Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:01552/11.5BELRS
Data do Acordão:02/03/2021
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:ISABEL MARQUES DA SILVA
Descritores:RECURSO DE REVISTA EXCEPCIONAL
NÃO ADMISSÃO DO RECURSO
Sumário:
Nº Convencional:JSTA000P27134
Nº do Documento:SA22021020301552/11
Data de Entrada:11/04/2020
Recorrente:A........................, SA
Recorrido 1:AT – AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:
- Relatório -

1 – A…………………., S.A, com os sinais dos autos, vem, ao abrigo do artigo 285.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT) interpor para este Supremo Tribunal recurso de revista do acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 25 de junho de 2020, que negou provimento ao recurso por si interposto da sentença do Tribunal Tributário de Lisboa de 26 de agosto de 2019, que julgara improcedente a impugnação judicial por si deduzida contra o despacho de indeferimento do recurso hierárquico interposto contra liquidações adicionais de IVA referentes ao ano de 2001, no valor global de € 37.974,53, acrescido de juros compensatórios, em razão da não liquidação de IVA sobre o valor total do capital em dívida em caso de resolução antecipada de contrato de locação financeira em situação de perda total do veículo.

O recorrente termina as suas alegações de recurso formulando as seguintes conclusões:

A) O presente Recurso de Revista tem por objeto o Acórdão proferido pelo Tribunal Central Administrativo Sul em 25 de junho de 2020 no Processo n.º 1552/11.SBELRS, que negou provimento ao recurso previamente apresentado da Sentença proferida em primeira instância pelo Tribunal Tributário de Lisboa, que declarara totalmente improcedente a Impugnação Judicial apresentada pela RECORRENTE contra os atos de liquidação adicional de Imposto sobre o Valor Acrescentado ("IVA") relativos ao ano de 2001, no valor global de € 37.974,53, contra os correspondentes atos de liquidação de juros compensatórios e, bem assim, contra a decisão de indeferimento proferida pela Administração tributária no âmbito do Recurso Hierárquico n.º RHQ 638/10;

B) A RECORRENTE é uma instituição financeira que se dedica, entre o mais, à celebração de contratos de locação financeira (leasing) e de aluguer de longa duração (ALD) de veículos automóveis;

C) Em caso de perda total dos veículos objeto daqueles contratos (decorrente, na generalidade dos casos, de acidente rodoviário ou de furto), a RECORRENTE recebe uma indemnização, paga diretamente por uma seguradora, pela perda do veículo (que se mantinha na sua esfera patrimonial até ser perdido);

D) Adicionalmente, ao tempo dos factos em causa no presente Processo, a perda total dos veículos era tratada como uma causa de resolução dos contratos de locação e, de acordo com o regime contratualmente estabelecido, essa resolução originava o direito a uma indemnização a pagar pelos locatários, correspondente ao valor das rendas vincendas e ao valor residual do veículo;

E) Não obstante, uma vez que a perda do veículo já era definitivamente compensada pela indemnização da seguradora, a RECORRENTE aplicou sempre o regime contratual da resolução com as necessárias adaptações, limitando-se a cobrar aos locatários o valor que excedia essa perda (já indemnizada pelas seguradoras). Noutro cenário, haveria um enriquecimento sem causa, uma vez que a RECORRENTE receberia duas indemnizações em função do mesmo dano (a perda do veículo);

F) E, como é natural, a RECORRENTE apenas liquidou IVA sobre os montantes efetivamente cobrados aos locatários - os montantes que excediam a reparação das perdas dos veículos, já feita pelas seguradoras - abstendo-se de apurar qualquer imposto sobre as indemnizações devidas em função daquelas perdas;

G) No entanto, no relatório de inspeção tributária que fundamenta os atos de liquidação contestados neste Processo, a Administração tributária considerou que, em caso de perda total dos veículos locados, a RECORRENTE devia ter liquidado IVA sobre a totalidade dos montantes das rendas vincendas e do valor residual dos veículos, mesmo na parte em que esses montantes não foram efetivamente cobrados aos locatários - a parte coberta pelas indemnizações que as seguradoras pagaram diretamente à RECORRENTE em função da perda dos automóveis;

H) E no Acórdão aqui recorrido, que confirmou a Sentença proferida em primeira instância, o Tribunal Central Administrativo Sul deu razão à Administração tributária, considerando que, ao deduzir o montante das indemnizações recebidas das seguradoras aos valores a cobrar aos locatários, a RECORRENTE estava a realizar um encontro de contas, mediante o qual: (i) recebia a totalidade do valor das rendas vincendas e do valor residual previsto nos contratos de leasing ou ALD (sujeitos a IVA); e (ii) entregava aos locatários o valor das indemnizações das seguradoras que lhes eram supostamente devidas (não sujeitas a IVA);

I) Assente este pressuposto (que a RECORRENTE considera errado), o Tribunal Central Administrativo Sul concluiu que o valor total das indemnizações que (em abstrato) lhe eram devidas pelos locatários é um montante sujeito a IVA (mesmo na parte correspondente às indemnizações pagas pelas seguradoras, que o Tribunal a quo considerou materialmente devidas aos locatários);

J) A RECORRENTE considera, no entanto, que os valores que recebeu a título de indemnização pelas perdas dos veículos correspondem a indemnizações totalmente excluídas de IVA, uma vez que servem apenas e só para reparar um dano emergente verificado na sua esfera em caso de acidente ou furto: a perda dos veículos automóveis (que são parte da esfera patrimonial da RECORRENTE) e não para compensar qualquer tipo de lucros cessantes;

K) Neste sentido, independentemente da forma como for configurada a relação jurídica, estas indemnizações pelas perdas - que correspondem sempre aos montantes suportados pelas seguradoras - não podem ser sujeitos a imposto, nem de forma direta (com o IVA liquidado às seguradoras), nem tão pouco de forma indireta (com o IVA liquidado aos locatários);

L) No presente caso, estão verificados os pressupostos de admissibilidade do Recurso de Revista previsto no artigo 285.º, n.º 1, do Código de Procedimento e de Processo Tributário.

M) Por um lado, a questão jurídica em apreço - a sujeição/não sujeição a IVA das indemnizações recebidas pela RECORRENTE em função da perda dos veículos locados - é de relevância jurídica fundamental: o enquadramento normativo aqui em apreço é muito intrincado e convoca a aplicação de vários regimes e institutos - o regime da locação financeira e do ALD, os institutos das indemnizações por danos emergentes e por lucros cessantes e o regime do IVA sobre estas indemnizações;

N) E a somar à dificuldade de concatenação dos regimes e institutos jurídicos, a própria qualificação das relações jurídicas entre locadora-seguradora, locadora­locatárío (e, na perspetiva da decisão recorrida, locatário-seguradora ) adensa ainda mais a complexidade deste caso;

O) Em segundo lugar, a relevância social da questão aqui em causa também é evidente: a decisão que vier a ser proferida pelo Supremo Tribunal Administrativo sobre esta matéria vai influenciar a qualificação de milhares de relações jurídico­tributárias no futuro, tendo um impacto substancial na atividade dos locadores financeiros, dos seus clientes e das seguradoras;

P) Adicionalmente, que a revista desta questão por parte do Supremo Tribunal Administrativo é da maior importância para a correta aplicação do direito, uma vez que a solução sustentada no Acórdão recorrido é absolutamente contraintuitiva e, por isso, muito difícil de aplicar à generalidade dos locatários (e em particular aos locatários consumidores finais), que, numa situação já por si anómala (a impossibilidade de manter o contrato por acidente ou furto), seriam chamados pelas locadoras a entregar IVA sobre montantes que não lhes são cobrados e que, portanto, não têm que pagar;

Q) E a necessidade da apreciação deste recurso de revista por parte do Supremo Tribunal Administrativo é ainda mais clara se tivermos em consideração que o Tribunal Central Administrativo Sul recusou o reenvio de qualquer questão ao Tribunal de Justiça da União Europeia (adiante "TJUE" ou "Tribunal de Justiça"), impedindo que o tema aqui em apreço (com raiz no direto europeu) fosse apreciada por aquele órgão, por considerar que: (i) "não existem dúvidas sobre a interpretação de normas de direito europeu com relevância para a decisão do litígio; e que (ii) "o TCAS não é órgão jurisdicional de última instância";

R) Independentemente da incorreção da primeira premissa, o certo é que o Tribunal Central Administrativo Sul só não será qualificável como órgão jurisdicional de última instância se for claro que a sua decisão pode/deve ser objeto de revista por parte do Supremo Tribunal Administrativo, como aqui pede a RECORRENTE;

S) Atentos todos estes motivos, a questão de direito em causa no presente Processo - a sujeição/não sujeição a IVA das indemnizações recebidas pela RECORRENTE em função da perda dos veículos locados - deve ser reapreciada pelo Supremo Tribunal Administrativo no âmbito dos poderes de revista de que dispõe para assegurar, como órgão jurisdicional de topo, a melhor aplicação do direito;

T) Assentando na factualidade dada como provada e relevante pelo Tribunal Tributário de Lisboa na decisão proferida em primeira instância, o Acórdão recorrido considerou que "No âmbito do contrato de locação financeira, a resolução do mesmo, por perda do bem, implica a constituição das partes em obrigações distintas, a saber: o pagamento à locadora, por parte do locatário, do valor das rendas vincendas e do valor residual atualizados, ao momento da perda total do bem; [e] a restituição, pela locadora ao locatário, do valor da indemnização recebida pela Seguradora" e que "O valor a pagar à locadora, pelo locatário, relativo ao valor das rendas vincendas e valor residual atualizados ao momento da perda total do bem é sujeito a IVA [mas o] valor a restituir pela locadora ao locatário, relativo à indemnização recebida da seguradora, não tem subjacente uma operação sujeita a imposto, como tal não deve ser tributada em IVA";

U) Este entendimento escuda-se numa premissa incorreta - já antes acolhida na Sentença proferida em primeira instância - segundo a qual ao deduzir o montante das indemnizações recebidas das seguradoras aos valores a cobrar aos locatários, a RECORRENTE estava a realizar um encontro de contas, mediante o qual: (i) recebia a totalidade do valor das rendas vincendas e do valor residual previsto nos contratos de leasing ou ALD (sujeitos a IVA); e (ii) entregava aos locatários o valor das indemnizações das seguradoras que lhes eram supostamente devidas (não sujeitas a IVA);

V) Sucede que - independentemente da (in)correção daquela premissa - a conclusão alcançada pelo Tribunal Central Administrativo Sul padece de erro porque a tributação das indemnizações em sede de IVA não depende da identidade dos sujeitos envolvidos, mas sim da natureza objetiva dessas indemnizações;

W) Neste sentido, independentemente da incorreção da análise material das relações aqui em causa, o certo é que, na parte em compensam a RECORRENTE pela perda total do veículo (que é um dano emergente verificado na sua esfera patrimonial), as indemnizações não podem estar sujeitas a IVA - independentemente de quem deva pagá-las, as seguradoras (como sucede de facto e de direito), ou os locatários (como considerou a Administração tributária e o Tribunal a quo);

X) Considerando o disposto nos artigos 1.º, 4.º e 16.º do Código do IVA (e nos artigos 2.º, 24.º e 73.º da Diretiva IVA), e entendimento uniforme na doutrina e na jurisprudência que as indemnizações apenas podem ser sujeitas a imposto quando substituem uma contraprestação por uma aquisição de bens ou uma prestação de serviços tributável e que não são sujeitas a imposto quando se limitam a compensar uma perda atual na esfera patrimonial do indemnizado;

Y) A tributação em sede de IVA incide, portanto, apenas sobre as indemnizações por lucros cessantes - as indemnizações com caráter remuneratório - e, dentro destas, apenas sobre as que visam compensar o não pagamento de contra prestacões (preços) que , se fossem pagos seriam sujeitos a imposto:

Z) Mais: de acordo com a jurisprudência do Tribunal de Justiça a este respeito [v., por exemplo, o Acórdão proferido no caso C-215/94 (Jürgen Mohr)] , para que uma compensação seja sujeita a imposto é também preciso que ela compense o consumo de um bem efetivamente transmitido ou de um serviço efetivamente prestado, sem os quais não há justificação para aplicar o IVA (que, recorde-se, tributa precisamente o consumo);

AA) Aplicando estas premissas interpretativas às indemnizações suportadas pelas seguradoras em função da destruição ou roubo dos veículos no âmbito de contratos de locação, a Comissão Europeia considerou que "tais pagamentos são motivados por um facto exógeno (roubo do veículo, danos, perda ou acidente do mesmo) que não está de modo algum relacionado com a operação tributável que constitui a locação do veículo. Em consequência, o pagamento de uma indemnização à sociedade de locação nunca poderá ser considerado remuneração de uma prestação de serviços, não sendo, por conseguinte, abrangido pelo campo de aplicação do IVA" (cf. MARTA MACHADO DE ALMEIDA, op. cit, p. 73, referindo-se à resposta da Comissão Europeia à pergunta escrita formulada pela Deputada …………. em 30 de julho de 1998, publicada no Jornal Oficial n.º C 096, de 8 de abril de 1999, p. 0095);

BB) Em face do exposto, conclui-se que, em definitivo, que, na parte em que visam ressarcir a perda dos veículos locados (a parte suportada pelas seguradoras), as indemnizações recebidas pela RECORRENTE não são contraprestações sujeitas a IVA - são montantes que visam apenas compensar um dano emergente (um prejuízo atual) e que, por isso, estão fora do escopo do imposto;

CC) E esta conclusão não depende da forma como são configuradas as relações jurídicas aqui em causa: ainda que, como sustenta a Administração tributária, o montante da indemnização a suportar pela seguradora fosse diretamente devido ao locatário e só indiretamente devida ao locador, o certo é que o dano que essa indemnização visa ressarcir é sempre apenas a perda do veículo (verificada na esfera patrimonial da RECORRENTE) e a perda do veículo não é uma transmissão de bens nem uma prestação de serviços;

DD) Em reforço destas conclusões, recorda-se que, no já citado Acórdão proferido no Recurso n.º 01158/11,a respeito de uma situação de facto muito semelhante à que está subjacente ao presente Processo, o Supremo Tribunal Administrativo considerou que, "(...) há que distinguir entre a prestação que o locatário paga à locadora e que respeita ao montante de eventuais rendas vencidas e não pagas e respetivos juros de mora e aquela que vai ser paga pela seguradora" (cf . Acórdão proferido em 31 de outubro de 2012, no Recurso n.º 01158/11, disponível em www.dgsi.pt e citado na Sentença recorrida);

EE) Na primeira situação" - continua aquele aresto - "a prestação em causa ainda tem a sua fonte no contrato (rendas já vencidas e respetivos juros) e, por conseguinte, na relação sinalagmática que existia entre locador e locatário, que está normalmente sujeita a IVA, porquanto a locação financeira configura a cedência, mediante retribuição, do gozo temporário de uma coisa móvel ou imóvel, pelo que constitui uma prestação de serviços sujeita a imposto, nos termos do nº 1 do art. 4º do CIVA. (...)" (ibidem);

FF) Todavia, na "segunda situação as coisas são diferentes. Com o acidente dá-se a intervenção de um evento externo que interrompe essa relação e constitui a causa da indemnização a pagar pela seguradora à locadora. Aplicando a doutrina do Parecer da Comissão Europeia, o pagamento a efetuar pela seguradora é motivado por um evento exógeno que não está de modo algum relacionado com a operação tributável que constitui a locação do veículo. (...) Dito por outras palavras, o que está coberto pelo seguro não são os contratos de leasing ou de aluguer de longa duração, mas os veículos, que constituem o objeto da atividade da recorrida, tendo a indemnização em causa o propósito de reparar o prejuízo sofrido pela locadora na sequência da perda dos veículos, substituindo os bens perdidos em espécie pelo valor equivalente em termos monetários" (ibidem; realce acrescentado);

GG) E - como também refere expressamente o Supremo Tribunal Administrativo num trecho já acima citado - esta conclusão não depende da titularidade jurídica/contratual do direito à indemnização ser do locatário (que estava obrigado a suportar os custos do seguro) ou da locadora (que é a tomadora e beneficiária do seguro) porque, ao contrário do que entende a Administração tributária, "a natureza da indemnização não depende dos sujeitos intervenientes, mas sim da causa e do objeto que a mesma visa reparar. Isto é, o facto de o risco referente à perda total dos veículos ter sido transferido para um terceiro não altera a natureza da indemnização, seja esta paga pela seguradora ou diretamente pelo particular, o que releva é que a mesma é devida pelos clientes da entidade que loca/aluga automóveis e tem como propósito reparar o prejuízo sofrido por aquela em caso de sinistro com perda total dos veículos" (ibidem);

HH) Nestes termos, é evidente que "as indemnizações pagas pelas seguradoras e destinadas a compensar os danos causados pela perda dos veículos automóveis, em caso de acidente, porque não assumem a natureza de contraprestação pela transmissão de um bem ou prestação de um serviço (arts. 1º, n.º 1, 4º°, n.º 1 e 16º, n.º 6, alínea a), do CIVA), nem visam suportar lucros cessantes das recorridas, devem considerar-se excluídas da incidência de IVA" (ibidem);

II) Em face do exposto, o Acórdão recorrido padece de um manifesto erro de julgamento e deve ser revogado e substituído por outro que anule os atos de liquidação contestados pela RECORRENTE, por violação do disposto nos artigos 1.º, 4.º e 16.º do Código do IVA;

JJ) Sem prejuízo do exposto, a RECORRENTE requer ao Supremo Tribunal Administrativo que, caso subsistam dúvidas sobre a interpretação do regime do IVA acima invocado, reenvie o processo para apreciação prejudicial por parte do Tribunal de Justiça, nos termos previstos no artigo 267.º do Tratado Sobre o Funcionamento da União Europeia, perguntando se o regime de Direito da União Europeia se opõe ou não a uma legislação nacional que, interpretada como fez a Administração tributária no presente caso, impõe a liquidação de IVA sobre valores equivalentes aos das indemnizações pagas por seguradoras em função da perda de veículos objeto de contratos de locação financeira ou de ALD.

TERMOS EM QUE,

DEVE O PRESENTE RECURSO SER ADMITIDO E PROCEDER, POR PROVADO E FUNDADO, REVOGANDO-SE E SUBSTITUINDO-SE O ACÓRDÃO RECORRIDO POR OUTRO QUE CONFIRME QUE AS INDEMNIZAÇÕES AQUI EM CAUSA NÃO ESTÃO SUJEITAS A IVA E ANULE OS ATOS DE LIQUIDAÇÃO IMPUGNADOS, COM AS DEMAIS CONSEQUÊNCIAS LEGAIS.

2 – Não foram apresentadas contra-alegações.

3 – A Excelentíssima Procuradora-Geral Adjunta junto deste Supremo Tribunal emitiu parecer no sentido da não admissão da revista.

4 – Dá-se por reproduzido o probatório fixado no acórdão recorrido (fls. 6 a 16 da respectiva numeração autónoma).

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir da admissibilidade do recurso.


- Fundamentação -


5 – Apreciando.

5.1 Dos pressupostos legais do recurso de revista.

O presente recurso foi interposto e admitido como recurso de revista excepcional, havendo, agora, que proceder à apreciação preliminar sumária da verificação in casu dos respectivos pressupostos da sua admissibilidade, ex vi do n.º 6 do artigo 285.º do CPPT.

Dispõe o artigo 285.º do CPPT, na redacção vigente, sob a epígrafe “Recurso de Revista”:

1 – Das decisões proferidas em segunda instância pelo Tribunal Central Administrativo pode haver, excecionalmente, revista para o Supremo Tribunal Administrativo, quando esteja em causa a apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental ou quando a admissão do recurso seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito.

2 – A revista só pode ter como fundamento a violação de lei substantiva ou processual.

3 – Aos factos materiais fixados pelo tribunal recorrido, o tribunal de revista aplica definitivamente o regime jurídico que julgue adequado.

4 – O erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objeto de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova.

5 – Na revista de decisão de atribuição ou recusa de providência cautelar, o Supremo Tribunal Administrativo, quando não confirme a decisão recorrida, substitui-a por acórdão que decide a questão controvertida, aplicando os critérios de atribuição das providências cautelares por referência à matéria de facto fixada nas instâncias.

6 – A decisão quanto à questão de saber se, no caso concreto, se preenchem os pressupostos do n.º 1 compete ao Supremo Tribunal Administrativo, devendo ser objeto de apreciação preliminar sumária, a cargo de uma formação constituída por três juízes de entre os mais antigos da Secção de Contencioso Tributário.

Decorre expressa e inequivocamente do n.º 1 do transcrito artigo a excepcionalidade do recurso de revista em apreço, sendo a sua admissibilidade condicionada não por critérios quantitativos mas por um critério qualitativo – o de que em causa esteja a apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental ou quando a admissão do recurso seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito – devendo este recurso funcionar como uma válvula de segurança do sistema e não como uma instância generalizada de recurso.

E, na interpretação dos conceitos a que o legislador recorre na definição do critério qualitativo de admissibilidade deste recurso, constitui jurisprudência pacífica deste Supremo Tribunal Administrativo - cfr., por todos, o Acórdão deste STA de 2 de abril de 2014, rec. n.º 1853/13 -, que «(…) o preenchimento do conceito indeterminado de relevância jurídica fundamental verificar-se-á, designadamente, quando a questão a apreciar seja de elevada complexidade ou, pelo menos, de complexidade jurídica superior ao comum, seja por força da dificuldade das operações exegéticas a efectuar, de um enquadramento normativo especialmente intricado ou da necessidade de concatenação de diversos regimes legais e institutos jurídicos, ou quando o tratamento da matéria tem suscitado dúvidas sérias quer ao nível da jurisprudência quer ao nível da doutrina. Já relevância social fundamental verificar-se-á quando a situação apresente contornos indiciadores de que a solução pode constituir uma orientação para a apreciação de outros casos, ou quando esteja em causa questão que revele especial capacidade de repercussão social, em que a utilidade da decisão extravasa os limites do caso concreto das partes envolvidas no litígio. Por outro lado, a clara necessidade da admissão da revista para melhor aplicação do direito há-de resultar da possibilidade de repetição num número indeterminado de casos futuros e consequente necessidade de garantir a uniformização do direito em matérias importantes tratadas pelas instâncias de forma pouco consistente ou contraditória - nomeadamente por se verificar a divisão de correntes jurisprudenciais ou doutrinais e se ter gerado incerteza e instabilidade na sua resolução a impor a intervenção do órgão de cúpula da justiça administrativa e tributária como condição para dissipar dúvidas – ou por as instâncias terem tratado a matéria de forma ostensivamente errada ou juridicamente insustentável, sendo objectivamente útil a intervenção do STA na qualidade de órgão de regulação do sistema.».

Vejamos, pois.

O TCA-Sul, no acórdão sob escrutínio, negou provimento ao recurso interposto pelo também ora recorrente da sentença do Tribunal Tributário de Lisboa que julgara improcedente a impugnação que deduzira liquidações adicionais de IVA resultantes da não liquidação de IVA sobre o valor total do capital em dívida em caso de resolução antecipada de contrato de locação financeira em situação de perda total do veículo.

A recorrente fundamentou o seu recurso para o TCA imputando à sentença, desde logo, erro de julgamento da matéria de facto assente, pretendendo que aos factos provados fossem aditados mais dois, a saber, que: a) Sempre que era celebrado um contrato de leasing ou de ALD, era simultaneamente subscrito um seguro pela recorrente, na qualidade de tomadora e beneficiária, que cobria os danos próprios da viatura locada, incluindo o dano de perda total; b) Em caso de perda total dos veículos automóveis locados, a recorrente apenas cobrava aos locatários o valor complementar correspondente à diferença entre: (i) o montante total das rendas vincendas e valor residual; e (ii) o montante das indemnizações que lhe tinham sido pagas pelas seguradoras». O TCA rejeitou tal pretensão, no entendimento de que o ónus de impugnação especificada constante do artigo 640.º do CPC (…) . não foi observado pela recorrente, dado que não indica os elementos de prova que sustentam os presentes enunciados fácticos e os mesmos contradizem a matéria de facto assente, na medida em que o contrato de seguro é celebrado e pago pelo locatário, com vista a indemnizar a locadora/recorrente pela perda do bem locado (V. artigo 10.º/1/j), do Decreto-Lei n.º 149/95, de 24 de Junho, que estabelece o regime jurídico do contrato de locação financeira e cláusula 3.ª do contrato tipo de locação financeira). É que, nos termos da cláusula 7.ª, do contrato tipo de locação de financeira, em face da ocorrência de evento relativo à perda do bem locado, a subsequente resolução do contrato de locação constitui na esfera jurídica da recorrente o direito ao pagamento, por parte do locatário, do valor das rendas vincendas, bem como do valor residual do bem locado, montantes que acrescem ao montante percebido pela locadora, a título de indemnização paga pela seguradora, no âmbito do contrato de seguro celebrado e pago pelo locatário (V. Clª 3.º e 7.º do contrato tipo de locação de financeira e artigo 10.º/1/j), do Decreto-Lei n.º 149/95, de 24 de Junho, que estabelece o regime jurídico do contrato de locação financeira).

Já quanto ao erro de julgamento de Direito igualmente imputado pela recorrente à sentença e que o TCA-Sul julgou inverificado, entendeu o Tribunal, citando jurisprudência deste ST e do TCA-Sul, em síntese, que No âmbito do contrato de locação financeira, a resolução do mesmo, por perda do bem, implica a constituição das partes em obrigações distintas, a saber: o pagamento à locadora, por parte do locatário, do valor das rendas vincendas e do valor residual actualizados, ao momento da perda total do bem; a restituição, pela locadora ao locatário, do valor da indemnização recebida pela Seguradora//O valor a pagar à locadora, pelo locatário, relativo ao valor das rendas vincendas e valor residual actualizados ao momento da perda total do bem é sujeito a IVA. O valor a restituir pela locadora ao locatário, relativo à indemnização recebida da seguradora, não tem subjacente uma operação sujeita a imposto, como tal não deve ser tributado em IVA.

A recorrente interpõe o presente recurso de revista alegando que que os valores que recebeu a título de indemnização pelas perdas dos veículos correspondem a indemnizações totalmente excluídas de IVA, uma vez que servem apenas e só para reparar um dano emergente verificado na sua esfera em caso de acidente ou furto: a perda dos veículos automóveis (que são parte da esfera patrimonial da RECORRENTE) e não para compensar qualquer tipo de lucros cessantes e que, independentemente da forma como for configurada a relação jurídica, estas indemnizações pelas perdas - que correspondem sempre aos montantes suportados pelas seguradoras - não podem ser sujeitos a imposto, nem de forma direta (com o IVA liquidado às seguradoras), nem tão pouco de forma indireta (com o IVA liquidado aos locatários). Requer revista sobre a questão da sujeição/não sujeição a IVA das indemnizações recebidas pela RECORRENTE em função da perda dos veículos locados alegando que a questão jurídica em apreço se reveste de relevância jurídica fundamental e de evidente relevância social e também que a revista desta questão por parte do Supremo Tribunal Administrativo é da maior importância para a correta aplicação do direito, uma vez que a solução sustentada no Acórdão recorrido é absolutamente contraintuitiva e, por isso, muito difícil de aplicar à generalidade dos locatários (e em particular aos locatários consumidores finais), que, numa situação já por si anómala (a impossibilidade de manter o contrato por acidente ou furto), seriam chamados pelas locadoras a entregar IVA sobre montantes que não lhes são cobrados e que, portanto, não têm que pagar.

Este STA já tomou posição sobre esta matéria, como bem lembra a recorrente.

Por Acórdão de 31 de outubro de 2012, proferido no recurso n.º 158/11, o STA sancionou o entendimento segundo o qual No âmbito de um contrato de locação financeira, as indemnizações pagas pelas seguradoras e destinadas a compensar os danos causados pela perda dos veículos automóveis, em caso de acidente, porque não assumem a natureza de contraprestação pela transmissão de um bem ou prestação de um serviço (arts. 1º, n.º 1, 4º, n.º 1 e 16º, n.º 6, alínea a), do CIVA), nem visam suportar lucros cessantes das recorridas, devem considerar-se excluídas da incidência de IVA.// As indemnizações pagas pelo locatário à locadora, traduzidas no pagamento de eventuais rendas vencidas e respectivos juros, porque radicam no cumprimento de obrigações contratualmente assumidas, tendo estes contratos a natureza de contratos de prestação de serviços, tais quantias representam, ainda, contraprestações de operações tributáveis em IVA.

Não se vê que o acórdão sob escrutínio não seja conforme a este entendimento. O que sucede é que interpreta os factos, ou configura as relações jurídicas, de forma diversa do pretendido pela recorrente, mas fazendo-o, porém, com base no probatório fixado.

Ora, como é sabido, por expressa disposição legal, o erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objeto de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova - cfr. o n.º 4 do artigo 285.º do CPPT-, o que não é manifestamente o caso.

Pelo exposto se conclui pela não admissão da revista, em razão da não verificação dos respectivos pressupostos legais.

- Decisão -

6 - Termos em que, face ao exposto, acorda-se em não admitir o presente recurso de revista, por não se mostrarem preenchidos os respectivos pressupostos legais.

Custas do incidente pela recorrente.

Lisboa, 3 de Fevereiro de 2021. – Isabel Marques da Silva (Relatora) - Francisco Rothes - Aragão Seia.