaplicação ou não ao administrativo que por ela é directa e pessoalmente lesado. O objecto do processo judicial administrativo é o controlo dos efeitos directos e imediatos que a norma, por ser imediatamente operativa, produz na esfera jurídica do lesado e não um juízo puramente normativo de desvalor constitucional. E mesmo quanto à reserva de última palavra da jurisdição constitucional, entendeu o legislador constituinte que aquela apenas se revelava indispensável quando a norma desaplicada pelo tribunal a quo fosse de rango legislativo (convenção internacional, lei, decreto-lei ou decreto legislativo regional artigo 280.º n.º 1, al a) e n.º 3 e artigo 112.º, n.º 1 da CRP) ou administrativo qualificado (decreto regulamentar), podendo “dispensar-se” a acção pública sempre a norma administrativa desaplicada com fundamento em inconstitucionalidade constasse, como é o caso aqui, de um acto regulamentar do Governo sob a forma de resolução. A falta de relevância formal da norma em apreço no plano da reserva de última palavra da jurisdição constitucional fica até patente pelo facto de uma eventual desaplicação da mesma no âmbito do presente processo não ter como consequência o recurso obrigatório da mesma por parte do Ministério Público para o Tribunal Constitucional, o que significaria, na prática, que a conformarem-se as partes com a decisão, a pronúncia deste Tribunal quanto à lesão dos direitos, liberdades e garantias do Requerente poderia ser, in casu, a primeira e a única quanto à conformidade constitucional da norma, como sucede, de resto, com a maior parte das decisões judiciais no âmbito do controlo concreto, quando assentam na conformidade constitucional ou não de normas administrativas mediatamente operativas, em que a anulação dos actos se fundamente na inconstitucionalidade das normas. Em suma, não se verificaria a alegada falta de jurisdição deste Supremo Tribunal Administrativo se o pedido formulado fosse o da declaração de ilegalidade da norma com efeitos pessoais no âmbito de uma acção administrativa de impugnação de normas, e, por maioria de razão, não se verifica a alegada excepção no caso concreto, em que a questão da inconstitucionalidade das normas vem suscitada neste processo não como um controlo normativo a se, i. e., como um pedido de impugnação de normas, mas sim como fundamento da intimação para a protecção de direitos liberdades e garantias, ou seja, em que o Requerente pretende, no fundo, que o Estado seja condenado a não lhe aplicar a proibição de ajuntamentos de mais de 10 ou 20 pessoas em espaço público. O objecto processual é neste caso o controlo de uma lesão a um direito, liberdade e garantia de natureza pessoal decorrente dos efeitos projectados por uma norma imediatamente operativa e, para isso (até pela inexistência de recurso de amparo), a jurisdição legal e constitucionalmente competente para o seu julgamento é a jurisdição administrativa. Pelas razões aduzidas não procede a excepção de falta de jurisdição deste Supremo Tribunal Administrativo para conhecer da intimação. 4 – Da ilegitimidade passiva da Presidência do Conselho de Ministros. Alega a Requerida que é o Conselho de Ministros e não a Presidência do Conselho de Ministros o autor da resolução cuja ilegalidade (inconstitucionalidade) é suscitada no processo, pelo que não integrando a mesma o órgão Governo (artigo 1.º do Regime da Organização e Funcionamento do XXII Governo Constitucional) haveria que absolver a Requerida da instância. Porém, importa não esquecer, uma vez mais, que estamos no âmbito de um processo urgente de intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias, em que os poderes de direcção processual do juiz (7.º-A do CPTA) surgem especialmente reforçados (artigos 110.º e 110.º-A do CPTA), tendo em vista assegurar o efeito útil da decisão (artigo 111.º) – afinal este é o processo urgente por excelência, que cumpre, no âmbito do sistema jurídico-processual nacional, uma função instrumental de amparo constitucional para os lesados nos seus direitos, liberdades e garantias, o que impõe o escrutínio dos pressupostos processuais cum grano salis, o mesmo é dizer que com a devida ponderação dos princípios do favorecimento do processo, da colaboração do juiz e da justiça material, atenta a especial (reforçada) efectivação do princípio da tutela jurisdicional efectiva que aqui está em causa ex vi da conjugação dos artigos 18.º, 22.º, n.º 5 e 268.º, n.ºs 4 e 5 da CRP. Assim, não obstante ter razão a Requerida quando alega que o autor da resolução é o Conselho de Ministros, a verdade é que: i) não só se atenta na íntima relação intersubjectiva institucional existente entre a Presidência do Conselho de Ministros e o Conselho de Ministros; ii) como se compreende a intencionalidade do Requerente em “superar a dificuldade” que poderia decorrer da imputação a uma única entidade, escrutinável perante o mesmo Tribunal, do pedido que pretendia formular (já veremos se correctamente ou não) para assegurar a tutela jurisdicional efectiva do direito fundamental que alega estar lesado; iii) como ainda se leva em consideração que a urgência em assegurar o efeito útil da decisão não se compaginaria com a notificação do Requerente para correcção da petição, que, para este efeito, redundaria numa diligência processual puramente dilatória, quando não frustradora da pretensão primeira do Requerente que é obter a tutela judicial relativamente ao seu pedido, o qual, é perfeitamente perceptível pela partes (a comprová-lo a completa e exaustiva, mas certeira, contestação apresentada pela Requerida) e pelo Tribunal. É, de resto, este “espirito de simplificação processual” e “aprofundamento da tutela jurisdicional efectiva” que informa o regime jurídico actual deste meio processual urgente e que vem presidindo às modificações legislativas de que tem sido objecto, como resulta, de forma expressa, da exposição de motivos da Proposta de Lei n.º 331/XIII, que deu lugar à Lei n.º 100/2015, de autorização do Governo para a revisão do CPTA, onde se pode ler o seguinte: “[…] O sexto aspeto, como reflexo da necessidade de garantir uma tutela jurisdicional plena, diz respeito à proposta de permitir a substituição de petições de intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias por requerimentos cautelares, quando não se preencham os exigentes pressupostos de que depende a admissibilidade dos primeiros[…]” Em suma, a especificidade do processo justifica a primazia da decisão material e que, por esse efeito, se considere não verificada a excepção de ilegitimidade passiva. 5 – Da impropriedade do meio processual para a formulação do primeiro pedido. A Requerida considera que o Requerente não podia lançar mão da intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias com o intuito de obter a declaração de ilegalidade da norma com efeitos pessoais, uma vez que a intimação apenas pode ter como “resultado” uma sentença condenatória e não pode ser utilizado como “meio impugnatório”. Porém, não tem razão a Requerida, pois como resulta claro desde o primeiro momento (designadamente da exposição de motivos da Proposta de Lei n.º 92/VIII, que deu origem à Lei n.º 15/2002, que aprovou o CPTA), a intencionalidade do legislador com a introdução entre nós deste meio processual foi “a de dar cumprimento à determinação contida no artigo 20.º, n.º 5, da Constituição” e para o efeito concebeu um “instrumento que se procurou desenhar com uma grande elasticidade”, para assegurar em tempo útil, com uma decisão de mérito, os direitos dos lesados que não ficassem devidamente protegidos com um meio cautelar ou quando o uso destes meios seja desprovido de sentido, como sucede neste caso, em que um meio cautelar poderia dar origem a um “excesso de tutela”, permitindo ao alegado lesado obter com maior facilidade, por via da tutela cautelar, uma protecção que mais tarde se concluísse que era infundada à luz do julgamento do mérito da questão. E por isso este é o meio adequado para obter a tutela urgente perante a alegada lesão de direitos, liberdades e garantias que não possam ser garantidos pela via da tutela cautelar, redundando sempre a decisão na imposição à Administração da adopção de uma conduta, positiva ou negativa, mesmo que essa decisão, como sucede aqui, seja funcionalmente equivalente à desaplicação de uma norma imediatamente operativa (Veja-se que neste caso, por se tratar de um pedido “funcionalmente coincidente” com a impugnação da ilegalidade de uma norma geral com efeito circunscrito ao caso concreto, não se suscita sequer o problema que a doutrina vem colocando a respeito do uso deste processo urgente para obter a imposição da abstenção da conduta que se traduza na “desaplicação de um acto administrativo” em que, por se tratar de uma actuação da administração que não tem outro destinatário que não seja o requerente (referimo-nos, claro, a um acto individual e contrato), colocar-se-ia o problema de saber o que é que sucederia com esse acto, no sentido de saber se poderia ser também anulado no âmbito do processo urgente (como defende uma parte dos autores) ou não (como defendem outros).). Contrariamente ao que alega a Requerida, a tutela que o Requerente pretende obter não seria alcançável através da cumulação de um pedido de impugnação de normas, com uma providência cautelar, porquanto, atendendo à vigência temporal limitada do regime normativo em causa, apenas uma decisão de fundo sobre a questão se revela juridicamente adequada à sua solução. Na verdade, a intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias acaba por se mostrar um expediente processual tipificado no que respeita aos seus pressupostos especiais, mas extremamente dúctil quanto ao conteúdo da pretensão e, até, aos efeitos da decisão, sempre que a mesma acautele de modo efectivo a lesão (ou ameaça de lesão) do direito fundamental e se cinja ao necessário para esse efeito. Assim, tal como vem configurado o pedido pelo Requerente ― textualmente enunciado como um pedido de declaração de ilegalidade com efeitos pessoais, mas que substancialmente se configura como a condenação do Estado a não lhe aplicar a regra da proibição de ajuntamentos de mais de 10 ou 20 pessoas em espaço público, regra que ele identifica com o “direito de reunião com amigos e família, jantares, tertúlias, sessões lúdicas ou piqueniques” ― o uso da intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias, não se revela um meio processual impróprio. Poderia dizer-se que a formulação mais correcta a adoptar no pedido seria a de pedir a imposição à Administração da abstenção de proibir ajuntamentos ou reuniões “convocadas” pelo Requerente ou em que ele participasse, o que constitui um equivalente funcional da desaplicação da norma que contempla aquela proibição relativamente a si, pelo que, atenta a já mencionada especial simplificação com que devem ser analisados os pressupostos processuais relativamente a este meio processual, impõe-se a interpretação do pedido com este sentido. Questão diferente é o facto de estar aqui em causa uma alegada violação do direito fundamental de reunião, e sendo este um direito fundamental de exercício colectivo, a circunstância de o Requerente solicitar a abstenção da aplicação da proibição relativamente a si acabaria por se revelar inútil. Inútil no sentido de que mesmo que viesse a ser deferido o pedido e condenado o Estado a abster-se de proibir o Requerente de reunir com mais de 10 ou 20 pessoas em espaço público, um tal efeito do julgado não seria extensível a outros, designadamente àqueles que com ele reunissem. Daqui resultaria, na prática, uma impossibilidade de o Requerente obter por esta via a efectiva tutela do direito cuja lesão alega. Mas também esta não pode deixar de ser vista como uma falsa questão, porquanto, apesar de ser de exercício colectivo, este é um direito fundamental de titularidade individual, pelo que haverá apenas, nesta sede, que avaliar se existe ou não violação constitucional do direito do Requerente, deixando para a densificação dos efeitos do julgado e a sua execução o problema do necessário exercício colectivo do mesmo. Mais, não existindo outra via para o Requerente obter a tutela jurisdicional efectiva do direito alegadamente violado, e não sendo possível chamar à acção todos os que com ele potencialmente iriam “reunir”, não se vê como seria possível invocar a falta de propriedade do meio ou via processual sem que essa decisão redundasse num défice de tutela constitucional de um direito, liberdade e garantia que efectivamente existe na esfera jurídica do Requerente e cuja lesão ele alega. 6 – Da incompetência hierárquica do Supremo Tribunal Administrativo para julgar o pedido de condenação da Presidência do Conselho de Ministros i. e. “a exercer a sua competência relativamente às forças policiais e demais autoridades públicas no sentido de não impedirem o Requerido e as pessoas que com ele estejam reunidas de exercer plenamente a sua liberdade jusfundamental de reunião”. Excepciona, por último, a Requerida que o pedido de condenação a um comportamento (o segundo pedido do requerimento) teria de ser formulado contra a entidade administrativa competente, ou seja, o Ministro responsável pela tutela das forças policiais, e, para conhecer de um tal pedido não seria competente o Supremo Tribunal Administrativo e sim o Tribunal Administrativo de Círculo, por força das regras do ETAF. Trata-se, contudo, de uma argumentação que, pelas razões aduzidas anteriormente, que nos levaram a concluir pela competência do Supremo Tribunal Administrativo para conhecer do primeiro pedido, levariam também à sua competência para conhecer deste segundo pedido (se o mesmo fosse viável) ex vi do disposto no n.º 1 do artigo 21.º do CPTA. Concluímos, pois, que nenhuma das excepções invocadas pela Requerida procede, pelo que, passamos ao conhecimento do fundo da questão. 7 – Da verificação dos pressupostos processuais específicos da intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias Antes, porém, de enfrentar as questões de conformidade constitucional orgânico-formal e material das normas que estão na origem dos pedidos formulados no requerimento, impõe-se verificar o preenchimento dos requisitos processuais do processo urgente e a viabilidade processual dos pedidos. 7.1. Dos pressupostos da intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias Compulsando tudo quanto já se expendeu, afigura-se estarem reunidos, in casu, os pressupostos processuais específicos deste processo urgente enunciados no artigo 109.º do CPTA. Com efeito, é fundada a urgência, na medida em que estamos ante proibições normativas com eficácia imediata que vêm produzindo os seus efeitos directamente na esfera pessoal do Requerente e, como tal, a produzir, de forma continuada, a lesão que o mesmo lhes imputa. Verifica-se, na alegada situação de lesão formulada pelo Requerente, a “intrínseca irrepetibilidade de exercício útil do direito”, cuja tutela importa, por isso, acautelar. Acresce que estamos também ante normas com vigência temporal limitada – a vigência da norma que proíbe os ajuntamentos de mais de 10 ou 20 pessoas em espaço público termina às 23:59h do dia 14 de Setembro de 2020 (ponto 1 da Declaração n.º 68-A/2020, formulação normativa que aqui apreciamos) – e, como já explicámos anteriormente, a tutela do direito não se compadece, neste caso, com uma mera decisão cautelar, exigindo uma efectiva decisão de mérito. De resto, este é um caso em que, por estar em discussão apenas uma questão de direito, faria sempre todo o sentido antecipar a tutela de mérito e resolver de forma imediata o litígio. 7.2. Da inviabilidade ou inutilidade do segundo pedido. Quanto ao pedido que vem formulado em segundo lugar ― lembre-se “condenação da Presidência do Conselho de Ministros a exercer a sua competência relativamente às forças policiais e demais autoridades públicas no sentido de não impedirem o Requerido e as pessoas que com ele estejam reunidas de exercer plenamente a sua liberdade jusfundamental de reunião” ― verifica-se que o mesmo não apresenta viabilidade processual no âmbito da presente intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias. Com efeito, se este pretende ser um pedido autónomo, ele apresenta-se como vago, excessivo e inapto e, como tal, manifestamente inviável; já se visa ser um pedido respeitante à execução do julgado do primeiro pedido, por não ter (nem poder ter) efeito diferente do que resulta daquele, será um pedido inútil. Vejamos. Se pretende ser um pedido autónomo, dele decorre que o Requerente está a solicitar que as força de polícia e as autoridades públicas sejam condenadas a abster-se, em geral, de impedir as reuniões em espaço público, com mais de 10 ou 20 pessoas, convocadas por si ou em que ele intervenha. Ora, um tal pedido seria manifestamente infundado, pois com ele estaria a pretender-se obter uma proibição de controlo e fiscalização dessas reuniões que as autoridades públicas podem e devem controlar e fiscalizar, nos termos da lei, e, inclusive, proibir ou relativamente a elas exercer outros meios de acção administrativa, sempre que elas violem (ou exista a suspeita de que violem) qualquer regra ou quaisquer direitos ou bens jurídicos, seja de ordem pública (ex. actos criminosos), administrativa (ex. violação das regras de ruído) ou de direitos pessoais (ex. violação de privacidade). Assim, o pedido de que seja ordenado, em geral, às forças policiais e às demais autoridades a obrigação de se absterem de proibir, fiscalizar ou por qualquer outra forma exercer o controlo administrativo sobre as referidas reuniões é infundado, excessivo e, como tal, manifestamente inviável. Já se o que o Requerente pretende com o segundo pedido formulado é que os órgãos de polícia e as demais autoridades fiquem impedidas de aplicar, relativamente a si e aos restantes membros dessas reuniões, as regras de proibição de limite de participantes em ajuntamentos que constam das normas impugnadas, nos estritos termos do que viesse a ser determinado no âmbito do julgamento do primeiro pedido, então este pedido não tem autonomia relativamente ao efeito do julgado do primeiro, pelo que é inútil. É que caso o Tribunal viesse a dar razão ao Requerente quanto ao primeiro pedido, a sentença consistiria, precisamente, na condenação na não aplicação ao Requerente da proibição de limite de número de participantes em ajuntamentos em espaço público em que ele estivesse, por parte dos órgãos de polícia e das demais autoridades públicas, sendo inútil a decisão do segundo pedido. Assim, pelas razões aduzidas, improcede o segundo pedido, que, por ser inviável ou inútil, dele não se conhecerá no âmbito da presente intimação. 8 – Das alegadas inconstitucionalidades 8.1. Da inconstitucionalidade formal ou orgânica 8.1.1. No entender do Requerente a “dispersão das concentrações superiores a 10 (nas áreas abrangidas pela situação de contingência) ou 20 (nas áreas abrangidas pela situação de alerta) pessoas” ― que constitui a “norma” ou regra que se pretende que seja subjectivamente desaplicada e que deflui da conjugação do disposto nos pontos 1, 2 e 8 e do artigo 14.º da Resolução do Conselho de Ministros n.º 55-A/2020, de 31 de Julho, na sua redacção actualizada ― é uma norma restritiva de direitos, liberdades e garantias, que não tem forma nem habilitação legal, pelo que viola o disposto nos artigos 18.º, n.º 2 e 165.º, n.º 1, al. b) da CRP, nem tem a densidade normativa constitucionalmente exigida para este tipo de normas. 8.1.2. A Requerida alega, por seu turno, que i) a proibição normativa cuja desaplicação é requerida se inscreve no âmbito da função executiva; ii) que goza de habilitação legal constitucionalmente válida ex vi do disposto no artigo 17.º da Lei de Vigilância em Saúde Pública (Lei n.º 81/2009, de 21 de Agosto) (Dispõe assim o artigo 17.º da Lei n.º 81/2009, de 21 de Agosto: “Artigo 17.º - Poder regulamentar excepcional 1 - De acordo com o estipulado na base xx da Lei n.º 48/90, de 24 de Agosto, o membro do Governo responsável pela área da saúde pode tomar medidas de excepção indispensáveis em caso de emergência em saúde pública, incluindo a restrição, a suspensão ou o encerramento de actividades ou a separação de pessoas que não estejam doentes, meios de transporte ou mercadorias, que tenham sido expostos, de forma a evitar a eventual disseminação da infecção ou contaminação. 2 - O membro do Governo responsável pela área da saúde, sob proposta do director-geral da Saúde, como autoridade de saúde nacional, pode emitir orientações e normas regulamentares no exercício dos poderes de autoridade, com força executiva imediata, no âmbito das situações de emergência em saúde pública com a finalidade de tornar exequíveis as normas de contingência para as epidemias ou de outras medidas consideradas indispensáveis cuja eficácia dependa da celeridade na sua implementação. 3 - As medidas previstas nos números anteriores devem ser aplicadas com critérios de proporcionalidade que respeitem os direitos, liberdades e garantias fundamentais, nos termos da Constituição e da lei. 4 - As medidas e orientações previstas nos n.os 1 e 2 são coordenadas, quando necessário, com o membro do Governo responsável pelas áreas da segurança interna e protecção civil, designadamente no que se reporta à mobilização e à prontidão dos dispositivos de segurança interna e de protecção e socorro, devendo ser comunicadas à Assembleia da República”.), onde se acolhe legislativamente o poder regulamentar excepcional no âmbito do regime jurídico de emergência em saúde pública; iii) que este regime jurídico consubstancia um desenvolvimento do disposto na Lei de Bases da Saúde – Lei n.º 95/2019, de 4 de Setembro –, mais precisamente do disposto no respectivo artigo 34.º; iv) que a norma habilitante, e, como tal, o quadro normativo global da proibição que vem “atacada” no âmbito da intimação goza de suficiente densidade normativa; e v) que a questão deve ser analisada e decidida à luz do contexto actual de “emergência” e “destipização” das formas de actuação administrativa. 8.1.3. Feito o sumário dos argumentos e contra-argumentos respeitantes à conformidade constitucional orgânico-formal ou não da “norma” cuja desaplicação vem requerida com os ditames constitucionais em matéria de normas restritivas de direitos, liberdades e garantias impõe-se-nos ajuizar a questão. A questão que vem suscitada neste processo enquadra-se no conjunto de acções judiciais que têm vindo a ser propostas em muitos Estados (sobretudo em Estados-membros da União Europeia) como reacção às medidas de emergência sanitária adoptadas pelas diferentes autoridades estaduais e de saúde pública na luta contra a pandemia da COVID 19 e não se diferencia em muito das inúmeras questões aí tratadas. A enunciação da numerosa jurisprudência comparada já proferida não é compaginável com a económica da fundamentação do presente processo urgente, mas da sua leitura resulta, em síntese, que as questões aí abordadas se reconduzem também, quase sempre, ao problema da “suficiência” da base legislativa habilitante das medidas governativas de combate à pandemia (e de outros níveis de governo político-democrático ou administrativo, em função da organização político-administrativa de cada Estado) fundada nos regimes legais de excepção administrativa, seja em matéria de protecção civil e reacção contra catástrofes (que tem em Portugal assento na Lei de Bases da Protecção Civil, Lei n.º 27/2006, de 3 de Julho), seja em matéria de saúde pública e prevenção de infecções (De que constituem exemplo as decisões do Tribunal Constitucional Alemão a que aludiremos em nota mais adiante.) (entre nós, a já referida Lei de Vigilância em Saúde Pública), seja ainda no da própria prorrogação do “estado de emergência constitucional”(É o caso da decisão do Conseil Constutionnel, de 9 de Julho de 2020 (n.º 2020-803 DC), que na apreciação do diploma relativo às medidas de desconfinamento (“loi organisant la sortie de l'état d'urgence sanitaire”) afirmou que apenas se poderia considerar conforme à constituição a restrição das liberdades e circulação de pessoas e veículos se essa proibição fosse necessária para a protecção efectiva da saúde pública, o que imporia a sua adopção em sítios ou regiões onde o vírus estivesse comprovadamente activo, e não como medida preventiva da transmissão do mesmo (na prática proibiu os “confinamentos preventivos”).). O conjunto destas decisões judiciais vêm densificando o que se pode denominar como parâmetros do Estado de Direito em estado de emergência administrativa sanitária e o nível e as vias de protecção de direitos fundamentais durante a respectiva vigência. No caso em apreço, discute-se, neste primeiro ponto – da conformidade constitucional orgânico-formal da norma impugnada –, essencialmente, a suficiência da base legislativa habilitante. Sobre este tema, convergindo com o que vem sendo decidido em muitos desses arestos da jurisprudência comparada dos tribunais dos Estados-Membros da União Europeia, diremos que tem razão a Requerida quando defende que, independentemente da subsunção ou não da lesão jusfundamental alegada pelo Requerente ao regime jurídico-constitucional de uma restrição do direito fundamental de reunião, há-que atentar, em concreto, nos seguintes factores: i) na excepcionalidade e temporalidade das medidas adoptadas; e ii) na existência de uma concreta cadeia ininterrupta de legitimação democrática para a medida em causa; ao que nós acrescentamos iii) na legitimação por via da internormatividade técnica internacional e da comparação e interdependência administrativa. Vejamos os três pontos. A medida adoptada é temporária, sucessivamente obrigada a renovação (A renovação por períodos sucessivos, tal como “exigem” as normas que regulam os regimes excepcionais de alerta, contingência e calamidade da Lei de Bases da Protecção Civil, Lei n.º 27/2006, é também um instrumento de salvaguarda dos direitos lesados pelas medidas, uma vez que exige a sucessiva justificação da imposição da referida lesão e, como tal, da legitimidade dessas medidas.), e adoptada em contexto de crise – neste caso uma crise, como veremos, internacionalmente formalizada e caracterizada com o decretamento da situação de pandemia pela OMS (em 11 de Março de 2020 (No comunicado do Director Geral da OMS de 11.03.2020, por de ler-se: “We have therefore made the assessment that COVID-19 can be characterized as a pandemic” (https://www.who.int/dg/speeches/detail/who-director-general-s-opening-remarks-at-the-media-briefing-on-covid-19---11-march-2020). )) – o que, à luz da jurisprudência constitucional firmada no período da crise económica e financeira é um factor a ter em conta no âmbito do controlo de medidas que (sendo ou não restritivas de direitos fundamentais) afectem direitos e expectativas legítimas ― sobre a necessidade de tomar em consideração os “contextos de crise” no julgamento de constitucionalidade v. acórdãos do Tribunal Constitucional n.ºs 396/11, 353/12, 187/2013. A medida adoptada encontra previsão legal expressa na lei parlamentar que institui o sistema de vigilância em saúde pública (Lei n.º 81/2009), quando no artigo 17.º da mesma se estipula que “de acordo com o estipulado na base xx da Lei n.º 48/90, de 24 de Agosto (A Base XX estipulava o seguinte: “Base XX E é este o quadro legislativo parlamentar adequado e necessário a um Estado de Direito de emergência sanitária, ou seja, um quadro legislativo de habilitação das medidas administrativas de emergência, pois só esta via é compaginável com a dinâmica de uma situação de crise de saúde pública e com a adopção das medidas adequadas para a sua contenção e mitigação, sendo absolutamente impensável que as medidas necessárias para o efeito, mesmo as restritiva de direitos, liberdades e garantias, pudessem ser adoptadas por via legislativa parlamentar. O arcaboiço legislativo existente em Portugal e nos outros países da União Europeia (para recorrermos a um comparador próximo) para o Estado de Direito da Emergência sanitária assenta em leis parlamentares que habilitam a actuação do Governo no caso de se verificar a situação de emergência e que nessa habilitação prevêem, de forma genérica, as medidas que tradicional e comummente a experiência demonstrou que são ajustadas ao efeito. O terceiro ponto que, não tendo acolhimento expresso no texto da Constituição, ainda assim, a nosso ver, contribui, de forma significativa, para o reforço da cadeia de legitimação democrática da medida e para a suficiência da densidade jusconstitucional de um Estado de Direito de Emergência Sanitária é a internormatividade técnica em que não podem deixar de se integrar a medida adoptada de proibição de ajuntamentos, seja por corresponder à implementação entre nós (e na maior parte, desde logo, dos restantes Estado-Membros (Como bem indica a Requerida, o European Centre for Disease Prevention and Control, dá nota, em publicação de Agosto de 2020, que 22 dos 31 Estados aí analisados, adoptaram esta medida de proibição de ajuntamentos.)) das recomendações da Organização Mundial da Saúde (A consulta do site da OMS permite encontrar com facilidade a informação oficial que tem vindo a ser transmitida não só na publicidade institucional do Governo, mas também pela comunicação social e que hoje, uma vez mais, é facto público e notório: “Maintain at least 1 metre (3 feet) distance between yourself and others. Why? When someone coughs, sneezes, or speaks they spray small liquid droplets from their nose or mouth which may contain virus. If you are too close, you can breathe in the droplets, including the COVID-19 virus if the person has the disease. Avoid going to crowded places. Why? Where people come together in crowds, you are more likely to come into close contact with someone that has COVID-19 and it is more difficult to maintain physical distance of 1 metre (3 feet)”.), seja por a eficácia do combate a um fenómeno como uma pandemia, num mundo globalizado e onde existe uma rápida e ampla mobilidade de pessoas, impor a adopção de medidas ágeis por todos os Estados-membros e em “quase simultaneidade”, exigências para as quais apenas o direito administrativo se revela um (o único) instrumento apto. Neste caso concreto, a medida de proibição de ajuntamentos que vem impugnada nos autos encontra-se até, como vimos, entre aquelas que gozam de previsão legal expressa e que, como tal, se encontra jurídico-constitucionalmente enquadrada de forma suficiente e adequada a um Estado de Direito de emergência sanitária. Não procede, por essa razão, o argumento da inconstitucionalidade orgânica e formal da medida adoptada nas normas da Resolução do Conselho de Ministros. Uma última nota para sublinhar que não são aplicáveis, neste caso, os argumentos expendidos pelo Tribunal Constitucional no acórdão n.º 424/2020 por não estar em causa (como ali) uma situação de privação de liberdade.
III – Decisão Nos termos e com os fundamentos expostos, acordam os Juízes da Secção de Contencioso Administrativo em julgar improcedente a presente intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias por considerar não verificada qualquer violação de direitos, liberdades e garantias. * Lisboa, 10 de Setembro de 2020 – Suzana Tavares da Silva A Relatora atesta, nos termos do art.º 15-A do Decreto-Lei 10-A/2020, de 13 de Março, o voto de conformidade dos Ex.mos Senhores Conselheiros Adjuntos Cristina Santos e José Veloso Suzana Tavares da Silva |