Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:02681/15.1BEALM
Data do Acordão:06/23/2021
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:FRANCISCO ROTHES
Descritores:IRS
MAIS VALIAS
ILISÃO DE PRESUNÇÃO
PRESUNÇÃO JUDICIAL
ANULAÇÃO PARCIAL
ACTO TRIBUTÁRIO
Sumário:I - Tendo em atenção o princípio da igualdade, na vertente da imposição de imposto segundo a capacidade contributiva e do objectivo constitucional da «repartição justa dos rendimentos e riqueza» (n.º 1 do art. 103.º da CRP), a imputação de matéria colectável considerando como valor de realização o que resultar para efeitos de IMT, nos termos do n.º 2 do art. 44.º do CIRS, quer se reconduza a uma presunção legal ou a uma ficção legal, deverá ter-se por ilidível, face ao disposto no art. 73.º da LGT, sob pena de inconstitucionalidade.
II - A constatação de que a AT, na quantificação da mais-valia obtida na venda de um imóvel do IRS, não permitiu ao sujeito passivo ilidir aquela presunção, impõe a anulação da liquidação apenas na parte em que o valor de realização considerado excedeu o valor declarado, ou seja, o preço que consta da escritura.
Nº Convencional:JSTA000P27914
Nº do Documento:SA22021062302681/15
Data de Entrada:12/11/2020
Recorrente:AT-AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Recorrido 1:A................
Votação:MAIORIA COM 1 VOT VENC
Aditamento:
Texto Integral: Recurso jurisdicional da sentença proferida no processo de impugnação judicial com o n.º 2681/15.1BEALM

1. RELATÓRIO

1.1 O Representante da Fazenda Pública junto do Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada recorre para este Supremo Tribunal Administrativo da sentença por que a Juíza daquele Tribunal, julgando «a norma do artigo 44.º, n.º 2 do CIRS, na redacção em vigor à data do facto tributário, introduzida pela Lei n.º 109-B/2001, de 27.12, inaplicável, por violação do princípio constitucional da igualdade tributária, na vertente do princípio da capacidade contributiva, ínsito nos artigos 103.º, n.º 1 e 13.º da CRP», decidiu pela procedência da impugnação judicial deduzida pelo acima identificado Recorrido após indeferimento do pedido de revisão por este apresentado e anulou a liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS) que lhe foi efectuada com referência ao ano de 2006 e aos ganhos resultantes da venda de um prédio.

1.2 Com o requerimento de interposição de recurso, a Recorrente apresentou alegações, com conclusões do seguinte teor:

«1- Na douta Sentença, ora recorrida, o douto Tribunal “a quo”, considerou a presente impugnação judicial [( Permitimo-nos, aqui como adiante, corrigir o manifesto lapso de escrita: a Recorrente escreveu oposição onde queria dizer impugnação judicial.)] procedente, nos termos que se transcrevem:
a) “Com efeito, tal como já se salientou, o acto tributário foi praticado à luz de uma norma julgada inconstitucional pelo Tribunal Constitucional, por violação dos princípios basilares inerentes à tributação do rendimento das pessoas singulares, a saber, o princípio da igualdade tributária e da capacidade contributiva, ínsitos nos artigos 103.º, n.º 1 e 13.º da CRP, donde, a inconstitucionalidade verificada fulmina o acto sindicado, in totum. Para o efeito, atente-se, desde logo, na jurisprudência do STA, que no Acórdão de 10.10.2012, proferido no processo 0533/12, a qual é transponível para o caso dos autos”.
b) “Em face do que precedentemente resulta expendido, e sem necessidade de outros considerandos, o acto impugnado padece de vício de violação de lei, gerador da sua anulabilidade, o que a final se determina”.

2- Para decidir como decidiu, o Tribunal, “Nos termos e com os fundamentos expostos, e à luz das disposições legais citadas, julga-se a presente impugnação procedente e, em consequência:
a) Julga-se a norma do artigo 44.º, n.º 2 do CIRS, na redacção em vigor à data do facto tributário, introduzida pela Lei n.º 109-B/2001, de 27.12, inaplicável, por violação do princípio constitucional da igualdade tributária, na vertente do princípio da capacidade contributiva, ínsito nos artigos 103.º, n.º 1 e 13.º da CRP;
b) Anula-se o acto impugnado, consubstanciado na liquidação adicional de IRS n.º 2011 5002573041 (nota de compensação n.º 2011 0002734395), do ano de 2006, no valor global de € 86.360,34”.

3- Decisão com a qual, e com o devido respeito, que é muito, não nos conformamos, pelos motivos que se passam a expor e, ainda, porque não é à Autoridade Tributária (AT) que cabe a competência para apreciar a conformidade das normas fiscais com os princípios ou regras gerais 1. [1 À AT cabe zelar pela aplicação das normas ao caso concreto.]

4- Está em causa nos presentes autos, o acto de indeferimento que recaiu sobre o pedido de revisão da liquidação oficiosa de IRS, referente ao exercício de 2006, no montante de € 85.688,34, por ter sido objecto nesse mesmo ano de procedimento inspectivo e do qual resultaram correcções à matéria tributável no montante de € 189.041,96, em virtude da omissão de rendimentos em sede de categoria G.

5- Porém – e chamando à colação os fundamentos de facto e de direito explanados em sede de relatório de Inspecção Tributária, que fundamentaram a liquidação controvertida (OI201003527, de 22/11/2010 – Direcção de Finanças de Setúbal) que se dão como reproduzidos para os devidos efeitos e se juntam – a verdade é que o sujeito passivo não declarou todos os rendimentos obtidos, conforme excerto que se segue e se transcreve:
III.2 – Conclusões
Face aos factos anteriormente descritos, verifica-se que não foram englobados na declaração de rendimentos apresentada (anexo 13), relativa ao ano de 2006, nos termos do artigo 22.º do Código do IRS, todos os rendimentos obtidos pelo sujeito passivo, razão pela qual se propõe as seguintes correcções nos termos do n.º 4 do artigo 65.º do Código do IRS:

RendimentosValor Declarado CorrecçõesValor Corrigido
Categoria A (Trabalho Dependente)
€ 9.000,00
€ 0,00
€ 9.000,00
Categoria G (Mais-valias)
€ 2.080,95
€189.401,96
a)

€ 191.482,91

Rendimento Global
€ 11.080,95
€189.401,96
€ 200.482,91
Deduções Especificas (Cat. A)
€ 3.334,18
0,00
€ 3.334,18
Rendimento Colectável
€ 7.746,77
€189.401,96
€ 197.148,73
a) € 187.584,21 + € 3.898,70 = € 191.482,91

(…)
VII – INFRACÇÕES VERIFICADAS
A omissão de rendimentos, no ano de 2006, referida no item III deste relatório, constitui infracção aos artigos 9.º, 10.º e 22.º do Código do IRS, sendo face à vantagem patrimonial evidenciada, susceptível de ser qualificada como crime fiscal – fraude fiscal, prevista pelo artigo 103.º do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT), aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho.

6- Motivo por que não foram atendidas as pretensões do sujeito passivo e, assim, mantidas as correcções propostas no Relatório de Inspecção Tributária.

7- Na verdade, as aludidas correcções à matéria tributável do Impugnante – no montante de € 189.041,96, em virtude da omissão de rendimentos em sede de categoria G – resultaram da verificação da venda pelo impugnante da sua quota-parte no prédio inscrito sob o artigo …….., sito na freguesia da Anunciada, concelho de Setúbal, que deu origem a mais-valias no valor de € 187.584,21 não declaradas.

8- Bem como outra venda, também da sua quota-parte do prédio inscrito sob o n.º ………, da Freguesia de Santiago, concelho de Alcácer do Sal, que gerou mais-valias no valor de € 3.898,70.

9- E não obstante a evidência dos sobreditos valores, a verdade é que, quanto aos declarados, valores comprovadamente incorrectos, estes geraram uma mais-valia tributável de apenas € 2.080,85.

10- Sendo certo que, face à vantagem patrimonial evidenciada, esta é ainda susceptível de ser qualificada como crime fiscal – fraude fiscal, prevista pelo artigo 103.º do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT), aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho.

11- Por último, como se pode ler no douto Parecer da DMMP, “Na verdade, as correcções técnicas efectuadas pela AT mostram-se correctas e devidamente fundamentadas, de acordo com as normas legais aplicáveis.
Nestes termos, emitimos parecer no sentido da improcedência da presente impugnação judicial, com consequente manutenção do acto tributário”.

12- Ficando, deste modo, justificado o motivo por que não foram atendidas as pretensões do sujeito passivo e, ao invés, mantidas as correcções propostas no Relatório de Inspecção Tributária.

13- Assim, ao decidir como decidiu, o douto Tribunal, “a quo”, violou as anteditas disposições legais - Artigos 9.º, 10.º e 22.º, do Código do IRS.

Nestes termos e nos demais de Direito, que esse douto Tribunal entenda por bem melhor suprir, pede a Fazenda Pública que seja dado provimento a este recurso e revogada a douta Sentença e, em sua substituição, venha a ser proferido douto Acórdão que julgue a presente impugnação judicial improcedente com o que se fará a almejada Justiça!».

1.3 O Recorrido apresentou contra-alegações, pugnando pela manutenção da sentença.

1.4 A Procuradora-Geral-Adjunta neste Supremo Tribunal Administrativo emitiu parecer no sentido de que seja negado provimento ao recurso. Isto, após resumir as alegações e as contra-alegações do recurso, com a seguinte fundamentação: «[…]

No caso dos autos não está em causa a legalidade da fixação do valor patrimonial tributário do prédio em causa. O que está em causa é o facto de esse valor dever ser considerado como valor da realização, da transacção, para efeitos de apuramento de mais-valia em sede de IRS como resulta do n.º 2 do artigo 44.º do CIRS e do artigo 76.º, n.º 3 do CIMI.
Entende a Fazenda Pública, que o valor de realização que releva para efeitos de determinação do rendimento da categoria G do IRS, na alienação de bens imóveis, é o constante do contrato ou o que serviu de base à liquidação do I.M.T. ou, não havendo lugar a esta liquidação, o que devesse ser quando devida, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 44.º do Código do I.R.S. Sendo valor que prevalece, quando superior ao do contrato, o valor usado para a liquidação de I.M.T.
Mas parece-me que não tem razão.
O n.º 2 do art. 44.º do CIRS, sendo uma verdadeira norma de incidência, deve ser interpretado no sentido de consagrar uma presunção “juris tantum” e não “juris et de jure”, sob pena de a tributação se afastar injustificadamente do rendimento real e de violar o princípio constitucional da igualdade.
Nestes sentido aliás se pronunciou o Tribunal Constitucional, cfr. o acórdão, proferido em 02/05/2017, no proc. n.º 285/15, que julgou inconstitucional, a norma contida no n.º 2 do art. 44.º do CIRS, “na interpretação segundo a qual, para efeitos da determinação dos ganhos sujeitos a IRS relativos a mais-valias decorrentes da alienação onerosa de bens imóveis, ali se estabelece uma «presunção inilidível», por violação do princípio da capacidade contributiva ínsito nos artigos 103.º, n.º 1 e 13.º da Constituição da República Portuguesa”.
Assim a norma de incidência contida no n.º 2 do artigo 44.º do CIRS antes da entrada em vigor da Lei 82-E /2014 de 31/12 na interpretação que a Fazenda Pública teve ao proceder à liquidação ora impugnada tem de considerar-se como refere o aresto do Tribunal Constitucional acima referido como inconstitucional por traduzir a consagração de uma presunção inilidível em violação dos arts 13.º e 18.º da CRP e 5.º n.º 2 e 73.º da LGT. Neste sentido veja-se também o acórdão do STA de 11.10.2017, processo 0880/16.
Assim, e sem mais considerandos, emito parecer no sentido da improcedência do recurso, mantendo-se a sentença recorrida».

1.5 Cumpre apreciar e decidir se a sentença fez, ou não, correcto julgamento quando decidiu pela anulação da liquidação com base no entendimento de que, em sede de tributação em IRS, categoria G, por mais-valias obtidas com a venda de um imóvel, a utilização pela AT, na determinação do rendimento tributável, do valor patrimonial tributário (VPT) definitivo estabelecido em sede de IMI como valor de realização, porque superior ao preço declarado, sem admissão de prova em contrário, i.e., da realidade do preço declarado, viola os princípios constitucionais que defendem a tributação da igualdade e capacidade contributiva, consagrados na Constituição da República Portuguesa (CRP).


* * *

2. FUNDAMENTAÇÃO

2.1 DE FACTO

A sentença recorrida efectuou o julgamento da matéria de facto nos seguintes termos:

«A) Em 17.11.2006, foi outorgada, no Cartório Notarial da Notária privada, Licenciada ………………...a escritura de “compra e venda”, em que figuraram como Primeiros Outorgantes B………….., na qualidade de procuradora de seu marido C………..; D…………, E…………. e A…………. e como Segundo Outorgante a sociedade F………. Lda., representada por G………. e H………. [cf. fls. 28/31 dos autos].

B) Do documento referido na alínea antecedente consta, além do mais, o seguinte: “(…)

[IMAGEM]

(…)” [cf. fls. 28/31 dos autos];

C) Do Balancete Analítico do mês de Dezembro de 2006, do contribuinte n.º ………….., I……….. e J………, constam os seguintes movimentos: “(…)

[IMAGEM]



[cf. fls. 32/33 dos autos];

D) Em 05.06.2007, foi atribuído ao imóvel, inscrito na matriz predial urbana, sob o artigo ………..da freguesia da Nossa Senhora da Anunciada, Setúbal, o valor patrimonial de € 3.020.720,00 [facto não controvertido, que se extrai da sentença prolatada no processo 665/08.5 BEALM e que o Tribunal tem conhecimento por virtude do exercício das suas funções, conforme disposto no artigo 412.º do CPC aplicável ex vi artigo 2.º, alínea e), do CPPT].

E) Em 08.04.2008, em 2.ª avaliação, foi atribuído ao imóvel, referido na alínea que antecede, o valor patrimonial tributário de € 2.465.450,00 [facto não controvertido, que se extrai da sentença prolatada no processo 665/08.5 BEALM e que o Tribunal tem conhecimento por virtude do exercício das suas funções, conforme disposto no artigo 412.º do CPC aplicável ex vi artigo 2.º, alínea e), do CPPT];
F) Em 29.07.2009, foi entregue pelo contribuinte “I………….. e J…………”, a “Declaração Anual de Informação Empresarial Simplificada – IES”, donde se extrai o seguinte: “(…)

[IMAGEM]


(…)” [cf. fls. 36/58 dos autos].

G) Em 25.07.2011, a Direcção Geral dos Impostos – Imposto sobre o Rendimento, Serviço de Finanças de Setúbal 2, emitiu a Liquidação n.º 2011 5002573041, em nome do Impugnante, no valor de € 85.688,34, com o seguinte teor: “(…)

[IMAGEM]


(…)” [cf. fls. 59 dos autos].

H) Em 06.06.2011, a Direcção Geral dos Impostos, Departamento de Cobrança emitiu o documento designado “Demonstração de Acerto de Contas”, em nome do ora Impugnante, no valor de € 86.360,34, com o seguinte teor: “(…)

[IMAGEM]


(…)” [cf. fls. 60 dos autos].

I) Em 29.09.2011, apresentou reclamação graciosa, junto do Serviço de Finanças de Setúbal 2, contra a liquidação de IRS de 2006 (cf. carimbo aposto, a fls. 76 dos autos).

J) Em 02.11.2011, foi proferido projecto de decisão de indeferimento da reclamação graciosa, referida na alínea antecedente, donde se extrai, além do mais o seguinte: “(…)

[IMAGEM]


(…)” [cf. fls. 84/88 dos autos].

K) Em 03.11.2011, foi exarado despacho pelo Chefe de Divisão da Justiça Tributária, por delegação da Directora de Finanças, com o seguinte teor: “Confirmo. Considero a informação anterior como projecto de decisão. Notifique-se o reclamante para, no prazo de 10 dias contados continuamente e nos termos previstos na alínea b) do n.º 1 do Art. 60.º da Lei Geral Tributária, exercer, querendo, por escrito ou oralmente, o direito de audição” [cf. fls. 83 dos autos].

L) Em data não concretamente apurada, a Direcção de Finanças de Setúbal emitiu o ofício, endereçado ao mandatário do ora Impugnante, visando a “notificação para o exercício do direito de audição, nos termos do art. 60.º da LGT – Processo de Reclamação Graciosa n.º 3530201104003322” [cf. fls. 82 dos autos].

M) Em 29.11.2011, a Direcção de Finanças de Setúbal, Divisão de Justiça Tributária converteu o projecto de decisão de indeferimento da reclamação graciosa em decisão definitiva [cf. fls. 90/91 dos autos].

N) Em 30.03.2012, foi prolatada sentença no processo n.º 665/08.5 BEALM, que julgou a impugnação improcedente, mantendo-se o valor patrimonial do imóvel, referido em B), conforme fixado na 2.ª avaliação, em € 2.465.450 [facto não controvertido, que se extrai da sentença prolatada no processo 665/08.5 BEALM e que o Tribunal tem conhecimento por virtude do exercício das suas funções, conforme disposto no artigo 412.º do CPC aplicável ex vi artigo 2.º, alínea e), do CPPT].

O) Em 06.02.2015, o Impugnante requereu, junto do Serviço de Finanças de Setúbal 2, a revisão da liquidação de IRS n.º 2011 5002573041, de 27.05.2011, por “considerar ter ocorrido erro, quer na apreciação da matéria de facto, quer na aplicação das normas legais, que serviram de base à mesma” [cf. fls. 92/103 dos autos].

P) Em 09.07.2015, a Divisão de Administração da Direcção de Serviços do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares elaborou a Informação n.º 1397/15, donde se extrai o seguinte: “(…)
Em 2006, o requerente alienou a sua quota-parte em dois imóveis (prédios urbanos inscritos na respectiva matriz sob os artigos (…) …………. da freguesia de N. Sra. da Anunciada, concelho de Setúbal (…) alienados pelos proprietários pelos montantes globais declarados nas escrituras de (…) 500.000,00 €; Face às regras do IMI (primeira transmissão do imóvel após a entrada em vigor desse imposto foi fixado, em resultado da avaliação (2.ª avaliação) o valor patrimonial tributário do mesmo, no montante de € 2.465.450,00 ao imóvel inscrito na matriz sob o artigo ………. da freguesia da N. Sra. da Anunciada (…);
Quando apresentou a declaração de rendimentos Mod. 3 referente ao ano fiscal de 2006 (…) não declarou os ganhos com os negócios mencionados supra (entregou o anexo G com a inscrição de rendimentos decorrentes da alienação onerosa de partes sociais e outros valores mobiliários – cujos valores diriam respeito ao imóvel inscrito na matriz sob o artigo …..).
Essa declaração deu origem à liquidação n.º 5603381947 (…) com valor a reembolsar de 672,00 € (…)
O recorrente foi objecto de um procedimento inspectivo, ao abrigo da Ordem de Serviço Externa n.º OI201003527, que incidiu sobre o IRS do ano fiscal de 2006 (…) foi elaborada declaração oficiosa (…) relevando o facto da quota-parte do recorrente nos imóveis terem sido adquiridos em três momentos distintos (um dos quais antes da entrada em vigor do Código de IRS);
De salientar que o valor de realização considerado para efeitos de inscrição nos respectivos anexos G e G1 foi o valor patrimonial tributário que resultou da avaliação, e não o valor constante da escritura de compra e venda; (…) – [cf. fls. 171/281 [92/100] dos autos].

Q) Em 13.07.2015, a Divisão de Administração da Direcção de Serviços do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares emitiu o ofício n.º 8677, endereçado ao mandatário do Impugnante, sobre o assunto “Pedido de Revisão da Liquidação – IRS de 2006 Nome: A…………”, donde se extrai, além do mais o seguinte:
“(…)

[IMAGEM]


(…)” [cf. fls. 108/110 dos autos].

R) Em 08.09.2015, a Divisão de Administração da Direcção de Serviços do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares elaborou a “Informação Complementar”, com o seguinte teor: “(…)

[IMAGEM]


(…)” [cf. fls. 171/281 [86] dos autos].

S) Em 18.09.2015, a Directora de Serviços do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares exarou despacho na informação referida na alínea que antecede, com o seguinte teor: “Confirmo, pelo que indefiro o pedido, convolando em definitivo o projecto de decisão, nos termos e com os fundamentos invocados” – [cf. fls. 171/281 [84] dos autos].

T) Em 01.10.2015, a Divisão de Justiça Tributária da Direcção de Finanças de Setúbal emitiu o ofício 020922, dirigido ao Chefe do Serviço de Finanças de Setúbal, com o seguinte teor: “Pelo presente, junto se remete a informação n.º 1805/15, da DSIRS, averbada do despacho da Directora de Serviços, acompanhado do respectivo processo supra, referente ao sujeito passivo A………………, NIF ………….., para conhecimento e com vista à notificação do despacho de indeferimento que sobre o mesmo recaiu.” [cf. fls. 171/281 [82] dos autos].

U) Em data não concretamente apurada, foi prolatada sentença pelo 3.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Setúbal no processo n.º 234/11.2 IDSTB, em que foi arguido o Impugnante, donde se extrai o seguinte: “(…)

[IMAGEM]



(…)” [cf. fls. 43/44 dos autos].

V) O Impugnante não declarou a venda do imóvel, na declaração de rendimentos, para efeitos de IRS - [facto alegado no artigo 7.º da petição inicial, provado por confissão]».


*

2.2 DE FACTO E DE DIREITO

2.2.1 A QUESTÃO A APRECIAR E DECIDIR

2.2.1.1 Em 2006, o ora Recorrido, conjuntamente com os demais comproprietários, vendeu um prédio, constando da respectiva escritura de compra e venda que o preço foi de € 500.000. Para efeitos de IRS, no anexo G da declaração de rendimentos que apresentou com referência àquele ano, não declarou qualquer valor a título de mais-valia relativamente a essa venda.
Ulteriormente, na sequência da avaliação efectuada nos termos do Código do Imposto Municipal sobre Imóveis (CIMI), foi atribuído esse prédio o valor de € 3.020.720 e, após segunda avaliação, o valor foi fixado em € 2.465.450, que foi o considerado para efeitos de Imposto Municipal sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis (IMT).
A AT entendeu que a referida venda proporcionou ao ora Recorrido um ganho sujeito a mais-valias, resultante da diferença entre os valores de aquisição e de realização, considerando que este último, nos termos do n.º 2 do art. 44.º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (CIRS), é o valor considerado para efeitos da liquidação do IMT, uma vez que era superior ao valor da escritura.
Na sequência da fixação desse valor, que usou como valor de realização, a AT apurou uma mais-valia para o ora Recorrido (que era proprietário de 77/240 do imóvel) resultante da referida venda em € 187.584,21 e, em consequência, corrigiu a declaração apresentada pelo sujeito passivo e procedeu à liquidação adicional de IRS, de que resultou um valor a pagar de € 86.360,34.

2.2.1.2 O ora Recorrido pediu a revisão oficiosa dessa liquidação. Alegou, em síntese, que a AT, para determinar o valor da mais-valia resultante da referida venda, não podia ter considerado como valor de realização o VPT fixado em 2.ª avaliação, ao abrigo da norma do n.º 2 do art. 44.º do CIRS – que é uma verdadeira norma de incidência –, pois esta, na medida em que não permite ao sujeito passivo comprovar que o valor efectivo da transmissão do imóvel foi outro que não o resultante da avaliação efectuada para efeitos de fixação do valor patrimonial, não só viola o disposto no art. 73.º da Lei Geral Tributária (LGT), como, nessa interpretação, enferma de inconstitucionalidade, por violação dos princípios da igualdade e da capacidade contributiva

2.2.1.3 Na sequência do indeferimento do pedido de revisão, o ora Recorrido apresentou impugnação judicial na qual sustentou i) que a mais-valia resultante da venda foi declarada pela sociedade irregular à qual o imóvel estava afectado, integrando o seu activo imobilizado, e ii) que a determinação do valor da mais-valia com recurso ao VPT fixado em 2.ª avaliação como valor de realização, ao abrigo da norma do n.º 2 do art. 44.º do CIRS, é ilegal, por violação do disposto no art. 73.º da LGT – pois não permite ao sujeito passivo comprovar que o valor efectivo da transmissão do imóvel foi outro que não o resultante da avaliação efectuada para efeitos de fixação do valor patrimonial – e viola os princípios da igualdade e da capacidade contributiva, bem como os princípios da justiça material e da legalidade.
Ou seja, e sempre em síntese, o ora Recorrido sustenta que a liquidação enferma de violação de lei por erro nos pressupostos, por um lado, por violação das regras de incidência pessoal, por o sujeito passivo do imposto dever ser a sociedade irregular, e, por outro lado, por violação das regras da determinação da matéria tributável, uma vez que na fixação da mais-valia nunca poderia ser considerado como valor de realização senão o preço declarado de € 500.000, que foi o efectivamente praticado.

2.2.1.4 A Juíza do Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada julgou a impugnação judicial procedente.
Em síntese, e no que ora nos interessa, começou por eleger como primeira questão a dirimir a da «de violação de lei, por violação dos princípios constitucionais da igualdade, da capacidade contributiva, e da justiça material, conjugados com a violação do artigo 73.º da LGT, que proíbe as presunções absolutas de rendimentos».
Depois, após elaborar em torno do IRS, das mais-valias e respectivo método de cálculo, considerou, alicerçando-se na doutrina (A sentença citou os seguintes autores:
- JOSÉ GUILHERME XAVIER DE BASTO, IRS, Incidência Real e Determinação dos Rendimentos Líquidos, 2007, Coimbra, Coimbra Editora, pág. 446, onde afirma: «Posto que o n.º 2 do art. 44.º se inclua, na sistemática do CIRS, no capítulo da determinação da matéria tributável e não no capítulo da incidência, é materialmente uma norma de incidência, porque determina afinal, em última análise, o valor que há-de ser submetido a imposto»;
- AMÉRICO FERNANDO BRÁS CARLOS, Impostos, Teoria Geral, 2.ª edição, Coimbra, 2008, págs. 102-103, que afirma: «as normas que definem o montante a tributar, apesar de serem formalmente normas de determinação da matéria colectável, são, do ponto de vista do princípio da legalidade tributária, normas de incidência. São, substancialmente, normas de incidência real e como tal devem ser tratadas».) e na jurisprudência deste Supremo Tribunal (A sentença invocou os seguintes acórdãos da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:
- de 11 de Outubro de 2017, proferido no processo com o n.º 880/16, disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/-/8736b7b81b358ad5802581bc003c6d2c;
- de 8 de Novembro de 2017, proferido no processo com o n.º 1108/14, disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/-/168b4070715e2f6f802581d700428c7d.), que a norma do n.º 2 do art. 44.º do CIRS, na redacção aplicável, na medida em que faz prevalecer como valor de realização «os valores por que os bens houverem sido considerados para efeitos de liquidação de sisa, ou, não havendo lugar a esta liquidação, os que devessem ser, caso fosse devida», constitui uma verdadeira norma de incidência, e, ao não permitir a comprovação de que o valor efectivo da transmissão do imóvel foi outro que não o considerado para efeitos de IMT (resultante da avaliação para efeitos de fixação do valor patrimonial em sede de IMI), não só viola o disposto no art. 73.º da LGT, como também atenta contra os princípios da igualdade e da capacidade contributiva, consagrados, respectivamente, nos arts. 13.º e 103.º, n.º 1, da CRP, como decidiu já o Tribunal Constitucional (A sentença invocou e citou o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 211/2017, de 2 de Maio de 2017, proferido no processo com o n.º 285/15, disponível em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20170211.html.).
Finalmente, e em conclusão, considerou que o acto não podia ser anulado parcialmente, uma vez que «foi praticado à luz de uma norma julgada inconstitucional pelo Tribunal Constitucional, por violação dos princípios basilares inerentes à tributação do rendimento das pessoas singulares, a saber, o princípio da igualdade tributária e da capacidade contributiva, ínsitos nos artigos 103.º, n.º 1 e 13.º da CRP, donde, a inconstitucionalidade verificada fulmina o acto sindicado, in totum», chamando em abono da sua tese um acórdão deste Supremo Tribunal (A sentença invocou o seguinte acórdão da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:
- de 10 de Outubro de 2012, proferido no processo com o n.º 533/12, disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/-/8a5b5c3914bb743980257a9f004c2462. ).

2.2.1.5 Inconformado com essa sentença, o Representante da Fazenda Pública dela recorreu para esta Supremo Tribunal Administrativo.
Se bem interpretamos as alegações de recurso e respectivas conclusões, o motivo por que a Recorrente discorda da sentença não é porque questione – que não questiona – o julgamento efectuado quanto à inconstitucionalidade do n.º 2 do art. 44.º do CIRS, na interpretação segundo a qual, para efeitos da determinação dos ganhos sujeitos a IRS relativos a mais-valias decorrentes da alienação onerosa de bens imóveis, ali se estabelece uma “presunção inilidível”, por violação do princípio da capacidade contributiva ínsito nos arts. 103.º, n.º 1 e 13.º da CRP.
O motivo da discordância tem a ver com o facto de, por um lado, a AT estar impossibilitada de sindicar a constitucionalidade das normas, o que a impedia de desaplicar o n.º 2 do art. 44.º da LGT (cf. conclusão 3) e, por outro lado, a liquidação ter sido totalmente anulada, quando é manifesto que o sujeito passivo, ora Recorrido obteve um ganho com a venda do imóvel – que não declarou, como lhe competia – e que sobre este ganho é devido imposto (cf. conclusões 4 a 13).

2.2.1.6 Assim, a questão que ora cumpre apreciar e decidir é a de saber se a sentença fez correcto julgamento ao anular a liquidação.
Cumpre salientar, desde já, que o facto tributário que deu origem à liquidação adicional não tem previsão na norma (o n.º 2 do art. 44.º do CIRS) que foi considerada inconstitucional, na interpretação de que a presunção ou ficção aí prevista (de que resulta que o valor de realização é o do VPT do imóvel) não admitia prova em contrário; a norma desaplicada por inconstitucionalidade não prevê nenhum facto tributário, designadamente o ganho resultante da mais-valia obtida com a venda do imóvel, mas apenas se refere à determinação da matéria tributável, à quantificação do imposto devido.
A opção da sentença, de conhecer em primeiro lugar da conformidade constitucional daquela norma na interpretação que lhe foi dada pela AT, ter-se-á eventualmente devido ao facto de não ter levado em conta a circunstância acima referida.
Cumpre, pois, averiguar da repercussão da inconstitucionalidade da norma – inconstitucionalidade que a sentença resolveu em termos que merecem a nossa inteira concordância e que ninguém discute nos autos – sobre a liquidação.
Note-se, a propósito, que o próprio Recorrido, em sede de pedido de revisão reconhecia o dever de pagar imposto pela mais-valia obtida (a tese de que não é o sujeito passivo do imposto só surgiu ulteriormente, em sede de impugnação judicial), se bem que apenas por 77/240 (setenta e sete duzentos e quarenta avos) do valor declarado da venda, que alegou ser o real, de € 500.000.
Vejamos, pois, se o Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada fez correcto julgamento quando, com fundamento na desaplicação da norma do n.º 2 do art. 44.º do CIRS, anulou totalmente a liquidação.


*

2.2.2 DO ERRO DE JULGAMENTO – A ANULAÇÃO PARCIAL DA LIQUIDAÇÃO

2.2.2.1 Como deixámos dito, não está em causa a desaplicação do n.º 2 do art. 44.º do CIRS com o sentido normativo que a AT lhe conferiu, ou seja, de que o ora Recorrente não podia fazer prova de que o preço de realização foi inferior ao que foi utilizado para efeitos de IMT. Como decidiu o Tribunal Constitucional no já referido acórdão, tendo em atenção o princípio da igualdade, na vertente da imposição de imposto segundo a capacidade contributiva e do objectivo constitucional da «repartição justa dos rendimentos e riqueza» (n.º 1 do art. 103.º da CRP), a imputação de matéria colectável considerando como valor de realização o que resultar para efeitos de IMT, quer se reconduza a uma presunção legal ou a uma ficção legal, deverá ter-se por ilidível, face ao disposto no art. 73.º da LGT.
A liquidação em causa, na medida em que a AT não permitiu ao ora Recorrido fazer a prova de que o valor de realização foi efectivamente inferior ao valor tomado como base para a liquidação do IMT, designadamente que foi o declarado na escritura, enferma, pois, da ilegalidade que a sentença lhe reconheceu.
Nem se diga que obsta a essa ilegalidade a circunstância de a AT não poder ter agido de outro modo, por não lhe cumprir desaplicar as normas por inconstitucionalidade. É certo que, como este Supremo Tribunal tem vindo a dizer (Vide, entre outros, os seguintes acórdãos da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:
- de 12 de Outubro de 2011, proferido no processo n.º 860/10, disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/-/4cd68957647aeef4802579300037b0ec;
- de 4 de Março de 2015, proferido no processo com o n.º 1529/14, disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/-/34af21b03b79ed3380257e03003b403a.
Vide também, do Pleno da mesma Secção, o acórdão de 30 de Janeiro de 2019, proferido no processo com o n.º 564/18.2BALSB, disponível em http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/-/999d115bc00a35e68025839a005a41b1.), a AT, porque está sujeita ao princípio da legalidade (cf. art. 266.º, n.º 2, da CRP e art. 55.º da LGT), não pode deixar de aplicar uma norma com fundamento em inconstitucionalidade, a menos que o Tribunal Constitucional já tenha declarada a inconstitucionalidade da mesma com força obrigatória geral (cf. art. 281.º da CRP) ou se esteja perante o desrespeito por normas constitucionais directamente aplicáveis e vinculativas, como as que se referem a direitos, liberdades e garantias (cf. art. 18.º, n.º 1, da CRP). Mas, se assim é, também é certo que a AT não estava impedida de interpretar o n.º 2 do art. 44.º do CIRC em sentido conforme à CRP e em conformidade com o disposto no art. 73.º da LGT.
Seja como for, o Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada estava obrigado (cf. art. 204.º da CRP) a averiguar da constitucionalidade da norma na interpretação que lhe foi dada pela AT. E andou bem ao decidir no sentido da inconstitucionalidade, o que ninguém contesta nos autos.
A questão está em saber se essa pronúncia do Tribunal de 1.ª instância no sentido da inconstitucionalidade determinava a anulação total da liquidação.

2.2.2.2 Adiantamos já que a resposta à questão é negativa.
É certo que, como bem observou a Juíza do Tribunal a quo – aliás, louvando-se em jurisprudência deste Supremo Tribunal ( Ver nota 5.) – quando o acto tributário tenha sido praticado à luz de uma norma que o tribunal considere desconforme com a CRP «a inconstitucionalidade verificada fulmina o acto sindicado, in totum». Mas essa conclusão – que não discutimos –, apenas será válida, sem mais, quando a norma desaplicada seja a que prevê o facto tributário (a norma de incidência em sentido estrito) e já não a que prevê a quantificação da matéria tributável, como sucede nos autos. Vejamos:
No caso, a liquidação foi efectuada ao abrigo do disposto nos arts. 9.º e 10.º do CIRS e nenhumas destas normas foi considerada inconstitucional. É inquestionável que, a menos que se comprove que o ora Recorrido não é o sujeito passivo do imposto – questão que a sentença não apreciou e decidiu, atenta a ordem por que entendeu conhecer das ilegalidades assacadas à liquidação –, o ganho por ele obtido com a venda do imóvel em causa está sujeito a IRS.
A quantificação da matéria tributável, a determinação dos ganhos sujeitos a IRS, é que foi efectuada com base numa interpretação inconstitucional de uma norma, qual seja o n.º 2 do art. 44.º do CIRS. Ou seja, o que foi considerado inconstitucional foi a interpretação de que o sujeito passivo não pode ilidir a presunção ou afastar a ficção legal, constante da referida norma, de que o valor de realização a considerar é o da avaliação para efeitos de IMT, uma vez que era superior ao valor da escritura; a inconstitucionalidade é referida à interpretação segundo a qual não é permitido ao sujeito passivo comprovar que o valor efectivo da transmissão do imóvel foi outro que não o considerado para efeitos de IMT, i.e, o resultante da avaliação para efeitos de fixação do valor patrimonial em sede de IMI.
Significa isto que a liquidação deverá ser anulada apenas na parte em que o valor de realização considerado excedeu o valor declarado na escritura, tal como pedido pelo ora Recorrido em sede de revisão.
Recorde-se que, a propósito da possibilidade de anulação parcial do acto tributário, este Supremo Tribunal tem vindo, por um lado, a afirmar que o acto tributário, enquanto acto divisível, tanto por natureza como por definição legal, é susceptível de anulação parcial e, por outro lado, que o critério para determinar se o acto deve ser total ou parcialmente anulado passa por aferir se a ilegalidade afecta o acto tributário no seu todo, caso em que o acto deve ser integralmente anulado, ou apenas em parte, caso em que se justifica a anulação parcial (Vide, entre outros, os seguintes acórdãos do Pleno da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo, nos quais se encontra ampla referência à jurisprudência e à doutrina sobre a questão:
- de 10 de Abril de 2013, proferido no processo com o n.º 298/12, disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/-/23388de46c670e8f80257b59004a34b1;
- de 30 de Janeiro de 2019, proferido no processo com o n.º 436/18.0BALSB, disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/-/91af7fd04cbdd0cd80258397005c1599.).
Afigura-se-nos, pois, que nada obsta a que a anulação da liquidação – de acordo, aliás, com a pretensão deduzida em sede de pedido de revisão – se restrinja à parte em que a AT considerou, para efeitos do cálculo da mais-valia tributável, um valor de realização superior ao preço que foi declarado na escritura. Essa anulação parcial não exige que o tribunal se substitua à AT na prática de um novo acto, o que lhe estaria vedado, antes se basta com um ulterior accertamento por parte da AT, de modo a conformar a parte remanescente do acto com os termos da decisão judicial anulatória.
A sentença, na medida em que decidiu pela anulação total da liquidação não pode, pois, manter-se.
Atento o provimento do recurso e consequente revogação da sentença, devem agora os autos regressar ao tribunal de 1.ª instância, a fim de aí serem conhecidas as questões que a sentença deu como prejudicadas pela solução a que chegou, sem prejuízo, se for caso disso, do ora decidido.


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2.2.3 CONCLUSÕES

Preparando a decisão, formulamos as seguintes conclusões:
I - Tendo em atenção o princípio da igualdade, na vertente da imposição de imposto segundo a capacidade contributiva e do objectivo constitucional da «repartição justa dos rendimentos e riqueza» (n.º 1 do art. 103.º da CRP), a imputação de matéria colectável considerando como valor de realização o que resultar para efeitos de IMT, nos termos do n.º 2 do art. 44.º do CIRS, quer se reconduza a uma presunção legal ou a uma ficção legal, deverá ter-se por ilidível, face ao disposto no art. 73.º da LGT, sob pena de inconstitucionalidade.
II - A constatação de que a AT, na quantificação da mais-valia obtida na venda de um imóvel do IRS, não permitiu ao sujeito passivo ilidir aquela presunção, impõe a anulação da liquidação apenas na parte em que o valor de realização considerado excedeu o valor declarado, ou seja, o preço que consta da escritura.


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3. DECISÃO

Em face do exposto, os juízes da Secção do Contencioso Tributário deste Supremo Tribunal Administrativo acordam, em conferência, em conceder provimento ao recurso, revogar a sentença recorrida no segmento em que anulou totalmente a liquidação e ordenar que os autos regressem ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada, a fim de aí ser conhecido o fundamento da impugnação judicial que a sentença considerou prejudicado.

Custas pelo Recorrido, que ficou vencido [cf. art. 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPC, aplicável ex vi do art. 281.º do CPPT].


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Lisboa, 23 de Junho de 2021. - Francisco António Pedrosa de Areal Rothes (relator) - Joaquim Manuel Charneca Condesso - Paulo José Rodrigues Antunes, (vencido nos termos do voto que se segue)


VOTO DE VENCIDO DO EX.MO SENHOR CONSELHEIRO PAULO ANTUNES

“1. Os argumentos utilizados na jurisprudência citada em abono do presente acórdão que profere decisão de anulação parcial, são fundamentalmente dois: 1) a divisibilidade do ato tributário; e 2) a natureza de plena jurisdição da sentença de anulação parcial do ato.
Ora, a divisibilidade do ato tributário não implica que não haja garantias do contribuinte que devam ser respeitadas, nomeadamente, de legalidade quanto à liquidação e cobrança, bem como no que respeita à fundamentação.
Por outro lado, porque, pese embora a referida natureza de plena jurisdição, o sistema consagrado é jurisdição de anulação e de execução por parte da administração - assim, se encontra previsto ser a A. T. que tem de proceder à "reconstituição imediata e plena da situação" - art. 100.º da L.G.T.

2. Mesmo que se admita possível estabelecer os efeitos de anulação, tal só deve ocorrer com declaração "parcial" quando tal resulte sem margem para dúvidas, conforme considerava a jurisprudência do S.T.A. a respeito do princípio do aproveitamento do ato.

3. Aliás, esta jurisprudência encontra-se na origem do atualmente disposto no art. 163.º n.º5 a) do C.P.A., à qual se teria de recorrer subsidiariamente, nos termos do art. 2.º c) do C.P.P.T.

4. Ora, afigura-se duvidoso que se verifique o condicionalismo no dito art. 163.º n.º5 a) do C.P.A. quanto ao ato se encontrar vinculado ou a solução apenas permitir identificar uma única como a legalmente possível, pois desde logo a fundamentação de direito que se colhe referida, como sendo os artigos 9.º e 10.º do CIRS., é vaga, para além de o alegado pelo impugnante quanto a não ser o responsável não ter chegado a ser apreciado, ainda que pelas razões indicadas, de não se ter chegado a conhecer dessa matéria na sentença recorrida, nem ser de conhecer de tal no presente recurso.

5. Na doutrina invoca-se o princípio da separação de poderes ou, pelo menos, que se deve dar prevalência ao núcleo essencial da administração, em confronto com os princípios da economia processual e da oficialidade - cfr. José Casalta Nabais, em Direito Fiscal, 7.ª ed. 2012, pág. 380-381, citando a doutrina administrativa de Vieira de Andrade e alguma estrangeira.

6. Para além dos acórdãos citados em sentido contrário ao decidido, ver ainda, entre outros o do S.T.A. de 8-1-2020 no proc. 01568/09.1BELRA, em que se levantavam problemas de enquadramento e era diferente a taxa aplicável em sede de IRS e mais-valias.

7. No acórdão do S.T.A. de 17-2-2021, proferido no proc. 01568/09.1BELRA, acessível tal como o anterior em www.dgsi.pt, decidiu-se pela anulação parcial, mas considerando especificamente a dedução de 50% que devia ter incidido no caso sobre a matéria coletável, e deixando-se claro em sede de fundamentação entendimento semelhante ao do acórdão que antecede.”