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Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:01332/15.9BEPRT 0105/16
Data do Acordão:10/14/2020
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:NUNO BASTOS
Descritores:IMPOSTO DE JOGOS
CONSTITUCIONALIDADE
Sumário:I - A “contrapartida anual” prevista no Decreto-Lei n.º 275/2001, de 17 de Outubro, tem a natureza jurídica de prestação de natureza patrimonial.
II - O Decreto-Lei n.º 422/89, de 2 de Dezembro (Lei do Jogo), bem como o Decreto-Lei n.º 275/2001, de 17 de Outubro, não enfermam de inconstitucionalidade orgânica nem material.
Nº Convencional:JSTA000P26499
Nº do Documento:SA22020101401332/15
Data de Entrada:10/03/2019
Recorrente:A............, S.A
Recorrido 1:TURISMO DE PORTUGAL, I.P.,
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam em conferência na Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:
1. Relatório

1.1. A…………….., S.A., contribuinte fiscal n.º………….., com sede no Edifício ………………, 4490-…. Póvoa de Varzim, recorre da sentença proferida pela Mm.ª Juiz do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto, que julgou totalmente improcedente a impugnação judicial da liquidação da “contrapartida anual relativa ao ano de 2014”, efetuada pelo Instituto de Turismo de Portugal, I.P., referente à concessão da zona de jogo da Póvoa do Varzim e que engloba, entre outros, o Imposto Especial de Jogo, no valor de € 2.242.880,93.

Recurso este que foi admitido com subida imediata nos próprios autos e com efeito devolutivo.

Notificada da sua admissão, apresentou alegações e formulou as seguintes conclusões: «(…)

1ª - A presente impugnação tem por objecto a liquidação da “contrapartida anual”, referente ao ano de 2014, liquidação essa efectuada pelo Turismo de Portugal, IP;

2ª - Estabelece o Decreto-Lei n° 275/2001, de 17/10, que um conjunto de empresas concessionárias da actividade de jogos em casinos, como é o caso da recorrente, deverão pagar ao Estado, uma contrapartida no valor de 50% das receitas brutas dos jogos explorados no Casino, sendo que tal pagamento é feito, de entre outras variáveis, através do pagamento do Imposto do Jogo;

3ª - Estabelece, também, o referido Decreto-Lei n° 275/2001, que essa contrapartida anual não pode ser inferior ao valor ou quantitativo estabelecido no Anexo ao indicado Decreto-Lei;

4ª - A recorrente, no ano de 2014, teve de receitas brutas dos jogos no seu Casino, o quantitativo de €37.223.409,92, pelo que deveria pagar, como contrapartida anual, o valor de €18.611.704,96, correspondente, precisamente, a 50% das receitas brutas;

5ª - Porém, como esse valor de €18.611.704,96 era inferior ao “mínimo” estabelecido no Anexo ao Decreto-Lei nº 275/2001, o Turismo de Portugal IP, liquidou à impugnante, como contrapartida, o valor de €24.207.299,06;

6ª - A circunstância da exploração da actividade do jogo feita pela recorrente, ser feita ao abrigo de um contrato de concessão celebrado com o Estado, não retira à contrapartida a sua natureza tributária;

7ª - É que, por um lado, o pagamento da contrapartida é feita, em larga medida, através de pagamento do Imposto do Jogo e nenhuma dúvida existe sobre a natureza do imposto que o Imposto do Jogo tem;

8ª - Por outro lado, nem o Imposto do Jogo nem a contrapartida possuem base contratual - como assinala a doutrina, o regime tributário das zonas de jogo é um regime exclusivamente legal;

9ª - Sendo certo, ainda, que o Supremo Tribunal Administrativo, a propósito da questão da competência da jurisdição fiscal para apreciar a impugnação da liquidação da contrapartida anual, concluiu por tal competência, já que estamos perante um tributo coactivamente imposto por instrumento legal (cf. Acórdão de 29/2/2016, Processo n° 105/16);

10ª - Por outro lado, a contrapartida anual aqui e agora impugnada, consubstancia um verdadeiro imposto, não só porque, repete-se, é paga fundamentalmente através do imposto do jogo, mas também porque corresponde a 57% das receitas brutas da impugnante, o que demonstra que há uma “desproporção intolerável”, em relação a qualquer vantagem obtida ou a obter pela recorrente;

11ª - A liquidação ora impugnada é ilegal por ter como fundamento o Decreto-Lei nº 422/89 (Lei do Jogo) e o Decreto-Lei nº 275/2001, de 17/10, sendo ambos os diplomas inconstitucionais;

12ª - Quanto ao primeiro dos indicados diplomas, na medida em que a contrapartida ora impugnada é constituída pelo imposto do jogo e na medida em que tal imposto foi fixado, quanto aos seus elementos essenciais, por decreto-lei, teria de haver uma autorização legislativa emitida pela Assembleia da República;

13ª - É certo que tal diploma (a Lei do Jogo) foi emitida invocando uma lei de autorização legislativa – porém, tal lei não indica os critérios orientadores dessa autorização, em violação da Constituição;

14ª - Por outro lado, o Decreto-Lei nº 275/2001 de 17/10, ao impor o pagamento da contrapartida anual é, também inconstitucional;

15ª - Tendo tal contrapartida a natureza de um imposto, a sua criação só podia ser feita pela Assembleia da República ou pelo Governo se, para tal, estivesse autorizado, o que não aconteceu;

16ª - Da inconstitucionalidade da Lei do Jogo e do Decreto-Lei nº 275/2011, resulta a ilegalidade da liquidação da contrapartida ora impugnada;

17ª - A contrapartida é também ilegal, na medida em que é paga através do Imposto do Jogo e este é ilegal, já que incide sobre os jogos de máquinas e a incidência material é fixada pela autoridade administrativa, no caso, pelo Turismo de Portugal, IP;

18ª - Ora, o princípio da legalidade tributária exige que, entre outros elementos, a incidência seja fixada por lei, não se admitindo qualquer delegação administrativa;

19ª - Essa deslegalização efectuada pela Lei do Jogo implica a violação dos artºs 103º, nº 2 e 165º, nº 1, i), da Constituição, razão pela qual a contrapartida ora impugnada é ilegal;

20ª - A contrapartida ora impugnada é também ilegal por violação dos princípios constitucionais da capacidade contributiva e do rendimento real e da igualdade;

21ª - A contrapartida incide sobre receitas brutas e não sobre o lucro - tal não dispensa ou justifica a não aplicação ou desrespeito pelos princípios constitucionais da capacidade contributiva e do rendimento real;

22ª - O legislador ao configurar a contrapartida fazendo-a incidir sobre o rendimento bruto, estabeleceu uma presunção inilidível de que esse rendimento bruto é o rendimento real o que configura uma patente inconstitucionalidade;

23ª - A contrapartida, tal como configurada na lei, viola, de modo frontal, os referidos princípios da capacidade contributiva e do rendimento real, ao exigir-se um valor mínimo de contrapartida;

24ª - Tal mínimo implica que, em face de uma diminuição das receitas brutas e, portanto, obviamente, de uma redução de lucros ou mesmo em face de prejuízos, o quantitativo a pagar ao Estado represente um aumento de percentagem das receitas assim pagas;

25ª - Há, pois, uma inconstitucionalidade ao estabelecer-se uma tributação sobre receitas fictícias;

26ª - A contrapartida é também ilegal, na medida em que há uma violação do princípio da igualdade, já que para as empresas sujeitas a IRC não existe uma tributação mínima e, por outro, nem todas as empresas concessionárias da actividade do jogo estão submetidas ao regime da contrapartida mínima.

27ª - Por todas essas razões, a liquidação ora impugnada é ilegal.

28ª - Assim, a douta sentença, ao julgar improcedente a impugnação, não pode manter-se.».

Pediu fosse julgado procedente o recurso, fosse anulada a sentença recorrida e fosse julgada procedente a impugnação.

O Recorrido contra-alegou e concluiu do seguinte modo:

1. Em causa nestes autos está a impugnação da parte da contrapartida anual devida nos termos do contrato de concessão.

2. A natureza da contrapartida contratual tem de ser aferida considerando a sua génese e a sua integração no contrato administrativo de concessão para a exploração de jogos de fortuna nos casinos existentes na zona de jogo da Póvoa de Varzim.

3. A contrapartida é exigível à recorrente por força do disposto na cláusula 4.ª, n.º 2, do contrato de concessão.

4. A recorrente adquiriu o direito exclusivo de explorar a zona de jogo da Póvoa de Varzim por ter, no âmbito do concurso, apresentado a melhor proposta, isto é, apresentado a mais alta contrapartida inicial, obrigando-se ainda a prestar, em cada ano, uma contrapartida anual de 50% das receitas brutas, que, em caso algum, poderia ser inferior aos valores indicados no anexo ao Decreto Regulamentar n.º 29/88.

5. A contrapartida anual constitui a remuneração que o Estado entendeu dever ser-lhe atribuída (o preço), por ter atribuído à recorrente, em regime de exclusivo territorial e temporal, a exploração de jogos de fortuna ou azar na zona de jogo da Póvoa de Varzim.

6. O Decreto-Lei n.º 275/2001 estabeleceu as condições acordadas entre as concessionárias, recorrente incluída, e o Estado para a prorrogação dos contratos, prevendo expressamente que as condições da prorrogação se aplicariam se e quando as concessionárias outorgassem os aditamentos aos respetivos contratos.

7. Em 14 de dezembro de 2001 a recorrente outorgou o aditamento ao seu contrato de concessão, assumindo voluntariamente todas as obrigações previamente negociadas com o Estado, incluindo a atualização dos valores constantes da tabela anexa ao Decreto-Lei n.º 275/2001, beneficiando, assim, da prorrogação do prazo da sua concessão por mais 15 anos.

8. O artigo 8.º do Decreto-Lei n.º 275/2001 e a formalização, através da assinatura do aditamento, tinham ainda a virtualidade de clarificar que se estava perante uma modificação contratual consensual e não perante um ato modificativo unilateral.

9. O Decreto-Lei n.º 422/89 não regula a contrapartida anual e o Decreto-Lei n.º 275/2001 não constitui a base que fundamenta a obrigação de pagamento dessa contrapartida.

10. A relação que se estabelece entre o imposto de jogo e a contrapartida anual, em termos de aquele poder realizar esta, decorre do específico contrato em que é prevista essa possibilidade. Que assim é o comprovam as diferentes configurações dos contratos de concessão em vigor, em que há casos em que o imposto cumula com a contrapartida, há casos em o imposto deduz à contrapartida e há casos em que não há contrapartida, mas em todos os casos é sempre aplicado imposto especial de jogo.

11. A diferença entre a contrapartida anual e um tributo resulta no facto de a primeira ser voluntária e o segundo coativamente imposto por lei.

12. A obrigação legal que é imposta sobre todos os contratos é o imposto especial de jogo, não decorrendo da lei a obrigatoriedade de existência de contrapartida anual, razão pela qual há contratos de concessão que não preveem esta última.

13. Inexiste qualquer obstáculo jurídico ao comportamento dos particulares que possa ser removido através do pagamento da contrapartida anual.

14. O Decreto-Lei n.º 275/2001 não é organicamente inconstitucional, nem a matéria no mesmo estabelecida carece de autorização legislativa.

15. Em 11 de julho de 2018, a Procuradoria-Geral da República emitiu o Parecer n.º 3/18, onde, de forma inequívoca, qualifica a contrapartida anual devida nos termos dos contratos de concessão de exploração do jogo como contratual.

Ainda que seja irrelevante para a discussão da matéria em causa nos presentes autos, à cautela, sempre se dirá:

16. Que o Decreto-Lei n.º 422/89, como recentemente decidiu este Colendo Tribunal, não é organicamente inconstitucional, contendo a Lei n.º 14/89, de 30 de junho, todos os elementos e a densidade necessária exigida pela Constituição da República Portuguesa para uma lei de autorização legislativa.

17. Não sendo a contrapartida anual um tributo e estando enquadrada num contrato de concessão de jogo, não lhe são aplicáveis os princípios da capacidade contributiva e da tributação pelo rendimento real.

18. A tributação dos jogos bancados não incide sobre a receita bruta, mas outrossim sobre o capital em giro inicial fixado pela recorrente, conforme resulta do disposto nos artigos 53.º e 85.º do Decreto-Lei n.º 422/89.

19. A alínea C) do n.º 1 do artigo 87.º do Decreto-Lei n.º 422/89 não é inconstitucional, porquanto a norma impõe à Administração o dever de respeitar princípios e regras suficientemente claros e densos na determinação da matéria coletável.».

1.2. Recebidos os autos neste tribunal, foi ordenada a abertura de vista ao Ministério Público.

O Ex.mo Senhor Procurador Geral Adjunto emitiu douto parecer no sentido de que «a sentença recorrida deve ser revogada e determinar-se a baixa dos autos à 1ª instância a fim de ser proferida nova sentença, com ampliação da matéria de facto e julgamento das questões suscitadas pelas partes», suportado na seguinte fundamentação:

«(…) III. Análise do Recurso.

1. QUESTÃO PRÉVIA:

Conforme se alcança da sentença recorrida, a Mma. Juíza “a quo” deu apenas como assente que “a impugnante foi notificada em 31/01/2015 para efetuar o pagamento do remanescente da contrapartida anual relativa ao ano de 2014, no valor de € 4.103.051,43 euros, valor este que foi pago em 02/02/2015”.

Ora, afigura-se-nos manifesta a insuficiência da matéria de facto para apreciar qualquer dos vícios que a impugnante assaca ao ato de liquidação, uma vez que não se descortina da mesma a que título foi exigida a referida quantia à impugnante, nem se percebe a especificidade da quantia de € 2.241.880,93 euros mencionada na sentença e contra a qual se insurge a impugnante.

Salvo o devido respeito, a Mma. Juíza “a quo” alheou-se completamente do objecto da ação e da função de julgar e limitou-se a invocar a similitude do caso com o que foi objeto do acórdão de 13/03/2019, proferido no processo nº 01046/17.5BEPRT, e a aderir à respetiva fundamentação. Tendo enunciado como única questão a decidir a da “inconstitucionalidade da contrapartida liquidada”, refere-se contudo a pluralidade de questões, quando chama à colação a jurisprudência do aresto citado e o ali decidido, sem contudo se perceber a que questões se refere e que mereceram a sua análise.

Entendemos, assim, que a sentença recorrida não só padece de insuficiência da matéria de facto em ordem à apreciação das questões que foram colocadas ao tribunal, como a decisão padece de ambiguidade e obscuridade, que a torna ininteligível, o que torna inviável a apreciação do recurso dela interposto.

(…).».

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.



2. Dos fundamentos de facto

Na douta sentença recorrida foram julgados provados os seguintes factos: «(...)

A. A Impugnante foi notificada em 30-01-2015 da seguinte liquidação de “contrapartida anual relativa ao ano de 2014”, por parte do Instituto de Turismo de Portugal, IP, cfr. teor de fls. 28 e 29 dos autos (p.f.):

V/Refª
N/Refª SAI/2015/1600/OIJ/PL
Data 29-01-2015
ASSUNTO:Plano de pagamento da contrapartida anual relativa ao ano 2014
Informa-se V. Ex.ª de que, por despacho dos Senhores Secretários de Estado do Orçamento e do Turismo, de 30 de janeiro de 2015, foi aprovado o plano de pagamento apresentado ao abrigo do Decreto Regulamentar n.º 1/2015, de 21 de janeiro.

Assim, de acordo com o estipulado na alínea c) do n.º 3 da cláusula 6ª do contrato de concessão, conjugado com o n.º 4 do artigo 2º do Decreto-Lei n.º 275/2001, de 17 de outubro, e do Decreto Regulamentar n.º 1/2015, de 21 de janeiro, fica V. Ex.ª notificado para proceder ao pagamento por transferência bancária, para o NIB 0781 0112 0112 001267545 do Turismo de Portugal, I.P. do remanescente da contrapartida anual relativa a 2014, no montante de € 4.103.051,43.

Informa-se que o valor apurado resulta da diferença entre o montante correspondente a 50% da receita bruta (€ 18.611.704,96), acrescido de 10% desta receita [€1.861.170,50), após terem sido efetuadas as deduções legais e contratualmente estabelecidas, e o montante que seria devido nos termos do mapa anexo ao referido Decreto-Lei n.º 275/2001.

Assim, os restantes € 3.734.423,60 – valor apurado após dedução dos referidos 10% (€ 1.861.170,50) ao montante que seria devido em 31 de janeiro de 2015 sem a aprovação do plano de pagamento (€ 7.837.475,03) – serão pagos, em conformidade com o plano de pagamento apresentado e aprovado, em três prestações, que se vencem, respetivamente, em 31 de dezembro de 2019, em 31 de dezembro de 2020 e em 31 de dezembro de 2021, acrescidas de juros moratórios à taxa Euribor a seis meses, revista semestralmente de acordo com a taxa que se encontre em vigor, acrescida de dois pontos percentuais
……. …
Receita bruta apurada em 2014
€ 37.223.409,92
50% da receita bruta
€ 18.611.704,96
Contrapartida mínima devida nos termos do mapa anexo ao Decreto-Lei n.º 275/2001, atualizada
€ 24.207.299,06
Percentagem da contrapartida contratual devida (50%), acrescida de 10% da receita bruta (5%), nos termos do n.º 3 do artigo 4.º do Decreto Regulamentar n.º 1/2015
€ 20.472.875,46
Deduções à contrapartida
€ 16.369.824,03
Montante que seria devido sem plano de pagamentos
€ 7.837.475,03
Remanescente da contrapartida anual de 2014 devida até 31 de janeiro de 2015, com o plano de pagamentos
€ 4.103.051,43
Diferença entre o montante a pagar até 31 de janeiro de 2015 e o montante constante do mapa anexo ao Decreto-Lei n.º 275/2001, devidamente atualizado (a pagar em três prestações acrescidas dos respetivos juros)
€ 3.734.423,60

B. A Impugnante pagou a liquidação impugnada em 02-02-2015, cfr. teor de fls. 31 dos autos (p.f.).

C. A presente impugnação foi apresentada neste Tribunal em 30-04-2015, cf. teor de fls. 3 dos autos (p.f.).

D. Em 30.08.2011, a impugnante interpôs reclamação graciosa (fls. 1 a 7 da Reclamação Graciosa apensa aos autos);

E. Em 29.02.2012, formou-se o indeferimento tácito da reclamação graciosa;

F. Em 02.03.2012, a impugnante interpôs a presente impugnação judicial.



3. Dos fundamentos de Direito

3.1. A primeira questão que importa decidir no presente recurso é a questão prévia suscitada no douto parecer do Ex.mo Senhor Procurador-Geral Adjunto e que transcrevemos no ponto 1.2. supra.

Consiste em saber se a sentença recorrida padece de nulidade por deficiência parcial na indicação da matéria de facto ou por ambiguidade ou obscuridade que a torne ininteligível.

Alega o Digno magistrado do M.º P.º, a este propósito que não se descortina a partir da matéria de facto dada como provada a que título foi exigida a quantia de € 4.103.051,43 nem se percebe a especificidade da quantia de € 2.241.880,93, mencionada na sentença.

Sucede que a quantia de € 2.241.880,93, foi mencionada na sentença apenas em dois momentos: no relatório e na fixação do valor da causa, nos termos do artigo 306.º, n.º 1 do Código de Processo Civil.

Ora, é inequívoco que esta quantia foi mencionada no relatório porque corresponde ao valor da contrapartida financeira impugnada nos autos, tal como consta da petição inicial. E a fixação do valor da causa não foi impugnada, pelo que não pode ser aqui sindicada, não importando, por isso, indagar como se chegou a esse valor.

Parece, no entanto, que o que o Ex.mo Senhor Procurador-Geral Adjunto pretende dizer é que o tribunal de primeira instância devia ter indagado oficiosamente sobre a origem e a composição daqueles valores para efeitos de delimitação do objeto do litígio. E que, não o tendo feito, violou o dever de indagação oficiosa dos factos relevantes para a decisão. E este é um vício diverso do que acima identificamos, porque se consubstancia num erro de julgamento (erro sobre a suficiência da matéria de facto apurada para o julgamento da causa).

No entanto, e apesar da exiguidade da matéria de facto apurada, o documento que se transcreve na alínea a) dos factos provados descreve pormenorizadamente o processo de apuramento da contrapartida financeira apurada, em termos que, por si só ou conjugadamente com os diplomas para que remete, permitem a reconstituição de todo o itinerário seguido na determinação dos valores em causa.

Assim, o valor de € 4.103.051,43 corresponde à parte do valor que importa pagar até 31 de janeiro de 2015, do montante de € 7.837.475,03 e a que alude o n.º 3 do artigo 4.º do Decreto Regulamentar n.º 1/2015, de 21 de janeiro, assim apurado: percentagem da receita bruta contratualmente fixada (50% de € 37.223.409,92 = € 18.611.704,96); valor a acrescer para efeitos de cálculo do valor a pagar para efeitos de aprovação do plano de pagamento (10% de € 18.611.704,96 = € 1.861.170,50; € 18.611.794,96 + € 1.861.179,50 = € 20.472.875,46); dedução do valor da contrapartida já pago durante 2014 (€ 20.472.875,46 – € 16.369.824,03 = € 4.103.051,43).

Por sua vez, o montante de € 7.837.475,03 corresponde à parte da contrapartida mínima para 2014 que a Impugnante ainda não pagou, assim calculada: € 24.207.299,06 de contrapartida mínima – € 16.369.824,03 de contrapartida paga = € 7.837.475,03 de contrapartida a pagar, sendo € 4.103.051,43 até 31 de janeiro de 2015 e o restante de acordo com o plano de pagamentos.

Finalmente, o montante de € 2.241.880,93 corresponde ao valor do remanescente da contrapartida a pagar se não valesse o critério da contrapartida mínima, assim calculado: € 18.611.704,96 (correspondente a 50% do valor das receitas brutas de 2014) - € 16.369.824,03 (correspondente à contrapartida paga durante 2014) = € 2.241.88,93.

Como explica a própria Recorrente no artigo 17.º da douta petição inicial, a diferença entre estes € 2.241.880,93 e o valor da contrapartida mínima a pagar (€ 7.837.475,03) não é impugnada nos autos porque faz parte do objeto de outra impugnação já intentada.

Sendo, assim, percetível a origem e a composição do valor da contrapartida anual impugnado, não se nos afigura necessária a devolução dos autos à primeira instância para ampliação da matéria de facto. Nada obsta, por isso, à apreciação dos vícios que lhe são imputados pela Recorrente.

3.2. Nas doutas e bem estruturadas alegações de recurso são imputados à sentença recorrida aos seguintes vícios:

a) Erro de julgamento de direito, porque a “contrapartida anual” imposta pelo Decreto-Lei n.º 275/2001 tem a natureza de um imposto e o diploma que a aprovou padece de inconstitucionalidade por não ter por base qualquer autorização legislativa;

b) Erro de julgamento de direito, porque é componente da “contrapartida anual” o imposto especial sobre o jogo, aprovado por diploma que padece de inconstitucionalidade por violação do princípio da legalidade nas suas vertentes de reserva de lei formal e material;

c) Erro de julgamento de direito porque, tendo a “contrapartida anual” a natureza de um imposto, viola os princípios da constituição fiscal da capacidade contributiva, do rendimento real e da igualdade.

Deriva do sobredito que, para chegar ao erro de julgamento a que aludem as alíneas a) e c), a Recorrente parte do pressuposto de que a “contrapartida anual” é um imposto.

A questão de saber se a “contrapartida anual” a que alude o Decreto-Lei n.º 275/2001, de 17 de outubro tem a natureza jurídica de um imposto é, por isso, uma questão previa que subjaz toda a argumentação da Recorrente neste segmento.

E de que depende, na prática, a apreciação das inconstitucionalidades e ilegalidades que lhe são diretamente imputadas. Porque só faz sentido apreciar a violação de regras e princípios da constituição fiscal aplicáveis aos impostos no pressuposto de que a contrapartida financeira anual é um imposto.

Ora, o Supremo Tribunal Administrativo já se pronunciou por diversas vezes sobre esta questão. E sempre no sentido de que a “contrapartida anual” prevista no Decreto-Lei n.º 275/2001, de 17 de outubro não tem natureza tributária, reconduzindo-se a uma prestação de natureza patrimonial.

Foi assim no acórdão de 23 de janeiro de 2019, no processo n.º 01037/14.8BEPRT, no acórdão da mesma data, no processo n.º 01681/14.3BESNT, no acórdão de 30 do mesmo mês, no processo n.º 01671/13.3BESNT, no acórdão de 13 de março de 2019, no processo n.º 01046/17.5BEPRT (citado na sentença recorrida), no acórdão da mesma data, no processo n.º 01232/16.5BEPRT, no acórdão de 30 de outubro de 2019, no processo n.º 0132/13.5BESNT, entre outros.

E quanto às demais questões suscitadas, também já foram apreciadas no acórdão de 5 dezembro de 2018 (processo nº 1457/15), proferido em julgamento ampliado do recurso, realizado ao abrigo do disposto no artigo 148.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, por se ter considerado necessário ou conveniente para assegurar a uniformidade da jurisprudência.

Tendo em consideração: i) o carácter unânime da decisão prolatada em 5 de Dezembro de 2018 por este Tribunal; ii) a reiteração do seu teor nas decisões subsequentes do Supremo Tribunal Administrativo que têm sido proferidas sobre a mesma questão; e iii) o pouco tempo que ainda decorreu desde que este entendimento foi firmado, impõe o princípio da segurança jurídica que o teor daquela decisão seja igualmente seguido no recurso aqui em apreço.

Razão porque, e ao abrigo do disposto no n.º 5 do artigo 663.º do Código de Processo Civil, aplicável aos recursos em processo tributário a coberto do artigo 281.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário, se decide proceder a uma fundamentação sumária da presente decisão através de remissão para as decisões precedentes e os fundamentos aí expendidos.

Considerando que, quer o texto do acórdão de 5 de dezembro de 2018 (processo n.º 2224/13.1BEPRT), quer o texto do acórdão de 23 de janeiro de 2019 (processo n.º 01037/14.8BEPRT 0891/17), se encontram disponíveis, em redação integral, na base de dados da DGSI, julga-se dispensável a junção das respetivas cópias.

Porém, complementarmente, transcrevemos alguns excertos do acórdão de 23 de janeiro de 2019 que se nos afiguram essenciais para a compreensão da fundamentação da decisão aqui proferida:

«(…)

4.1. Considerando a evolução histórica da regulamentação jurídica das concessões do jogo e do modo como foram legal e contratualmente definidas as respectivas contrapartidas, o que se constata é que embora a exploração do jogo não se reconduza a uma actividade de interesse público, ela tem sido objecto de intervenção legislativa por parte do Estado, com vista à regulação (sobretudo através do instrumento jurídico da "concessão") dos vários sectores em que aquela se desenvolve, bem como à diminuição do interesse pelo jogo ilícito e clandestino.

Por isso, como sublinha o Prof. Vieira de Andrade (no parecer junto aos autos), a concessão da exploração de jogos de fortuna e azar haveria de operar-se num contrato pré-regulado por lei «(não constituindo a prestação de um serviço público), mediante uma forte contrapartida patrimonial, dado o alto potencial lucrativo da actividade (exercida em exclusivo territorial), com receitas consignadas ao desenvolvimento do turismo. E, neste contexto, também a necessária tributação desta actividade concessionada, enquanto actividade económica, haveria de ser especial: opta-se, desde sempre, no que respeita à exploração do jogo, pela substituição dos impostos regulares (hoje, IRC, IVA, Imposto de selo) por um imposto de regime especial, também com receitas consignadas ao desenvolvimento do turismo.»

Sendo que, no entanto, cada uma das prestações financeiras (a contrapartida patrimonial fixada no contrato de concessão do direito e o imposto estabelecido pela lei) «tem a sua estrutura específica, independentemente da finalidade comum e das suas interconexões práticas: uma, a contrapartida, tem natureza administrativa e contratual, outra, o imposto, tem natureza tributária e legal.»

E neste entendimento as contrapartidas pecuniárias (quer a inicial, quando prevista, quer a anual) não terão natureza tributária mas, antes, patrimonial, reconduzindo-se à «contraprestação devida pela atribuição do direito de explorar, em exclusivo a concessão numa zona territorial pré-determinada», independentemente até de o pagamento do imposto de jogo contribuir, juntamente com outros pagamentos, para a realização e preenchimento da contrapartida anual (casos há, aliás, em que não há que pagar qualquer contrapartida anual, mas somente imposto de jogo).

E nem a circunstância de no Decreto n.º 14.643, de 3 de Dezembro de 1927 (diploma que inicialmente regulou a actividade do jogo) se considerar na epígrafe que antecede os artigos 44.º e seguintes, a menção «Imposto sobre o jogo. Sua consignação», não obstante o artigo 45.º se reportar ao pagamento das contrapartidas, nem a circunstância de os valores destas poderem ser consignados às mesmas entidades e finalidades do imposto de jogo, tem a virtualidade de determinar a mutação da natureza jurídica da prestação financeira patrimonial em prestação tributária. Estas obrigações financeiras (contrapartidas financeiras mínimas ou de natureza não pecuniária devidas como contraprestação pela concessão da exploração de jogos de fortuna ou azar, bem como o modo de pagamento das mesmas - cfr. o artigo 11.º, n.º 4 e) da Lei do Jogo - e assumidas pela concessionária por efeito da concessão) têm fundamento diferente do imposto e constituem receitas de natureza patrimonial.

Acresce que, como igualmente se acentua no parecer citado, a distinção entre ambas as figuras também não é afectada pelo facto de existir uma pré-fixação legal dos montantes e das formas de cálculo e de pagamento: tal prática é frequente nos contratos de concessão, «cujas bases contratuais são, em regra, estabelecidas na lei» e «a obrigação de pagamento destes montantes não nasce coactivamente da lei, mas do contrato de concessão, dado que só existe, a título de remuneração do exclusivo concedido, para as empresas que aceitam, nas condições estabelecidas na lei, ser concessionárias do Estado na exploração do jogo», sendo normal «que a contrapartida pela outorga de um direito de exclusivo para a exploração de um bem ou de um serviço seja calculada a partir de uma percentagem da receita das concessionárias», sendo que também as «receitas patrimoniais podem em regra ser consignadas a finalidades específicas de interesse público - as limitações orçamentais à consignação reportam-se, essencialmente, ao domínio dos impostos» (aliás, relativamente à contrapartida, prevêem-se casos em que o pagamento do imposto do jogo se soma integralmente ao pagamento da contrapartida anual, e casos em que o pagamento deste é deduzido no cálculo da contrapartida anual, o que bem mostra que imposto e contrapartida não são a mesma coisa e não têm, por isso, de ser da mesma natureza).

E em todo o caso, dado que o modo de cálculo da contrapartida não altera a sua natureza jurídica de prestação contratual, também fica desprovida de relevância a argumentação da recorrente no que respeita à unilateralidade da própria contrapartida mínima, não relevando, igualmente, a invocação de jurisprudência do STA no sentido da ilegalidade da liquidação: com efeito, como bem realça a recorrida, em termos do que foi expressamente decidido e no que respeita a liquidações relativas a contrapartidas idênticas à ora impugnada, o STA pronunciou-se apenas quanto à competência dos tributais tributários (de acordo com os termos em que a autora configura a relação material), não se pronunciando sobre o mérito da pretensão ali formulada.

E neste contexto, dando resposta àquela primeira questão suscitada no recurso, conclui-se agora que a "contrapartida anual″, prevista no Decreto-Lei n.º 275/2001, de 17 de Outubro, se reconduz a uma prestação de natureza patrimonial.

4.2. Daí que (considerando as demais questões suscitadas no recurso), por não estarmos perante pagamento de uma qualquer quantia destinada a afastar uma proibição legal (a quantia não é paga para que a concessionária fique autorizada a explorar os jogos de fortuna ou azar, mas sim porque foi ela a adjudicatária no concurso público aberto para a concessão da respectiva zona de jogo) e por a contrapartida impugnada também não assumir natureza unilateral e/ou coactiva, então mesmo por referência ao enquadramento legal sustentado pela recorrente (que faz equivaler a contrapartida a uma taxa ou a integra no âmbito do próprio imposto de jogo), também não pudessem proceder a impugnação, e consequentemente o recurso, quer face à inexistência dos pressupostos para a qualificação como imposto e como taxa, quer face à não verificação das ilegalidades imputadas à liquidação, alegadamente decorrentes da violação dos princípios e normas constitucionais invocados [inconstitucionalidade orgânica do Decreto-Lei n.º 275/2001, de 17 de Outubro; inconstitucionalidade orgânica do Decreto-Lei n.º 422/89, de 2 de Dezembro, por assentar numa autorização legislativa genérica que não cumpre o requisito (n.º 11 do art.º 168.º - actual 165.º - da CRP) de definir com rigor e precisão, "o objecto, o sentido, a extensão e a duração da mesma" e inconstitucionalidade material, quer daquele mesmo diploma, por violação dos princípios da capacidade contributiva e da tributação do rendimento real, quer do próprio imposto, por ter sido criada uma tributação sobre meras presunções de rendimento].
Aliás, neste âmbito, sempre o recurso teria que improceder, atendendo à jurisprudência, com a qual se concorda, firmada no acórdão deste STA, de 5 de Dezembro de 2018 [em julgamento ampliado com a intervenção de todos os juízes desta Secção de Contencioso Tributário, realizado ao abrigo do disposto no art.º 148º do CPTA, no processo n.º 2224/13.1BEPRT (1457/15) e para o qual se remete ao abrigo do disposto no n.º 5 do art.º 663.º do CPC], sendo que, naquela perspectiva da recorrente, as questões suscitadas no presente recurso também seriam substancialmente idênticas às que foram objecto de tal julgamento ampliado, mediante o qual se visa, precisamente, «garantir a uniformidade de jurisprudência perante a possibilidade de decisões de sentido divergente ou, pelo menos, com variação substancial do tratamento das questões submetidas e de fundamentação da decisão (...)».

Importa, assim, negar provimento ao recurso.

A circunstância de a fundamentação do recurso ter acolhido, por remissão, a fundamentação de precedente acórdão proferido em julgamento ampliado, determinando menor complexidade na solução jurídica das questões decidendas, conjugada com o facto de o montante da taxa de justiça devida (nos termos da tabela I-B anexa ao Regulamento das Custas Processuais) ser manifestamente desproporcionado em face do concreto serviço prestado, quebrando a relação sinalagmática inculcada no pagamento da taxa, justifica a dispensa total do pagamento do remanescente da taxa de justiça (artigo 6.º n.º 7, do Regulamento das Custas Processuais).



4. Conclusões

4.1. A “contrapartida anual” prevista no Decreto-Lei n.º 275/2001, de 17 de Outubro, tem a natureza jurídica de prestação de natureza patrimonial.

4.2. O Decreto-Lei n.º 422/89, de 2 de Dezembro (Lei do Jogo), bem como o Decreto-Lei n.º 275/2001, de 17 de Outubro, não enfermam de inconstitucionalidade orgânica nem material.



5. Decisão

Nos termos e com os fundamentos expostos, acordam os juízes da Secção Tributária deste Tribunal em negar provimento ao recurso.

Custas pela Recorrente, com dispensa total do pagamento do remanescente da taxa de justiça.

D.n.

Lisboa, 14 de outubro de 2020. – Nuno Bastos (relator) – Gustavo Lopes Courinha – Anabela Russo.