Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0242/16.7BECBR
Data do Acordão:11/18/2021
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:SUZANA TAVARES DA SILVA
Descritores:HORÁRIO FLEXÍVEL
HORÁRIO DE TRABALHO
ENFERMEIRO
Sumário:I – De acordo com a legislação em vigor, o período normal de trabalho diário dos enfermeiros é de 35 horas semanais, organizado em turnos ou jornada contínua, distribuído por cinco dias de uma semana que começa na Segunda-feira e termina no Domingo, devendo em cada período de quatro semanas, pelo menos um dos dias de descanso (semanal e complementar) coincidir com o Sábado ou com o Domingo.
II – Assim, é conforme à lei o pedido formulado por um enfermeiro de fixação de horário flexível nos termos do artigo 56.º do Código do Trabalho, pelo qual se solicita que o horário de trabalho seja fixado dentro de determinado intervalo horário diário e apenas de Segunda a Sexta-feira.
III – A entidade empregadora, quando considere que a não prestação de serviço em todos os fins de semana do ano afecta o funcionamento do serviço de um modo que não é possível, com os recursos humanos disponíveis, reorganizá-lo, deve explicar fundadamente essas razões imperiosas da recusa, nos termos do artigo 57.°, n.° 2 do Código do Trabalho.
Nº Convencional:JSTA00071320
Nº do Documento:SA1202111180242/16
Data de Entrada:04/20/2021
Recorrente:CITE - COMISSÃO PARA A IGUALDADE NO TRABALHO E NO EMPREGO
Recorrido 1:HOSPITAIS DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA, EPE (E OUTROS)
Votação:UNANIMIDADE
Legislação Nacional:CTRAB09 ART56 ART57 ART198 ART200
DL 437/91 DE 8/11 ART 54 ART56
DL 248/2009 DE 22/9 ART28
CIRCULAR NORMATIVA Nº13/2017/URJ/ACSS
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na Secção do Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo


I - RELATÓRIO

1. O CENTRO HOSPITALAR E UNIVERSITÁRIO DE COIMBRA, E.P.E. (CHUC), com os sinais dos autos, interpôs no Tribunal Administrativo e Fiscal de Coimbra (TAF de Coimbra), em 19 de Abril de 2016, acção administrativa, contra a Comissão para a Igualdade no Trabalho e no Emprego (CITE), indicando como contra-interessada A……………., ambas igualmente com os sinais dos autos, na qual pediu a anulação do parecer n.º 30/CITE/2016, de 20 de Janeiro de 2016, e a condenação da Entidade Demandada na prática de acto administrativo de emissão de parecer no sentido de inexistência de recusa de pedido de horário flexível ou, se assim não se entendesse, de parecer favorável à recusa de pedido de horário flexível onde se excluísse a prestação de trabalho aos fins-de-semana.

2. Por sentença do TAF de Coimbra, de 23 de Fevereiro de 2017, foi a Entidade Demandada condenada a emitir parecer prévio no sentido de que o n.º 2 e 3 do artigo 56.º do CT apenas permite ao trabalhador escolher os limites diários do trabalho e não os dias da semana em que trabalha.

3. Inconformados, a CITE e o Sindicato dos Enfermeiros Portugueses recorreram daquela decisão para o TCA Norte, que, por acórdão de 16 de Outubro de 2020, negou provimento aos recursos.

4. No seguimento daquele acórdão, a CITE interpôs recurso para este STA, que, por acórdão de 25 de Março de 2021, admitiu a revista com base, essencialmente, nos seguintes fundamentos:
«[…]
8. Presente a quaestio juris em discussão nos autos e que se mostra colocada na presente revista, em torno do regime do horário flexível de trabalhador com responsabilidades familiares, daquilo que é a necessária articulação e concatenação dos poderes, direitos e deveres de trabalhador e entidade empregadora no contexto do direito à conciliação da atividade profissional com a vida familiar e dos poderes do empregador na direção e organização no tempo da força laboral, considerando o quadro normativo em presença, nomeadamente o disposto nos arts. 56.º, 57.º, 127.º, 198.º, 200.º, 212.º e 221.º do Código do Trabalho [CT], 13.º, e 59.º da Constituição da República Portuguesa [CRP], temos que a mesma reveste de relevância jurídica e social pela importância fundamental que assume atentas as implicações que aporta não só na esfera dos sujeitos e entes envolvidos, mas, igualmente, no quadro das relações laborais, da organização, estruturação e funcionamento dos serviços/empresas, revestindo a sua elucidação de alguma complexidade/dificuldade, aliás ainda não foi objeto de apreciação por este Supremo, e que se mostra suscetível de ser repetida e recolocada em casos futuros.
[…]».

5. A Entidade Demandada e aqui Recorrente apresentou alegações que rematou com as seguintes conclusões:
«[…]

A) O presente recurso de revista fundamenta-se, nos termos dos n.ºs 1 e 2 do artigo 150.º do CPTA, e dos n.ºs 1 e 2 do artigo 672.º do CPC, aplicável por força do n.º 3 do artigo 140.º do CPTA.
B) Efetivamente, está em causa a apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica e social - como são os dias de descanso semanal, elementos que podem constar do pedido de horário flexível de trabalhador com responsabilidades familiares, previsto nos artigos 56.º e 57.º do CT - se reveste de importância fundamental, por estarem em causa os princípios constitucionais da igualdade e da conciliação da atividade profissional com a vida familiar, e, também, porque a admissão do presente recurso é claramente necessária para uma melhor aplicação do direito, face à interpretação do n.º 2 do artigo 56.º do CT, constante do acórdão recorrido, que a ora recorrente considera inconstitucional, por violar os citados princípios consagrados, respetivamente nos artigos 13.º e 59.º, n.º 1, alínea b) da CRP.
C) Acresce a circunstância do acórdão recorrido estar em contradição com o acórdão da Relação de Évora, de 11.07.2019, já transitado em julgado, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, referida no número anterior, proferido no âmbito do Processo n.º 3824/18.9T8STB.E1, como doc. 1, disponível em: http://www.dgsi.pt/Jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/317 67ab3e6c84999802584730036bbcO?OpenDocument.
D) Na emissão do parecer n.º 30/CITE/2016, "sub judice", a CITE observou todos os requisitos legais, face aos elementos constantes do processo de intenção de recusa de autorização de trabalho em regime de horário flexível a trabalhadora com responsabilidades familiares, cujo período normal de trabalho diário, a que se refere o n.º 2 do artigo 56.º do CT, não distingue os dias da semana, pelo que não exclui a possibilidade de escolha do dia ou dias de descanso semanal.
E) Na verdade, os artigos 198.º e 200.º do CT definem os conceitos de período normal de trabalho e de horário de trabalho, que estão subjacentes à definição de horário flexível, a que aludem os artigos 56.º e 57.º do CT.
F) Com efeito, o artigo 198.º do CT refere que "o tempo de trabalho que o trabalhador se obriga a prestar, medido em número de horas por dia e por semana, denomina-se período normal de trabalho".
G) E o n.º 1 do artigo 200.º do CT dispõe que se entende "por horário de trabalho a determinação das horas de Início e termo do período normal de trabalho diário e do intervalo de descanso, bem como do descanso semanal". E, o n.º 2 do mesmo artigo estabelece que "o horário de trabalho delimita o período normal de trabalho diário e semanal".
H) Neste sentido, ensina o prof. Monteiro Fernandes que "o horário de trabalho compreende não só a indicação das horas de entrada e de saída do serviço, mas também a menção do dia de descanso semanal e dos intervalos de descanso" [pág. 336 da 12.ª edição (2004), da sua obra "Direito do Trabalho"].
I) O artigo 56.º do CT é um corolário do princípio da conciliação da atividade profissional com a vida familiar, consagrado na alínea b) do n.º 1 do artigo 59.º da Constituição da República Portuguesa (CRP), pelo que essa conciliação não é restrita, nem pode ser restrita a um dia da semana, pois, como é do conhecimento geral, as creches e os infantários estão normalmente encerrados aos sábados, domingos e feriados e a conciliação da atividade profissional com a vida familiar não se faz apenas a determinado dia da semana, mas em todos os dias da semana, sobretudo quando o período normal de trabalho abrange todas os dias da semana e é permanente, como no caso "sub judice".
J) Ora, o n.º 2 do artigo 56.º do CT, quando refere que "por horário flexível se entende aquele em que o trabalhador pode escolher, dentro de certos limites, as horas de início e termo do período normal de trabalho diário”, não distingue o dia da semana, pelo que onde o legislador não distingue não cabe ao intérprete distinguir.
K) Assim, abrangendo o período normal de trabalho todos os dias da semana, como no caso em apreço, é natural que o/a requerente da prestação de trabalho em horário flexível possa escolher o dia ou dias de descanso semanal, em virtude da necessidade de conciliar a sua atividade profissional com a sua vida familiar, também a esse ou a esses dias.
L) Aliás, o n.º 4 do artigo 56.º do CT dispõe que "o trabalhador que trabalhe em regime de horário flexível pode efetuar até seis horas consecutivas de trabalho e até dez horas de trabalho em cada dia e deve cumprir o correspondente período normal de trabalho semanal, em média de cada período de quatro semanas".
M) Nos termos do n.º 3 do artigo 127.º, da alínea b) do n.º 2 do artigo 212.º e do n.º 2 do artigo 221.º todos do CT, aplicáveis, também, aos/às trabalhadores/as em funções públicas, por força do artigo 4.º da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas, aprovada pela Lei n.º 35/2014, de 20 de junho, e, em conformidade, com o correspondente princípio, consagrado na já referida alínea b) do n.º 1 do artigo 59.º da CRP, a entidade empregadora deve proporcionar ao/à trabalhador/a condições de trabalho que favoreçam a conciliação da atividade profissional com a vida familiar e, na elaboração dos horários de trabalho, deve facilitar ao/à trabalhador/a essa mesma conciliação, e, na medida do possível, os turnos devem ser organizados de acordo com os interesses e as preferências manifestadas pelos/as trabalhadores/as.
N) Nos termos do n.º 1 do artigo 24.º do CT, o/a trabalhador/a tem direito à igualdade de oportunidades e de tratamento, designadamente, no que se refere às condições de trabalho, não podendo ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão, nomeadamente, da situação familiar, situação económica, ou condição social, ou, acrescenta-se, da atividade profissional, devendo o Estado promover a igualdade de acesso a tais direitos.
O) E, nos termos do n.º 1 do artigo 25.º do CT "o empregador não pode praticar qualquer discriminação, direta ou indireta, em razão nomeadamente dos fatores referidos no n.º 1 do artigo anterior".
P) Tais normas decorrem dos princípios constitucionais consagrados na alínea d) do artigo 9.º e no artigo 13.º, ambos da CRP.
Q) Isto significa que os/as trabalhadores/as que têm uma atividade profissional cujo período normal de trabalho pode abranger todos os dias da semana, como no caso "sub judice", não podem ser discriminados/as, relativamente aos/às trabalhadores/as cuja atividade profissional abrange apenas os dias úteis de 2.ª a 6.ª feira, e, portanto, não necessitam de escolher o dia ou dias de descanso semanal.
R) Os/as referidos/as trabalhadores/as que têm uma atividade profissional cujo período normal de trabalho pode abranger todos os dias da semana, também, não podem ser discriminados/as relativamente aos/às trabalhadores/as que, tendo, igualmente, uma atividade profissional que abranja todos os dias da semana, têm uma situação familiar, ou uma situação económica, ou uma condição social que lhes permita ter outros recursos para conciliar a sua atividade profissional com a sua vida familiar.
S) Face ao que antecede, o entendimento do acórdão recorrido (em 6, 1) segundo o qual "os n.ºs 2 e 3 do artigo 56.º do CT não concedem ao trabalhador a faculdade de escolha dos dias da semana em que presta trabalho ou em que se verifica o descanso semanal", é inconstitucional por violar expressamente os princípios da igualdade e da conciliação da atividade profissional com a vida familiar, consagrados, respetivamente nos artigos 13.º e 59.º, n.º 1, alínea b) da CRP.
T) E, contrariamente ao que refere o acórdão recorrido (em 6, g): "o trabalhador teria margem para organizar o horário de trabalho a seu bel prazer, de acordo com interesses pessoais", o trabalhador apenas tem direito, nos termos dos artigos 56.º e 57.º do CT a solicitar/ requerer o horário flexível à sua entidade empregadora, dentro de certos limites, que são os limites previstos na lei, como por exemplo, o estabelecido no citado n.º 4 do artigo 56.º do CT.
U) E, também, inversamente ao que diz o acórdão recorrido (em 6, g): "a noção de conciliação implica, desde logo, que os interesses da entidade empregadora sejam compatibilizados com a situação do trabalhador ..., e não aniquilados” "o empregador pode recusar o pedido com fundamento em exigências imperiosas do funcionamento da empresa, ou na impossibilidade de substituir o trabalhador se este for indispensável", nos termos do n.º 2 do artigo 57.º do CT.
V) Ao fazer um pedido mais alargado, escolhendo também o dia ou dias de descanso semanal, o/a trabalhador/a possibilita à entidade empregadora, se for esse o caso, apresentar mais e melhores fundamentos que demonstrem as exigências imperiosas do seu funcionamento ou a impossibilidade de substituir o/a trabalhador/a, para justificar a recusa do pedido de horário flexível, o que, no caso em análise, não sucedeu.
W) Quanto à decisão de condenar "a Entidade Demandada (a CITE) a emitir (outro) parecer prévio no sentido de que os nºs. 2 e 3 do artigo 56.º do CT apenas permite ao trabalhador escolher os limites diários do trabalho e não os dias da semana em que trabalha", tal decisão viola os princípios constitucionais da liberdade de expressão e da liberdade de consciência a que aludem, respetivamente, os artigos 37.º e 410.º da CRP, relativamente aos membros da CITE, que votaram o parecer n.º 30/CITE/2016, "sub judice".
X) Relativamente às custas, estipula a alínea g) do n.º 1 do artigo 4.º do R.C.P., que, "estão isentos de custas as entidades públicas quando atuem exclusivamente no âmbito das suas especiais atribuições para defesa de direitos fundamentais dos cidadãos ou de interesses difusos que lhe estão especialmente conferidos pelo respetivo estatuto, e a quem a lei especialmente atribua legitimidade processual nestas matérias", o que é o caso da CITE, cuja lei orgânica aprovada pelo Governo, bem o demonstra através do Decreto-Lei n.º 76/2012, de 26 de Março.
Y) Assim, face ao exposto e pelo que será doutamente suprido por V. Exas., deve:
1. Admitir-se o presente recurso de revista, por estar em causa a apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica e social, se reveste de importância fundamental e porque essa admissão é claramente necessária para uma melhor aplicação do direito, a que acresce a circunstância do acórdão recorrido estar em contradição com outro acórdão, já transitado em julgado.
2. Dar provimento ao presente recurso, em virtude da falta de fundamentação legal do acórdão recorrido, por não ter aplicado bem os preceitos referidos nas alíneas anteriores, devendo interpretar-se e aplicar-se no sentido aí expresso, anulando-se o acórdão recorrido, por violar os princípios constitucionais da igualdade e da conciliação da atividade profissional com a vida familiar e por constituir uma discriminação em razão da atividade profissional, da situação familiar, da situação económica, e/ou da condição social dos/as trabalhadores/as em causa, relativamente a outros/as trabalhadores/as, substituindo-se por outra decisão, que não restrinja o direito dos/as citados/as trabalhadores/as a solicitar, no âmbito do horário flexível, se assim o entenderem, o dia ou os dias de descanso semanal, o que se afigura de elementar JUSTIÇA.
[…]»


6 – O A. e aqui Recorrido não apresentou contra-alegações.

7 – O Excelentíssimo Senhor Procurador-Geral Adjunto junto deste Tribunal, notificado, emitiu parecer no sentido de ser concedido provimento ao recurso.


Cumpre apreciar e decidir


II – FUNDAMENTAÇÃO

II. 1. De facto
Remete-se para a matéria de facto dada como provada na sentença recorrida, a qual aqui se dá por integralmente reproduzida, nos termos do artigo 663.º, n.º 6, do CPC.

II.2.
2.1. Enquadramento e enunciado das questões a decidir

A contra-interessada nos autos (enfermeira) requereu ao A. e aqui Recorrido, em 24 de Novembro de 2015, ao abrigo do artigo 57.º do Código do Trabalho (aplicável ex vi do artigo 4.º, n.º 1, als. e) e h) da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas), que fosse autorizada a trabalhar em regime de horário flexível (artigo 56.º do Código do Trabalho), a fixar pelo Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, E.P.E. (CHUC), nos dias úteis, ou seja, de Segunda a Sexta-feira, das oito às dezasseis horas. Fundamentou o seu pedido no facto de ser o único elemento do seu agregado familiar que cuida do filho de 23 meses, não ter apoio familiar para o efeito e apenas dispor do apoio da creche, que se encontra encerrada aos fins de semana.

A Entidade Empregadora e aqui Recorrida, CHUC, recusou o pedido na parte respeitante à não prestação de trabalho aos fins de semana. Para tanto, alegou a necessidade de conciliar o direito da Requerente à conciliação da vida pessoal e profissional com o mesmo direito das restantes trabalhadoras do serviço e com a obrigação de assegurar o funcionamento do referido serviço de UGI, que é um serviço permanente (24h por dia, todos os dias do ano) de prestação de cuidados de saúde aos cidadãos.

Uma vez que o referido indeferimento parcial consubstanciava uma “recusa” do que havia sido solicitado pela Requerente, foi a mesma notificada da decisão para responder e, posteriormente, em cumprimento do disposto no n.º 5 do artigo 57.º do Código do Trabalho, foi o processo enviado para parecer pela CITE, aqui Recorrente.

No seu parecer, a CITE considerou que a recusa não estava devidamente fundamentada, uma vez que a recusa teria de sustentar-se no disposto no n.º 2 do artigo 57.º do CT, ou seja, “em exigências imperiosas do funcionamento da empresa, ou na impossibilidade de substituir o trabalhador se este for indispensável”.

É nesse seguimento que o A. propõe a presente acção no TAF de Coimbra, com o intuito de obter, nos termos do disposto no n.º 7 do artigo 56.º do Código do Trabalho, uma decisão judicial que reconheça a existência de motivo justificativo da recusa.

As instâncias deram razão ao A.. O TAF de Coimbra fundamentou a sentença que deferiu a pretensão do A. no facto de “os n.ºs 2 e 3 do artigo 56.º do Código do Trabalho apenas permitir ao trabalhador escolher os limites diários do trabalho e não os dias da semana em que trabalha” e o TCA Norte manteve aquela decisão, com o referido fundamento, a que aditou ainda que, no caso, se mostrava verificada a conciliação da actividade profissional da Requerente e Contra-Interessada nos autos com a sua vida familiar e pessoal, com o interesse público à luz do respectivo estatuto socioprofissional.

A Recorrente alega que a fundamentação do acórdão recorrido, essencialmente na parte em que “adere” à fundamentação expendida na sentença do TAF de Coimbra, incorre num erro de interpretação e aplicação do regime jurídico previstos nos artigos 56.º e 57.º do Código do Trabalho.

Assim, as questões a decidir no presente recurso são: i) verificar da existência ou não do alegado erro de julgamento do acórdão recorrido na interpretação e aplicação dos artigos 56.º e 57.º do Código do Trabalho (horário flexível de trabalhador com responsabilidades familiares); ii) do erro de julgamento na interpretação e aplicação do Regulamento de Custas Processuais; e ainda iii) a violação ou não do princípio da conciliação da actividade profissional com a vida familiar, consagrado no artigo 59.º, n.º 1, al. b) da CRP.

2.2. Do alegado erro de julgamento na interpretação e aplicação dos artigos 56.º e 57.º do CT

2.2.1. A Recorrente alega que o acórdão recorrido erra ao interpretar o regime jurídico do horário flexível, previsto no artigo 56.º do Código do Trabalho, como um direito a “(…) requerer a alteração dos limites diários de trabalho, permanecendo na esfera da entidade empregadora a fixação dos limites semanais, ou seja, dos dias em que o trabalhador presta trabalho e faz o seu descanso semanal (…)”.

E tem razão, pois a distinção entre “limites diários” e “limites semanais” não resulta do texto legal. Vejamos. O n.º 1 do artigo 56.º do Código do Trabalho prevê que o trabalhador com filho menor de 12 anos ou com filho com deficiência ou doença crónica, que com ele viva em comunhão de mesa e habitação, tem direito a trabalhar em regime de horário de trabalho flexível. O n.º 2 do mesmo artigo 56.º explica que o horário flexível é aquele em que o trabalhador pode escolher, dentro de certos limites, as horas de início e termo do período normal de trabalho diário, cabendo depois à entidade empregadora fixar o horário dentro dos parâmetros daquela escolha. Ora, nada no texto das normas antes referidas indica que o período normal de trabalho diário se limite aos dias de Segunda a Sexta-feira.

Pelo contrário, de acordo com o disposto no artigo 198.º do Código do Trabalho, o período normal de trabalho é “o tempo de trabalho que o trabalhador se obriga a prestar, medido em número de horas por dia e por semana”. Assim como, segundo o n.º 2 do artigo 200.º do Código do Trabalho, “o horário de trabalho delimita o período normal de trabalho diário e semanal”.

No caso da Requerente e aqui Contra-Interessada, que exerce a actividade profissional de enfermeira no âmbito da relação jurídica de emprego público que mantém com o A. e aqui Recorrido, as regras sobre a organização do trabalho são as que constam dos artigos 54.º e 56.º do Decreto-Lei n.º 437/91, de 8 de Novembro, aplicáveis ex vi do disposto no artigo 28.º do Decreto-Lei n.º 248/2009, de 22 de Setembro (a Circular Normativa n.º 13/2017/URJ/ACSS, esclarece ainda que por efeito deste quadro legal, a aferição da duração do trabalho normal deve reportar-se a um conjunto de quatro semanas).

Da conjugação de todas as disposições legais antes enunciadas pode inferir-se que o período normal de trabalho diário dos enfermeiros é de 35 horas semanais, organizado em turnos ou jornada contínua, distribuído por cinco dias de uma semana que começa na Segunda-feira e termina no Domingo, devendo em cada período de quatro semanas, pelo menos um dos dias de descanso (semanal e complementar) coincidir com o Sábado ou com o Domingo.

Assim, quando a Contra-Interessada solicitou ao Autor trabalhar em regime de horário flexível, a fixar nos dias úteis (de Segunda a Sexta-feira), das oito às dezasseis horas, pretendendo excluir o trabalho aos fins de semana, estava a expressar a sua pretensão no âmbito do direito legal a gozar de horário flexível de trabalhador com responsabilidades familiares em conformidade com a lei.

As instâncias erraram ao interpretar que os n.ºs 2 e 3 do artigo 56.º do Código do Trabalho apenas permitiriam à Contra-Interessada escolher os limites diários do trabalho e não os dias da semana. Não pode, por essa razão, manter-se a decisão recorrida com a fundamentação que a sustenta.

2.2.2. E o erro na interpretação e aplicação do direito que resulta do acórdão recorrido é também o erro em que incorreu o Autor na interpretação dos pressupostos jurídicos em que se fundava o exercício do direito ao horário flexível, conforme a pretensão a que foi solicitado a dar resposta; erro que acabou por condicionar todo o processo. Na verdade, a decisão de recusa proferida pelo A. funda-se na alegada “desconformidade legal do pedido”, resultante do já referido erro na determinação dos pressupostos legais do exercício do direito ao horário flexível por parte da Requerente. Por essa razão, no procedimento administrativo, apesar de algumas referências esparsas ao longo da tramitação, não se chega a decidir se o pedido é ou não compaginável com as exigências imperiosas do funcionamento do serviço, ou com a possibilidade ou impossibilidade de substituir a trabalhadora, como bem se concluiu no parecer do CITE.

Recordamos que o Autor, na sua petição inicial, se limitou a pedir ao Tribunal o seguinte: i) primeiro, que reconhecesse que a decisão de “indeferimento parcial” não consubstanciava uma recusa do pedido formulado pela Requerente (e aqui Contra-Interessada) nos termos e para os efeitos do disposto nos n.ºs 4 a 7 do artigo 56.º do Código do Trabalho; e ii) subsidiariamente, que condenasse a Entidade Demandada (a CITE – Comissão para a Igualdade no Trabalho e no Emprego) a emitir parecer no sentido de que a recusa era conforme à lei por a trabalhadora estar legalmente impedida de “excluir” os Sábados e Domingos do período normal de trabalho a indicar.

O primeiro fundamento foi julgado improcedente pelo TAF de Coimbra, e bem. Como vimos, o requerimento para trabalhar em regime de horário flexível, dentro de um determinado intervalo horário diário (entre os 8h00 e as 16h00), e excluindo o trabalho aos fins de semana, foi, no caso, formulado pela trabalhadora de forma expressa e em conformidade com as normas legais em vigor, pelo que, ao responder “indeferido aos fins de semana”, o A. recusou a pretensão da Requerente. Assim, impunha-se sempre a adopção do procedimento previsto nos n.ºs 3 a 7 do artigo 57.º do Código do Trabalho.

Com efeito, os artigos 56.º e 57.º do Código do Trabalho não estabelecem qualquer distinção entre recusa total (não admissão da aplicação do regime) ou parcial (admissão da aplicação do regime, mas não em conformidade com o solicitado pela Requerente) do pedido.

Assim, recusa, para efeitos dos n.ºs 4 e seguintes do artigo 57.º do Código do Trabalho, corresponde a toda a decisão da entidade empregadora que não aceite fixar o horário do trabalhador dentro do intervalo temporal por este indicado, desde que, o intervalo temporal indicado por este respeite (ou permita respeitar) os limites previstos nos n.º 3 e 4 do artigo 56.º do Código do Trabalho (o que sucedia neste caso). Logo, quando o Autor não aceitou que o horário fosse fixado apenas de Segunda a Sexta-feira (em todas as semanas do ano), o Autor recusou o pedido formulado pela Contra-Interessada. De resto, ele reconheceu (pelo menos, de forma concludente) ter recusado o pedido e por isso cumprir os trâmites fixados nos n.ºs 4 a 7 do artigo 57.º do Código do Trabalho.

Não poderia, pois, proceder o pedido de reconhecimento de inexistência de recusa dos CHUC relativamente ao peticionado pela Contra-Interessada.

2.2.3. E, pelas mesmas razões, o pedido subsidiário formulado pelo A., que foi julgado procedente pelas Instâncias, não pode proceder, uma vez que o mesmo se fundamenta numa interpretação normativa errada do disposto nos artigos 56.º e 57.º do Código do Trabalho.

Com efeito, tudo quanto antes dissemos explica a razão pela qual o Tribunal não pode reconhecer que a recusa é legalmente fundamentada pelo facto de a Requerente não poder indicar como “período para a fixação do horário flexível” um intervalo temporal que excluísse os fins de semana. Um pedido com tal teor é conforme à lei, cabendo depois à entidade empregadora (como bem se explica no ponto 2.13 do parecer do CITE - repetimos), verificar se a pretensão pode ser ou não atendida. E, caso aquela entidade considerasse que a não prestação de serviço pela Requerente, em todos os fins de semana do ano, afectava o funcionamento do serviço de um modo que não seria possível, com os recursos humanos disponíveis, reorganizá-lo, teria de explicar fundadamente essas razões imperiosas da recusa, nos termos do artigo 57°, n° 2 do Código do Trabalho.

No mesmo sentido, i. e., de que é conforme à lei o pedido de fixação de horário flexível nos termos do artigo 56.º do Código do Trabalho, formulado no âmbito de um pedido em que se solicita que o horário de trabalho seja fixado dentro de determinado intervalo horário diário e apenas de Segunda a Sexta-feira, veja-se o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça relativo a uma trabalhadora de um Hospital dos SAMS - acórdão de 28 de Outubro de 2020, proc. 3582/19.0T8LSB.L1.S1.

Assim, pelas razões antes invocadas, não pode manter-se o decidido pelo acórdão do TCA Norte.

Pelas razões antes alegadas e em face da solução alcançada fica prejudicado o conhecimento das alegadas inconstitucionalidades decorrentes do erro na interpretação dos artigos 56.º e 57.º da CRP.

2.3. Do erro quanto ao julgamento em custas processuais

O conhecimento do erro de julgamento relativo ao segmento da condenação da Recorrente em custas fica prejudicado com a revogação do acórdão recorrido.

IV. Decisão

Nos termos e com os fundamentos expostos, acordam os Juízes da Secção de Contencioso Administrativo em conceder provimento ao recurso, revogar o acórdão recorrido e julgar totalmente improcedente a acção.

Custas pelo autor no Supremo e nas instâncias.

Lisboa, 18 de Novembro de 2021. – Suzana Maria Calvo Loureiro Tavares da Silva (relatora) - Carlos Luís Medeiros de Carvalho - Ana Paula Soares Leite Martins Portela.