Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0113/19.5BEFUN
Data do Acordão:09/02/2020
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:ARAGÃO SEIA
Descritores:RECURSO DE REVISTA EXCEPCIONAL
Sumário:
Nº Convencional:JSTA000P26241
Nº do Documento:SA2202009020113/19
Data de Entrada:05/12/2020
Recorrente:A………… E OUTROS
Recorrido 1:AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam os juízes da secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:


A………… e B…………, inconformados, interpuseram recurso de revista, do acórdão proferido pelo TCA Sul, datado de 05/03/2020, que negou provimento aos recursos interpostos pelos ora recorrentes e pela FAZENDA PÚBLICA, da sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal do Funchal, que julgou parcialmente procedente o recurso contencioso contra a decisão de fixação do rendimento colectável de IRS, referente ao exercício de 2014, por métodos indirectos.
Alegaram tendo concluído:
No entender dos Recorrentes, o douto Acórdão recorrido é nulo, nos termos do artigo 615.º n.º 1 alíneas c) e d) do CPC, aplicável ex vi do artigo 2.º do CPPT, bem como padece de erro de julgamento sobre a matéria de Direito, uma vez que:
a) o Tribunal a quo omitiu a sua pronúncia sobre uma questão que deveria ter apreciado;
b) o Acórdão recorrido é ambíguo e/ou obscuro numa questão que impede que a decisão seja totalmente inteligível;
c) o Acórdão recorrido contraria o entendimento perfilhado pelo Tribunal Central Administrativo Sul, no Acórdão proferido no Processo n.º 193/19.3BEFUN, datado de 20/02/2020;
d) ao decidir de forma diferente sobre o mesmo fundamento de facto e direito da solução perfilhada pelo Tribunal Central Administrativo Sul, no Acórdão proferido no Processo n.º 193/19.3BEFUN, o douto Acórdão recorrido suscitou uma questão que, pela sua relevância jurídica, se reveste de importância fundamental para uma melhor aplicação do Direito e para a decisão de futuros casos idênticos no ordenamento jurídico fiscal nacional;
e) ambos os Tribunais, quer de primeira, quer de segunda instância, consideraram relevante para a decisão da causa e do respetivo recurso, toda a matéria de facto dada como assente;
f) nenhuma pronuncia é feita ou consequência é assacada pelo douto Tribunal a quo aos factos plasmados nos pontos 17), 18), 19) e 20) da matéria de facto dada como assente;
g) através dos factos plasmados nos pontos 17), 18), 19) e 20) da matéria de facto dada como assente é expressamente dado como provado que, em 2014, o Recorrente:
- restituiu à sociedade C…………, Lda. o montante total de € 59.500,00;
- pagou salários da sociedade C…………, Lda. no montante total de € 14.823,36;
- pagou o montante de € 15.500,00 pela compra de duas viaturas registadas em nome da sociedade C…………, Lda.;
- pagou em nome e por conta da C…………, Lda., € 12.200,00, através de cheques, ao fornecedor “………” (D…………, Lda.);
- pagou em nome e por conta da C…………, Lda. € 3.307,47, por transferência bancária, ao fornecedor “………”;
- pagou em nome e por conta da C…………, Lda. € 1.462,31, através de cheques, ao fornecedor “………, S.A.” (equipamentos e fixações);
- pagou em nome e por conta da C…………, Lda. € 485,00, a título de honorários de advogado;
- pagou em nome e por conta da C…………, Lda. € 4.329,51, referentes a “faturas” de despesas correntes.
h) tendo em conta os factos plasmados nos pontos 17), 18), 19) e 20) da matéria de facto dada como provada, cabia ao Tribunal a quo pronunciar-se sobre a relevância e consequência destas quantias justificadas pelos Recorrentes na apreciação e apuramento dos montantes justificados e/ou por justificar;
i) tendo em conta a matéria dada como provada, a decisão ora recorrida acaba por ser ambígua e/ou obscura na medida em que não reflete nem traduz a importância dessas quantias justificadas (vertidas nos pontos 17), 18), 19) e
20) da matéria de facto dada como provada) no apuramento final do montante justificado pelos Recorrentes e, como tal, no apuramento do efetivo rendimento tributável sujeito a IRS;
j) os fundamentos de facto e de direito plasmados no Acórdão recorrido deveriam ter conduzido necessariamente a uma decisão diversa da encontrada;
k) tais quantias teriam necessariamente que ser tomadas em consideração no douto Acórdão recorrido e ser consideradas como justificadas e não sujeitas a tributação na esfera do Recorrente, e ser deduzidas ao rendimento tributável apurado;
l) o douto Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, proferido em 20/02/2020 no Processo n.º 193/19.3BEFUN, fez questão de ressalvar e salvaguardar expressamente essas quantias justificadas, ao contrário do que sucedeu no douto Acórdão recorrido;
m) segundo o douto Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul proferido no Processo n.º 193/19.3BEFUN:
Há, no entanto, que salvaguardar a situação relativa aos factos plasmados nas alíneas FF), GG) e HH) do probatório fixado na sentença recorrida, uma vez que as quantias aí referidas foram:
• devolvidas à sociedade C………… - € 52.800 -,
• devolvidas ao depositante ……… - € 16.569,92 -, e
• respeitantes a pagamentos de despesas e facturas da sociedade C………… efectuados pelo Recorrido — € 5.955,08,
pelo que se consideram justificadas e não sujeitas a tributação na esfera jurídica deste, devendo ser deduzidas ao rendimento tributável apurado pela AT e emitida liquidação correctiva em conformidade.”
(…)
III- Decisão
Face ao exposto, acordam, em conferência, os Juízes da 1.ª Sub-Secção de Contencioso Tributário deste TCAS em julgar parcialmente procedente o recurso jurisdicional, revogar a sentença recorrida nessa parte e julgar parcialmente procedente o recurso judicial, apenas no que se refere às despesas consideradas justificadas pelos recorridos.”
n) o douto Tribunal a quo deveria necessariamente ter-se pronunciado sobre a relevância dessas quantias pagas pelo Recorrente, em nome e por conta da sociedade C…………, no apuramento do valor efetivamente justificado;
o) tendo o Tribunal concluído que, da manifestação de fortuna evidenciada, ficou por justificar o montante de € 86.275,14 (€ 260.935,06 - € 174.659,92) - correspondente ao rendimento tributável para efeitos de IRS - cabia ainda ao Tribunal deduzir a esse valor as quantias justificadas pelos Recorrentes (plasmadas nos pontos 17), 18), 19) e 20) da matéria de facto dada como provada), que ascenderam ao montante total de € 101.607,65;
p) deduzindo-se as referidas quantias (€ 101.607,65) pagas e justificadas pelo Recorrente ao montante não justificado de € 86.275,14 previamente apurado, verifica-se que não ficou qualquer valor por justificar pelos Recorrentes e, consequentemente, que a manifestação de fortuna inicialmente evidenciada foi totalmente justificada;
q) suprida a omissão de pronúncia em questão e/ou reformado o Acórdão recorrido quanto às quantias justificadas pelos Recorrentes (plasmadas nos pontos 17), 18), 19) e 20) da matéria de facto dada como provada), o recurso contencioso deveria ser julgado totalmente procedente.
Termos em que, dando-se provimento ao presente recurso e com o douto suprimento de V. Exas., deve o douto Acórdão recorrido ser reformado e/ou revogado por V. Exas., com todas as consequências legais, designadamente, julgando o recurso contencioso totalmente procedente.

Não houve contra-alegações.

O Ministério Público não se pronunciou sobre a admissibilidade do recurso nem sobre o mérito.

Cumpre decidir da admissibilidade do recurso.

Dá-se aqui por reproduzida a matéria de facto levada ao probatório do acórdão recorrido.

O presente recurso vem interposto ao abrigo do artigo 285º do CPPT, do acórdão do TCA Sul, datado de 05/03/2020, que julgou totalmente improcedentes os recursos interpostos da sentença de 1ª instância.
Há, então, que apreciar se o recurso dos autos é admissível face aos pressupostos de admissibilidade contidos naquele art. 285º do CPPT, ao abrigo do qual foi interposto, em cujos nºs. 1 e 6 se estabelece:
«1 - Das decisões proferidas em segunda instância pelo Tribunal Central Administrativo pode haver, excecionalmente, revista para o Supremo Tribunal Administrativo, quando esteja em causa a apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental ou quando a admissão do recurso seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito.
(…)
6 - A decisão quanto à questão de saber se, no caso concreto, se preenchem os pressupostos do n.º 1 compete ao Supremo Tribunal Administrativo, devendo ser objeto de apreciação preliminar sumária, a cargo de uma formação constituída por três juízes de entre os mais antigos da Secção de Contencioso Tributário».
Interpretando este nº 1, o STA tem vindo a acentuar a excepcionalidade deste recurso (cfr., por exemplo o ac. de 29/6/2011, rec. nº 0569/11) no sentido de que o mesmo «quer pela sua estrutura, quer pelos requisitos que condicionam a sua admissibilidade quer, ainda e principalmente, pela nota de excepcionalidade expressamente estabelecida na lei, não deve ser entendido como um recurso generalizado de revista mas como um recurso que apenas poderá ser admitido num número limitado de casos previstos naquele preceito interpretado a uma luz fortemente restritiva», reconduzindo-se como o próprio legislador sublinha na Exposição de Motivos das Propostas de Lei nº 92/VII e 93/VIII, a uma “válvula de segurança do sistema” a utilizar apenas e só nos estritos pressupostos que definiu: quando esteja em causa a apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental ou quando a admissão do recurso seja claramente necessária para a melhor aplicação do direito.
Na mesma linha de orientação Mário Aroso de Almeida pondera que «não se pretende generalizar o recurso de revista, com o óbvio inconveniente de dar causa a uma acrescida morosidade na resolução final dos litígios», cabendo ao STA «dosear a sua intervenção, por forma a permitir que esta via funcione como uma válvula de segurança do sistema». (Cfr. O Novo Regime do Processo nos Tribunais Administrativos, 2ª ed., p. 323 e Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, 2005, p. 150 e ss..)
E no preenchimento dos conceitos indeterminados acolhidos no normativo em causa (relevância jurídica ou social de importância fundamental da questão suscitada e a clara necessidade da admissão do recurso para uma melhor aplicação do direito (Sobre esta matéria, cfr. Miguel Ângelo Oliveira Crespo, O Recurso de Revista no Contencioso Administrativo, Almedina, 2007, pp. 248 a 296.), também a jurisprudência deste STA vem sublinhando que «…constitui questão jurídica de importância fundamental aquela – que tanto pode incidir sobre direito substantivo como adjectivo – que apresente especial complexidade, seja porque a sua solução envolva a aplicação e concatenação de diversos regimes legais e institutos jurídicos, seja porque o seu tratamento tenha suscitado dúvidas sérias, ao nível da jurisprudência, ou da doutrina.
E, tem-se considerado de relevância social fundamental questão que apresente contornos indiciadores de que a solução pode corresponder a um paradigma ou contribuir para a elaboração de um padrão de apreciação de casos similares, ou que tenha particular repercussão na comunidade.
A admissão para uma melhor aplicação do direito justifica-se quando questões relevantes sejam tratadas pelas instâncias de forma pouco consistente ou contraditória, com recurso a interpretações insólitas, ou por aplicação de critérios que aparentem erro ostensivo, de tal modo que seja manifesto que a intervenção do órgão de cúpula da justiça administrativa é reclamada para dissipar dúvidas acerca da determinação, interpretação ou aplicação do quadro legal que regula certa situação.» (ac. do STA - Secção do Contencioso Administrativo - de 9/10/2014, proc. nº 01013/14).
Ou seja,
- (i) só se verifica a dita relevância jurídica ou social quando a questão a apreciar for de complexidade superior ao comum em razão da dificuldade das operações exegéticas a efectuar, de enquadramento normativo especialmente complexo, ou da necessidade de compatibilizar diferentes regimes potencialmente aplicáveis, ou quando esteja em causa questão que revele especial capacidade de repercussão social, em que a utilidade da decisão extravasa os limites do caso concreto das partes envolvidas no litígio.
- e (ii) só ocorre clara necessidade da admissão deste recurso para a melhor aplicação do direito quando se verifique capacidade de expansão da controvérsia de modo a ultrapassar os limites da situação singular, designadamente quando o caso concreto revele seguramente a possibilidade de ser visto como um tipo, contendo uma questão bem caracterizada, passível de se repetir em casos futuros e cuja decisão nas instâncias seja ostensivamente errada ou juridicamente insustentável, ou suscite fundadas dúvidas, nomeadamente por se verificar divisão de correntes jurisprudenciais ou doutrinais, gerando incerteza e instabilidade na resolução dos litígios.
Não se trata, portanto, de uma relevância teórica medida pelo exercício intelectual, mais ou menos complexo, que seja possível praticar sobre as normas discutidas, mas de uma relevância prática que deve ter como ponto obrigatório de referência, o interesse objectivo, isto é, a utilidade jurídica da revista e esta, em termos de capacidade de expansão da controvérsia de modo a ultrapassar os limites da situação singular (a «melhor aplicação do direito» deva resultar da possibilidade de repetição num número indeterminado de casos futuros, em termos de garantia de uniformização do direito: «o que em primeira linha está em causa no recurso excepcional de revista não é a solução concreta do caso subjacente, não é a eliminação da nulidade ou do erro de julgamento em que porventura caíram as instâncias, de modo a que o direito ou interesse do recorrente obtenha adequada tutela jurisdicional. Para isso existem os demais recursos, ditos ordinários. Aqui, estamos no campo de um recurso excepcional, que só mediatamente serve para melhor tutelar os referidos direitos e interesses») - cfr. o ac. desta Secção do STA, de 16/6/2010, rec. nº 296/10, bem como, entre muitos outros, os acs. de 30/5/2007, rec. nº 0357/07; de 20/5/09, rec. nº 295/09, de 29/6/2011, rec. nº 0568/11, de 7/3/2012, rec. nº 1108/11, de 14/3/12, rec. nº 1110/11, de 21/3/12, rec. nº 84/12, e de 26/4/12, recs. nºs. 1140/11, 237/12 e 284/12.
E igualmente se vem entendendo que cabe ao recorrente alegar e intentar demonstrar a verificação dos ditos requisitos legais de admissibilidade da revista, alegação e demonstração a levar necessariamente ao requerimento inicial ou de interposição – cfr. arts. 627º, nº 2, 635º, nºs. 1 e 2, e 639º, nºs. 1 e 2 do CPC - neste sentido, entre outros, os acórdãos do STA de 2/3/2006, 27/4/2006 e 30/4/2013, proferidos, respectivamente, nos processos nºs. 183/06, 333/06 e 0309/13.

Vejamos, então.
Das alegações de recurso depreende-se com manifesta evidência que os Recorrentes pretendem, no essencial, ter sido feito um errado julgamento da matéria de facto levada ao probatório, nisso reside a dissonância entre o acórdão recorrido e aquele que referem ter decidido em sentido diferente, pelo que se imporia uma decisão por parte deste Supremo Tribunal que “reparasse” tal erro.
Constitui jurisprudência pacífica deste STA que, atento o caráter extraordinário do recurso de revista não pode este recurso ser utilizado para arguir nulidades do acórdão recorrido, mas antes que essa nulidade deva ser arguida perante o tribunal recorrido – cfr. entre outros os acórdãos de 26/05/2010, proc. 097/10, de 12/01/2012, proc. 0899/11, de 08/01/2014, proc. 01522/13, de 29/04/2015, proc. 01363/14, e de 07/03/2018, proc. 055/18.
Por outro lado e como se deixou supra enunciado a propósito dos requisitos do recurso de revista, este recurso não configura um terceiro grau de recurso, mas antes um válvula de escape para situações especiais em que a questão a apreciar assuma relevância jurídica e social fundamental ou quando a admissão do recurso se revele necessária para uma melhor aplicação do direito.
Sucede que estes requisitos não estão presentes no caso concreto, uma vez que os Recorrentes com a sua alegação obrigariam a que o STA elaborasse um juízo de valor sobre a forma como o TCA apreciou a matéria de facto, o que está vedado ao STA como tribunal de revista.
Decorre do nº 4 do artigo 285º do CPPT que «O erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objeto de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova», o que não ocorre no caso dos autos. E como se deixou igualmente exarado no acórdão do STA de 28/05/2014 (recurso nº 067/14), «…nas questões decididas pelo TCA com fundamento em matéria de facto que compromete inexoravelmente a análise das questões de direito e o sentido da decisão, está ultrapassado o interesse na discussão das questões jurídicas intrinsecamente ligadas àquela matéria de facto» (no mesmo sentido o acórdão do STA de 04/09/2013, recurso nº 0995/13).
Não se admitirá, assim, o presente recurso.

Termos em que, face ao exposto, acorda-se em não admitir o presente recurso de revista, por não se mostrarem preenchidos os respectivos pressupostos legais.
Custas do incidente pelos recorrentes.
D.n.

Lisboa, 2 de Setembro de 2020. – Aragão Seia (relator) – Isabel Marques da Silva – Francisco Rothes.