Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0279/14
Data do Acordão:10/09/2014
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:COSTA REIS
Descritores:ACÇÃO DE RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL
HOSPITAL
PROVA
ILICITUDE
CULPA
OBRIGAÇÃO DE INDEMNIZAÇÃO
Sumário:I – A alteração do julgamento da matéria de facto é, por via de regra, excepcional e só pode ocorrer nas circunstâncias tipificadas no art.º.662.º do CPC.
II - As leges artis, quando não escritas, são métodos e procedimentos, comprovados pela ciência médica, que dão corpo a standards contextualizados de actuação, aplicáveis aos diferentes casos clínicos, por serem considerados pela comunidade científica, como os mais adequados e eficazes.
III – O juízo de culpa pressupõe a existência de um comportamento padrão a observar em determinadas circunstâncias sobre o qual se há-de aferir a conduta do agente traduzindo-se esse juízo numa censura à desconformidade entre aquele comportamento que o agente podia e devia ter tido e aquilo que efectivamente realizou.
IV – Por ser assim, age com culpa, violando o dever objectivo de cuidado, o médico cujo procedimento clínico fica aquém do standard técnico/científico da actuação exigível ao profissional médio, nas circunstâncias do caso concreto.
V – A obrigação de indemnizar importa a reparação de todos os danos sofridos e a reconstituição, na medida do possível, da situação que existiria se o evento que os provocou não tivesse tido lugar e que não sendo possível a reconstituição in natura ou, sendo-o, seja excessivamente onerosa para o devedor, será fixada em dinheiro tendo “como medida a diferença entre a situação patrimonial do lesado, na data mais recente que puder ser atendida pelo Tribunal, e a que existiria nessa data se não existissem danos.” (vd. art.s 562.º e 566.º, n.ºs 1 e 2, do CC).
VI - Podendo essa indemnização ser fixada com recurso a juízos de equidade quando o seu cálculo não puder ser feito de forma diferente, dentro dos limites do que se tiver por provado (art.º 566.º/3 do CC), tendo-se em conta o grau de culpabilidade do agente, a situação económica do lesado e as demais circunstâncias do caso.
Nº Convencional:JSTA00068937
Nº do Documento:SA1201410090279
Data de Entrada:03/03/2014
Recorrente:MATERNIDADE ALFREDO DA COSTA E A............
Recorrido 1:OS MESMOS
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:REC JURISDICIONAL
Objecto:SENT TAC LISBOA
Decisão:PROVIMENTO PARCIAL.
NEGA PROVIMENTO.
Área Temática 1:DIR ADM CONT - RESPONSABILIDADE EXTRA.
Legislação Nacional:CCIV66 ART342 N1 ART483 ART487 N2 ART562 ART566 N1 N2 N3.
CPC13 ART662.
DL 48051 DE 1967/11/21 ART2 N1 ART6.
DL 282/77 DE 1977/07/05 ART13.
Jurisprudência Nacional:AC STA PROC036933 DE 1995/03/16.; AC STA PROC035909 DE 1996/03/21.; AC STA PROC035412 DE 1996/10/30.; AC STA PROC043138 DE 1998/10/13.; AC STA PROC046977 DE 2001/06/27.; AC STA PROC0487/02 DE 2002/09/26.; AC STA PROC01331/02 DE 2002/11/06.; AC STA PROC01683/02 DE 2002/12/18.; AC STA PROC01393/03 DE 2004/03/10.; AC STA PROC0856/04 DE 2005/04/07.; AC STA PROC0947/07 DE 2008/10/23.; AC STA PROC0477/11 DE 2012/03/13.
Referência a Doutrina:SÓNIA FIDALGO - RESPONSABILIDADE PENAL POR NEGLIGÊNCIA NO EXERCÍCIO DA MEDICINA EM EQUIPA PAG74.
Aditamento:
Texto Integral: ACORDAM NA SECÇÃO DE CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO DO STA:

A…………, com os demais dos autos, instaurou, no TAC de Lisboa, acção ordinária de responsabilidade civil extracontratual por facto ilícito contra:
- Maternidade Dr. Alfredo da Costa
- B…………,
- C…………,
- D…………, E………… e
- F…………
pedindo a sua condenação no pagamento de uma quantia não inferior a 70.579.779$00 [€ 352.050,45] pelos danos patrimoniais e não patrimoniais que lhe causaram em resultado de um acto cirúrgico deficientemente executado e da falta de tratamento ou de tratamentos inadequados que lhe ministraram.

Os RR contestaram por excepção - para invocar a sua ilegitimidade e a prescrição do direito reclamado - e por impugnação - para contrariar a factualidade alegada pela Autora e pugnar pela improcedência da acção.

Foi realizada audiência preliminar onde se decidiu (1) julgar procedente a questão da ilegitimidade processual das pessoas singulares demandadas e (2) fixar a base instrutória.

Realizado o julgamento foi proferida sentença, em 6/07/2011, concedendo parcial provimento à acção e condenando a Maternidade Alfredo da Costa a pagar à Autora “a quantia de 172.000 euros acrescida de juros de mora desde a data da citação até integral pagamento e as quantias que se vierem a liquidar em execução de sentença ou em incidente de liquidação a deduzir, correspondentes aos danos patrimoniais e aos danos morais futuros.

O Centro Hospitalar de Lisboa, Central, E.P.E - que sucedeu à Maternidade Alfredo da Costa - interpôs o presente recurso onde formulou as seguintes conclusões:
1. A douta sentença recorrida fez uma errada interpretação dos factos provados e não provados, bem como do direito aplicável, violando, desde logo, o artigo 607.°, n.ºs 2 e 3, do C. P. Civil;
2. Com os fundamentos constantes dos artigos 19.° a 25.°, que aqui se dão como integralmente reproduzidos, a douta sentença decidiu com base em erro de direito, na análise dos factos quanto ao facto ilícito durante a cirurgia a que se submeteu a A., quando concluiu pela ilicitude da conduta dos médicos da Ré que efectuaram a intervenção;
3. Com os fundamentos constantes dos artigos 26.° a 34.°, que aqui se dão como inteiramente reproduzidos, a douta sentença recorrida, por erro na aplicação das regras do ónus da prova, violou o disposto no artigo 342.°, n.º 1, do Código Civil;
4. Com os fundamentos constantes dos artigos 35.° a 37.°, a douta sentença recorrida violou igualmente o artigo 487.°, n.º 2, do Código Civil;
5. Com os fundamentos constantes dos artigos 38.° a 47.°, que aqui se dão como integralmente reproduzidos, a douta sentença errou de direito na análise do nexo de causalidade adequada, o que fez em violação o artigo 566.°, n.º 2, do Código Civil;
6. Com os fundamentos constantes dos artigos 48.° a 57.°, cujo teor aqui se dá como integralmente reproduzido, a douta sentença recorrida errou também na análise que fez em relação aos danos alegados pela Autora e que deu como provados;
7. Com os fundamentos constantes dos artigos 58.° a 67.°, que aqui se dão como integralmente reproduzidos, a douta sentença recorrida errou quando fixou indemnização pela perda permanente da incapacidade de ganho da Autora, como também, por ter feito uma errada interpretação, quanto aos danos por ela alegados, dos factos dados como provados, alguns com respostas contraditórias, tendo errado na aplicação do direito, por violação, uma vez mais, das regras do ónus da prova (artigo 342.° do C. Civil);
8. Com os fundamentos constantes dos artigos 69.° a 72.°, cujo teor aqui se dá como integralmente reproduzido, a douta sentença recorrida violou também, nesta parte, por errada interpretação dos factos e por erro na aplicação das regras do ónus da prova, quanto aos danos alegados a este título, o artigo 342.°, n.º 1, do Código Civil;
9. Com os fundamentos constantes dos artigos 78.° a 81.º, cujo teor aqui também se dá como inteiramente reproduzido, e relativamente à condenação por danos não patrimoniais, a douta sentença recorrida violou, por errada interpretação dos factos e por erro na aplicação das regras do ónus da prova e do nexo de causalidade adequada, quanto aos danos alegados a este título, os artigos 342.°, n.º 1, e 566.°, n.º 2, ambos do Código Civil;
10. Tendo, pelos mesmos fundamentos, a douta sentença recorrida errado de direito, ainda relativamente à condenação por danos não patrimoniais, também os artigos 494.° e 496.°, n.º 3, do Código Civil;
11. Em suma, com todos fundamentos atrás aduzidos, a douta sentença recorrida violou o artigo 483.° do Código Civil, uma vez que, no entender do recorrente, se não mostram, nos presentes autos, satisfeitos todos os pressupostos de que depende a condenação em indemnização a favor da Autora;
12. Tendo também a douta sentença recorrida, quer por manifesto erro de análise dos factos que deu como provados e não provados, quer por errada aplicação do direito, violado, o artigo 607.°, n.ºs 3 e 4, do (novo) C. P. Civil.

A Autora recorreu subordinadamente formulando as seguintes conclusões:
1. A recorrente entende que ao condenar a recorrida apenas no montante de 80.000€ (oitenta mil euros) a título de danos não patrimoniais o Tribunal “a quo” violou os artigos 483° e 496° do C. Civil;
2. Atendendo aos graves danos não patrimoniais sofridos pela recorrente a indemnização deveria ser, quanto a esta matéria de 249.399€ (Duzentos e Quarenta e Nove Mil Trezentos e Noventa e Nove Euros);
3. A recorrente uma mulher completamente activa, quer a nível profissional, social ou sexual, de um momento para o outro ficou totalmente incapaz;
4. A recorrente ficou aos 50 anos de idade com incapacidade para manter relações sexuais, sem sensibilidade na zona genital, com perturbações esfincterianas e genitais, nomeadamente, incontinência ou retenção urinária e fecal, chegando ao ponto de pensar no suicídio.
5. Onde até as funções mais básicas do dia a dia como sejam sentar-se ou andar lhe causam dores;
6. Sendo certo que as lesões sofridas pela recorrente e provocadas pelos médicos da recorrida são irreversíveis;
7. A Recorrente encontra-se a sofrer física e psicologicamente há mais de 18 anos, ou seja desde Maio de 1995, data em que os clínicos da recorrida operaram a recorrente;
8. Os danos morais sofridos pela A., na escala de graduação do IML são muito próximos dos valores máximos atribuídos:
- A Nível psicológico e psiquiátrico uma incapacidade de 12 (Doze) pontos numa escala que vai até 15 (cfr. Documentação junta aos autos fls. 566 e seguintes);
- A Nível de Quantum Doloris 5 (Cinco) pontos numa escala de 7 (Cfr. fls. 573 e seguintes);
- A Nível de Incapacidade Permanente Geral 45 (Quarenta e cinco) (Cfr. fls 573 e seguintes);
- A Nível de Prejuízo Sexual 3 (Três) pontos numa escala de 5 (Cfr. fls. 573 e seguintes);
9. Em termos de incapacidade multiuso, realizada por junta médica, nos termos do DL n.º 341/93, de 30/09 foi-lhe atribuída uma incapacidade permanente global de 73% (setenta e três por cento).
10. A indemnização dos danos não patrimoniais ora invocados têm como objectivo compensar a recorrente daqueles danos, através duma quantia em dinheiro que lhe permita um acréscimo de bem-estar e o acesso a bens recreativos e culturais, enquanto naturais contrapontos das dores e angústias passadas e futuras, da perda da auto estima, da frustração da sociabilidade.
11.No caso dos danos não patrimoniais, a indemnização reveste uma natureza acentuadamente mista. É que, não obstante visar reparar, de algum modo, mais do que indemnizar, também não se alheia da ideia de reprovar ou castigar no plano civilístico e com os meios próprios do direito privado a conduta do agente. (A. Varela, “Das Obrigações em Geral, Vol. I, pág. 607, 608)”
12. Assim sendo, tendo em conta a gravidade e multiplicidade dos danos não patrimoniais sofridos pela recorrente e que foram provados e dados como assentes ao longo do presente processo, a ausência de culpa da sua parte, a sua idade e condição sócio - económica média, o juízo de equidade que constitui o critério decisivo da fixação do montante indemnizatório (art.° 496° n.°3 primeira parte do Código Civil), deve a recorrida ser condenada a pagar à recorrente a título de danos não patrimoniais o montante de 249.399€ (Duzentos e Quarenta e Nove Mil Trezentos e Noventa e Nove Euros), perfazendo uma indemnização no montante global de 341.399€ (Trezentos e Quarenta e Um Mil Trezentos e Noventa e Nove Euros), quanto ao mais se mantendo a decisão proferida pelo Tribunal “a quo”;

A Autora contra alegou o recurso da Ré finalizando-o do seguinte modo:
I. A recorrida não pode deixar de lamentar que decorridos 18 (Dezoito) anos, sobre a intervenção cirúrgica que lhe causou danos irreversíveis, e após ter ficado claro em julgamento que as lesões foram provocadas na intervenção cirúrgica realizada naquele estabelecimento, a Recorrente venha ainda com o presente recurso pretender, unicamente protelar a presente instância;
II. A Sentença proferida pelo Tribunal a quo se merece alguma censura prende-se com o facto de ter condenado a Recorrente a indemnizações demasiado baixas para os danos sofridos pela Recorrida;
III. As considerações vertidas nas alegações da Recorrente não podem ser apreciadas pelo STA;
IV. Aquilo que o recorrente pretende é colocar em causa a livre apreciação da prova efectuada pelo Tribunal “a quo” e não a violação de qualquer regra jurídica;
V. O erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objecto do recurso para o Supremo Tribunal a não ser quando haja ofensa de uma disposição expressa de Lei que exija certa espécie de prova para a existência do fado ou haja violação de norma legal que fixe a força probatória de determinado meio de prova, o que não acontece manifestamente no caso sub judice.
VI. Independentemente da discussão que existe entre saber se a responsabilidade da recorrente é contratual ou extra contratual no caso sub judice ficaram provados todos os factos necessários ao preenchimento dos pressupostos quer da responsabilidade contratual quer extra contratual;
VII. A Meritíssima Juiz do Tribunal “a quo” fundamentou devidamente porque considerou provados os factos quer na abundante prova testemunhal quer na prova pericial e documental;
VIII. Aliás, a perícia efectuada pelo Instituto de Medicina Legal à Recorrida não deixa margem para dúvidas, refere a mesma a fls. 573 e seguintes dos autos:
Dos relatórios que se anexam ao presente, dos exames periciais complementares solicitados e entretanto realizados nesta delegação, extrai-se:
“ … da Especialidade de Neurocirurgia, efectuado a 05-09-2008, haver resultado, como efeito secundário da cirurgia efectuada a 20-05-1995, uma lesão parcial permanente do nervo pudendo esquerdo, com incontinências uretral e rectal e hipostesia vulvoperineal homolateral..”
IX. Mais se refere na referida perícia:
Os elementos disponíveis permitem admitir o nexo de causalidade entre o traumatismo e o dano atendendo a que: existe adequação entre a sede do traumatismo e a sede do dano corporal resultante, existe continuidade sintomatológica e adequação temporal entre o traumatismo e o dano corporal resultante, o tipo de lesões adequado a uma etiologia traumática, tipo de traumatismo é adequado a produzir este tipo de lesões, e se exclui a existência de uma causa estranha relativamente ao traumatismo.”
X. Em consequência duma operação simples a uma Bartholinite a Recorrida, nasceu a 09/05/1945, então com 50 (cinquenta) anos de idade, para além de outros graves danos sofridos, passou a ter que usar fraldas por não conseguir “segurar” as fezes e urina;

A Ilustre Magistrada do M.P. emitiu parecer no sentido de ser negado provimento ao recurso do Centro Hospitalar de Lisboa, Central, E.P.E. por entender que:
- não houve violação das regras relativas ao ónus da prova uma vez que, no tocante à lesão do nervo pudendo, o Tribunal valorou toda a prova recolhida – quer ela fosse testemunhal quer decorresse dos relatórios médicos juntos – que o convenceu de que essa lesão decorreu da intervenção cirúrgica para a extracção da glândula de Bartollin.
- Não sendo o corte (ou lesão) do nervo pudendo, como a sentença considerou, uma decorrência normal no «padrão de actuação que estes deviam e podiam seguir para efectuar a simples exerese bilateral das glândulas, de Bartholin», ter-se-á de reputar de ilícita e culposa a actuação dos médicos visto ter sido a omissão das regras técnicas, de prudência comum e do dever geral de cuidado, isto é, a violação das «leges artis», a determinar a lesão do nervo pudendo da A. numa intervenção considerada «simples». A “conclusão de que a lesão foi causada pela violação do dever de cuidado, poderia ser afastada se tivessem sido invocados e provados factos demonstrativos de que a lesão do nervo pudendo da A. era um dos riscos comuns na extracção da glândula de Bartholin. O que não ocorreu.”
- “Face ao exposto, entendendo verificados os vários pressupostos da obrigação de indemnizar, como a sentença bem considerou, e porque os factos em que se fundamentam as questões suscitadas pela Recorrente, relativas às indemnizações fixadas equitativamente, foram já devidamente consideradas pelo Tribunal nos termos dos art°s 566°, n° 3 e 496°, n° 3 do c.c., somos de parecer que o recurso não deverá merecer provimento.”


FUNDAMENTAÇÃO


I. MATÉRIA DE FACTO
A decisão recorrida julgou provados os seguintes factos:
A) A Autora é utente do Serviço Nacional de Saúde, sendo a beneficiária nº ……… da Segurança Social Portuguesa;
B) A A. tem utilizado os serviços da R. desde Dezembro de 1993 onde, desde 11.5.1994, efectua consultas no serviço de ginecologia da Maternidade Dr. Alfredo da Costa;
C) Em 9.12.1993 foi diagnosticada à A. nos serviços de urgência da Maternidade Dr. Alfredo da Costa uma Bartholinite à esquerda, que constitui uma patologia própria do foro ginecológico;
D) Após ter sido diagnosticada Bartholinite à esquerda, a terapêutica indicada e realizada consistiu na drenagem da zona infectada da glândula de Bartholin à esquerda e lavagem com água oxigenada e soluto de dakin;
E) Após cada drenagem, a glândula de Bartholin à esquerda da A. infectava e inchava, o que lhe causava dores insuportáveis e tomava necessária nova drenagem, bem como a administração de mais analgésicos;
F) No início de 1995, já após terem sido realizadas sete drenagens, foi proposto à A., durante uma consulta de ginecologia nos serviços da Ré, a realização de uma intervenção cirúrgica;
G) Em 19.5.1995, a A. foi internada no serviço de ginecologia da R., de onde saiu no mesmo dia, para passar o fim-de-semana em casa, tendo, em 21.5.1995, sido novamente internada;
H) Em 22.5.1995, a A. foi operada, tendo sido submetida a uma anestesia geral;
I) A intervenção cirúrgica referida em H) foi executada pela Dra. B…………, auxiliada pelas Dr.ªs D………… e C…………, tendo, ainda, intervido na mesma, como anestesista, o Dr. F…………;
J) Na intervenção cirúrgica de 22.5.1995 foram extraídas à A. ambas as glândulas de Bartholin, a esquerda e a direita;
K) A A. tomou conhecimento da ablação do seu nervo pudendo esquerdo através de exames que realizou em clínica privada;
L) Em 12.10.1999, pelo presidente da Junta Médica foi subscrito o “Atestado Médico de Incapacidade Multiuso”, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido e, no qual se atesta, designadamente que a A. “apresenta deficiências, conforme quadro seguinte, que de acordo com a Tabela nacional de incapacidades aprovada pelo DL n° 341/93, de 30/09, lhe conferem uma incapacidade permanente global de 73% (setenta e três por cento) desde 1995”;
M) A A. encontra-se em situação de invalidez para toda e qualquer profissão;
N) A A., numa consulta pré-operatória foi informada sobre o tipo de cirurgia a que ia ser submetida - simples exerese bilateral das glândulas de Bartholin -, tendo assinado declaração de como se considerava devidamente informada sobre a mesma e os seus riscos (resposta ao facto 1° da BI);
O) Após o que, poderia voltar à sua vida normal, sem necessidade de mais drenagens (resposta ao facto 2° da BI);
P) A operação referida em H) tinha por fim exclusivo a extracção das glândulas Bartholin à esquerda e à direita (resposta ao facto 3° da BI);
Q) Após ter recebido alta de internamento, a A. queixou-se com dores, associadas a uma insensibilidade na zona do corpo operada, que inchou (resposta ao facto 4° da BI);
R) Em 28.6.1995 a Autora foi observada nos serviços da Ré, pelo coordenador dos serviços de ginecologia, Dr. G…………, que a medicou com um creme vaginal e Ananase (anti-inflamatório) (resposta ao facto 5° da BI);
S) Tais dores até hoje não passaram (resposta ao facto 6° da BI);
T) A A. continuou a frequentar a consulta de ginecologia da Ré (resposta ao facto 7° da BI);
U) Na intervenção referida em H) foi parcialmente lesado o nervo pudendo, do lado esquerdo (resposta ao facto 8° da BI);
V) Da qual resultaram as referidas dores, perda de sensibilidade e inchaço na zona vaginal (resposta ao facto 9° da BI);
W) O corte do nervo pudendo esquerdo não era a terapêutica indicada para o tratamento da patologia do foro ginecológico que a Autora apresentava antes da operação (resposta ao facto 10° da BI);
X) Antes da operação realizada em 22.5.1995, a Autora exercia uma actividade remunerada como empregada doméstica (resposta ao facto 11º da BI);
Y) Além de assegurar a lide doméstica, a A. tomava conta de uma criança (resposta ao facto 12° da BI);
Z) Após a operação supra referida, a A. não mais desempenhou actividade remunerada alguma (resposta ao facto 15° da BI);
AA) A A. se encontrava incapacitada para tal (resposta ao facto 16° da BI);
BB) A incapacidade referida na Alínea L) resultou da ablação do nervo pudendo esquerdo da A. (resposta ao facto 17° da BI);
CC) Depois da operação a A. viu-se forçada a contratar uma empregada doméstica para a ajudar nas tarefas em casa (resposta ao facto 18° da BI);
DD) O seu quadro clínico incapacitante não se alterou (resposta ao facto 22° da BI);
EE) Para apurar as causas do seu estado de saúde na sequência da intervenção cirúrgica de 22.5.1995, a A. teve de recorrer à medicina privada (resposta ao facto 23° da BI);
FF) A A. teve de suportar o custo de exames, tratamentos, medicamentos, clínicas, hospitais e honorários médicos (resposta ao facto 24° da BI);
GG) A A. necessitará para o resto da sua vida de assistência médica e de efectuar as despesas correspondentes (resposta ao facto 25° da BI);
HH) A A. apresenta actualmente perturbações esfincterianas e genitais, nomeadamente, incontinência ou retenção urinária e fecal (resposta ao facto 26° da BI);
II) A A. sofre de nevralgias e radiculalgias persistentes (resposta ao facto 27° da BI);
JJ. Para além de se encontrar num quadro depressivo grave com componente ansiosa e acentuada expressão somática do mesmo (resposta ao facto 28° da BI);
KK. A A. sofre de diminuição da sensibilidade vaginal por lesão parcial intensa do nervo pudendo esquerdo (resposta ao facto 29° da BI);
LL. Do ponto de vista técnico e conhecimentos actuais da medicina, não há, até ao momento, qualquer tipo de intervenção que possa ser realizada e que afaste o quadro clínico evidenciado actualmente pela A. (resposta ao facto 30º da BI);
MM. O recurso a analgésicos permite aliviar as dores de que a A. padece (resposta ao facto 31° da BI);
NN. A A. ficou com sensação de anestesia vulvo-vaginal e perineal do lado esquerdo (resposta ao facto 32° da BI);
OO. E uma dor com a mesma localização, que se acentua na posição de sentada (resposta ao facto 33° da BI);
PP. A A. tem dificuldades em sentar-se e andar (resposta ao facto 34° da BI);
QQ. Quando está deitada não sente tanto as dores (resposta ao facto 35° da BI);
RR. Sempre que necessita de estar sentada, evita fazer peso sobre o lado esquerdo do corpo (resposta ao facto 36° da BI);
SS. A A. necessita usar 3 a 4 pensos higiénicos por dia, por causa da já referida incontinência urinária (resposta ao facto 37° da BI);
TT. A A. sofre de dores na zona vaginal e mau estar constante (resposta ao facto 38° da BI);
UU. A A. se viu obrigada a aprender novas técnicas de higiene (resposta ao facto 40° da BI);
VV. A A. não pode usar cinta e o uso de meias causa-lhe mal estar (resposta ao facto 41° da BI);
WW. A A. tem dificuldades em dormir, adormecendo e acordando várias vezes durante a noite (resposta ao facto 42° da BI);
XX) A A. pode ter relações sexuais mas com muita dificuldade (resposta ao facto 43º da BI);
YY) Por várias vezes a A. equacionou o suicídio (resposta ao facto 44° da BI)
ZZ) A A. anda com medicação regular constante (resposta ao facto 45° da BI)
AAA) A A. sofre profundo desgosto e frustração pela situação em que vive, tendo-se tornado numa pessoa profundamente triste (resposta ao facto 47° da BI);
BBB) O facto de não ter relações sexuais e, nessa parte, ter visto a sua vida conjugal terminada, faz com que se sinta uma pessoa diferente das demais, diminuída como mulher (resposta ao facto 48° da BI);
CCC) A Autora passou a inibir-se no seu relacionamento com os outros (resposta ao facto 49° da BI);
DDD) Deixando mesmo de, com regularidade visitar família e amigos, ir à praia ou mesmo ao cinema e ao teatro (resposta ao facto 50º da BI).

Consideram-se como não provados os seguintes factos:
1. Na consulta referida em F), a A. foi informada que a intervenção cirúrgica proposta consistia numa simples extracção da glândula de Bartholin à esquerda (resposta ao facto 1° da BI);
2. Na intervenção referida em H) foi cortado à A. o nervo pudendo esquerdo (resposta ao facto 8° da BI);
3. Trabalhando, em regra, 8 (oito) horas por dia (resposta ao facto 13° da BI);
4. Da referida actividade remunerada, a A. retirava um rendimento médio mensal de cerca de Esc. 60.000$00 (resposta ao facto 14° da BI);
5. [Após a operação a A viu-se forçada a contratar uma empregada doméstica …] Bem para a acompanhar na ida a consultas e outros tratamentos médicos (resposta ao facto 19° da BI);
6. Desde o mês de Junho de 1995 até ao mês de Março de 2000, a A. pagou a uma empregada doméstica a importância total de Esc. 4 965 800$00 (resposta ao facto 20° da BI);
7. A A. continua a necessitar de ajuda permanente (resposta ao facto 21° da BI);
8. O seu quadro clínico incapacitante não voltará a alterar-se até ao fim da sua vida (resposta ao facto 22° da BI);
9. Tendo dispendido em exames, tratamentos, medicamentos, clínicas, hospitais e honorários médicos, deslocações, certidões e registos postais, desde tal data até 27.4.2000, a importância de Esc. 513 979$00 (resposta ao facto 24° da BI);
10. Sendo que, apenas o recurso a analgésicos potentes permitem aliviar as dores intensas de que a Autora padece (resposta ao facto 31° da BI);
11. A A. sofre de dores intensas na zona vaginal (resposta ao facto 38° da BI);
12. A Autora deixou de poder fazer a sua higiene pessoal (resposta ao facto 39° da BI);
13. Tendo sido obrigada a aprender novas técnicas de higiene ensinadas por enfermeiras (resposta ao facto 40° da BI);
14. A A. não mais pôde ter relações sexuais (resposta ao facto 43° da BI);
15. [A A. anda com medicação regular constante], situação que se manterá para o resto da sua vida (resposta ao facto 45° da BI).


II. O DIREITO.
A Autora intentou, no TAC de Lisboa, contra a Maternidade Dr. Alfredo da Costa - mais tarde transformada em Centro Hospitalar de Lisboa Central, E.P.E - e alguns dos seus médicos acção para efectivação de responsabilidade civil pedindo a sua condenação no pagamento de uma indemnização que a ressarcisse dos danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos durante e após o acto cirúrgico que teve lugar naquele estabelecimento de saúde resultantes da omissão e/ou da deficiência dos procedimentos que deveriam ter sido adoptados naquele acto e das consequências que se lhe seguiram.
Pediu, assim, a condenação dos RR no pagamento de uma quantia que a indemnizasse de todos aqueles danos, assim discriminados:
1. - 3.600.000$00 [€ 17.956,72], pela perda de rendimentos laborais desde 22.5.1995 até à propositura da presente acção;
2. 4.965.800$00 [€ 24.769,31], a título de reembolso de despesas com empregada doméstica, suportadas desde Junho de 1995 até Março de 2000;
3. 513.979$00 [€ 2.563,72], a título de reembolso de despesas médicas, medicamentos, deslocações, certidões e registos postais, suportados desde 22.5.1995 até à propositura da presente acção;
4. 11.500.000$00 [€ 57.361,76], pelo dano patrimonial futuro decorrente da sua incapacidade física permanente;
5. 50.000.000$00 [€ 249.398,96], por danos não patrimoniais sofridos até à presente data, que incluem a lesão específica dos direitos de personalidade - direito à integridade física e à saúde;
6. Despesas médicas e com empregada doméstica a efectuar no futuro e despesas e danos de natureza não patrimonial que irá sofrer no futuro, a liquidar em execução de sentença.

Ao que acrescia as devidas correcções monetárias e os juros legais.

A Maternidade Alfredo da Costa contestou para dizer que a lesão do nervo pudendo que, alegadamente, provocou os referidos danos não ocorreu no mencionado acto cirúrgico - como se vê do facto da mesma só ter sido revelada quatro anos depois dessa intervenção – e que os padecimentos de que a Autora se queixa não foram provocados pelos seus profissionais mas pelos seus partos, pela obstipação crónica ou pela intervenção cirúrgica às hemorróidas a que se submeteu. Acrescia que a Autora sofre de depressão profunda há 12 anos (8 anos antes da cirurgia), que é a principal causa da sua incapacidade para o trabalho, sendo de admitir que algumas das queixas físicas que apresenta constituam manifestações somáticas dessa doença ou resultem de outras doenças da Autora e que nada têm a ver com aquele acto médico. Em suma, os danos de que a Autora se queixa não foram causados pela forma médica e cirúrgica como foi tratada pela Ré, sendo antes o resultado dos seus antecedentes clínicos.

Na audiência preliminar as pessoas singulares demandadas foram declaradas parte ilegítima.

A acção foi julgada parcialmente procedente e a Maternidade Dr. Alfredo da Costa foi condenada a pagar à Autoraa quantia € 172 000,00, acrescida de juros de mora desde a data da citação até integral pagamento, e as quantias que se vierem a liquidar em execução de sentença ou em incidente de liquidação a deduzir, correspondentes aos danos patrimoniais e aos danos morais futuros.”
Decisão que foi fundamentada no facto do nervo pudendo ter sido lesado durante a intervenção cirúrgica a que a Autora se submeteu na Ré e dessa lesão ser a fonte dos padecimentos da Autora, da terapêutica usada naquela cirurgia não ser a “indicada para o tratamento da patologia do foro ginecológico que a A. apresentava antes da operação” e dessa lesão só ter ocorrido porque “os médicos que a efectuaram se desviaram do padrão de actuação que deviam e podiam seguir para efectuar a simples exerese bilateral das glândulas Bartholin.” A actuação dos médicos fora, assim, ilícita e passível de um juízo de reprovação à luz do critério previsto no n.º 2 do artigo 487° do CC, “por violadora das Ieges artis, que lhe impunham o cuidado de não lesar o nervo pudendo da A., pelo que o seu comportamento ficou abaixo do standard técnico/científico que era exigível a um ginecologista cirurgião médio.
Sendo assim, e sendo que a referida lesão era a causadora das “dores, perda de sensibilidade e inchaço na zona vaginal, (mais) incontinência urinária e fecal, deficiências que foram determinantes para lhe ser reconhecida uma incapacidade permanente global de 73% para que se já não trabalhava, não pudesse voltar a fazê-lo, para ter que efectuar despesas com consultas, tratamentos, etc.” concluiu que a mesma era a causa adequada dos danos provados em Tribunal. Daí a condenação da Maternidade Alfredo da Costa.

A Ré insurge-se contra essa decisão por duas ordens de razões; por um lado, porque considera que errou no julgamento da matéria de facto, por outro, porque fez incorrecta apreciação jurídica dos factos provados.

Vejamos, pois, começando-se pela crítica feita ao julgamento da matéria de facto e pelo desejo de ver alterado esse julgamento.

1. O Tribunal ad quem deve alterar a decisão proferida no Tribunal recorrido sobre a matéria de facto “se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.” Podendo além disso:
“a) Ordenar a renovação da produção da prova quando houver dúvidas sérias sobre a credibilidade do depoente ou sobre o sentido do seu depoimento;
b) Ordenar, em caso de dúvida fundada sobre a prova realizada, a produção de novos meios de prova;
c) Anular a decisão proferida na 1.ª instância, quando, não constando do processo todos os elementos que, nos termos do número anterior, permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto, ou quando considere indispensável a ampliação desta;
d) Determinar que, não estando devidamente fundamentada a decisão proferida sobre algum facto essencial para o julgamento da causa, o tribunal de 1.ª instância a fundamente, tendo em conta os depoimentos gravados ou registados.” (art.º 662.º do CPC (Que substituiu o que se determinava no art.º 712.º mas que manteve, no essencial, o que nele se prescrevia.))

O que significa que a alteração do julgamento da matéria de facto é, por via de regra, excepcional e que ela só pode ocorrer nas circunstâncias tipificadas no transcrito normativo. Nesta conformidade, atenta a alegação do Recorrente, a interrogação a que temos de responder é a de saber se ocorre algum dos requisitos acima identificados, isto é, se os factos julgados provados, a prova produzida ou um documento superveniente impõem decisão diversa da que foi considerada no Tribunal a quo ou, por outro lado, se se justifica (1) ordenar a repetição do julgamento por haver dúvidas sérias sobre a credibilidade de um depoente ou sobre o sentido do seu depoimento, (2) ordenar a produção de novos meios de prova ou (3) ordenar a repetição do julgamento por considerar que a decisão sobre a matéria de facto é deficiente, obscura ou contraditória ou por considerar indispensável a sua ampliação.

2. O Centro Hospitalar de Lisboa Central, E.P.E ataca a decisão sobre a matéria de facto de três diferentes ângulos; por um lado, por ter julgado provado factos que entre si se contradiziam, por outro, por ter julgado provado factos sem dispor dos indispensáveis meios probatórios para o efeito e, finalmente, por ter retirado dos factos provados consequências que estes não consentiam.
Analisemos, pois, cada uma dessas críticas.

2. 1. No tocante à primeira daquelas censuras o Recorrente começou por referir que o julgamento da matéria de facto era contraditório visto, por um lado, ter considerado não provado que “na intervenção referida em H) foi cortado o nervo pudendo esquerdo” ( Vd. o elenco dos factos considerados não provados.) e, por outro, ter julgado provado que “na intervenção referida em H) foi parcialmente lesado o nervo pudendo, do lado esquerdo.” (O quesito 8.º, de que resultou a al.ª U do probatório, tinha o seguinte teor: “Na intervenção referida em H) foi cortado o nervo pudendo esquerdo?”. A que se respondeu “Provado que na intervenção referida em H) foi parcialmente lesado o nervo pudendo esquerdo.”) Ao que acrescia que o Tribunal, contra a perícia de ginecologia (fls.603/604) (Onde se afirmava que "Não disponho de informação no processo que me permita afirmar que o nervo pudendo esquerdo foi cortado à examinada na cirurgia em questão.") e sem qualquer prova válida, inferiu que a lesão do mencionado nervo ocorrera naquele acto.
Ou seja, a contradição consistia em afirmar que se não provara que o nervo pudendo foi cortado naquele acto e, simultaneamente, julgar provado que o mesmo tinha sido lesado nessa operação. Contradição que era incompreensível uma vez que o Tribunal dispunha de perícia elaborada por uma médica especialista onde essa questão fora definitivamente resolvida ao nele se afirmar que, atenta a informação existente no processo, não era possível “afirmar que o nervo pudendo foi cortado à examinanda na cirurgia em questão.”.

Mas essa crítica é totalmente improcedente.
Por um lado, porque a mesma só poderia ser acolhida se existissem nos autos elementos de prova que demonstrassem com toda a evidência a tese do Recorrente, isto é, de que o nervo pudendo não foi lesado durante a referida cirurgia e esses elementos não existem.
Por outro, porque Tribunal a quo fundou a sua convicção não só nesse relatório mas também nos vários relatórios médicos juntos aos autos e nos depoimentos das testemunhas ouvidas, algumas delas também médicas.
Finalmente, o ter-se julgado não provado que o nervo pudendo foi cortado na intervenção cirúrgica não significa que o mesmo não possa ter sido lesado nesse acto, visto lesão e corte serem conceitos com diferente significado e, por isso, ser possível que essa lesão possa ter decorrido de outras razões que não o seu corte.

2. 2. O Recorrente sustenta, ainda, que também ocorria contradição julgar-se provado que, antes da operação, a Autora exercia a actividade remunerada de empregada doméstica e, ao mesmo tempo, ter-se considerado assente que a mesma não trabalhava na data daquele acto cirúrgico.
Todavia, essa contradição é aparente uma vez que é perfeitamente compatível considerar-se que “antes da operação realizada em 22/05/1995 a Autora exercia uma actividade remunerada como empregada doméstica” (al.ª X do probatório) e, simultaneamente, que ela nessa exacta data não estava a trabalhar. E isto porque é perfeitamente compatível afirmar-se que, durante um certo período, uma determinada pessoa teve uma profissão e que a exerceu de forma remunerada e, do mesmo passo, afirmar-se que ela numa determinada data desse período não estava a trabalhar. De resto, acontece com frequência ter-se um trabalho regular mas, em certos períodos, não se trabalhar (por doença, por se estar desempregado, etc.) como o inverso também ocorre.
Acresce que a afirmação “não se provou que a Autora trabalhava na data da operação” não foi inserida em sede de matéria de facto tendo, apenas, sido referida quando se calculava o montante indemnizatório (pg. 811) pelo que as apontadas afirmações não se podem colocar no mesmo plano já que uma coisa é a factualidade levada ao probatório e outra as afirmações que vão sendo feitas ao longo do discurso jurídico as quais, por essa razão, podem ser interpretadas como sendo conclusões retiradas daqueles factos.

2. 3. Por fim, o Recorrente entende que a sentença não podia julgar provado que a Autora se encontrava num quadro depressivo grave – resposta ao quesito 28.º (O quesito 8.º tinha o seguinte teor: “Na intervenção referida em H) foi cortado o nervo pudendo esquerdo?”. A que se respondeu “Provado que na intervenção referida em H) foi parcialmente lesado o nervo pudendo esquerdo.”
E o quesito 28.º foi assim redigido.”Para além de se encontrar num quadro depressivo grave com componente ansiosa e acentuada expressão somática do mesmo?” Tendo a sua resposta sido “Provado) - e isto porque o relatório pericial de psiquiatria referia que ela apresentava apenas um quadro depressivo moderado com moderada repercussão na autonomia pessoal e profissional e que esse quadro já se tinha manifestado antes da operação.
Mas a verdade é que – tanto aqui como em todos os outros casos em que a matéria de facto vem impugnada - o Tribunal a quo decidiu não só em função dos elementos que o Recorrente invoca mas de todos os elementos que teve ao seu alcance, maxime os diversos relatórios médicos que foram juntos e as testemunhas arroladas de que, para o presente, se podem destacar ………, ………, ……… e ………, testemunhos esses que este Supremo não tem uma vez que não houve gravação da prova testemunhal. Daí que, ao invés do Recorrente parece supor, os elementos de prova que ele invoca para fundamentar a alteração da matéria de facto nunca poderiam justificar o deferimento da sua pretensão.

Em conclusão: o Recorrente fundamenta toda a sua alegação num ou noutro dos muitos documentos que existem nos autos, pretendendo que o que eles atestam prevaleça sobre todos os outros elementos de prova, o que não faz sentido já que as respostas aos quesitos resultaram (como se vê da forma como a resposta aos quesitos foi justificada) do Tribunal a quo ter ponderado e valorizado do modo que entendeu mais adequado de todos os elementos de prova de que dispôs, julgando em função de todos eles.
Sendo assim – isto é, inexistindo nos autos documentos que demonstrem com toda a evidência as pretensões do Recorrente e que, por isso, fossem capazes de, por si só, justificarem a alteração do julgamento daquela matéria e deles não constando os depoimentos das testemunhas – e não havendo razões que possam fundamentar a repetição do julgamento ou que se proceda à produção de novos meios de prova é forçoso concluir pela impossibilidade de se proceder à reapreciação da matéria de facto na forma pretendida pela Recorrente.

Daí que, nesta parte, o recurso improceda.

3. Finalmente, o Recorrente sustenta que a sentença retirou erradas ilações dos factos julgados provados e inverteu as regras do ónus da prova uma vez que formulou diversas conclusões sem que tivessem sido provados os factos de onde as mesmas pudessem decorrer – designadamente, sem que se demonstrassem quais as concretas condutas médicas que violaram as legis artis e quais os factos demonstrativos da culpa ou do nexo de causalidade entre tais condutas e os danos peticionados.
Mas este erro, a ter ocorrido, já não tem a ver com um eventual erro no julgamento da matéria de facto mas, apenas e tão só, com as consequências jurídicas que se retiram dos factos julgados provados e/ou com a eventual insuficiência da alegação inicial, isto é, com o julgamento do mérito.
Por isso, o mesmo será apreciado de seguida.

4. A Autora alegou, em síntese, que, desde 1993, vem utilizando os serviços de ginecologia da Maternidade Alfredo da Costa e que na sequência dos diversos tratamentos que aí lhe ministraram, sem resultados significativos, foi, em 22/05/95, submetida a uma cirurgia onde lhe foram extraídas as glândulas de Barthollin e cortado o nervo pudendo, corte este que não era a terapêutica indicada para a doença de que padecia. Por essa razão encontra-se numa situação de total invalidez o que a impede de desempenhar qualquer actividade profissional sendo, até, incapaz de assegurar as próprias lides domésticas, situação que é irreversível, e sofre de perturbações esfincterianas e genitais – com incontinência ou retenção urinária e fecal – de diminuição da sensibilidade vaginal, de nevralgias e radiculalgias, de um quadro depressivo grave, sofrimentos que só são minorados através da ingestão de potentes analgésicos. O que lhe provoca não só dores físicas e sofrimento psicológico mas também significativas perdas económicas.

Realizado o julgamento o Tribunal a quo, no essencial, julgou provada essa alegação já que deu como assente que os serviços de ginecologia da R., diagnosticaram, em 9.12.1993, à A. uma Bartholinite cuja terapêutica consistia na drenagem da zona infectada da glândula Bartholin e lavagem com água oxigenada e soluto de dakin e que, não tendo ela resultado - uma vez que, após cada drenagem, aquela glândula voltava a infectar e a inchar causando dores insuportáveis e implicando uma nova drenagem - os serviços médicos da Ré propuseram à Autora a realização de uma intervenção cirúrgica - exerese ou extracção bilateral das glândulas Bartholin – dizendo-lhe que após a mesma poderia voltar à sua vida normal, sem necessidade de novas drenagens.
Deste modo, a Autora, 22.5.1995, submeteu-se a uma cirurgia, com anestesia geral, onde lhe extraíram as glândulas Bartholin e onde foi parcialmente lesado o nervo pudendo do lado esquerdo, lesão de que a Autora só tomou conhecimento através de exames que realizou, mais tarde, numa clínica privada. Tendo sido julgado provado que o corte daquele nervo não era a terapêutica indicada para o tratamento da patologia que a Autora apresentava.

4. 1. Perante esta factualidade a sentença considerou que, apesar de não terem sido “alegados e muito menos provados os actos/procedimentos/métodos empregues, passo a passo, pelos médicos que efectuaram a cirurgia, no decurso da mesma, o Tribunal apenas pode inferir que se o corte do nervo pudendo não era a terapêutica indicada para o tratamento da patologia do foro ginecológico que a A. apresentava antes da operação e a lesão desse nervo, ainda assim, ocorreu na operação foi porque os médicos que a efectuaram se desviaram do padrão de actuação que deviam e podiam seguir para efectuar a simples exerese bilateral das glândulas Bartholin. Pelo que a sua actuação é ilícita e culposa, por violadora das Ieges artis, que lhe impunham o cuidado de não lesar o nervo pudendo da A., pelo que o seu comportamento ficou abaixo do standard técnico/científico que era exigível a um ginecologista cirurgião médio e que, por consequência a sua conduta é passível de um juízo de reprovação por parte do direito, à luz do critério previsto no n.º 2 do artigo 487° do CC.” Qualificou, assim, a conduta dos médicos como ilícita e culposa e concluiu que ela foi a causa directa e necessária dos padecimentos da Autora.
Encontravam-se, pois, provados os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual o que conduziu à condenação do Réu no pagamento parcial da pedida indemnização.

O Centro Hospitalar de Lisboa Central, E.P.E rejeita este julgamento não só porque a Autora não alegou quais os actos/procedimentos/métodos empregues, passo a passo, pelos médicos que efectuaram a cirurgia e, muito menos, provou que eles fossem inadequados pelo que era errado afirmar que eles tinham praticado actos ilícitos e culposos. Acrescia que não se provara provava que tivessem sido eles a causar os peticionados danos.
A sentença tinha, assim, errado ao considerar verificados os pressupostos da responsabilidade civil.
Vejamos se litiga com razão.

5. É pacífico que nas acções de responsabilidade civil regidas pelo disposto no DL 48.051, de 21/11/67, - como é o caso – o Réu é responsável pelo pagamento da pedida indemnização se for demonstrado que os seus órgãos ou agentes praticaram, no exercício das suas funções e por causa desse exercício, actos de gestão ilícitos e culposos ou omitiram ilícita e culposamente actos que deviam ter praticado e que foi essa conduta ou essa omissão a determinar os danos peticionados (vd. seu art.º 2.º/1 do e art.ºs 483.º e seg.s do CC) (Vd., a título meramente exemplificativo, Acórdãos de 16/3/95 (rec. 36.993), de 21/3/96 (rec. 35.909), de 30/10/96 (rec. 35.412), de 13/10/98 (rec. 43.138), de 27/6/01 (rec. 46.977), de 26/9/02 (rec. 487/02, in AD n.º 492, pg. 1.567) de 6/11/02 (rec. 1.331/02), de 18/12/02 (rec. 1.683/02), de 10/03/04 (rec. 1.393/03) e de 7/4/05 (rec. 856/04).). O que quer dizer que o Centro Hospitalar de Lisboa Central, E.P.E. será responsável pelo pagamento da indemnização pedida pela Autora se da factualidade apurada for possível concluir que esta logrou demonstrar os factos constitutivos do direito reclamado (art.º 342.º/1 do CC), isto é, que os médicos da Maternidade violaram culposa e ilicitamente os seus deveres ou as regras que deveriam observar na cirurgia em causa e que foi esse comportamento a causar os danos peticionados.

O que nos obriga a averiguar se foram alegados e provados os factos integradores da ilicitude e da culpa, aqui consubstanciados na violação das leges artis por parte dos médicos que intervieram na cirurgia e se tais actos (ou omissões) foram os directos causadores dos peticionados danos. Visto só essa alegação e prova poder conduzir à procedência da acção e à condenação do Réu.

Nesse labor a primeira questão a resolver é a de saber o que é se deve entender por leges artis e se estas foram, efectivamente, violadas pelos médicos intervenientes na operação aqui em causa, ou seja, e dito de forma diferente, apurar em que consistia a praxis exigível àqueles profissionais no referido acto cirúrgico e se a mesma foi respeitada.

O Acórdão deste Tribunal de 13/03/2012 (rec. 477/11) respondeu a essa interrogação dizendo que “As leges artis são regras a seguir pelo corpo médico no exercício da medicina. Umas são normas escritas, contidas em lei do Estado (Vide, por ex.o, o art. 13º do DL nº 282/77, de 5/07 (Estatuto do Médico)) e/ou em instrumentos de auto-regulação (vejam-se as prescrições do Código Deontológico da Ordem dos Médicos e as que estão vertidas em guias de boas práticas ou protocolos de actuação). Outras, na sua maioria, são regras não escritas, são métodos e procedimentos, comprovados pela ciência médica, que dão corpo a standards contextualizados de actuação, aplicáveis aos diferentes casos clínicos, por serem considerados pela comunidade científica, como os mais adequados e eficazes. (Cfr., a propósito, Sónia Fidalgo, “Responsabilidade Penal Por Negligência No Exercício da Medicina Em Equipa”, p. 74 e segs.)”. Acrescentando que no percurso que nos conduzirá a concluir se houve (ou não) violação dessas leges importava apurar se os profissionais que as deviam respeitar se desviaram do padrão de actuação que podiam, e deviam, ter seguido, e que tal terminava com a formulação de “um juízo póstumo de avaliação no qual, para ser o mais objectivo possível, deve o tribunal, primeiro, postar-se na situação “primordial”, no estado inicial, reconstituindo o caso clínico, …. e, segundo, despindo-se do conhecimento da posterior evolução real do caso, comparar o que a médica fez com o que os ditames coevos das leges artis lhe determinavam que fizesse.”

6. No caso, apesar do requerimento inicial não descrever com minúcia os procedimentos adoptados na cirurgia nem indicar de que forma é que eles, em concreto, determinaram os padecimentos da Autora, a verdade é que nele se alegaram, com suficiência, factos susceptíveis de nos permitirem apurar se os profissionais do Réu violaram, ou não, as regras ou procedimentos que deviam observar. E isto porque a Autora depois de historiar a forma como a sua patologia foi sendo tratada pelos serviços do Réu e de descrever as razões que levaram o seu corpo clínico a propor-lhe a intervenção cirúrgica, informando-a de que ela, após a operação, retomaria a sua vida normal alegou que, nesse acto, “os RR cortaram o nervo pudendo esquerdo da Autora”, que esse corte não constituía a terapêutica indicada para o tratamento da sua patologia e a sentença julgou provado três factos essenciais na economia desta acção; por um lado, que o mencionado nervo foi parcialmente lesado nessa operação, por outro, que o corte desse nervo não era a terapêutica indicada para o tratamento da patologia do foro ginecológico que a Autora apresentava antes da operação e, finalmente, que daí resultaram os padecimentos de que ela se queixa (vd. pontos D a F, N e O e U a W).
Deste modo, e apesar não virem descritos cada um dos passos dados nessa cirurgia nem se ter apontado aos médicos que nela intervieram a violação específica de qualquer norma técnica escrita ou de qualquer procedimento que os mesmos adoptaram, certo é que se alegou que o corte do nervo pudendo não era o método adequado à cura daquela patologia e que eles, por erro injustificado, causaram lesões ao mencionado nervo e que foi esse erro a causa directa dos peticionados danos.
Alegação que a Autora, no fundamental, logrou provar, como se vê pelos factos que constam das apontadas alíneas.
Tanto basta para que se conclua que a petição inicial não só não estava ferida por nenhuma falha alegatória relevante como que o ónus da prova foi cumprido sem violação do disposto no art.º 342.º do CC.

7. O Recorrente censura, ainda, a sentença por esta ter afirmado que a actuação dos médicos que operaram a Autoraé ilícita e culposa, por violadora das leges artis, que lhes impunha o cuidado de não lesar o nervo pudendo da A., pelo que o seu comportamento ficou abaixo do standard técnico/científico que era exigível a um ginecologista cirurgião médio e que, por consequência a sua conduta é passível de um juízo de reprovação por parte do direito, à luz do critério previsto no n.º 2 do artigo 487.° do CC.” Censura que parte da convicção de que a Autora nada tinha alegado a esse propósito e de que, por isso, a sentença não podia ter concluído como concluiu.
Mas, como decorre do anteriormente escrito, falece razão ao Recorrente.
Com efeito, e como se viu, a Autora alegou que os médicos lhe cortaram o nervo pudendo, que essa não era a terapêutica indicada à cura da sua patologia, que a informaram de que ficaria curada através da operação e que tal não tinha acontecido em consequência do corte daquele nervo o qual era a causa dos seus padecimentos. Se assim é e se aqueles clínicos ao alertarem a Autora dos riscos do acto que iam realizar também a informaram de que, após a sua realização, a mesma poderia retomar a vida normal isto significa que, a não existirem ocorrências improváveis e inesperadas, os médicos sanariam a patologia da Autora e esta poderia regressar ao seu padrão de vida habitual. Ora, a verdade é que tal não aconteceu não tendo a Ré demonstrado que algo de anormal e insuperável ocorreu e que foi essa imprevisível anormalidade a provocar os peticionados danos. Deste modo, ter-se-á de concluir que aqueles clínicos, errada e injustificadamente, ministraram à Autora um tratamento desadequado à resolução das suas queixas desviando-se do comportamento que deveriam ter tido e que era exigível que tivessem, isto é, violaram as leges artis. O que nos permite afirmar que os actos praticados por aqueles clínicos foram ilícitos visto assim se considerarem «os actos jurídicos que violem as normas legais e regulamentares ou os princípios gerais aplicáveis e os actos materiais que infrinjam estas normas e princípios ou ainda as regras de ordem técnica e de prudência comum que devam ser tidas em consideração» (art.º 6.º do DL 48.051).
E foram também culposos uma vez que, nas concretas circunstâncias em que se encontravam e com os conhecimentos que era suposto terem, os referidos clínicos podiam, e deviam, fazer melhor evitando que a Autora tivesse de suportar os danos aqui em causa. Com efeito, pressupondo o juízo de culpa a existência de um comportamento padrão a observar em determinadas circunstâncias sobre o qual se há-de aferir a conduta do agente – aqui enquadrado não só pelas citadas leges artis como pelo comportamento diligente, responsável, ponderado exigível aos médicos – e traduzindo-se esse juízo numa censura à desconformidade entre aquele comportamento que o agente podia e devia ter tido e aquilo que efectivamente realizou, é evidente estarmos perante uma situação que justifica a formulação desse juízo de reprovação, isto é, desse juízo de culpa – vd. por todos Acórdão deste Supremo Tribunal de 23/10/2008 (rec. 947/07).

8. Finalmente, também se encontra provado o nexo de causalidade entre a mencionada lesão e os peticionados danos (vd. factos V, BB, CC, a DDD do probatório) uma vez que, como resulta do anteriormente exposto, se provou que os médicos não agiram como podiam e deviam ter agido como as justificações apresentadas pelo Réu para justificar tais danos – designadamente a depressão de que a Autora sofria, os seus partos ou a cirurgia às hemorróidas – foram consideradas improcedentes.

Resta analisar se a sentença fez correcto julgamento no tocante à fixação do montante indemnizatório.

9. A Autora formulou um pedido de condenação dos RR que incluía o pagamento de montantes que a ressarcissem (1) dos prejuízos decorrentes da perda de rendimentos laborais, (2) das despesas tidas com a empregada que a ajudava nas lides domésticas, (3) das despesas médicas, de medicamentos, deslocações, certidões e registos postais, (4) da perda de rendimento futuro decorrente da sua incapacidade física permanente e (5) dos danos não patrimoniais.
Pedindo ainda o pagamento dos juros devidos e a actualização monetária.

A Maternidade Alfredo da Costa impugnou não só a factualidade articulada como os montantes pedidos, mas sem sucesso uma vez que a sentença, no fundamental, julgou provados aqueles factos e condenou-a no pagamento de parte substancial da quantia peticionada. E, neste recurso, critica sentença não só por ela ter julgado provado tais factos como por tê-la condenado a indemnizar a Autora.
Deste modo, e porque pelas razões já expostas o seu desejo de ver alterada a factualidade que o TAC julgou assente é improcedente, importa analisar se a sentença fez correcto julgamento ao fixar o quadro indemnizatório.
Matéria em que se apreciarão conjuntamente os recursos da Autora – que se centra unicamente na crítica à fixação do montante indemnizatório pelos danos não patrimoniais – e do Centro Hospitalar de Lisboa Central, E.P.E.

10. É sabido que a obrigação de indemnizar importa a reparação de todos os danos sofridos e a reconstituição, na medida do possível, da situação que existiria se o evento que os provocou não tivesse tido lugar e que não sendo possível a reconstituição in natura ou, sendo-o, seja excessivamente onerosa para o devedor, será fixada em dinheiro tendo “como medida a diferença entre a situação patrimonial do lesado, na data mais recente que puder ser atendida pelo Tribunal, e a que existiria nessa data se não existissem danos.” (vd. art.ºs 562.º e 566.º, n.ºs 1 e 2, do CC). Podendo essa indemnização ser fixada com recurso a juízos de equidade quando o seu cálculo não puder ser feito de forma diferente, dentro dos limites do que se tiver por provado (art.º 566.º/3 do CC), tendo-se em conta o grau de culpabilidade do agente, a situação económica do lesado e as demais circunstâncias do caso.

10. 1. Está assente que os serviços de ginecologia da Ré, depois de diagnosticarem a patologia de que a Autora padecia, de iniciarem o respectivo tratamento e de constatarem que o mesmo não resultava, optaram por operá-la tendo nessa operação lesado o nervo pudendo do lado esquerdo. E que em consequência dessa lesão a Autora sofreu dores, perda de sensibilidade e inchaço na zona vaginal, perturbações esfincterianas e genitais, maxime incontinência ou retenção urinária e fecal, nevralgias e radiculalgias persistentes, o que não só a incapacitou definitivamente para o trabalho como ficou com um quadro depressivo grave com componente ansiosa e acentuada expressão somática o que a levou a equacionar o suicídio. Também ficou provado que a Autora, antes da cirurgia, exercia actividade remunerada de empregada doméstica e que após a mesma, atenta a referida incapacidade, não mais voltou a exercer uma actividade remunerada. Situação que não ainda pôde ser revertida por não existir qualquer tipo intervenção que possa ser realizada e possa ter essa consequência. Para além disso provou-se que a Autora, por tais razões, tem profundo desgosto e frustração, passou a inibir-se no seu relacionamento com os outros deixando de visitar família e amigos com regularidade, de ir à praia, ao cinema ou ao teatro, tornou-se uma pessoa profundamente triste e sente-se diminuída como mulher por ter visto a sua vida sexual terminada ou, pelo menos, seriamente afectada.

Tendo em conta esta factualidade que a sentença condenou a Ré no pagamento da quantia € 172 000,00, acrescida de juros de mora, relativos aos danos susceptíveis de serem já contabilizados à qual acresceriam as quantias que se viessem a liquidar em incidente de liquidação a deduzir, correspondentes aos danos patrimoniais e aos danos morais futuros.
Ao fazê-lo raciocinou como se todos os males da Autora tivessem tido a sua origem na intervenção cirúrgica em causa, raciocínio que não pode ser sufragado visto afrontar a factualidade assente no probatório uma vez que dela resulta que a Autora anteriormente a esse acto cirúrgico já sofria da patologia que o determinou e que muitas das queixas que ora descreve – como os inchaços e dores insuportáveis na zona genital (al.ª E) – não eram novas pelo que se tem de considerar que elas não só limitavam a sua capacidade para o trabalho como se reflectiam no seu humor.
Daí que tenham de ser tomadas em conta no cálculo do valor indemnizatório.

10. No tocante à perda de rendimentos decorrentes da incapacidade para exercer uma actividade remunerada a sentença entendeu, por um lado, que não havia razão para separar a fixação da indemnização pelos danos ocorridos até à propositura desta acção da indemnização pelos prejuízos futuros e, por outro, que a Autora não tinha conseguido provar com rigor os montantes em que se traduziram tais danos – designadamente, não tinha conseguido provar que trabalhava 8 horas por dia nem que auferia 60.000$00 por mês – pelo que decidiu fixar a indemnização com base na equidade (art.º 566.º/3 do CC) esclarecendo que essa forma de cálculo impedia que tivesse de proceder à actualização monetária, tal como vinha pedido.
Nesta conformidade, e atendendo a que a Autora tinha 50 anos quando se submeteu à intervenção cirúrgica, que a esperança de vida das mulheres não era inferior a 78 anos, que exercia a actividade de empregada doméstica, que a sua invalidez era definitiva e que o valor médio do salário mínimo nacional entre 1995 e 2000 (ano em que a acção foi proposta) era de 52.850$00, fixou em 75.000 euros a indemnização pelos danos (já decorridos ou futuros) resultantes da sua incapacidade para o trabalho.

Valor que o Recorrente considera exagerado não só por entender que a Autora nada provara a este respeito como também porque ela estava, desde 2009, reformada e já antes da operação não trabalhava como empregada doméstica.

Consideramos acertada a decisão de se recorrer à equidade para cálculo da indemnização devida pelos apontados danos uma vez que, por um lado, sempre haveria que recorrer a esse mecanismo no tocante ao ressarcimento dos danos posteriores a Abril de 2000 (data da propositura da acção) e, por outro, porque a circunstância de não ter sido apurado o montante exacto dos danos já verificados faz prever que a sua prova ainda será mais difícil e bem menos provável num eventual julgamento para liquidação desse montante, atento o decurso do tempo que, entretanto, ocorreu. O que obrigaria, em qualquer caso, a recorrer à equidade na fixação do valor daqueles danos, atenta a certeza da sua ocorrência.
Deste modo, e considerando que (1) a operação ocorreu em Maio de 1995, (2) que nessa data a Autora tinha 50 anos de idade, (3) que a sua vida activa não ultrapassaria os 65 anos e, portanto, que só deverão ser contabilizadas as perdas referentes a esses 15 anos (180 meses), (4) a profissão que exercia, (5) que, de acordo com a informação que consta da Pordata (WWW. pordata.pt), o salário mínimo geral mensal era, em 1995, de 259,4 euros e, em 2010, de 475 euros, (6) que a Autora já sofria da patologia aqui em causa e que tal já a limitava na sua capacidade de ganho e (7) o tempo de vida útil em que poderia exercer essa ou qualquer outra profissão, parece-nos que o valor ressarcitório justo para compensar esta perda é de 54.000 euros (180 meses x 300 euros de média de salário mensal).

10. 1. No tocante aos prejuízos decorrentes de despesas com empregada a situação é semelhante à anterior uma vez que está provado que a Autora, perante a sua incapacidade, se viu forçada a contratar uma empregada para a ajudar na sua lide doméstica mas não conseguiu demonstrar o quantum gasto nessa rubrica. E, uma vez mais, parece-nos acertado o recurso ao disposto no art.º 566.º/3 do CC para a fixação daquele prejuízo. Deste modo, e considerando que o pedido abrangia o período decorrido entre a cirurgia (Maio de 1995) e a propositura desta acção (Abril de 2000), entendemos que a atribuição de 16.000 euros a esta rubrica é manifestamente exagerada.
Com efeito, (1) não se tendo provado que a Autora tivesse ficado incapaz de realizar todas as lides domésticas, (2) que uma coisa é a actividade profissional fora de casa e outra o trabalho doméstico, (3) que, atenta as idades dos seus filhos, a mesma apenas teria de cuidar do seu marido é forçoso concluir que a mesma não teria necessidade de uma empregada a tempo inteiro. Nesta conformidade, e atendendo que estão em causa despesas relativas a 5 anos (isto é, 60 meses) e que é razoável supor que a Autora não gastaria, em média, mais de 100 euros por mês com o pagamento dessa empregada atribui-se uma indemnização de 6.000 euros no tocante a estes danos.

10. 2. Relativamente à fixação das despesas médicas a sentença ponderou que, ainda que a Autora não tivesse “demonstrado que suportou o custo de exames, tratamentos, medicamentos, clínicas, hospitais e honorários de médicos (p FF) dos factos assentes)”, já que para prova dessas despesas tenha apresentado “recibos de consultas de oftalmologia, de odontologia, recibos de compra de bilhetes de passe social, de aquisição de compressas de algodão, de calicidas, de xaropes para a tosse e ou produtos/medicamentos que não têm a ver com a sua situação clínica resultante da lesão do nervo pudendo” certo era que ela teve despesas com medicamentos, clínicas, hospitais e honorários de médicos e que estas têm de ser ressarcidas.
Daí que, muito embora seja justa a censura que o Recorrente faz à Autora por esta ter procurado obter uma indemnização recorrendo a documentação que nada tinha a ver com a operação ora em causa, importa fixar um valor para aquelas despesas. Sendo assim, e sendo o seu quantum não está provado parece-nos razoável não só o recurso à equidade para esse cálculo como o valor de 1.000 euros que foi atribuído pelo que mantemos esse valor.

10. 3. Finalmente, e no que toca aos danos não patrimoniais, importa fixar um valor que indemnize a Autora das dores, perda de sensibilidade e inchaço na zona vaginal e da dificuldade em sentar-se e andar, o que lhe causa mau estar e a impedem de fazer a sua vida normal obrigando-a a usar diariamente pensos para fazer face incontinência urinária e fecal, limitando seriamente a sua actividade sexual, fazendo com que se sinta diminuída como mulher, ao que acresce o facto de saber que do ponto de vista médico inexiste solução que possa resolver os seus problemas. Tudo isso provocou-lhe um quadro depressivo grave com componente ansiosa e acentuada expressão somática que se manifesta na dificuldade que tem em dormir, no profundo desgosto e frustração pela situação em que vive e no ter-se tornado numa pessoa profundamente triste que a inibe no seu relacionamento com os outros e a levou a deixar de visitar família e amigos com regularidade, a ir à praia ou mesmo ao cinema e ao teatro, tendo já equacionado o suicídio.
Recorde-se, no entanto, que o problema do foro ginecológico de que a Autora sofre é antigo (desde, pelo menos, 1993), que já antes tinha feito diversos tratamentos sem resultados aceitáveis e que foi essa ausência de resultados e a impossibilidade daquela patologia ser resolvida de outra forma que motivou a cirurgia. E que já antes dela tinha dores insuportáveis e sintomas depressivos. O que significa que as queixas da Autora já não são novas e que a cirurgia mais não fez do que agravar uma situação anterior já difícil, realidade esta que não pode ser ignorada aquando da fixação do montante indemnizatório.
Por outro lado, importa não esquecer que a Autora na data da operação já tinha 50 anos e dois filhos, isto é, uma idade em que a sexualidade não tem a importância que assume em idades mais jovens, importância essa que vai diminuindo à medida que a idade avança.
Deste modo, e considerando todas aquelas vertentes, julgamos que a indemnização atribuída pelo Tribunal recorrido excedeu o razoável pelo que, corrigindo essa fixação, atribuamos à Autora uma indemnização de 50.000 euros.

A todos os valores acima referidos acrescem os devidos juros de mora não sendo devida a correcção monetária.

Finalmente relega-se para execução de sentença a fixação dos danos futuros relativos a despesas com empregada doméstica e despesas médicas tal como, de resto, vinha pedido e a sentença recorrida deferiu.

Termos em que os Juízes que compõem este Tribunal acordam em conceder parcial provimento ao recurso do Centro Hospitalar de Lisboa Central e, em negar provimento ao recurso de A………… e em consequência, condenar o Centro Hospitalar de Lisboa Central, E.P.E. a pagar à Autora uma indemnização de 111.000 euros acrescida de juros de mora contados desde a citação até integral pagamento e nas quantias que se vierem a liquidar em execução de sentença.
Custas pelas Recorrentes, consoante o respectivo decaimento.
Lisboa, 9 de Outubro de 2014. – Alberto Acácio de Sá Costa Reis (relator) – Maria Fernanda dos Santos Maçãs – José Francisco Fonseca da Paz.