Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:041/22.7BCLSB
Data do Acordão:11/03/2022
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:SUZANA TAVARES DA SILVA.
Descritores:ARBITRAGEM
INFRACÇÃO DISCIPLINAR
LIBERDADE DE EXPRESSÃO
Sumário:I - O comentário técnico do jogo e das decisões de arbitragem nele praticadas, sempre que se limite a apontar erros técnicos, não consubstancia uma violação das normas regulamentares que protegem o direito à honra dos agentes desportivos.
II – O ilícito disciplinar previsto e punido pelo artigo 112.º do RDLPFP 2020 terá de consubstanciar-se numa afirmação de que os erros técnicos de arbitragem se fundaram numa intencionalidade dolosa dos agentes desportivos (sejam eles identificados de forma expressa ou por via indirecta através da indicação do jogo em causa) com o intuito de favorecer ou prejudicar alguma das equipas.
Nº Convencional:JSTA00071590
Nº do Documento:SA120221103041/22
Data de Entrada:06/29/2022
Recorrente:FEDERAÇÃO PORTUGUESA DE FUTEBOL
Recorrido 1:SPORTING CLUBE DE PORTUGAL - FUTEBOL, SAD E OUTROS
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na Secção do Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo:

I – Relatório

1 – Z……….. (Z……..), X………… (X……….) e Sporting Clube de Portugal - Futebol SAD (Sporting SAD), todos com os sinais dos autos, apresentaram no Tribunal Arbitral do Desporto (TAD), contra a Federação Portuguesa de Futebol (FPF), igualmente com os sinais dos autos, recurso do acórdão, proferido em plenário, do Conselho de Disciplina (Secção Profissional) da Federação Portuguesa de Futebol de 6.7.2021, no âmbito do processo disciplinar n.º 28-20/21.

2 – Por acórdão de 24 de Dezembro de 2021, do TAD, o processo arbitral foi julgado procedente e, consequentemente, revogada a decisão condenatória.

3 – Inconformada, a FPF recorreu daquela decisão para o TCA Sul, que, por acórdão de 19 de Maio de 2022, concedeu parcial provimento ao recurso, julgou improcedente o pedido de ampliação do objecto do recurso deduzido por Z………., revogou o acórdão arbitral recorrido no segmento relativo a Z……… e, em consequência, julgou totalmente improcedente o recurso interposto pelo mesmo perante o TAD.

4 – Inconformada com esta decisão, a FPF apresentou recurso de revista para este Supremo Tribunal Administrativo, o qual foi admitido por acórdão de 8 de Setembro de 2022.
5 - A Recorrente apresentou alegações que rematou com as seguintes conclusões:
«[…]

1. A Recorrente vem apresentar recurso da decisão proferida pelo TCA SUL no âmbito do recurso interposto da decisão arbitral alcançada na ação arbitral necessária n.º 37/2021, que declarou parcialmente procedente o recurso, determinando, contudo, que o Recorrido X………… e a Recorrida Sporting Clube de Portugal – Futebol SAD não podiam ser sancionados pelas declarações proferidas pelo primeiro Recorrido.

2. Naturalmente, não se recorre do segmento decisório que, revogando o Acórdão do TAD, confirma a sanção aplicada ao Recorrido Z……….., por se considerar decisão ajustada e certeira.

3. Os Recorridos haviam sido punidos pela prática de infrações disciplinares relacionadas com ofensas perpetradas a órgãos ou agentes desportivos, em concreto, foram aplicadas pela Secção Profissional do Conselho de Disciplina: (i) A X………….. sanção de suspensão de 22 dias e sanção de multa de € 3.830; (ii) À Sporting Clube de Portugal – Futebol SAD sanção de multa de € 20.910,00.

4. Andou mal o Tribunal a quo ao decidir que, no caso, existe uma causa de exclusão da ilicitude – o direito fundamental à liberdade de expressão – e, por essa razão, decidiu, quanto ao Recorrido X………….. e à Recorrida Sporting Clube de Portugal – Futebol SAD, revogar a decisão do Conselho de Disciplina.

5. O valor protegido pelos ilícitos disciplinares em causa nos autos, à semelhança do que é previsto nos artigos 180.º e 181.º, do Código Penal, é o direito “ao bom nome e reputação”, cuja tutela é assegurada, desde logo, pelo artigo 26.º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa; mas tais artigos do RD da LPFP visam, ao mesmo tempo, a proteção das competições desportivas, da ética e do fair play.

6. A nível disciplinar os valores protegidos com estas normas são, em primeira linha, os princípios da ética, da defesa do espírito desportivo, da verdade desportiva, da lealdade e da probidade e, de forma mediata, o direito ao bom nome e reputação dos visados, mas sempre na perspetiva da defesa da competição desportiva em que se inserem.

7. Em concreto, as normas em causa visam prevenir e sancionar a prática de condutas desrespeitosas entre agentes desportivos, visando tutelar a ética desportiva, a urbanidade, a probidade e a lealdade, enquanto princípios e valores que norteiam a prática de desporto em contexto de competição, sob um eixo de ética desportiva, associada, naturalmente, à necessária tutela da reputação, bom nome, consideração, credibilidade e profissionalismo dos diversos agentes desportivos e outros intervenientes, que, sob qualquer veste e independentemente do tipo de intervenção concreta, participam nas competições, em particular dos elementos que integram a equipa de arbitragem.

8. Com efeito, as normas em crise, impõem aos dirigentes de clubes, o escrupuloso cumprimento de deveres de correção e de urbanidade nas suas relações desportivas, nomeadamente quando tecem considerações e juízos e/ou formulam e dirigem imputações aos elementos da equipa de arbitragem que são suscetíveis de abalar e ofender a reputação, o bom nome e a credibilidade dos visados, bem como quanto a juízos e/ou imputações dirigidos contra órgãos sociais da FPF, nomeadamente o Conselho de Arbitragem.

9. Evidentemente, se é verdade que o direito à crítica constitui uma afirmação concreta do valor da liberdade de pensamento e expressão que assiste ao indivíduo (artigo 37.º, n.º 1, da CRP), esse direito não é ilimitado. Ao invés, deve respeitar outros direitos ou valores igualmente dignos de proteção.

10. Em particular, veja-se o art. 26.º da Constituição da República Portuguesa (doravante, CRP) que, sob a epígrafe “outros direitos pessoais”, consagra os chamados direitos de personalidade, entre os quais se encontra o direito ao bom nome e à reputação (nº 1 do art. 26.º da CRP).

11. A relevância constitucional atribuída à tutela do bom nome e reputação legitimou, entre outros, a criminalização de comportamentos como a injúria e a difamação e, no âmbito do direito disciplinar desportivo, a tipificação de infrações disciplinares que consubstanciem ofensas à honra e reputação, designadamente, de agentes desportivos e dos órgãos da Federação Portuguesa de Futebol.

12. Aqui chegados, será que as expressões e declarações supra mencionadas estão justificadas pelo exercício legítimo da liberdade de expressão, como entendeu o Tribunal a quo? Salvo o devido respeito, não.

13. O que se verificou foi que, sem qualquer base factual concreta e real, os ora Recorridos formularam juízos de valor lesivos da honra dos agentes de arbitragem em questão, colocando em causa o interesse público e privado da preservação das competições de futebol.

14. Com efeito, como Diretor de Comunicação de uma das maiores instituições desportivas nacionais, o Recorrido X………….. sabe que as declarações que profere são aptas as influenciar a comunidade e a imagem que a mesma tem das competições e dos agentes desportivos nelas envolvidos. Pelo que, impende sobre si, um dever de zelo para prevenir fenómenos de violência e intolerância no desporto.

15. Tomando a opção de proferir declarações que proferiu, olvidando propositada e voluntariamente os deveres regulamentares a que está adstrito, designadamente, o de cuidar de não proferir declarações que possam potenciar fenómenos de intolerância, desrespeito e violência no desporto, ou lesivas da honra e bom nome dos visados, ou ainda que coloquem em causa a estabilidade e a imagem das competições.

16. Os Recorridos, mais não fazem do que aludir a que os agentes de arbitragem visados não cuidaram que os princípios da isenção, objetividade e imparcialidade presidissem às respetivas decisões e que os alegados erros foram deliberados e não se verificaram noutros casos, no seu entender, semelhantes.

17. Não está em causa uma questão de analisar objetivamente erros de arbitragem. Nem se trata aqui de limitar o direito à crítica e a liberdade de expressão ou de opinião.

18. O que os Recorridos fizeram, foi uma extrapolação dos factos concretos, veiculando considerações relativamente à arbitragem, imputando a esta uma atuação intencional de prejudicar a Sporting Clube de Portugal – Futebol SAD.

19. Os Recorridos sabiam ser o conteúdo das declarações proferidas adequado a prejudicar a honra e reputação devida aos elementos da equipa de arbitragem e órgãos federativos, na medida em que indiciam uma atuação dos mesmos a que não presidiram critérios de isenção, objetividade e imparcialidade, antes colocando assim e intencionalmente em causa o seu bom nome e reputação.

20. Lançar suspeitas, manifestamente infundadas, de que a atuação de determinado agente de arbitragem não é pautada ao abrigo dos valores da imparcialidade e da isenção, não podem deixar de ser atentatórias da honra e bom nome do respetivo elemento de arbitragem, consubstanciando um comportamento que não pode ser tolerado e que não está justificado pelo exercício lícito da sua liberdade de expressão.

21. Todo este entendimento, não é colocado em crise pelo disposto no artigo 10.º da CEDH. Com efeito, sem prejuízo de a liberdade de expressão ser um valor e princípio protegido pela referida norma, haverá que atentar no que dispõe o n.º 2 do referido artigo 10.º da CEDH. Com efeito, ali se refere que certas pessoas ou grupos, pela natureza das suas funções e responsabilidades, poderão ver a sua liberdade de expressão limitada.

22. Donde fica cabalmente demonstrado que andou bem o Conselho de Disciplina, devendo, portanto, ser revogado o Acórdão Recorrido na parte em que decidiu não confirmar a decisão do Conselho de Disciplina da FPF em sancionar o Recorrido X………… e a Recorrida Sporting Clube de Portugal – Futebol SAD.

Nestes termos e nos mais de Direito aplicáveis,

Deverá o Tribunal Central Administrativo Sul dar provimento ao recurso e revogar o Acórdão Arbitral proferido quanto ao não sancionamento de X………….. e da Sporting Clube de Portugal – Futebol SAD, mantendo a decisão de confirmar a sanção aplicada a Z……….., com as devidas consequências legais, ASSIM SE FAZENDO O QUE É DE LEI E DE JUSTIÇA.

[…]».


6 – Os Recorridos Sporting SAD e X………….. produziram contra-alegações em que pugnaram pela não admissão da revista.


7 – O Excelentíssimo Senhor Procurador-Geral Adjunto junto deste Tribunal, notificado nos termos e para os efeitos do artigo 146.º do CPTA, não emitiu parecer.


Cumpre apreciar e decidir.


II – FUNDAMENTAÇÃO

1. De facto
O TCA Sul deu como assente a seguinte matéria de facto:
«1 - No dia …………, realizou-se, no Estádio Municipal de ……….., o jogo oficialmente identificado sob o n.° ………. entre a Futebol Clube de Famalicão - Futebol SAD e a Sporting Clube de Portugal - Futebol SAD, a contar para a ………..ª Jornada da Liga NOS, época …………..;
2 - A equipa de arbitragem do sobredito jogo foi constituída por V………, Árbitro principal, …………, Árbitro Assistente n.º 1, …………, Árbitro Assistente, n.º 2, ………….., 4° Árbitro, U……….., VAR, ………….., AVAR e …………., Observador;
3 - O Demandante Z…………. é Presidente do Conselho de Administração da Sporting Clube de Portugal - Futebol SAD;
4 - No final do jogo mencionado em 1 supra, o Demandante Z……….. prestou à estação de televisão ..........., as seguintes declarações:
«Voltamos a ter o árbitro V………… e um árbitro no VAR [U…………], que não é o mesmo, mas pelos vistos manteve influência num momento capital.... e hoje volto a fazer a mesma questão (que vou dizer a mesma resposta): este lance final de anular o golo ao …….. é, um dos rivais, Benfica ou Porto, nunca seria anulado... nunca seria anulado... [...]. Em todos os jogos de futebol existem erros, existe um erro ou outro... o que me preocupa aqui é a natureza e a forma como tem sido visto o VAR, curiosamente nos dois jogos em que perdemos pontos... Este lance do golo do ……….. é um golo “limpo"... E depois o que é que acontece? O que acontece é: vamos utilizar o VAR e vamos encontrar alguma coisa que justifique poder anular o golo... e se for preciso colocamos uma câmara microscópica, com uma ampliação de 64 vezes, e vamos... não... atenção... toca no braço e há razão para anular um golo... volto a dizer: este golo jamais seria anulado com os nossos rivais [Benfica ou FC Porto]... Jamais! Lamento, mas enquanto Presidente do Sporting custa muito ver 4 pontos retirados onde se utiliza mal o VAR ... por uma utilização má do VAR [...] Já falei com o Presidente do Conselho de Arbitragem que partilha a mesma opinião que o VAR tem de ser utilizado para erros gritantes... clamorosos... o árbitro valida o golo, o golo é “limpo” [...] e depois chamam o VAR e vamos lá com a visão microscópica... como é que eu consigo anular este golo? E o árbitro consegue... e depois vêm todos os especialistas... vêem, há um frame em que toca... pelo amor de Deus, aquele golo é “limpo” em qualquer campo. [...]. Eram quatro pontos de avanço e começa a tremer.... Só que quanto mais tremem e quanto mais fazem isto, mais força dão àquele grupo... isso vos garanto!».
5 - Estas declarações tiveram repercussão na imprensa desportiva nacional.
6 - O Demandante X………… é Diretor de Comunicação da Sporting
Clube de Portugal - Futebol SAD;
7 - Referindo-se ao jogo em apreço e à respetiva equipa de arbitragem, o Demandante X………… proferiu as seguintes declarações no programa “..........” transmitido no canal ........... em ……… de …….:
«A APAF está a ser coerente com ela própria... Quando o Sporting fala, a APAF reage, quando os outros falam, a APAF fica em silêncio... Uma dualidade de critérios de que nos queixamos fora e dentro do campo. Em ……. jogos realizados, o Sporting apenas perdeu pontos em 2 jogos. Curiosamente teve o mesmo árbitro e curiosamente ambas as atuações foram contestadas [...]. Não queremos regras diferentes para o Sporting, não queremos fazer nomeações cirúrgicas dentro do Sistema para as coisas correrem melhor para nós. Nós queremos regras iguais para todos. Eu acho que isto assusta muita gente, assusta o poder instalado. O verdadeiro poder instalado assusta-se com a transparência e com as regras iguais para todos. Não queremos nomear este árbitro para aqui, aquele árbitro para ali, como já o disseram outros clubes e até com orgulho...V………… não apitou bem nos 2 jogos com o Sporting... [...] Se me pergunta se eu quero ver o V……….. a apitar mais jogos do Sporting... Não, não quero... E não quero até para o proteger a ele próprio... [...] mais uma vez provou-se que seria útil ouvir as comunicações entre árbitro e VAR ...Gostaria de ouvir a conversa entre V………. e U…………, perceber qual foi o critério. Quem é competente não teme a transparência...»;
8 - Também estas declarações tiveram repercussão na comunicação social.
9 - Na época desportiva ………., a Demandante Sporting Clube de Portugal - Futebol SAD, disputou a Liga NOS, organizada pela Liga Portuguesa de Futebol Profissional e, no seu canal televisivo “............”, transmitiu em ………… de …….. o programa “..........", no decurso do qual, referindo-se ao jogo em apreço e à respetiva equipa de arbitragem, o Demandante X……….. proferiu as declarações citadas em 7 supra.
[…]».


2. De Direito

2.1. Nos autos discute-se, essencialmente, a legalidade da decisão do Conselho de Disciplina da FFP de 06.07.2021 que condenou:

- Z……….. na multa de €15.300 e na sanção de suspensão de 60 dias, pela prática da infracção disciplinar, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 112.º n.º 1 e 136.º n.ºs 1 e 4, ambos do RDLPFP 2020;

- X……… na multa de €3.830 e na sanção de suspensão de 22 dias, pela prática da infracção disciplinar nos termos das disposições conjugadas dos arts. 112.º n.º 1 e 136.º n.º 1, ambos do RDLPFP 2020;

- a Sporting SAD na multa de €20.910, pela prática da infracção disciplinar nos termos do art. 112.º n.ºs 1, 3 e 4, do RDLPFP 2020 [ou seja, por as declarações proferidas por X………… lhe serem imputadas, dado que as mesmas foram reproduzidas e divulgadas pela sua imprensa privada (canal .........)].

2.2. O TAD, em decisão de 24.12.2021, considerou que os factos apurados, em especial, as declarações em apreço, correspondiam ao exercício do direito à crítica por parte de Z……….. e X……….. sem que se pudesse considerar ter sido violado o conteúdo essencial do direito à honra e ao bom nome dos visados pelas críticas, e revogou a decisão do Conselho de Disciplina.

2.3. Na sequência do recurso interposto pela FPF, o TCA Sul, no acórdão de 19.05.2022, concedeu provimento ao recurso quanto às declarações proferidas por Z………., revogando nesta parte a decisão do TAD e mantendo a decisão condenatória do Conselho de Disciplina. Mas julgou improcedente o recurso na parte relativa às declarações de X……….., considerando que se limitavam a enunciar factos objectivos e a apontar erros, delas não emergindo a imputação aos árbitros de qualquer intenção deliberada de errar e prejudicar o Sporting, pelo que manteve nesta parte a decisão do TAD de revogar a decisão condenatória do Conselho de Disciplina em relação ao Sporting SAD.

É sobre este segmento decisório do acórdão recorrido que versa o presente recurso de revista, no âmbito do qual se suscita, basicamente, a questão de saber se o enquadramento jurídico das declarações de X……….. feito pelo acórdão do TCA Sul é conforme com a jurisprudência pretérita deste STA sobre questões semelhantes.

2.3. Ora, este Supremo Tribunal Administrativo teve já oportunidade de se pronunciar anteriormente sobre a conformidade jurídica ou não de declarações com um teor equiparável ao daquelas que foram proferidas por X………… no canal .......... em ……….. de …….., transcritas no ponto 7 da matéria de facto assente.

Assim:

- no acórdão de 26.02.2019, exarado no processo n.º 066/18.7BCLSB, concluiu-se que as declarações em apreciação — “«Golo limpo anulado ao B………. que nem o vídeo árbitro viu. Esta é a jornada da vergonha»” e “«Não se via uma jornada com uma arbitragem assim desde o Apito Dourado: falta nítida de ……….. antes do penalty a favor do C………, dois penalties limpos contra o D………. não assinalados e golo limpo mal anulado à B………... É um escândalo, esta é a jornada da vergonha» — atingiam não apenas os árbitros envolvidos, mas que assumiam, também “potencialidade para gerar um crescente desrespeito pela arbitragem e, em geral, pela autoridade das instituições e entidades que regulamentam, dirigem e disciplinam o futebol em Portugal, é o sancionamento dos comportamentos injuriosos, difamatórios ou grosseiros necessário para a prevenção da violência no desporto, já que tais imputações potenciam comportamentos violentos, pondo em causa a ética desportiva que é o bem jurídico protegido pelas normas em causa (nº 1 do art. 112º, 17º e 19º do RDLPFP)”.

- no acórdão de 04.06.2020, exarado no processo n.º 0154/19.2BCLSB, concluiu-se que: “I – Preenche o tipo de infração disciplinar previsto e punido nos artigos 19.º e 112.º do Regulamento Disciplinar das Competições Organizadas pela Liga Portuguesa de Futebol Profissional (RDLPFP) a publicação de um artigo, na imprensa privada de um clube de futebol, onde se afirma que os árbitros atuaram com a intenção deliberada de errar e de favorecer a equipa adversária, imputando-lhes um comportamento ilícito e, por isso mesmo, desonroso. II – Aquelas normas não restringem desproporcionalmente a liberdade de expressão e de informação garantidas pelo artigo 37.º da CRP, que neste caso cedem para assegurar a salvaguarda de outros direitos e valores constitucionais, nomeadamente os direitos de personalidade inerentes à honra e à reputação dos árbitros (artigo 26º/1 da CRP), e a prevenção da violência no desporto (artigo 79.º/2 da CRP)”; estavam em causa declarações com o seguinte teor: “"Por uma Liga com verdade desportiva O balanço da primeira volta da Liga 2018/19 fica marcado por um conjunto de erros de arbitragem de uma dimensão que há muitos anos não se via. Muitos deles inexplicáveis e incompreensíveis.

O que habitualmente se verifica é que, entre eventuais benefícios e perdas, acaba por haver um equilíbrio no final das contas, entre equipas que lutam pelos mesmos objetivos. Na atual temporada isso não acontece. Pelo contrário: desta vez existe um clube que tem beneficiado sistematicamente de erros a seu favor. Situação reconhecida pela esmagadora maioria dos analistas e que coloca em causa a verdade desportiva desta competição. Outra evidência é que, no confronto direto entre os principais candidatos ao título, não se tem afirmado a superioridade de quem surge destacado na liderança. Bem pelo contrário. Trata-se, pois, de uma liderança muito alicerçada em erros sucessivos em momentos decisivos de jogos, a que não será alheio todo o clima de pressão, ameaças e coação dirigidos a diferentes agentes desportivos. Neste quadro, mais se torna urgente que, de forma transparente, se faça um balanço e se tornem públicos os 9 erros que recentemente foram assumidos. Ao nível do VAR, assistiram-se inclusive às mais incríveis decisões, onde mesmo com a ajuda de diversos ângulos e imagens, houve quem não visse o que toda a gente viu. Esperamos que, na segunda volta, esta dualidade de critérios e proteção absurda a um clube termine para que todos estejam em igualdade de circunstâncias e assim, com verdade desportiva, possam lutar pelos seus objetivos. O Sport Lisboa e Benfica também assume os seus erros quando eles existem. E não nos custa reconhecer o mérito dos adversários. Demonstrámos isso mesmo já esta época, nos jogos que não conseguimos vencer”.

- no acórdão de 02.07.2020, exarado no processo n.º 0139/19.9BCLSB, concluiu-se que: “I – Preenche a infracção disciplinar prevista e punida pelos artºs. 19.º e 112.º do RDLPFP a publicação de um artigo na “newsletter” de um clube desportivo onde se imputa ao VAR uma actuação deliberada de erro com o objectivo de favorecer um clube em detrimento de outro, colocando em causa a sua idoneidade para o exercício das funções que desempenha. II – Os citados preceitos do RDLPFP não podem ser interpretados no sentido de que a liberdade de expressão e de informação se sobrepõe à honra e reputação de todos aqueles que intervêm nas competições desportivas organizadas pela Liga Portuguesa de Futebol Profissional.”. Em causa estava um comunicado com o seguinte teor: “A……… teve uma carreira de árbitro recheada de decisões insustentáveis e, agora como VAR, segue a mesma lamentável tradição. Ontem, na ......., assinalou um penálti a favor do Benfica depois de um toque tão levezinho que fez G……. cair em câmera (sic) lenta, mas fez vista grossa a dois lances na área do Benfica, um deles uma pisadela clara. Já no ano passado, também na ……, o mesmo VAR deixou passar um penálti claríssimo sobre H………... Definitivamente, A… parece ter um problema com a imparcialidade, o que pode e deve afastá-lo dos jogos que vão decidir o campeonato”.

- no acórdão de 09.09.2021, exarado no processo n.º 050/20.0BCLSB, sumariou-se o seguinte: “Questão diferente [da mera referência a erros de apreciação técnica] é o clube perdedor extravasar do plano objectivo dos erros técnicos implicados no resultado desfavorável e passar para o plano subjectivo, afirmando que os erros técnicos nas faltas assinaladas e omitidas foram levados à prática pela equipa de arbitragem por esta prever e querer o resultado desfavorável que veio a verificar-se, ou seja, imputando aos árbitros um agir claramente pré-ordenado e ilícito à luz do princípio da verdade desportiva, dirigido ao cometimento dos erros técnicos assinalados tendo por finalidade o resultado verificado”. Neste caso estava em apreço um comunicado com o seguinte teor: “Campeonato Desvirtuado - Mais uma jornada, mais uma demonstração da falência da arbitragem em Portugal, da incoerência dos seus critérios e da sua clara interferência na classificação em prol do "status quo" vigente. Este domingo, contra o SL Benfica, assistimos a mais um rol de decisões inacreditáveis em prejuízo do SC Braga. Desde logo, um penálti por assinalar por jogo perigoso com contacto sobre ………. (17’). Aos 57’, porém, seria indevidamente marcada grande penalidade a favor do SL Benfica, apesar de não existir falta de …………… Tão instável como o critério técnico foi o critério disciplinar, com ……….. (61') e ………….. (78' e 79') a escaparem a claras infrações merecedoras de segundo cartão amarelo...”. A decisão haveria de sufragar a tese de que o mesmo não consubstanciava uma ofensa à honra de agentes desportivos.

Da jurisprudência antes referência resulta um padrão claro de decisão deste STA que assenta no pressuposto de que o comentário técnico do jogo e das decisões de arbitragem nele praticadas, sempre que se limite a apontar erros técnicos, não consubstancia uma violação das normas regulamentares que protegem o direito à honra dos agentes desportivos. Tal violação terá de consubstanciar-se numa afirmação de que os erros se fundaram numa intencionalidade dolosa dos referidos agentes desportivos (sejam eles identificados de forma expressa ou por via indirecta através da indicação do jogo em causa) para favorecer ou prejudicar alguma das equipas.

2.4. O critério de decisão antes mencionado, que consubstancia um parâmetro decisório conforme com as regras constitucionais e da CEDH e com a jurisprudência do TC e do TEDH em matéria de harmonização em abstracto da colisão potencial entre o direito à honra e ao bom nome e a liberdade de expressão, deve igualmente prevalecer no caso sub judice, para assim se assegurar uma interpretação e aplicação uniforme do direito (artigo 8.º, n.º 3 da CRP).

2.5. Transpondo a aplicação daquele parâmetro normativo de decisão para a factualidade apurada nos autos, afigura-se-nos que de nenhuma das expressões utilizadas no discurso por X………….. se pode inferir, com segurança (i. e. para além da dúvida razoável), que ele declarou haver uma intencionalidade dolosa nas decisões do árbitro V…………., que crítica. Quando ele afirma “(…) V…………. não apitou bem nos 2 jogos com o Sporting... [...] Se me pergunta se eu quero ver o V………… a apitar mais jogos do Sporting... Não, não quero... E não quero até para o proteger a ele próprio... (…)”, não pode concluir-se que o faz para dizer que ele viciou intencionalmente os resultados. O que se pode inferir destas declarações, até ao limite da dúvida razoável, é que ele entende que as arbitragens de V…………. foram más, podemos inferir com segurança que ele faz uma apreciação negativa do trabalho técnico do árbitro, mas não que ele atribua ao que qualifica como mau trabalho técnico uma intencionalidade dolosa de prejudicar o Sporting.

E o mesmo é válido para a passagem em que se discute a comunicação entre o árbitro e o VAR ao afirmar-se: “(…) mais uma vez provou-se que seria útil ouvir as comunicações entre árbitro e VAR ...Gostaria de ouvir a conversa entre V………. e U…………, perceber qual foi o critério. Quem é competente não teme a transparência...(…)”. Destas palavras apenas se pode inferir com segurança que X………….. criticou a não divulgação do teor daquela comunicação entre os árbitros e que considera que a dita divulgação ajudaria à transparência, mas não pode afirmar-se, com segurança, i.e. para lá da dúvida razoável, que ele pretende afirmar com aquelas palavras que o árbitro e o VAR actuaram com a intenção de prejudicar o Sporting. Pelo contrário, quando ele afirma que “(…) Quem é competente não teme a transparência...(…)”, tem de admitir-se como sentido razoável daquela expressão que a crítica esteja dirigida a uma falta de transparência que ocultaria, não uma intencionalidade desviante no sentido de adulteradora do resultado, mas apenas a uma possível intencionalidade desviante no sentido de camufladora de insuficiências da capacidade técnica dos agentes.

Do mesmo modo que se tem afirmado que a “linguagem em contexto de comentário desportivo” não deve ser analisada com um grau de exigência inferior, atenta a necessidade de salvaguarda dos valores em causa – garantir o prestígio das instituições e neutralizar preventivamente focos de violência, promovendo o fair play –, também se deve afirmar que a mesma não deve ser analisada sob o manto de uma metacompreensão denegridora das acepções textuais em concreto utilizadas.

Ora, tendo nós deixado consignado que a crítica no plano técnico não é apta a preencher o ilícito de atentar contra a honra dos agentes e concluído, como concluiu o TCA Sul, que as expressões utilizadas na entrevista em apreço não permitem afirmar, sem margem para dúvida, ou até segundo um juízo de razoabilidade, que a crítica ali formulada se baseasse na falta de integridade dos agentes por terem actuado com intencionalidade de adulterar os resultados, podendo as palavras comportar apenas o sentido de que a sua falta de qualidade técnica contribuiu para a produção dos resultados lesivos para o Sporting, impõe-se manter a decisão do TCA Sul.

Com efeito, até por comparação com a jurisprudência desta STA antes mobilizada, percebe-se que a solução alcançada pelo TCA Sul não constitui um desvio, ou, pelo menos, um desvio claro, ao parâmetro utilizado pelo STA, que justifique uma intervenção correctiva nesta sede, pelo que a mesma se deve manter.

E o mesmo parâmetro de decisão dita idêntica solução para a primeira parte das declarações aqui sob análise, quer quando se crítica uma dualidade de comportamento da APAF, quer quanto se criticam as nomeações dos árbitros, pois as afirmações não apontam, necessariamente, para que tenha existido uma “escolha” daqueles profissionais em função de uma intencionalidade de viciante dos resultados, sendo admissível e razoável uma interpretação literal daquelas declarações como “queixa” a respeito da arbitragem e de uma relação mais complexa entre o sporting e a APAF do que entre aquela entidade e outros clubes. Por outras palavras, não se nos afigura claro que das expressões utilizadas se tenha que retirar um sentido de imputação de ilicitude à nomeação dos árbitros (a única afirmação nesse sentido é imputada a “comentários” de outros clubes” e não directamente à realidade existente), nem um discurso que incite à violência ou ao desrespeito pelo sistema desportivo em causa. Também nesta parte se deve manter a decisão do TCA Sul.

2.6. E, nesta sequência, mantém-se igualmente a decisão do TCA Sul quanto ao Sporting SAD.

III – DECISÃO

Nos termos e com os fundamentos expostos, acordam os Juízes da Secção de Contencioso Administrativo em negar provimento ao recurso.
Custas pela Recorrente.

Lisboa, 3 de novembro de 2022. – Suzana Maria Calvo Loureiro Tavares da Silva (relatora) – Carlos Luís Medeiros de Carvalho – Ana Paula Soares Leite Martins Portela.