Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0823/20.4BEALM
Data do Acordão:05/10/2023
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:JOSÉ GOMES CORREIA
Descritores:TAXA DE OCUPAÇÃO DO SUBSOLO
REPERCUSSÃO FISCAL
CONSUMIDORES
JUROS INDEMNIZATÓRIOS
Sumário:I – Nos termos do artigo 85.º, n.º 3 da Lei n.º 42/2016, de 28 de Dezembro, a taxa municipal de direitos de passagem e de ocupação do subsolo são pagas pelas empresas operadoras de infraestruturas, não podendo ser reflectidas na factura dos consumidores.
II – Não determinando a natureza privada da entidade que praticou o acto lesivo (repercussão ilegal) a sua exclusão do conceito de “serviços” previsto no artigo 43.º da LGT e estando verificados os demais pressupostos para atribuição de juros indemnizatórios previstos no mesmo preceito, deve concluir-se que não existe qualquer obstáculo a que seja reconhecido à repercutida (consumidor final) o direito a reaver o que ilegalmente lhe foi exigido e pagou e respectivos juros indemnizatórios.
Nº Convencional:JSTA000P30981
Nº do Documento:SA2202305100823/20
Data de Entrada:10/06/2022
Recorrente:A..., S.A.
Recorrido 1:B..., S.A. – SUCURSAL PORTUGAL
Votação:UNANIMIDADE COM 1 DEC VOT
Aditamento:
Texto Integral:
Acordam, em conferência, na Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo

1. – Relatório

Vem interposto recurso jurisdicional por A..., S.A., melhor sinalizada nos autos, visando a revogação da decisão de 09/05/2022, do Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada, que julgou improcedente a impugnação deduzida contra a B..., S.A. – Sucursal Portugal, também sinalizada nos autos, relativa ao pagamento da Taxa Municipal de Ocupação de Solo (TOS), no valor de € 41.071,43 €.

Inconformada, nas suas alegações, formulou a recorrente A..., S.A, as seguintes conclusões:

A. A partir de 1 de janeiro de 2017, a repercussão da TOS nos consumidores finais passou a ser expressamente proibida.
B. Com efeito, decorre do artigo 85.º, n.º 3, do OE para 2017 que a “taxa municipal de direitos de passagem e de ocupação do subsolo são pagas pelas empresas operadoras de infraestruturas, não podendo ser refletidas na fatura dos consumidores”.
C. Ainda assim, a Recorrente foi notificada da fatura n.º ...90, emitida em 9 de abril de 2019 pela B..., e na qual foi incluída a TOS no montante de € 41.071,43.
D. Neste contexto, a Recorrente procedeu, em 6 de maio de 2019, ao pagamento da fatura e da TOS.
E. A Recorrente instaurou ação contra a comercializadora (a B...), requerendo a anulação da repercussão da TOS incluída naquela fatura, por violação do artigo 85.º, n.º 3, do OE 2017, procedendo-se ao seu reembolso acrescido de juros indemnizatórios até efetivo reembolso.
F. Entretanto, a Impugnante, ora Recorrente, foi notificada de sentença desfavorável no presente processo, no qual o Mmo. Juiz a quo decidiu pela improcedência da impugnação judicial.
G. Considera, contudo, a Recorrente que a sentença a quo padece de ilegalidade por assentar numa errada interpretação do direito, uma vez que a LOE 2017 veio proibir expressamente a repercussão legal da TOS aos consumidores finais.
H. No essencial, e quanto a este segmento, o Mmo. Juiz a quo pugna pela improcedência da impugnação judicial porquanto entende que o artigo 85.º, n.º 3, do OE 2017, não produziu efeitos jurídicos imediatos.
I. Com efeito, em particular aduz-se, na sentença sob recurso, que “[c]om efeito, nem o artigo 70.º do Decreto-Lei n.º 25/2017, de 3.03, disciplina a repercussão da taxa de ocupação do subsolo nem da sua conjugação com o artigo 85.º da Lei n.º 42/2016, de 28.12, resulta que o fim da repercussão da TOS opere sem a ponderação dos mesmos objetivos que estiveram na base da opção de repercussão conferida pelo legislador com a celebração dos atuais contratos de concessão, ou seja o equilíbrio económico-financeiro das empresas operadoras de infraestruturas.
Do exposto, resulta que a norma prevista no artigo 85.º, n.º 3 da LOE de 2017 não é automaticamente operacional, no sentido em que é necessária a mediação de outras normas jurídicas, que constituirão o quadro legal exigível a que a seja efetivamente alterado o regime legal de repercussão da TOS, de molde a que não seja refletida na fatura dos consumidores.”
J. Um raciocínio inaceitável, tendo em conta que a Lei do Orçamento do Estado para 2017 veio proibir expressamente a repercussão legal da TOS aos consumidores finais.
K. Com efeito, determina o artigo 85.º, n.º 3, da Lei do Orçamento do Estado para 2017 que a “taxa municipal de direitos de passagem e a taxa municipal de ocupação do subsolo são pagas pelas empresas operadoras de infraestruturas, não podendo ser refletidas na fatura dos consumidores” (negritos nossos).
L. Assim, a partir da entrada em vigor da Lei do Orçamento do Estado para 2017 – e sem necessidade de qualquer ato legislativo ou regulamentar adicional – a repercussão legal da TOS no consumidor final passou a ser ilegal.
M. Em todo o caso, sem prejuízo da ilegalidade da repercussão, esta continuou a ser efetuada à Recorrente, que é consumidora final, nos mesmos termos em que era efetuada antes da entrada em vigor do artigo 85.º, n.º 3, da Lei do Orçamento do Estado para 2017.
N. O que se discute na impugnação judicial é a lesão sofrida por força da repercussão de uma taxa municipal, repercussão essa que é ilegal e proibida, mas que continua a ser efetuada por força de um entendimento da lei que ignora os efeitos do disposto no artigo 85.º, n.º 3, do OE 2017.
O. O incómodo, injustiça ou ilegalidade da situação em que a ora Recorrida ou demais comercializadoras possam estar colocadas por força dessa proibição não é imputável à (nem repercutível sobre a) Recorrente, mas ao Estado.
P. Com efeito, se à entidade demandada, aqui Recorrida, se afigura que o Estado não estabeleceu os mecanismos de reequilíbrio contratual que devia ou não instituiu os meios necessários ao ressarcimento da Recorrida pelos custos que passou a ter por força da proibição de repercussão da TOS, deve a Recorrida insurgir-se e acionar o Estado como entender, designadamente em sede de responsabilidade civil.
Q. O que a Recorrida não pode é ignorar A LEI, fazer de conta que esta não existe, e continuar a onerar a Recorrida apenas porque a lei aumentou os seus custos de contexto sem qualquer contrapartida.
R. Entender de outro modo – como entendeu o Mmo. Juiz a quo na douta sentença sob recurso – é limitar os poderes de conformação legislativa da Assembleia da República, condicionando a eficácia de diplomas aprovados pelo órgão legislativo soberano no sistema português ao facto de tais diplomas ou normas serem, ou não, convenientes à atividade dos sujeitos a quem essa legislação se dirige, ao arrepio do princípio do primado da Assembleia da República que se infere do nosso sistema constitucional de reserva de competências, consagrado em particular nos artigos 161.º, 164.º, 165.º e 198.º da Lei Fundamental!
S. Ou seja – refira-se com toda a transparência – a interpretação que logrou obter vencimento na sentença sob recurso não é uma interpretação conforme à Constituição, porque resulta da Constituição que um Decreto-Lei de Execução Orçamental não pode limitar a vigência de uma Lei do Orçamento.
T. No Despacho n.º 315/2021, de 11 de janeiro, do Ministro de Estado e das Finanças, Ministra da Modernização do Estado e da Administração Pública e Ministro do Ambiente e da Ação Climática, o governo português reconhece (i) que a proibição de repercussão da TOS foi determinada pelo artigo 85.º, n.º 3, da LOE de 2017; (ii) que as entidades do setor não estão a cumprir com essa determinação (razão pela qual se almeja “o fim da repercussão”; e, (iii) que e é necessária uma alteração legislativa MAS – e esta é a parte relevante – tal alteração servirá para que a incidência passe a assentar na efetiva ocupação do subsolo, nada tendo a ver com a possibilidade de repercussão sobre os consumidores.
U. De resto, já na LOE de 2019 se havia previsto, no respetivo artigo 246.º, com a epígrafe “Quadro legal enquadrador das taxas de ocupação do subsolo”, que “1 — O Governo procede, até final do 1.º semestre de 2019, à revisão do quadro legal enquadrador da taxa de ocupação do subsolo em vigor, nomeadamente em matéria de repercussão das taxas na fatura dos consumidores [o que só pode interpretar-se como sendo uma abertura à revisão da proibição criada em 2017, por força dos resultados que a mesma tivesse tido no equilíbrio contratual dos operadores do setor]; 2 — A alteração legislativa prevista no número anterior deve [fazer] assentar a incidência [da TOS] na efetiva ocupação do subsolo […]”
V. Respondendo diretamente à questão colocada na sentença sobre o “sentido” que fazem estas sucessivas referências ao tema na legislação aprovada a partir de 2017, o sentido é este: estando ciente do incumprimento das operadoras/comercializadoras, o Governo pretendeu asseverar aos agentes económicos que o seu objetivo não seria alterado nem reduzido pelo ilegal comportamento destas entidades.
W. Não há dúvidas de que a necessidade de alterações e de revisão legislativas mencionadas no artigo 70.º do Decreto-Lei de execução orçamental relativo a 2017, na LOE de 2019, na LOE de 2021 e no Despacho n.º 315/2021, de 11 de janeiro, se relacionam com os operadores de energia e com o modo como a TOS recai sobre estes e é calculada.
X. Mas também é de cristalina evidência de que nada nessas normas e Despacho contende com a posição jurídica subjetiva em que o artigo 85.º, n.º 3, da LOE de 2017 envolveu a Recorrente e nos termos da qual a TOS deixou de poder ser-lhe exigida.
Y. In casu, a Recorrente é um consumidor final e a lei diz, expressamente, que “[a] taxa municipal de direitos de passagem e a taxa municipal de ocupação do subsolo são pagas pelas empresas operadoras de infraestruturas, não podendo ser refletidas na fatura dos consumidores” – cit., artigo 85.º, n.º 3, da LOE 2017 (destaques nossos).
Z. O segmento final da norma acabada de citar é imediatamente constitutivo de direitos para os consumidores, não carecendo, para ser eficaz, de qualquer densificação legislativa ou regulamentar adicional.
AA. Estes direitos são independentes do que suceda a montante, i.e., da solução dada à questão de saber sobre quem deva recair, entre Operadores e Comercializadores, o encargo da TOS, ou a jusante, i.e. da atitude que operadores e comercializadores queiram tomar relativamente ao Estado, que lhes exige um pagamento que não pode – e não pode por determinação legal - ser repercutido nos seus clientes.
BB. Por força dessa determinação legal o encargo não pode ser suportado pelo consumidor, máxime pela ora Recorrente, que é um terceiro face às relações estabelecidas entre o Estado, Operadoras e Comercializadoras.
CC. É esta clareza que deve assistir à tomada de decisão relativamente a este caso:
a. A LEI atribui um direito ao consumidor (v.g. à Recorrente), qual seja, o de não suportar a taxa de ocupação do subsolo;
b. Esse direito cria uma obrigação simétrica na esfera da Recorrida: a proibição de cobrar o montante da TOS à Recorrente.
c. A questão de saber quem deve suportar a TOS é irrelevante para o consumidor e deve ser dirimida em sede própria, se os visados assim entenderem;
DD. Tanto vale por dizer que, tendo a Recorrida ignorado a lei expressa, que proibia a cobrança de TOS à Recorrente, deve devolver os montantes que lhe foram entregues, INDEPENDENTEMENTE de poder ou não vir a recuperá-los junto de outras entidades.
EE. É que, ao contrário do que pretende o Mmo. Juiz a quo, um Decreto-Lei de Execução Orçamental não pode afastar a aplicação de uma Lei do Orçamento do Estado.
FF. O artigo 85.º, n.º 3, do OE 2017 contém uma norma clara, precisa e incondicional, da qual resultam dois imperativos: (i) a TOS tem que ser paga pelas empresas operadoras de infraestruturas; e (ii) não pode ser refletida na fatura dos consumidores.
GG. Relativamente ao artigo 70.º do Decreto-Lei de Execução Orçamental – invocado na sentença sob recurso –, este determina que “[t]endo em conta a avaliação referida no número anterior, o Governo procede à alteração do quadro legal em vigor, nomeadamente em matéria de repercussão das taxas na fatura dos consumidores”.
HH. É esta norma que não é exequível por si mesma, e nem sequer programática.
II. O artigo 70.º, n.º 5, além de confirmar a proibição de repercussão da TOS nos consumidores finais, prevê um mecanismo adicional de avaliação para o futuro (cuja aplicação prática, aliás, se desconhece); não revoga a proibição da repercussão nem lhe retira a respetiva eficácia.
JJ. Não. Aquilo que o legislador fez foi determinar uma avaliação da situação para, só depois, com base nos resultados dessa avaliação, decidir revogar ou manter a norma do artigo 85.º, n.º 3, do OE 2017.
KK. O Decreto-Lei de Execução Orçamental “contém as regras que desenvolvem os princípios estabelecidos no Orçamento do Estado para 2017, assegurando, em paralelo, uma rigorosa execução orçamental” (negritos e sublinhados nossos), sendo de referir que o resultado interpretativo deverá ser aquele que não seja incompatível com a Lei do Orçamento do Estado para 2017.
LL. Com efeito, o Decreto-Lei de Execução Orçamental existe porque existe um Orçamento do Estado e destina-se a desenvolver os imperativos plasmados neste último, tal como resulta dos números 1 a 3 do artigo 53.º da Lei n.º 151/2015, de 11 de setembro, usualmente denominada como “Lei de Enquadramento Orçamental” ou “LEO”.
MM. Inexistindo quaisquer dúvidas quanto ao facto de o Decreto-Lei de Execução Orçamental, seja ele qual for, dever respeitar e desenvolver o Orçamento do Estado e não obstar à sua aplicação.
NN. Entendimento diverso permitiria considerar legítimo que o Governo pudesse, através de Decreto-Lei e sem qualquer autorização legislativa específica, alterar, ou obstaculizar, o decidido pela Assembleia da República em matéria orçamental.
OO. Uma interpretação do artigo 70.º, n.º 5, do Decreto-Lei n.º 25/2017, de 3 de março, como a que se afigura transparecer da sentença sob recurso, segundo a qual tal norma tem o poder de impedir a aplicação imediata do n.º 3 do artigo 85.º da LOE 2017 torna aquela primeira norma inconstitucional, por violação do princípio da fixação de competência legislativa conexo com o princípio da separação de poderes, que deriva da conjugação dos artigos 111.º, 112.º n.º 3, 161.º, n.º 1, alínea g) e 198.º da Constituição da República Portuguesa, inconstitucionalidade que desde já se invoca para todos os legais efeitos.
PP. Passe a redundância, ignorar esta circunstância é atribuir ao Governo o poder de ignorar a Assembleia da República, bastando, para tal, que o Governo refira – como faz no decreto-lei em causa – agir no contexto de competência legislativa concorrencial, ao abrigo do artigo 198.º, n.º 1, alínea a) da Constituição da República Portuguesa.
QQ. Pelo que também por estas razões jurídico-constitucionais não deve tal interpretação colher, reconhecendo-se, ao invés, que não pode admitir-se que uma norma constante de um decreto-lei de execução orçamental impeça a aplicação de uma norma constante da lei de valor reforçado – a Lei do Orçamento do Estado – que sustenta e habilita a própria vigência do decreto de execução.
RR. Assim, tendo sido repercutida na Recorrente a TOS, torna-se claro que esta repercussão é ilegal, não podendo ser limitada pelo Decreto-Lei de Execução Orçamental.
SS. Interpretação que é a única conforme à Constituição da República Portuguesa.
TT. Acresce que, de acordo com o artigo 3.º, alínea g), do Decreto-Lei n.º 62/2020, de 28 de agosto, que estabelece as bases gerais de organização e de funcionamento do SNGN, entende-se por consumidor ou cliente final o “cliente que compra gás para consumo próprio”.
UU. A Recorrente desenvolve a atividade siderúrgica e de fabricação de ferro-ligas, não se dedicando, portanto, à produção, distribuição, comercialização ou revenda de gás natural, pelo que se impõe concluir que a cobrança da TOS à mesma contraria lei expressa.
VV. Pelo que não soçobram dúvidas de que, ao não reconhecer tal ilegalidade, a sentença sob recurso interpretou erradamente o direito aplicável in casu, de onde se encontra ela mesma ferida de ilegalidade, devendo ser, em consequência, anulada.
WW. Adicionalmente, quanto à alegada inconstitucionalidade da TOS, decidiu o Mmo. Juiz a quo que “a consideração do consumo de gás natural, como base para o cálculo do valor da taxa a repercutir ao consumidor final do gás natural, não determina a alteração da natureza de taxa da TOS em imposto, pelo que, a alegada inconstitucionalidade invocada pela Impugnante não pode proceder”.
XX. Ora, a não conformidade constitucional da TOS foi colocada em evidência pela Impugnante, ora Recorrente, por violação do princípio da legalidade tributária, plasmado no artigo 165.º, n.º 1, alínea i), da Lei Fundamental,
YY. Porquanto, por via do mecanismo de repercussão legal, a TOS procura atingir uma manifestação de capacidade contributiva específica (o consumo de gás natural), não assentando na prestação concreta de um serviço público, na utilização de um bem do domínio público ou na remoção de um obstáculo jurídico ao comportamento dos particulares, tratando-se, assim, materialmente, de um imposto.
ZZ. Assim, tratando-se materialmente de um imposto, a repercussão da TOS é inconstitucional ao não ter sido aprovada por Lei ou Decreto-Lei autorizado.
AAA. Além disso, frisa-se que a TOS consubstancia uma contrapartida pecuniária pela utilização e aproveitamento de um bem do domínio público e privado municipal que in casu não se verifica, pois, a Recorrente, além de não usufruir nem ocupar o subsolo, não dispõe igualmente de quaisquer pipelines.
BBB. De facto, no caso concreto não é possível identificar uma relação direta e efetiva entre o aproveitamento individualizado de uma utilidade e a exigência de pagamento.
CCC. O que, de resto, se reconhece expressamente na sentença recorrida, quando se refere, na p. 27 da mesma, que:
“No caso dos autos, não obstante a TOS cobrada à Impugnante não corresponda, stricto sensu, ao preço do serviço concretamente prestado pela Entidade Impugnada, a mesma está diretamente relacionada com a prestação desse serviço, pois a ocupação do subsolo que esta taxa visa remunerar é indispensável ao exercício da atividade económica da Impugnante, mormente para o fornecimento de energia” (cit. destaques nossos).
DDD. O argumento acaba por provar de mais: frisa-se, por um lado, a não equivalência entre o preço pago à Entidade Demandada e o serviço por esta prestado e salienta-se, por outro, que a ocupação do subsolo é indispensável ao exercício da atividade económica da impugnante, descurando-se o facto de tal ocupação não ser efetuada pela impugnante, aqui Recorrente.
EEE. In casu nunca é demais repetir: a Recorrente não ocupa o subsolo pelo que, por definição, não deve ser seu o encargo de uma taxa de ocupação do mesmo (situação que em muito difere do quadro factual sobre o qual incide a larguíssima maioria da jurisprudência superior portuguesa relativa à TOS).
FFF. Pelo que carece de sentido defender-se, como se faz mais adiante na sentença em crise, que “o ato de repercussão da taxa municipal de ocupação de subsolo consubstancia o encargo suportado pela Impugnante, resultante de contrapartida pelo custo da utilização do domínio municipal, pela utilização de infraestruturas no subsolo para o fornecimento de gás aos consumidores, o que evidencia a natureza sinalagmática da TOS”.
GGG. Não é – repita-se – a impugnante e ora Recorrente quem utiliza o domínio municipal ou causa o desgaste ou cria o risco inerente à existência de infraestruturas de transporte de gás no subsolo.
HHH. Pelo que é manifesto que o ato (de repercussão) que faz incidir sobre a Recorrente o custo da utilização do domínio municipal que a TOS visa remunerar conduz à perda de quaisquer características de sinalagmaticidade inerentes ao conceito de taxa.
III. E sem sinalagma, a TOS transmuta-se em imposto.
JJJ. De facto, no que concerne à categoria de tributo denominada taxa, a prestação pública não pode ser presumida ou eventual, sob pena de o tributo ser caraterizado como uma contribuição ou como um imposto, respetivamente,
KKK. E encontrando-se sujeito, por isso, ao princípio da legalidade tributária, designadamente na vertente de reserva legislativa da Assembleia da República, plasmada na alínea i) do n.º 1 do artigo 165.º da Constituição da República Portuguesa.
LLL. E esta é a pedra de toque que fere a repercussão da TOS de vício de violação de lei constitucional e que vem sendo arguido pela impugnante e aqui Recorrente ao longo do presente processo.
MMM. De facto, a inconstitucionalidade que se argui funda-se numa razão muito estrutural e intrínseca à delimitação conceptual das taxas e impostos: o sinalagma que, mais ou menos difuso, preside ao conceito de taxa (cujos elementos essenciais não estão sujeitos à reserva legislativa parlamentar) e que pode estar totalmente ausente nos impostos (cujos elementos essenciais têm de ser aprovados ou autorizados pelo parlamento) não se verifica in casu.
NNN. Pelo que manifesto se torna que a repercussão da TOS é organicamente inconstitucional, na medida em que, tendo transmutado este tributo em imposto (no que tange à impugnante e ora Recorrente e não no que concerne à sua estrutura genérica), não respeita a mesma o disposto no artigo 165.º, n.º 1, alínea i) da Constituição da República Portuguesa, posto que não foi aprovada pela Assembleia da República, como devia.
OOO. De onde deve a sentença sob recurso também por esta razão subsidiária ser anulada e substituída por outra que, mesmo não reconhecendo a apontada ilegalidade, reconheça a inconstitucionalidade da repercussão da TOS sobre a Recorrente e, em consequência, ordene à Recorrida que devolva à Recorrente os montantes por esta pagos a título de TOS.
PPP. Discorda-se, igualmente, da douta Sentença na parte em que julgou improcedente o pedido de juros indemnizatórios deduzido pela impugnante, ora Recorrente.
QQQ. Atendendo ao caso em apreço, tendo a Recorrida, Entidade Demandada, repercutido ilegalmente a TOS na Recorrente, esta viu-se privada, ilicitamente, de uma quantia que lhe era devida pelo que deverá ser devidamente compensada.
RRR. Não obstante a B... não integrar a Administração Tributária e Aduaneira nem ser um ente público equiparado, para o efeito da discussão em causa nos presentes autos, é ela que indevidamente repercutiu o tributo à impugnante, ora Recorrente.
SSS. Ao cobrar a TOS à Recorrente em violação de lei expressa, a Recorrida cobra-lhe um tributo que não é devido, privando-a, deste modo, de uma quantia que era sua.
TTT. A repercussão da TOS traduz-se, assim, num empobrecimento real e efetivo da tesouraria da impugnante, ora Recorrente, e num enriquecimento da tesouraria da B....
UUU. Verificando-se a repercussão da TOS pela B..., em violação do artigo 85.º, n.º 3, do OE para 2017, existe fundamento legal para o pagamento de juros indemnizatórios à Recorrente, ao abrigo do artigo 43.º da LGT, na medida em que se verificou o pagamento indevido de um tributo, cujo erro não é (seguramente) imputável a esta.
VVV. Refira-se que, em tese, o direito a juros indemnizatórios devidos à Recorrente, A..., é independente e alheio ao eventual direito de regresso que a Recorrida possa ter sobre outras entidades.
WWW. Por todo o exposto, a decisão recorrida deverá ser revogada e substituída por outra que declare procedente a impugnação judicial proposta pela Impugnante, ora Recorrente, por ser conforme ao Direito.
Nestes termos e nos demais de Direito, que V. Exas. mui doutamente suprirão, deve o presente Recurso ser julgado procedente, em face da fundamentação exposta, revogando-se assim a douta sentença e substituindo-a por uma outra que declare procedente a impugnação judicial.

A recorrida B..., S.A. – Sucursal Portugal apresentou contra-alegações que finalizou com as seguintes conclusões:


1) O Tribunal recorrido julgou improcedente a impugnação judicial por entender que a repercussão da Taxa de Ocupação do Subsolo ao cliente final, por desrespeito à alteração que decorreu da Lei n.º 42/2016 de 28.12 (LOE de 2017) não padece de ilegalidade.

2) Ora, tal norma, não obstante de fazer parte do Orçamento de Estado que entrou em vigor no dia 1/Janeiro/2017, nunca chegou a entrar em vigor, pois não é eficaz.

3) Aliás, a norma contida no OE de 2017 serve apenas como ponto de partida para uma alteração de um quadro legal.

4) E é isto que decorre do artigo 70.º da Lei de Execução Orçamental para 2017 (Decreto-Lei n.º 25/2017, de 3 de Março) que deve ser considerado como um acto de interpretação autêntica do art. 85.º, n.º 3 da LOE de 2017, já que, provindo ambas as normas de fontes equivalentes (lei e decreto-lei têm igual valor, nos termos do disposto no art. 112.º, n.º 2 da CRP), uma (a mais recente) permite perceber o alcance que a outra (a mais antiga) é suposto ter.

5) A norma da Lei de Execução Orçamental define as condições em que o art. 85.º poderá vir a ser executado (cumprindo, dessa forma, a função de uma lei de execução orçamental).

6) Impõe um cumprimento do dever de comunicação das empresas titulares das infraestruturas do cadastro das suas redes até ao final do mês de abril de 2017 à DGAL e decorrido esse prazo as entidades reguladoras sectoriais avaliariam a informação recolhida e as consequências económico-financeiro das empresas operadoras, para que, posteriormente, tendo em conta essa avaliação o Governo proceda à alteração do quadro legal em vigor.

7) Só assim se cumprirá a proibição da repercussão da TOS prevista na LOE para 2017.

8) Sendo claro que este artigo vem dar aplicação ao que se previa na LOE 2017.

9) Pelo que sem a aprovação deste regime jurídico por parte do Governo não se pode considerar que tenha existido uma alteração normativa eficaz, nomeadamente, não se pode dizer que está em vigor a proibição da repercussão da TOS no consumidor final.

10) Tal entendimento tem sido consensual em várias instituições.

11) Em especial, o Governo que volta a inscrever tal compromisso, para alterar o quadro legal enquadrador da taxa de ocupação do subsolo em vigor, no art. 246.º, n.º 1 da LOE de 2019 (Lei n.º 71/2018, de 31 de Dezembro), obrigação que deveria ser cumprida até ao final do 1º semestre de 2019 e, ainda, no art. 133.º da LOE de 2021 (Lei n.º 75-B/2020, de 31 de Dezembro).

12) Admitindo por isso que não está em vigor a proibição da repercussão da TOS.

13) Acompanhando-se na íntegra a conclusão dos estudos da ERSE: “Concluímos, em suma, que a norma do n.º 3 do artigo 85.º da Lei n.º 42/2016 é parcialmente ineficaz, seja porque não reúne as condições necessárias para projectar os seus efeitos na realidade, seja porque o legislador expressamente explicitou o condicionamento da produção de efeitos até ao momento da entrada em vigor do novo regime jurídico sobre a repercussão da TOS.”

14) E foi assim que entendeu, e muito bem, o Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto na douta decisão recorrida e, também, nos processos 144/21.5BEPRT, 111/21.9BEPRT e 769/21.9BEPRT sobre questão igual à que aqui está em causa, decidindo, em todos, que enquanto não existir um novo quadro legal sobre a matéria, persiste a possibilidade legal de repercussão da TOS nos consumidores, pelo que a repercussão não padece de ilegalidade.

15) E, ainda, o Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada, nos processos n.º 4/21.0BEALM, 18/21.0BEALM, 58/21.9BEALM, 3/21.1BEALM, 14/21.7BEALM, 20/21.1BEALM, 267/21.0BEALM, 706/20.8BEALM.

16) Face ao exposto, a sentença proferida nestes autos pelo Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto não merece qualquer reparo pois cumpriu a Lei e o Direito.

Termos em que, e nos mais de Direito que Vossas Excelências doutamente se dignarem suprir, deve ser negado provimento ao presente recurso, mantendo-se a sentença recorrida, como é de inteira JUSTIÇA!


Neste Supremo Tribunal, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta, notificada nos termos do art. 146.º, n.º 1, do CPTA, pronunciou-se no sentido de dever ser concedido parcial provimento ao recurso, com a seguinte fundamentação:

A..., S.A. veio recorrer para o STA, ao abrigo do disposto no artigo 280º do CPPT, da sentença proferida pelo TAF de Almada que julgou improcedente a Impugnação Judicial que apresentou, contra a liquidação da taxa municipal de ocupação do subsolo (TOS), respeitante ao mês de Março de 2019, no montante de 41.071,43, a que se refere a factura n.º ...90 emitida em 09.04.2019

Os fundamentos do Recurso constam dos termos conclusivos das Alegações de Recurso apresentadas pela Recorrente, cujo teor aqui se reproduz para todos os legais efeitos.

A entidade recorrida apresentou Contra-Alegações, cujo teor aqui se reproduz para todos os legais efeitos, defendendo a manutenção do decidido.

A questão a apreciar consiste em saber se a sentença recorrida padece de erro de julgamento de direito ao considerar legal a repercussão sobre o consumidor final da taxa de ocupação do subsolo, relativa ao período de Março de 2019.

A recorrente discorda do decidido, defendendo que a partir de 1 de Janeiro de 2017, a repercussão da TOS nos consumidores finais passou a ser expressamente proibida por entender que a proibição de repercussão ao consumidor final que decorre do 85.º n.º 3 da LOE de 2017 não entrou em vigor em 1.01.2017 nem nunca chegou a ser eficaz como decorre do artigo 70.º da Lei de Execução Orçamental para 2017 (Decreto-Lei n.º 25/2017, de 3 de Março).

Tendo em conta os fundamentos do recurso, Importará, portanto, interpretar o teor dos preceitos legais citados pela Recorrente para saber se o nº3 do artigo 85º do LOE de 2017 entrou, ou não, em vigor em 01.01.2017.

O artigo 85º da Lei nº 42/2016, de 28 de Dezembro, que aprovou o Orçamento de Estado (OE) para 2017 dispõe:

“ Taxas de direitos de passagem e de ocupação do subsolo

1 - Para efeitos de liquidação da taxa municipal de direitos de passagem e da taxa municipal de ocupação do subsolo, as empresas titulares das infraestruturas comunicam a cada município, até 31 de março de 2017, o cadastro das suas redes nesse território, devendo proceder à atualização da informação prestada até ao final do ano.

2 - Na ausência da comunicação a que se refere o número anterior, o município presume que as infraestruturas estão localizadas na totalidade dos metros lineares da respetiva rede viária urbana.

3 - A taxa municipal de direitos de passagem e a taxa municipal de ocupação do subsolo são pagas pelas empresas operadoras de infraestruturas, não podendo ser refletidas na fatura dos consumidores.

4 - No primeiro semestre de 2017, é revista a Lei das Comunicações Eletrónicas, aprovada pela Lei n.º 5/2004, de 10 de fevereiro.”

O teor do artigo 70º do Dec.- Lei nº 25/2017, de 3 de Março, diploma de execução da Lei do Orçamento, é o seguinte:

“ 1 - O cumprimento do dever de comunicação previsto no n.º 1 do artigo 85.º da Lei do Orçamento do Estado é assegurado, até 31 de março de 2017, pelas empresas titulares das infraestruturas junto de cada município e atualizado até ao final do ano, sem prejuízo do disposto no n.º 2 do mesmo artigo.

2 - No caso de o município ser detentor de informação do cadastro das redes de infraestruturas, ou tiver pleno acesso à mesma através de plataforma online, este dispensa a empresa titular das infraestruturas em questão, por solicitação desta, da prestação inicial da informação, devendo a mesma ser atualizada até ao final do ano, conforme o estatuído no referido artigo 85.º

3 - Até ao final do mês de abril de 2017, os municípios dão conhecimento à DGAL da informação a que se referem os números anteriores, nos termos por esta definidos.

4 - Decorrido o período previsto para a prestação de informação, as entidades reguladoras setoriais em razão da matéria avaliam a informação recolhida e as consequências no equilíbrio económico-financeiro das empresas operadoras de infraestruturas.

5 - Tendo em conta a avaliação referida no número anterior, o Governo procede à alteração do quadro legal em vigor, nomeadamente em matéria de repercussão das taxas na fatura dos consumidores.”

Em 2017 nada foi aprovado em execução do desiderato do legislador e, posteriormente, na Lei nº 71/2018, de 31 de Dezembro, que aprovou o OE para 2019, o legislador voltou a prever no artigo 246º uma autorização ao Governo para revisão do quadro legal de enquadramento da taxa de ocupação do subsolo, nomeadamente em matéria de repercussão das taxas na fatura dos consumidores, todavia, também, nesse período, nada foi aprovado e só em Janeiro de 2021, por despacho conjunto dos ministros de estado e das finanças, da modernização do estado e da administração pública e do ambiente e da ação climática - despacho nº 315/2021, publicado no Diário da República n.º 6/2021, Série II de 2021-01-11, páginas 222 – 223 - é que foi determinada a constituição de um grupo de trabalho «com o objetivo de alterar o quadro legal enquadrador da TOS atualmente em vigor, nos termos estabelecidos pelo artigo 85.º da Lei n.º 42/2016, de 28 de Dezembro, artigo 70.º do Decreto -Lei n.º 25/2017, de 3 de Março, e artigo 246.º da Lei n.º 71/2018, de 31 de Dezembro».

A busca do sentido a imprimir aos preceitos legais em questão tem que ser efectuado à luz dos princípios gerais interpretativos previstos no artigo 9º do Código Civil, nos termos do nº 1 do artigo 11º da LGT ( “Na determinação do sentido das normas fiscais e na qualificação dos factos a que as mesmas se aplicam são observadas as regras e princípios gerais de interpretação e aplicação das leis.”).

Dispondo o artigo 9º do Código Civil :

“1. A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.

2. Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.

3. Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.”

Como resulta do disposto no n.º 3 do art. 9.º do Código Civil, na fixação do sentido e alcance da lei o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.

Por outro lado, como decorre do n.º 2 do mesmo art. 9.º do Código Civil, em sede de interpretação normativa não pode ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.

O nº1 do aludido preceito estabelece que a interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dela o “pensamento legislativo”.

Portanto, a letra da lei exerce a função de um limite, nos termos do art. 9º, nº 2: não pode ser considerado como compreendido entre os sentidos possíveis da lei aquele pensamento legislativo “ que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso”.

Tendo presentes aquelas regras, o que se constata, salvo o devido respeito por opinião contrária, quer dos termos do artigo 85º da LOE de 2007 quer do teor do artigo 70º do Dec.- Lei nº 25/2017, de 3 de Março, é que de nenhum dos preceitos legais, ou da sua conjugação, resulta que o nº3 do citado artigo 85º não tenha entrado em vigor em 01-01-2017.

Com efeito, o artigo 85º , nº3 da LOE de 2017 não refere que “serão pagas” ou “poderão vir a ser pagas”, antes referindo “são pagas pelas empresas operadoras de infraestruturas, não podendo ser refletidas na fatura dos consumidores” e no que respeita ao artigo 70.º do Decreto-Lei de Execução Orçamental, esta norma não é exequível por si mesma, e nem sequer programática, limitando-se o legislador do Decreto-Lei de Execução Orçamental a abrir a porta para, em função da avaliação das consequências no equilíbrio económico-financeira das empresas operadoras de infraestruturas, vir a ser alterada, por via legislativa, a proibição de repercussão que consta do artigo 85.º, n.º 3, da LOE 2017 mas, através da referida norma, o legislador não revogou a norma do artigo 85.º, n.º 3, da LOE 2017, nem sequer estabeleceu que ela terá inexoravelmente de ser revogada.

Acresce que da redacção dos preceitos em causa o que resulta, salvo melhor juízo, é que o “ artigo 70.º respeita à execução de uma norma (a do nº1), mas não à do n.º 3 do artigo 85.º da Lei do Orçamento do Estado.

Em consequência, salvo melhor juízo, terá de concluir-se, como a Recorrente, no sentido de que a partir da entrada em vigor da Lei do Orçamento do Estado para 2017 e sem necessidade de qualquer acto legislativo ou regulamentar adicional, a repercussão da TOS aos consumidores finais passou a ser ilegal pelo que a douta sentença recorrida fez uma incorrecta interpretação dos preceitos legais aplicáveis, ficando prejudicada a apreciação dos restantes fundamentos invocados.

Quanto ao pedido de juros indemnizatórios:

O regime previsto no artigo 43º da LGT normativo visa facilitar a reparação do contribuinte pelo dano provocado pelo pagamento indevido de uma prestação tributária e insere-se na relação entre a Administração Tributária e o contribuinte e com base no “erro imputável aos serviços”.

Como já decidiu o Supremo Tribunal Administrativo, de que é exemplo o douto Acórdão do STA proferido em 02-12-2020, no processo 0185/18.0BEPRT, cuja parte do respectivo sumário se transcreve:

“ … II - Não é imputável à entidade municipal nem aos seus órgãos ou serviços o acto impugnado de repercussão do valor de um tributo municipal que não foi por eles praticado nem de alguma forma determinado.”

Estando em causa, no caso em análise, uma relação jurídica entre duas entidades privadas, diversa da relação jurídica tributária que se estabelece entre a AT e o contribuinte, salvo melhor juízo, à reparação de danos decorrente da ilegalidade da repercussão não é aplicável o regime previsto no artigo 43º da LGT, sem prejuízo do direito da impugnante/ora recorrente vir a ser ressarcida pelos danos sofridos a efetivar no âmbito de ação de responsabilidade civil.
Pelo exposto, emito parecer no sentido de dever ser concedido parcial provimento ao recurso.

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Os autos vêm à conferência corridos os vistos legais.
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2. FUNDAMENTAÇÃO:

2.1. - Dos Factos:

Na decisão recorrida foi fixado o seguinte probatório reputado relevante para a decisão:

A. Pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 98/2008, de 3 de abril, foram aprovadas as minutas dos contratos de concessão de distribuição regional de gás natural, em regime de serviço público, a celebrar entre o Estado Português e as sociedades C..., S.A.; D..., S.A.; E..., S.A.; F..., S.A.; G..., S.A.; H..., SA - facto não controvertido - cf. artigo 65.º da petição inicial e artigo 29.º da contestação - e Resolução do Conselho de Ministros n.º 98/2008, publicada em Diário da República, 1.ª série, n.º 119, de 23.06.2008, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

B. O contrato de concessão da atividade de distribuição de gás natural entre o Estado Português e a concessionária G..., S.A., cuja minuta foi aprovada pela Resolução do Conselho de Ministros a que se refere a alínea antecedente, prevê, quanto aos «direitos e obrigações da concessionária», o seguinte:
Cláusula 7.ª
Direitos e obrigações da concessionária
1 - (…)
2 - Assiste à concessionária o direito de repercutir sobre os utilizadores das suas infra-estruturas, quer se trate de entidades comercializadoras de gás ou de consumidores finais, o valor integral de quaisquer taxas, independentemente da sua designação, desde que não constituam impostos diretos, que lhe venham a ser cobrados por quaisquer entidades públicas, direta ou indiretamente atinentes à distribuição de gás, incluindo as taxas de ocupação do subsolo cobradas pelas autarquias locais.
3 - Na sequência do estabelecido no n.º 2 e no que respeita às taxas de ocupação do subsolo a liquidar pelas autarquias locais que integram a área da concessão, os valores pagos pela concessionária em cada ano civil serão repercutidos por município sobre as entidades comercializadoras utilizadoras das infra-estruturas ou sobre os consumidores finais servidos pelas mesmas nos termos a definir pela ERSE.” - facto não controvertido - cf. artigos 67.º e 68.º da petição inicial e Resolução do Conselho de Ministros n.º 98/2008, publicada em Diário da República, 1.ª série, n.º 119, de 23 de junho de 2008, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

C. A 09.04.2019, a Entidade Demandada emitiu, em nome da Impugnante, a fatura n.º ...90, referente ao mês de março de 2019, no montante total de 774.480,59 €, na qual está incluído o valor de 41.071,43 €, correspondente à taxa de ocupação do subsolo - cf. fatura junta como doc. ... da petição inicial, a fls. 59 a 63 dos autos, que se dá por integralmente reproduzida.

D. A 06.05.2019, a Impugnante pagou a fatura referida na alínea anterior - cf. documento n.º ... junto com a petição inicial, a fls. 64 dos autos.
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2.2.- Motivação de Direito

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das respectivas alegações, nos termos dos artigos 144º nº 2 e 146º nº 4 do CPTA e dos artigos 5º, 608º nº 2, 635º nºs 4 e 5 e 639º do CPC ex vi dos artigos 1º e 140º do CPTA e 2º, al. e) do CPPT.
No caso, em face dos termos em que foram enunciadas as conclusões de recurso pela recorrente, a questão que cumpre decidir subsume-se a saber se a decisão vertida na sentença, a qual julgou improcedente a impugnação, padece de erro de julgamento, por considerar legal a repercussão sobre o consumidor final da taxa de ocupação do subsolo, relativa ao período de Março de 2019, quando a repercussão ao consumidor final passou a ser expressamente proibida a partir de 01.01.2017, como decorre do 85.º n.º 3 da LOE de 2017, acrescendo que verificando-se a repercussão da TOS pela B..., existe fundamento legal para o pagamento de juros indemnizatórios à Recorrente, ao abrigo do artigo 43.º da LGT, na medida em que se verificou o pagamento indevido de um tributo, cujo erro não é (seguramente) imputável a esta.
As questões aqui tratadas são, em ampla medida, idênticas – até pela quase integral similitude do quadro conclusivo das alegações – aquelas já tratadas, com a devida profundidade e detalhe, no recente acórdão deste Supremo Tribunal, de 8 de Março de 2023, lavrado no Processo n.º 39/21, disponível em www.dgsi.pt, envolvendo inclusivamente as mesmas partes, e onde se pode ler, em jeito conclusivo:
“I – Nos termos do artigo 85.º, n.º 3 da Lei n.º 42/2016, de Dezembro (Lei do Orçamento do Estado para o ano de 2017), a taxa municipal de direitos de passagem e de ocupação do subsolo são pagas pelas empresas operadoras de infraestruturas e não podem ser reflectidas na factura dos consumidores.
II – Sendo a citada norma válida e plenamente eficaz desde 1 de Janeiro de 2017, é ilegal o acto de repercussão que posteriormente à sua entrada em vigor foi incluído em factura de consumo de gás e suportado pelo consumidor final.
III - A actividade ou prestação de um serviço público essencial não perde a sua natureza pública administrativa pela circunstância de ser desenvolvida por uma pessoa colectiva de direito privado (no caso constituída sob a forma de sociedade anónima), nem o acto de repercussão, realizado ao abrigo de um direito legalmente reconhecido, deixa de ser materialmente tributário apenas por ter sido praticado por uma concessionária (de serviço publico essencial), pelo que, os valores cobrados ao consumidor na parte que respeitam à contrapartida da utilização pela concessionária do bem de domínio público ainda possuem a natureza de créditos tributários.”
Acresce que, por seu turno, tal aresto já se valia da decisão pioneira constante do Processo n.º 2/21, de 23 de Fevereiro de 2023, cuja fundamentação se seguiu de perto, aresto este igualmente livremente disponível em www.dgsi.pt.
Assim sendo, e por concordarmos integralmente com aquele Acórdão, assim como com a vasta fundamentação ali expendida, limitamo-nos a remeter para o respectivo teor, o qual se dá aqui por integralmente reproduzido no que respeita e responde à primeira questão acima colocada pela Recorrente.
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Importa ainda responder à questão da condenação em juros indemnizatórios, decretada pela sentença recorrida.
E, também a esse respeito, julgamos que carece de sustento o presente Recurso, como este Supremo Tribunal já teve oportunidade de explanar na decisão pioneira sobre esta matéria, constante do Processo n.º 2/21, de 23 de Fevereiro de 2023, igualmente disponível em www.dgsi.pt e onde, a título conclusivo, se pode ler: “Não determinando a natureza privada da entidade que praticou o acto lesivo (repercussão ilegal) a sua exclusão do conceito de “serviços” previsto no artigo 43.º da LGT e estando verificados os demais pressupostos para atribuição de juros indemnizatórios previstos no mesmo preceito, deve concluir-se que não existe qualquer obstáculo a que seja reconhecido à repercutida (consumidor final) o direito a reaver o que ilegalmente lhe foi exigido e pagou e, bem assim, o direito a receber o valor correspondente aos juros indemnizatórios, calculados à taxa de 4%, desde a data em que esse pagamento indevido se verificou até efectivo e integral pagamento.”.
Destarte e porque também a tal respeito entendemos ser de acompanhar integralmente a fundamentação e sentido decisório ínsitos no mencionado aresto, limitamo-nos a remeter para o respectivo teor, o qual se dá aqui por integralmente reproduzido e se encontra livremente acessível em www.dgsi.pt.
Por todo o exposto, mais não resta do que concluir que assiste razão à Recorrente, pelo que se impõe conceder provimento ao presente Recurso, nos mesmos termos

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3.– DECISÃO

Face a tudo quanto ficou exposto, acordam os Juízes que integram a Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo em, concedendo provimento, ao recurso:

A) Revogar a sentença recorrida;

B) Julgar ilegal e anular o acto de repercussão impugnado, integrado na factura n.º ...90, referente ao mês de Março de 2019, no montante € 41.071,43 €;

C) Condenar a Recorrida a devolver à Recorrente o valor referido em B), acrescido de juros, contados à taxa de 4%, desde a data do pagamento indevido (06.05.2019) até à data da integral e efectiva devolução daquela importância.

Custas pela Recorrida em 1ª instância e neste Supremo Tribunal Administrativo.


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Lisboa, 10 de Maio de 2023. - José Gomes Correia (relator) – Aníbal Augusto Ruivo Ferraz - Pedro Nuno Pinto Vergueiro (Voto a decisão).