Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0852/17.5BESNT
Data do Acordão:04/10/2019
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:FRANCISCO ROTHES
Descritores:VENDA
EXECUÇÃO FISCAL
CASA DE MORADA DA FAMÍLIA
NULIDADE
Sumário:I - A venda em processo de execução fiscal constitui um acto de trâmite que, não um acto administrativo, pelo que não se lhe aplica o regime jurídico destes actos, designadamente o CPA.
II - A venda efectuada em execução fiscal em violação do n.º 2 do art. 244.º do CPPT é nula, porque celebrada contra disposição legal de carácter imperativo (cfr. art. 294.º do CC).
III - Essa nulidade é invocável a todo o tempo por qualquer interessado e pode ser declarada oficiosamente pelo tribunal (cfr. art. 286.º do CC), não ficando, pois, sujeita às regras da anulação da venda nem aos prazos fixados para a mesma no art. 257.º do CPPT.
Nº Convencional:JSTA000P24452
Nº do Documento:SA2201904100852/17
Data de Entrada:03/15/2019
Recorrente:AT-AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Recorrido 1:A.....
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Recurso jurisdicional de revista do acórdão proferido pelo Tribunal Central Administrativo Sul no processo n.º 852/17.5BESNT

1. RELATÓRIO

1.1 O Representante da Fazenda Pública (a seguir Recorrente) junto do Tribunal Central Administrativo Sul recorreu para este Supremo Tribunal Administrativo, ao abrigo do disposto no art. 150.º, n.º 1, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), do acórdão por que aquele Tribunal, negando provimento ao recurso jurisdicional interposto pela Fazenda Pública, manteve a sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra, que julgando procedente a reclamação deduzida pelo ora Recorrido, acima identificado, anulou o despacho do órgão da execução fiscal que indeferiu por intempestividade pedido de anulação de venda de fracção destinada a habitação própria e permanente do Recorrido e filhos menores.

1.2 O Recorrente apresentou alegações, que resumiu em conclusões do seguinte teor:

«a) As questões que se pretendem ver melhor analisadas pelo tribunal “ad quem” no presente recurso, são, por um lado: a de saber se o acto correspondente à venda é um acto materialmente administrativo ou um puro acto de tramitação da execução fiscal, e

Por outro lado:

b) A de saber qual a lei aplicável ao caso concreto, se o regime da invalidade dos actos administrativos previsto nos arts. 161.º e 162.º do CPA ou se o disposto no art. 257.º n.º 1 al. c) do CPPT;

c) No acórdão recorrido entendeu-se que o acto de venda do imóvel é um acto materialmente administrativo e, como tal, susceptível de ser declarado nulo ao abrigo dos arts. 161.º e 162.º do CPA, sendo, tal vício no entendimento que obteve vencimento no acórdão, invocável a todo o tempo;

d) Entendendo-se assim [no acórdão recorrido] que, in casu, não se aplica o disposto no art. 257.º n.º 1 do CPPT;

e) Já para a FP o acórdão recorrido incorreu em erro de interpretação e subsunção dos factos e do direito – em clara violação de lei substantiva –, o que afecta e vicia a decisão proferida, tanto mais que assentou e foi fruto de um desacerto ou de um equívoco;

f) Assim, entendemos que o acórdão recorrido não deve manter-se, sendo, a admissão deste recurso de revista, claramente necessária para uma melhor aplicação do direito;

g) In casu, o presente recurso é absolutamente necessário para uma melhor aplicação do direito, uma vez que, o acórdão aqui em crise incorre em erro de interpretação, sendo certo que, o erro de julgamento é gerador da violação de lei substantiva;

h) Desta forma, a necessidade de uma melhor aplicação do direito justifica-se, porquanto, em face das características do caso concreto, existe a possibilidade de este ser visto como um caso-tipo, não só porque contem uma questão bem caracterizada e passível de se repetir no futuro, como a decisão da questão se revela ostensivamente errada, juridicamente insustentável ou suscita fundadas dúvidas, o que gera incerteza e instabilidade na resolução dos litígios, sendo, assim, fundamental, a intervenção do STA na qualidade de órgão de regulação do sistema, como condição para dissipar dúvidas;

Vejamos:

i) Em primeiro lugar e contrariamente ao entendimento sufragado no neste acórdão, entende, a FP, que o acto correspondente à venda não é um acto meramente administrativo. É, sim, à semelhança de outros actos praticados na execução fiscal, um acto de tramitação da execução fiscal não incluído no âmbito do art. 148.º do CPA (anterior art. 120.º do CPA);

j) É também este o entendimento da jurisprudência e da doutrina dominante;

k) Neste sentido, entre muitos outros, o acórdão do STA de 26/05/2010, exarado no processo n.º 0343/10, prevê que:
Ora, em rigor, o acto em causa não se trata de um acto administrativo verdadeiro e próprio.
Pelo contrário, tal acto, como, de resto, outros proferidos pelo órgão de execução fiscal, designadamente, aquele em que se ordena a instauração da execução, a citação dos executados, a penhora dos bens, a venda dos bens penhorados, a anulação da venda, a anulação da dívida e a extinção da execução, ainda que sob controlo jurisdicional pela via da reclamação para o juiz competente, não serão mais que puros actos de trâmite, de tramitação da execução fiscal, não incluídos consequentemente no âmbito do artigo 120.º do CPA” (negritos nossos);

l) Também no acórdão do STA de 08/08/2012 [exarado no processo n.º 0803/12] que, apelando à doutrina de Lima Guerreiro, se entendeu que:
Por isso mesmo, concorda-se inteiramente como o comentário que Lima Guerreiro faz ao artigo 103.º da LGT, defendendo que «o processo de execução fiscal não tem, segundo o que a norma do número 1 expressamente declara, natureza meramente administrativa ou mesmo mista, mas é unitária e integralmente um processo judicial. Essa natureza integralmente judicial do processo não prejudica, no entanto, a participação dos órgãos da administração tributária nos actos sem natureza materialmente jurisdicional, ou seja, na prática dos chamados actos materialmente administrativos da execução fiscal. Não é, pois, cindível o processo de execução em uma fase formalmente administrativa e outra administrativa judicial. Ele é unitariamente um processo de natureza judicial» (cfr. Lei Geral Tributária – Anotada – Editora, Rei dos Livros, 2000, pág. 421 e 422).” (negrito nosso);

m) Em segundo lugar, não pode, a FP, conformar-se com a aplicação – a um pedido de anulação da venda – do regime da invalidade dos actos administrativos/nulidade, previsto nos arts. 161.º e 162.º do CPA;

n) Desta forma não poderá – como decidido no acórdão recorrido – ser pedida a declaração de nulidade da venda a todo o tempo;

o) Os prazos para pedir a anulação da venda judicial encontram-se previstos no artigo 257.º CPPT, bem como, nos artigos 838.º e 839.º do Código de Processo Civil (CPC), in casu, o pedido de anulação de venda será susceptível de integrar a previsão da alínea c) do n.º 1 do artigo 257.º do CPPT;

p) Nestes termos, o requerimento de anulação de venda teria de ser apresentado no prazo de 15 dias a contar da data da venda [art. 257.º n.º 1 al. c) e n.º 2 do CPPT], uma vez que, como o próprio Reclamante reconhece, este foi legal e devidamente notificado para aquele efeito;

q) Neste sentido veja-se, entre muitos, o acórdão do TCA Norte de 12-04-2013, exarado no processo n.º 00653/11.4BEPRT que, no seu sumário, explica que:
1- Nas situações de anulação da venda derivada de nulidades processuais cometidas no processo de execução fiscal, o prazo para requerer a anulação da venda é de quinze dias – alínea c) do n.º 1 do artigo 909.º do Código de Processo Civil e alínea c) do n.º 1 do artigo 257.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário” (o art. 909.º do CPC corresponde ao actual art. 839.º do mesmo código);

r) Em suma e salvo o devido respeito, poderemos afirmar que o acórdão recorrido incorreu em erro de interpretação e subsunção dos factos e do direito, em clara violação de lei substantiva, tanto mais que assentou e foi fruto de um desacerto ou de um equívoco, razão pela qual, no nosso entendimento, não deve manter-se, sendo, o presente recurso, absolutamente necessário para uma melhor aplicação do direito.

Por todo o exposto, e o mais que o venerando tribunal suprirá, deve o presente recurso de revista ser admitido e, analisado o mérito ser dado provimento ao mesmo, revogando-se, em conformidade, o acórdão recorrido, com todas as legais consequências […]».

1.3 O Recorrido não contra-alegou.

1.4 Por acórdão de 20 de Fevereiro de 2019 desta Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo, proferido pela formação a que alude o n.º 5 do art. 150.º do CPTA, a revista foi admitida (Acórdão disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/2c21840d5c117909802583ac003e9000.), com a seguinte fundamentação: «[…]

O acórdão negou provimento ao recurso interposto pela AT da sentença do TAF de Sintra que julgara procedente a reclamação judicial deduzida pelo ora recorrido do despacho de indeferimento – por intempestividade –, do pedido de anulação de venda por ele formulado ao órgão de execução fiscal, pedido este que tinha por fundamento a nulidade da venda decorrente da entrada em vigor da Lei n.º 13/2016, de 23 de Maio, que deu nova redacção aos artigos 219.º, n.º 2 e 244.º n.ºs 2, 4 e 5 do CPPT.
O TCA-Sul, no acórdão em causa nos presentes autos, confirmou o entendimento de 1.ª instância, julgando que o pedido de declaração de nulidade da venda, que não de mera anulação desta, por este concreto motivo, poderia ser apresentado a todo o tempo e pelo reclamante, com fundamento na alteração promovida pela Lei n.º 13/2016, de 23/05, ao art. 244.º n.º 2 do CPPT, desde que reunidos os pressupostos de tal regime de proibição de venda, pois viola o conteúdo fundamental do direito à habitação constitucionalmente protegido, não se lhe aplicando o disposto no art. 257.º, n.º 1 do CPPT, em especial os prazos nele contidos, uma vez que, como resulta da sua epígrafe, aquele preceito legal aplica-se tão-somente aos casos de “anulação da venda” – cfr. acórdão, a fls. 201 dos autos.
Invoca a recorrente que a posição perfilhada no acórdão sindicado, que sustenta o seu entendimento na qualificação da venda realizada em execução fiscal como “acto materialmente administrativo” e lhe aplica o regime dos actos nulos prevista no CPA ao invés do disposto no artigo 257.º do CPPT, para além de ostensivamente errada, é contrária à jurisprudência deste STA e do TCA-Norte.
Não perfilhamos tal entendimento.
O acórdão pode até ter incorrido em erro de julgamento, mas a posição que adopta nem é ostensivamente errada, nem juridicamente insustentável. Encontra-se sustentada, na lei e na doutrina, em termos com os quais se pode ou não concordar, mas que de todo não constituem um manifesto erro de julgamento.
E no que respeita aos acórdãos deste STA e o do TCA-Norte invocados pela recorrente, alegadamente contrariados pelo entendimento adoptado no acórdão recorrido, cumpre observar que nenhum deles se pronunciou sobre o concreto motivo de invalidade da venda invocado pelo ora recorrido perante o órgão de execução fiscal, sendo, aliás, anteriores à Lei n.º 13/2016 de 23 de Maio – de protecção da casa de morada de família no âmbito de processos de execução fiscal.
O que justifica a admissão da presente revista é, apenas e só, a relevância social fundamental da questão, em concreto, a de saber se a arguição da invalidade da venda em execução fiscal de um imóvel que constitua a casa de morada de família do executado ou do seu agregado familiar, em violação do disposto no n.º 2 do artigo 244.º do CPPT (na redacção que lhe foi conferida pela Lei n.º 13/2016, de 23/05), está ou não sujeita ao regime de “anulação da venda” previsto no artigo 257.º do CPPT, maxime aos prazos aí fixados.
Trata-se de questão que, na medida em que contende com o regime processual aplicável a uma alteração legislativa relativamente recente – cuja introdução foi determinada por razões sociais ponderosas que o legislador quis acautelar –, reclama que sobre ela não pairem dúvidas, que possam prejudicar os direitos dos contribuintes e que sejam facilmente dissipáveis através da prolação de Acórdão desta Secção de Contencioso Tributário do STA que possa assumir-se como orientação jurisprudencial para casos futuros».

1.5 O Procurador-Geral Adjunto neste Supremo Tribunal Administrativo emitiu parecer no sentido de que «[d]eve negar-se provimento ao recurso e manter-se a decisão de anulação do despacho de indeferimento do pedido de anulação da venda, por alegada intempestividade», se bem que com fundamentação distinta da utilizada no acórdão recorrido, «baixando os autos a fim de serem remetidos ao competente órgão da AT, a fim de proceder à notificação do reclamante/recorrido para proceder ao pagamento da multa e, se for caso disso, conhecer do mérito do pedido de anulação da venda do imóvel em causa» seja negado provimento à revista e confirmado o acórdão recorrido, com a seguinte fundamentação: «[…]

Nos termos do estatuído no artigo 103.º/1 da LGT, o processo de execução fiscal tem natureza judicial, sem prejuízo da Administração Tributária participar nos actos que não tenham natureza jurisdicional.
Nos termos do número 2 do citado normativo os interessados podem reclamar para o juiz da execução fiscal dos actos materialmente administrativos praticados pelos órgãos da Administração Tributária.
Enquanto processo com natureza judicial, todos os actos praticados na execução fiscal pelos sujeitos processuais estão submetidos às regras processuais que regulam o processo tributário e, subsidiariamente às normas do CPC, ex vi do artigo 2.º/e) do CPPT.
Só não é assim quando no processo é enxertado um procedimento administrativo em que a Administração Tributária actua no exercício da sua função tributária, praticando actos materialmente administrativos, em sentido estrito, de natureza tributária (v.g. despacho de reversão; dação em pagamento; pagamento em prestações; aprovação de garantias; dispensa prestação garantia).
De facto, nas situações atrás referidas trata-se de decisões que no exercício de poderes jurídico-administrativos visam produzir efeitos jurídicos externos numa situação individual e concreta, portanto, de verdadeiros actos administrativos em sentido estrito, de natureza tributária (artigo 148.º do NCPA).
O acto de venda de imóvel em execução fiscal é um mero acto processual, de trâmite e não um acto administrativo, em sentido estrito, de natureza tributária (acórdãos do STA, de 26/05/2010-P. 0343/10; de 03/12/2012-P. 09/12; de 11/04/2018-P. 0312/18; de 26/09/2018-P. 01419/17.3BESNT).
No caso em análise a causa de pedir da anulação da venda é o facto de o imóvel se destinar à habitação própria e permanente do reclamante /recorrido e dos seus descendentes, nos termos do estatuído no artigo 244.º/2 do CPPT, na redacção introduzida pela Lei 13/2016, de 23/05.
Como resulta do preâmbulo da mencionada Lei esta alteração do CPPT protege a casa de morada de família no âmbito dos processos de execução fiscal.
E, no artigo 1.º estatui que “A presente lei protege a casa de morada de família no âmbito de processos de execução fiscal, estabelecendo restrições à venda de imóvel que seja habitação própria e permanente do executado”.
Não sendo o acto de venda do imóvel um acto administrativo de natureza tributária e sendo o processo de execução fiscal um processo judicial, na sua totalidade, não se vê como lhe possa ser aplicável o regime das nulidade de tais actos, dos artigos 161.º e 162.º do CPA, que têm aplicação nos procedimentos administrativos e não nos processos judiciais, como é o caso do processo de execução fiscal.
Na verdade, sendo a venda do imóvel um mero acto processual ou de trâmite haverá que aplicar o regime das nulidades processuais regulado no CPC.
De facto, verificando-se a previsão do artigo 244.º/2 do CPC, o OEF não pode proceder à venda do imóvel, sob pena de cometer uma nulidade processual (artigo 195.º do CPC).
Assim sendo, o pedido de anulação da venda, por violação do citado normativo parecer ter de ser formulado no prazo de 15 dias após a data da venda ou da data em que dela teve conhecimento, competindo ao requerente provar a data desse conhecimento, atento o estatuído no artigo 257.º/1/c) /2 do CPPT.
Trata-se de um prazo judicial, que se conta nos termos do CPC (artigo 20.º/2 do CPPT), sendo, portanto contínuo, suspendendo-se durante as férias judiciais e quando terminar em dia em que os tribunais estejam encerrados, transfere-se o seu termo para o 1.º dia útil seguinte (artigo 139.º/1/2 CPC).
Nos termos do n.º 4 do mencionado artigo o acto pode, ainda, ser praticado dentro dos 3 primeiros dias úteis subsequentes ao termo do prazo mediante pagamento de multa, nas condições previstas nos números 5 e 6.
Como bem refere o voto de vencido, atenta a factualidade apurada nos pontos 22 e 23 do probatório, o último dia do prazo para requerer a anulação da venda terminou a 23/11/2016, sendo que o requerimento foi apresentado a 24/11, portanto, no 1.º dia útil seguinte ao fim do prazo.
Logo, nos termos do disposto no artigo 139.º/6 do CPC deveria o reclamante ter sido notificado para pagar a multa, o que, ainda pode ser agora ordenado.
A decisão de mérito do pedido de anulação de venda cabe, em 1.ª mão, à AT, sem prejuízo de reclamação para o tribunal (artigo 257.º/4 do CPPT), pelo que, salvo melhor juízo, não devia o tribunal apreciar o mérito do pedido de anulação da venda».

1.6 Com dispensa de vistos, atenta a natureza urgente do processo, cumpre apreciar e decidir a questão, tal como definida pelo acórdão proferido pela formação a que alude o n.º 5 do art. 150.º do CPTA, de «saber se a arguição da invalidade da venda em execução fiscal de um imóvel que constitua a casa de morada de família do executado ou do seu agregado familiar, em violação do disposto no n.º 2 do artigo 244.º do CPPT (na redacção que lhe foi conferida pela Lei n.º 13/2016, de 23/05), está ou não sujeita ao regime de “anulação da venda” previsto no artigo 257.º do CPPT, maxime aos prazos aí fixados».


* * *

2. FUNDAMENTAÇÃO

2.1 DE FACTO

O acórdão recorrido efectuou o julgamento da matéria de facto nos seguintes termos:

«1- No dia 25 de Julho de 2005, o reclamante, A………, e B………, à data casados no regime de comunhão de adquiridos, adquiriram “a fracção autónoma designada pela Letra “O”, correspondente ao sexto andar direito, do prédio urbano em regime de propriedade horizontal pela inscrição “F-dois”, sito na Rua ………, ……….., ………., freguesia ……….. - Venda Nova, concelho da Amadora, descrito na Primeira Conservatória do Registo Predial de Amadora sob o número cento e noventa” (cfr. documento junto a fls.14 a 20 dos presentes autos);

2- Na escritura pública de compra e venda, mútuo com hipoteca e fiança, do imóvel identificado no número anterior, o reclamante e B……. declararam que o referido imóvel seria destinado a sua habitação própria e permanente (cfr. documento junto a fls. 14 a 20 dos presentes autos);

3- Em 1 de Junho de 2008, o 1.º Serviço de Finanças de Amadora autuou o processo de execução fiscal n.º 3131-2008/105149.6 contra B………, para cobrança coerciva de dívida de Imposto Municipal sobre os Imóveis, no valor de € 143,43 (cfr. documentos juntos a fls. 1 e 2 do processo de execução fiscal apenso);

4- No dia 6 de Junho de 2014, foi registada, na Conservatória do Registo Predial de Amadora, a penhora do imóvel identificado no n.º 1 supra, para garantia da quantia exequenda de € 871,13, no processo de execução fiscal n.º 3131-2008/105149.6, na sequência da AP. 3312 com a mesma data (cfr. documento junto a fls. 11 a 13 do processo de execução fiscal apenso);

5- Na caderneta predial urbana do imóvel identificado no n.º 1 supra, impressa no dia 6 de Outubro de 2014 pelo 1.º Serviço de Finanças de Amadora, pode ler-se que, naquela data, o prédio estava inscrito na matriz predial urbana da freguesia ………., concelho de Amadora, sob o artigo 4485, com o valor patrimonial, para efeitos de Imposto Municipal sobre os Imóveis, de € 59.521,38, e com os titulares, em partes iguais, A.-…….. (ora reclamante), com morada na Rua …….., - ………., na Amadora, e B………, com morada em Pç. ……………, ……….., em Agualva, Cacém (cfr. documento junto a fls. 18 e verso do processo de execução fiscal apenso);

6- No dia 10 de Setembro de 2015, o Conservador da Conservatória do Registo Civil de Amadora proferiu decisão no âmbito do processo de divórcio por mútuo consentimento n.º 4104/2015, requerido por B………. e o reclamante, decretando o divórcio por mútuo consentimento e declarando dissolvido o seu casamento (cfr. documentos juntos a fls. 23 a 25-verso do processo administrativo de anulação de venda apenso);

7- Na decisão identificada no número anterior, foi homologado acordo sobre o destino da casa de morada de família, no qual se pode ler que B……… e o reclamante, “[c]om vista ao divórcio por mútuo consentimento, acordam em que o direito à habitação da casa de morada de família, sita à Rua …………., …………, Amadora, que é propriedade de ambos, ficará atribuído ao cônjuge marido A………, que está a viver com os filhos” (cfr. documentos juntos a fls. 23 a 25-verso do processo administrativo de anulação de venda apenso);

8- Em 7 de Dezembro de 2015 o 1.º Serviço de Finanças de Amadora elaborou o ofício n.º 008169, dirigido ao reclamante, no qual se pode ler o seguinte (cfr. documento junto a fls. 22 do processo de execução fiscal apenso):
“(…)
Fica V. Exa. por este meio citado(a) nos termos do art. 220.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT) para no prazo de 30 (trinta) dias a contar da assinatura do aviso de recepção, requerer, querendo, a separação judicial de bens, ou juntar certidão comprovativa de a ter já requerido, para efeitos do disposto no art. 239.º do CPPT e n.º 1 do art. 740.º do Código de Processo Civil, sob pena de a execução prosseguir com a venda dos bens penhorados a B………., executada no processo de execução fiscal n.º 3131200801061496 e apensos, instaurado por dívidas de IMI, na quantia de € 598,60 (quantia exequenda) acrescida de juros de mora e custas processuais.
Bem penhorado:
Fracção autónoma designada pela letra “O”, afecta a habitação, com a tipologia/divisões: T2, com a área bruta privativa de 72,1000 m2, área bruta dependente de 3,51000 m2, a que corresponde o 6.º andar direito do prédio urbano em regime de propriedade horizontal sito na Rua …….., inscrito na matriz predial urbana da freguesia da ………, concelho de Amadora, sob o art. 4485 e descrito na 1.ª Conservatória do Registo Predial de Amadora, pela ficha n.º 190/19860407 - O (...)

9- O ofício identificado no número anterior foi remetido ao reclamante para a Rua …………., na Amadora, e foi por aquele recebido no dia 10 de Dezembro de 2015 (cfr. documentos juntos a fls.22 e 23 do processo de execução fiscal apenso);

10- No dia 14 de Dezembro de 2015, B………. foi notificada da penhora do imóvel identificado no n.º 1 supra e que ficava nomeada fiel depositária do mesmo (cfr. documentos juntos a fls. 20 e 21 do processo de execução fiscal apenso);

11- Por despacho de 25 de Fevereiro de 2016 da Chefe do 1.º Serviço de Finanças de Amadora, foi determinado proceder-se à venda, através da modalidade de leilão electrónico, do imóvel identificado no n.º 1 supra e que o valor base a anunciar era de € 42.602,43 (cfr. documento junto a fls. 27 do processo de execução fiscal apenso);

12- No dia 26 de Fevereiro de 2016 foi elaborado edital para a venda n.º 3131.2014.421 e convocação de credores, cuja cópia se encontra a fls. 28 do processo de execução fiscal apenso, dando-se aqui por integralmente reproduzido o seu teor;

13- O 1.º Serviço de Finanças de Amadora elaborou o ofício n.º 001501, de 2 de Março de 2016, dirigido ao reclamante, no qual se pode ler que “[n]os termos do n.º 1 do art. 35.º do Código do Procedimento e Processo Tributário, fica V. Exa. notificado de que foi proferido despacho pela Chefe de Finanças, designando a venda por leilão electrónico, no próximo dia 02 de Junho de 2016, pelas 10h45m, do bem penhorado no processo executivo n.º 3131200801061496 e apensos, identificado no edital cuja cópia se junta” (cfr. documento junto a fls. 30 do processo de execução fiscal apenso);

14- O ofício identificado no número anterior foi remetido ao reclamante para a Rua ………………., Amadora, por cada com o registo postal RF 1738 3838 0 PT (cfr. documento junto a fls. 30 do processo de execução fiscal apenso);

15- O reclamante recebeu, em data que não é possível precisar, o ofício identificado no n.º 14 (cfr. factualidade admitida pelo reclamante no art. 7 do articulado inicial);

16- No dia 11 de Março de 2016, foi afixado o edital identificado no n.º 12, na entrada do 1.º Serviço de Finanças de Amadora e à porta da entrada do imóvel a vender (cfr. documento junto a fls. 85 do processo administrativo de anulação de venda apenso);

17- No dia 15 de Março de 2016, B........ efectuou o pagamento do montante de € 102,00 no âmbito do processo de execução fiscal n.º 3131-2008/106149.6 (cfr. documentos juntos a fls.29 e 30 do processo administrativo de anulação de venda apenso);

18- No dia 27 de Maio de 2016, foi suspensa a venda n.º 3131.2014.421, devido à entrada em vigor da Lei n.º 13/2016, de 23 de Maio (cfr. documento junto a fls. 86 do processo administrativo de anulação de venda apenso);

19- No dia 31 de Maio de 2016, foi proferido despacho da Chefe de Finanças, em regime de substituição, do 1.º Serviço de Finanças de Amadora no sentido de que “[v]erificando-se que o imóvel objecto da venda, não se encontra no âmbito de abrangência da Lei n.º 13/2016, active-se a venda com vista à sua concretização” (cfr. documento junto a fls. 86 do processo administrativo de anulação de venda apenso);

20- No dia 8 de Agosto de 2016, o 1.º Serviço de Finanças de Amadora emitiu auto de adjudicação do imóvel identificado no n.º 1 ao Banco Comercial Português, S.A. (cfr. documento junto a fls. 93 e verso do processo administrativo de anulação de venda apenso);

21- No dia 7 de Outubro de 2016, B……….. foi notificada através do ofício n.º 005832, datado de 4 de Outubro de 2016, na qualidade de fiel depositária, para no prazo de quinze dias desocupar e entregar as chaves do imóvel identificado no n.º 1 (cfr. documentos juntos a fls. 95 e verso do processo administrativo de anulação de venda apenso);

22- Por carta datada de 8 de Novembro de 2016, o reclamante dirigiu ao 1.º Serviço de Finanças de Amadora um pedido de prorrogação de prazo de entrega do imóvel identificado no n.º 1 por “a fracção autónoma que foi adjudicada ao Banco Comercial Português, S.A. na venda judicial n.º 3131.2014.421, constitui casa de morada de família, tendo sido objecto de acordo sobre o direito à habitação da casa de morada de família, entre o requerente e a executada. No imóvel em crise habita o requerente com os filhos menores, de idades compreendidas entre os 8 meses e os 16 anos, não se mostrando o prazo concedido por V. Exas. suficiente para o realojamento do agregado familiar” (cfr. documento junto a fls. 32 do processo administrativo de anulação de venda apenso);

23- No dia 24 de Novembro de 2016, ……….., na qualidade de mandatária do reclamante, enviou correio electrónico à Direcção de Finanças de Lisboa, no âmbito do processo de execução fiscal n.º 3131-2008/106149.6, no qual se pode ler que o signatário “envia requerimento para anulação de venda da sua casa de morada de família, NOS TERMOS DO ARTIGO 257.º DO CÓDIGO DE PROCEDIMENTO E DE PROCESSO TRIBUTÁRIO” e “junta: peça processual e sete documentos” (cfr. documentos juntos a fls. 2 a 32 do processo administrativo de anulação de venda apenso);

24- No requerimento identificado no número anterior, o reclamante pediu a anulação da venda n.º 3131.2014.421 e a suspensão do processo de execução fiscal n.º 3131 - 2008/106149.6, baseando-se no art. 244, n.º 2, do C.P.P.T., na redacção introduzida pela Lei 13/2016, de 23/05, tudo conforme articulado junto a fls. 4 a 9 do processo administrativo de anulação de venda apenso, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido;

25- No dia 31 de Janeiro de 2017, foi elaborada a Informação n.º 23/2017, por ………….., técnica da Direcção de Finanças de Lisboa, tendo por assunto a “Anulação de Venda n.º 3131.2014.421”, na qual se conclui que o pedido formulado se mostra intempestivo, assim devendo ser indeferido, mais se mantendo a venda válida e eficaz nos seus precisos termos, tudo conforme documento junto a fls. 107 a 113 do processo administrativo de anulação de venda apenso, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido;

26- No dia 6 de Fevereiro de 2017, a Chefe de Divisão de Gestão da Dívida Executiva, no uso da delegação de competências, proferiu despacho de concordância, face aos fundamentos da informação identificada no número anterior e parecer prestado, e indeferiu o pedido de anulação de venda (cfr. documento junto a fls. 107 a 113 do processo administrativo de anulação de venda apenso);

27- No dia 13 de Fevereiro de 2017, o reclamante foi notificado do despacho identificado no número anterior, através do ofício n.º 000615, de 10 de Fevereiro de 2017, remetido pela Adjunta da Chefe do 1.º. Serviço de Finanças de Amadora, actuando em delegação de competências (cfr. documentos juntos a fls. 116 e 117 do processo administrativo de anulação de venda apenso);

28- Pelo menos, no período entre o dia 25 de Julho de 2005 e o dia 2 de Março de 2016, o reclamante e os seus filhos residiam no imóvel identificado no n.º 1 supra (cfr. documento junto a fls. 14 a 20 dos presentes autos; documentos juntos a fls. 18, 22, 23 e 30 do processo de execução fiscal apenso; documentos juntos a fls. 4 a 9, 25 e 32 do processo administrativo de anulação de venda apenso)».

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2.2 DE FACTO E DE DIREITO

2.2.1 A QUESTÃO A APRECIAR E DECIDIR

No acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul ora recorrido foi acolhida a tese, já sustentada na sentença aí sindicada, de que num processo de execução fiscal em que tenha sido vendida a casa de morada de família ao arrepio do disposto no n.º 2 do art. 244.º do CPPT, na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 13/2016, de 23 de Maio, essa invalidade da venda constitui uma nulidade sujeita ao regime das invalidades dos actos administrativos e, por isso, não produz quaisquer efeitos jurídicos, independentemente da declaração de nulidade, sendo invocável a todo o tempo por qualquer interessado e pode, também a todo o tempo, ser conhecida por qualquer autoridade [cfr. art. 162.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo (CPA)]. Ou seja, o acórdão recorrido, tal como o fizera a sentença, qualificou a venda em processo de execução fiscal como um acto materialmente administrativo e, por isso, o sujeitou à disciplina jurídica correspondente, designadamente no que se refere o regime das invalidades.
Em conformidade, o acórdão recorrido, como também o fizera já a sentença proferida em 1.ª instância, considerou que a arguição dessa invalidade não ficava sujeita aos prazos fixados pelo art. 257.º do CPPT para a formulação do pedido de anulação da venda. Por isso, o Tribunal Central Administrativo Sul confirmou a sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra, que, em sede de reclamação interposta ao abrigo do disposto no art. 276.º e segs. do CPPT, anulou o despacho do órgão da execução fiscal que indeferiu o pedido de anulação da venda por intempestividade (Tenha-se presente que, após a redacção que foi dada ao art. 257.º do CPPT pelo art. 152.º da Lei n.º 64-B/2011, de 30 de Dezembro (Lei do Orçamento do Estado para 2012), «[o] pedido de anulação da venda deve ser dirigido ao órgão periférico regional da administração tributária» (n.º 4), sendo que «[d]a decisão, expressa ou tácita, sobre o pedido de anulação da venda cabe reclamação nos termos do artigo 276.º» (n.º 7), numa solução de duvidosa constitucionalidade, pois põe a cargo da AT a resolução, em primeira linha, de um conflito de interesses, matéria que a Constituição da República Portuguesa, no seu art. 202.º, n.º 2, considera integrar a função jurisdicional e que reserva aos tribunais. ).
O Representante da Fazenda Pública insurgiu-se contra esse acórdão, dele interpondo recurso de revista para este Supremo Tribunal. O Recorrente, tal como a Juíza Desembargadora que votou vencida e o Procurador-Geral Adjunto neste Supremo Tribunal, defendem tese oposta: a venda em processo de execução fiscal é um mero acto de trâmite, excluído do âmbito do art. 148.º do CPA, e por isso, os interessados que pretendam invocar a invalidade desse acto não podem fazê-lo senão no âmbito do pedido de anulação previsto no art. 257.º do CPPT e com respeito pelos prazos aí fixados; mais consideram que o prazo para esse efeito é o previsto na alínea c) do n.º 1 daquele artigo, ou seja, de 15 dias.
Dessa divergência na qualificação do acto da venda judicial em processo de execução fiscal resultam importantes consequências, bem patentes no resultado sobre a tempestividade do direito de acção a que conduzem as teses em confronto no caso sub judice.
Assim, a questão que ora importa solucionar, tal como delimitada pelo acórdão proferido pela formação a que alude o n.º 5 do art. 150.º do CPTA que admitiu a revista, é de «saber se a arguição da invalidade da venda em execução fiscal de um imóvel que constitua a casa de morada de família do executado ou do seu agregado familiar, em violação do disposto no n.º 2 do artigo 244.º do CPPT (na redacção que lhe foi conferida pela Lei n.º 13/2016, de 23/05), está ou não sujeita ao regime de “anulação da venda” previsto no artigo 257.º do CPPT, maxime aos prazos aí fixados».
Cumpre, pois, averiguar da natureza da venda em processo de execução fiscal.

2.2.2 O ACTO DE VENDA JUDICIAL EM SEDE DE EXECUÇÃO FISCAL: ACTO ADMINISTRATIVO OU MERO ACTO DE TRÂMITE?

A natureza dos diversos actos praticados na execução fiscal é uma questão polémica (Por mais recente, dando conta dessa polémica e referindo a jurisprudência e a doutrina, veja-se DULCE NETO, A natureza da execução fiscal na jurisprudência do STA, in Execução Fiscal [em linha], Lisboa, Centro de Estudos Judiciários, 2019, págs. 9 a 21, consultado em 2 de Abril de 2019, disponível na internet:
http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/Administrativo_fiscal/eb_ExecucaoFiscal.pdf.), uma vez que, apesar da natureza judicial do processo, reconhecida expressamente na primeira parte do n.º 1 do art. 103.º da LGT (Diz o art. 103.º, n.º 1, da LGT: «O processo de execução fiscal tem natureza judicial, sem prejuízo da participação dos órgãos da administração tributária nos actos que não têm natureza jurisdicional».), logo na segunda parte da mesma norma se admite a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) a praticar actos no âmbito desse processo, desde que não tenham natureza jurisdicional.
Como resulta da referida norma, admite-se que AT pratique actos naquele processo, apenas lhe estando vedada a prática daqueles que tenham natureza jurisdicional («De aplicação da norma ao caso em concreto, mas resolvendo um litígio ou um conflito de pretensões» (JOAQUIM FREITAS DA ROCHA, Lições de Procedimento e Processo Tributário, Coimbra Editora, 2.ª edição, pág. 265).), que os princípios consagrados nos arts. 110.º, 111.º e 202.º da Constituição da República (CRP) (Princípios da separação dos poderes e âmbito da função jurisdicional.) impõem que fique reservada ao tribunal, numa distribuição de competências a que o legislador ordinário deu concretização através dos arts. 10.º, n.º 1, alínea f) (Preceito que determina:
«1. Aos serviços da administração tributária cabe: […] f) Instaurar os processos de execução fiscal e realizar os actos a estes respeitantes, salvo os previstos no n.º 1 do artigo 151.º do presente Código; […]».), e 151.º do CPPT (Na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 64-B/2011, de 31 de Dezembro (Lei do Orçamento do Estado para 2012), estipula o art. 151.º, n.º 1, do CPPT: «Compete ao tribunal tributário de 1ª instância da área do domicílio ou sede do devedor, depois de ouvido o Ministério Público nos termos do presente Código, decidir os incidentes, os embargos, a oposição, incluindo quando incida sobre os pressupostos da responsabilidade subsidiária, e a reclamação dos actos praticados pelos órgãos da execução fiscal».).
O facto de a AT poder praticar no processo de execução fiscal actos de natureza não jurisdicional não implica que todos os actos por ela praticados naquele processo constituam actos administrativos em sentido estrito. No âmbito do processo de execução fiscal, a AT pratica, não só actos administrativos de natureza administrativa tributária (que lhe competem na sua condição de exequente, quando o seja), mas também outros actos processuais, cuja competência lhe está cometida enquanto órgão da execução fiscal, nos termos do disposto no já referido art. 10.º, n.º 1, alínea f), do CPPT. Relativamente a estes últimos, a lei constitucional não impõe que hajam de ser praticados por um juiz, podendo o legislador ordinário atribuir a competência para o efeito a um funcionário ou ao juiz, desde que, no primeiro caso, fique salvaguardada a possibilidade de discutir judicialmente a sua legalidade, sob pena de violação do art. 20.º da CRP (Cfr. o acórdão n.º 80/2003 do Tribunal Constitucional, disponível em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20030080.html.).
Ou seja, no processo de execução fiscal, sendo certo que está vedada à AT a prática de actos jurisdicionais, é-lhe permitida a prática i) quer de actos administrativos de natureza tributária, que respeitam à dívida tributária e integram procedimentos tributários (v.g., a reversão, a dação em pagamento, o pagamento em prestações, a aprovação de garantias e a dispensa de prestação de garantia), em que estamos perante actos praticados pelo órgão da execução fiscal ou por outras entidades da AT, na sequência de procedimentos tributários autónomos, que correm paralelamente ao processo de execução fiscal e em conexão com ele, cuja prática está reservada à AT enquanto exequente, enquanto credora, ii) quer de actos de natureza processual, constituindo alguns meras operações materiais (remessa do título executivo ao órgão da execução, instauração da execução) e outros actos judiciais de tramitação processual sem natureza jurisdicional (citação, penhora, venda), cuja prática o legislador pôs a cargo da AT enquanto órgão da execução fiscal, a qual age aí como um mero “auxiliar” (Aliás, era como juiz auxiliar que o Código de Processo das Contribuições e Impostos se referia ao chefe da repartição de finanças (cfr. art. 40.º, § único), a quem, fora de Lisboa e do Porto, competia instaurar os processos de execução fiscal e realizar os actos a eles respeitantes, com excepção dos de natureza jurisdicional e sempre com recurso para o juiz do tribunal tributário.) na prossecução do escopo da execução (a cobrança das dívidas), numa colaboração operacional com a administração da justiça, que se encontra cometida pela CRP aos tribunais.
A natureza destes últimos actos, que não tenham natureza administrativo-tributária, é discutível, mas será idêntica à dos actos de natureza não jurisdicional que são praticados no âmbito de todos os processos judiciais (Certo é que todos estes actos estão sempre sujeitos ao controlo judicial, como resulta do disposto no art. 103.º, n.º 2, da LGT, controlo que, quando efectuado a pedido dos interessados, se concretiza através do meio processual previsto no art. 276.º do CPPT e que o legislador denominou reclamação. É através desse meio que os interessados (executado ou outros) podem reagir contra todos os actos praticadas por órgãos administrativos no âmbito da execução fiscal, independentemente da natureza que estes possam revestir. Aliás, é essa diversidade da natureza dos actos praticados pela AT na execução fiscal que gera as consabidas dificuldades de conceptualização deste meio processual – JOAQUIM FREITAS DA ROCHA refere que esta reclamação «tem um misto de recurso contencioso – pois trata-se do controlo de um acto de um órgão administrativo por parte do tribunal – e de recurso jurisdicional – na medida em que o acto a ser controlado pelo tribunal é um acto praticado num processo» (ob. cit., pág. 297) – e dá origem a várias críticas dirigidas à sua inadequada denominação como reclamação (JORGE LOPES DE SOUSA, Código de Procedimento e de Processo Tributário anotado e comentado, Áreas Editora, 6.ª edição, volume IV, anotação 2 ao art. 276.º, págs. 267/268.)).
Como lapidarmente se refere no artigo referido na nota (3) supra, «o órgão que tramita a execução constitui um agente ou sujeito processual que auxilia e substitui o juiz no processo de cobrança, praticando nele todos os actos que, não contendendo com qualquer composição de interesses, sejam legalmente necessários para a obtenção do fim a que o processo de cobrança se destina. E a competência que esse órgão detém no processo não brota, em princípio, do exercício da função tributária, resultando, antes, de uma competência que a lei lhe confere para intervir no processo como órgão auxiliar ou colaborador operacional do Juiz, assumindo, assim, um estatuto supra partes, intervindo no exclusivo interesse da paz jurídica, obrigada a apreciar e decidir as questões enquanto autoridade neutra e imparcial perante o litígio. Razão por que, em princípio, todos os actos que neles são inscritos pelos diversos sujeitos processuais estão submetidos às normas processuais que regulam o processo tributário e, subsidiariamente, às normas inscritas no CPC.
Ou seja, os actos típicos do processo de cobrança coerciva não se encontram inseridos na função administrativa do Estado, pois não visam a prossecução de interesses gerais da colectividade, nem visam o exercício da função administrativa ou da função tributária. Embora inseridos num processo de natureza judicial, não são nem actos jurisdicionais nem actos materialmente administrativos; são meros actos instrumentais, que tanto podem ser cometidos aos juízes como a outras entidades legalmente incumbidas de os praticar.
E só assim não será nos casos em que a lei expressamente admite o enxerto de verdadeiros procedimentos no processo judicial de cobrança, em que a Administração actua já no exercício da sua função administrativa, produzindo actos materialmente administrativos em matéria tributária. Nessas situações, a Administração abandona a neutralidade e o estatuto supra partes, assumindo a qualidade de parte credora/exequente, passando a intervir no seu exclusivo interesse».
Em face do que deixámos dito, impõe-se concluir que o acto de venda em processo de execução fiscal não tem a natureza de acto administrativo, tal como configurado pelo art. 148.º do CPA, mas de mero acto de trâmite, um acto de natureza processual, previsto no art. 244.º do CPPT, praticado pela AT na qualidade de órgão da execução fiscal, mediante o cumprimento do formalismo processual previsto no CPPT e, subsidiariamente no Código de Processo Civil, em ordem à cobrança coerciva e, afinal, ao pagamento da dívida exequenda, que não foi voluntariamente paga.
Na verdade, não vemos que possa afirmar-se que ao proceder à venda o órgão da execução fiscal a praticar um acto decisório, que exprima uma vontade própria no âmbito do exercício da função tributária, um acto emanado no exercício de poderes jurídico-administrativos, com o objectivo de produzir efeitos jurídicos externos numa situação individual e concreta; e, muito menos, que na prática desse acto lhe caiba qualquer poder de avaliação (Isto, sem prejuízo de, previamente, lhe poder ser exigido um juízo, eventualmente precedido de actividade instrutória, sobre se o imóvel constitui, ou não, casa de morada de família.).
Pelo contrário, afigura-se-nos que está apenas a assegurar a normal tramitação da execução fiscal, em que a venda surge como uma fase imprescindível (A menos que tenha havido penhora de sobre meios monetários, ou valores pecuniários, casos em que não há lugar a alienação.) ao pagamento coercivo da dívida exequenda. Na prática desse acto, que não contende com qualquer composição de interesses, está apenas (em “substituição” do juiz) a praticar um acto legalmente previsto e regulado em ordem à obtenção do fim a que o processo se destina: o pagamento da dívida exequenda.
Esta conclusão, se afasta a tese adoptada no acórdão recorrido e na sentença por ele confirmada – de que a este acto são aplicáveis as regras respeitantes às invalidades dos actos administrativos, designadamente as previstas nos arts. 161.º e 162.º do CPA –, não significa, contudo, que às invalidades da venda sejam necessariamente aplicáveis as regras do art. 257.º do CPPT, como pretende a Recorrente, como ficou dito no voto de vencido lavrado no acórdão recorrido e como sustenta o Procurador-Geral Adjunto neste Supremo Tribunal. Vejamos:

2.2.3 DA INVALIDADE DA VENDA EFECTUADA EM VIOLAÇÃO DO DISPOSTO NO N.º 2 DO ART. 244.º DO CPPT

Qual o regime jurídico a que fica sujeita a venda executiva efectuada em violação do disposto no n.º 2 do art. 244.º do CPPT, na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 13/2016, de 23 de Maio (As alterações introduzidas por esta Lei visam, essencialmente, a protecção do direito à habitação, previsto no art. 65.º da CRP como um direito social fundamental dos cidadãos, impedindo, para o efeito, que a habitação que constitui casa de morada de família, se penhorada no decorrer de um processo de execução fiscal, seja objecto de venda judicial por iniciativa do Estado (terão sido estas limitações, de que as dívidas sejam tributárias e a venda seja promovida pelo Estado, que terão levado o Presidente da República, aquando da sua promulgação, a considerar a Lei como insuficiente para assegurar os fins de protecção do direito à habitação nela visados). Note-se que ficaram excluídas desta salvaguarda as habitações de elevado valor tributário, «exclusão que se justifica para evitar que contribuintes com elevado património se coloquem intencionalmente ao abrigo desta protecção, convertendo o seu património numa única residência de elevado valor», como referido na respectiva exposição de motivos.)?
A natureza da venda efectuada em processo de execução (comum ou fiscal) tem sido muito discutida na doutrina (Vide, desde logo, ALBERTO DOS REIS, Da Venda em Processo de Execução, in Revista da Ordem dos Advogados, Ano 1.º, n.º 4, 1941, págs. 410 a 450, disponível em
https://portal.oa.pt/upl/%7B28EF453C-16ED-45DB-8EAE-470395138F77%7D.pdf.
Vide também ANSELMO DE CASTRO, A Acção Executiva Singular, Comum e Especial, Coimbra Editora, 3.ª edição, pág. 255 e segs.): trata-se de um acto de direito privado ou de direito público? trata-se de um contrato de compra e venda sui generis ou do mero encontro de duas declarações negociais, sendo que uma delas não tem natureza privada, mas fica antes a cargo do órgão competente para promover a tramitação do processo executivo? As dúvidas radicam, essencialmente, no facto de a venda se fazer independentemente da vontade do proprietário/executado e em face da estrutura e regime próprios da venda executiva.
Mas, qualquer que seja a natureza da venda efectuada em processo de execução fiscal – e à função de administração da justiça que nos compete, importa solucionar o caso concreto de acordo com a lei, mais do que fazer doutrina –, esta não deixa de ter a natureza de um negócio jurídico (Negócios jurídicos «são actos jurídicos constituídos por uma ou mais declarações de vontade, dirigidas à realização de certos efeitos práticos, com intenção de os alcançar sob tutela do direito, determinando o ordenamento jurídico a produção dos efeitos jurídicos conformes à intenção manifestada pelo declarante ou declarantes» (cfr. MOTA PINTO, Teoria Geral do Direito Civil, Coimbra Editora, 2.ª edição, pág. 377 e segs.).) e, portanto, de estar sujeita às regras gerais fixadas pelo Código Civil (CC), sem prejuízo de lhe ser aplicável prioritariamente o CPPT em tudo o que nele esteja regulado (Cfr. LEBRE DE FREITAS, A Acção Executiva, 3.ª edição, pág. 293/294.).
Significa isto que quando a venda seja efectuada contra disposição de carácter imperativo («A ordem jurídica ordena e proíbe. Fá-lo evidentemente através de normas imperativas: no primeiro caso através de normas preceptivas, no segundo através de normas proibitivas» (cfr. J. BAPTISTA MACHADO, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, 1983, págs. 93/94).) – como, v.g., o n.º 2 do art. 244.º do CPPT – é nula, nos termos do disposto no art. 294.º do CC.
Nos termos do disposto no art. 286.º do CC, essa invalidade «opera ipso jure. Daí poder ser conhecida oficiosamente pelo tribunal e poder ser declarada a todo o tempo» e poder também ser invocada a todo o tempo por qualquer interessado (Isto é, «pelo titular de qualquer relação cuja consistência, tanto jurídica, como prática, seja afectada pelo negócio» (cfr. PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, Coimbra Editora, 3.ª edição, anotação ao art. 286.º, pág. 261).).
O que significa que a invocação dessa nulidade não fica sujeita às regras da anulação da venda e aos prazos fixados para a mesma no art. 257.º do CPPT, regime que está previsto apenas para as situações de anulação da venda e não para as de nulidade deste acto.
Salvo o devido respeito, a desconformidade jurídica assacada à venda nunca poderia subsumir-se às previsões do art. 257.º, n.º 1, do CPPT, designadamente à da alínea c), como pretende a Recorrente, pois não estamos perante um motivo de anulação da venda previsto no CPC, nem sequer perante uma qualquer nulidade processual; aquela desconformidade é de outra natureza, mais profunda, com carácter substantivo e que respeita ao próprio negócio jurídico. Na verdade, o n.º 2 do art. 244.º do CPPT, ainda que sob determinadas condições e sem prejuízo da renúncia do devedor à protecção que assim lhe é conferida, põe a casa de morada de família à margem da possibilidade de venda.
A venda do imóvel quando a lei expressamente a proíbe constitui, pois, nulidade substantiva, de conhecimento oficioso e que pode ser declarada a todo o tempo, motivo por que também nada obsta à sua invocação, também a todo o tempo, por qualquer interessado, nos termos do referido art. 286.º do CC.
O acórdão recorrido, embora com fundamentação diversa, chegou a idêntica conclusão. Por isso, o recurso não pode ser provido.

2.2.4 CONCLUSÕES

Preparando a decisão, formulamos as seguintes conclusões:
I - A venda em processo de execução fiscal constitui um acto de trâmite que, não um acto administrativo, pelo que não se lhe aplica o regime jurídico destes actos, designadamente o CPA.
II - A venda efectuada em execução fiscal em violação do n.º 2 do art. 244.º do CPPT é nula, porque celebrada contra disposição legal de carácter imperativo (cfr. art. 294.º do CC).
III - Essa nulidade é invocável a todo o tempo por qualquer interessado e pode ser declarada oficiosamente pelo tribunal (cfr. art. 286.º do CC), não ficando, pois, sujeita às regras da anulação da venda nem aos prazos fixados para a mesma no art. 257.º do CPPT.


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3. DECISÃO

Face ao exposto, os juízes da Secção do Contencioso Tributário deste Supremo Tribunal Administrativo acordam, em conferência, em negar provimento ao recurso, mantendo o acórdão recorrido com a presente fundamentação.

Custas pela Recorrente.


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Lisboa, 10 de Abril de 2019. - Francisco Rothes (relator) - Isabel Marques da Silva - Ana Paula Lobo.