Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0115/13.5BEPNF 0630/17
Data do Acordão:07/01/2020
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:SUZANA TAVARES DA SILVA
Descritores:DUPLA TRIBUTAÇÃO
RESIDÊNCIA
Sumário:A liquidação de imposto por rendimentos auferidos no estrangeiro por residente em Portugal tem de observar as regras para eliminação da dupla tributação internacional.
Nº Convencional:JSTA000P26130
Nº do Documento:SA2202007010115/13
Data de Entrada:05/31/2017
Recorrente:AT – AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Recorrido 1:A...................... E MARIDO
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: I – Relatório

1- O representante da Fazenda Pública interpôs recurso da sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Penafiel, em 30 de Janeiro de 2017, que julgou parcialmente procedente a impugnação judicial do acto de liquidação adicional de IRS, relativo ao exercício de 2008, no montante de 6.897,78€, deduzida por A……………. por si e na qualidade de representante de B…………….., com os sinais dos autos, apresentando, para tanto, alegações que conclui do seguinte modo:
A) Os impugnantes entregaram em 27/06/2009, a declaração anual Mod. 3 de IRS do ano de 2008, tendo declarado que são casados e residentes no continente.
B) Com esta declaração entregaram o anexo F em que declaram rendimentos prediais de ambos no valor de €6.270,50, despesas de condomínio de €631,25 e IMI de €76,37.
C) E o anexo H em que declararam deduções à coleta e benefícios fiscais do impugnante, titular A, de €599,64, de PPR, e de €39,94, de seguros de vida.
D) Esta declaração Mod. 3 deu origem à liquidação de IRS n.º 2009.5004651548, sendo o valor apurado de €0,00.
E) A administração tributária adicionou o anexo J à declaração de rendimentos dos impugnantes, do qual consta como rendimento de trabalho dependente obtido no estrangeiro, em França, no valor de €33.880,00.
F) Esta declaração deu origem à liquidação oficiosa de IRS de 2008 n.º 2012.5004935118, da qual consta imposto a pagar no valor de €6.897,78.
G) O impugnante é residente no estrangeiro desde 25/01/2012, tendo sido residente em Portugal até 24/01/2012, com domicílio fiscal na mesma morada da impugnante e tem a impugnante como sua representante desde 01/01/2010.
H) Até ao ano de 2010 os impugnantes entregaram declaração de rendimentos Mod. 3 de IRS, na qualidade de casados e residentes no continente.
I) No ano de 2008, o impugnante esteve a trabalhar e a viver no estrangeiro designadamente na Líbia, Trinidad e Tobago e Países Baixos.
J) Nesse ano teve rendimentos obtidos no estrangeiro de €46.155,00.
K) Em 2008 o impugnante pagou €5.816,04, de imposto sobre o rendimento, e €2.962,96, de desconto para a Segurança Social.
(...)"
C. Com relevância para a decisão da causa, o Tribunal julgou não provado:
"1 - No ano de 2008 o impugnante teve domicílio fiscal na Holanda e aí radicou o seu "centro de interesses vitais".
2 - O impugnante esteve todo o ano de 2008 na Holanda limitando-se a vir a Portugal passar férias por período não superior a três semanas."
D. A douta sentença concluiu que "...o impugnante tem que ser considerado como residente em Portugal no ano de 2008."
E. Ora, tendo presente os argumentos apresentados na petição inicial - ausência de domicílio fiscal em Portugal - e o pedido apresentado ao Tribunal - anulação do ato tributário - entende a Fazenda Pública que, uma vez firmado, na decisão recorrida que em 2008 o(s) impugnante(s) teve(tiveram) domicílio fiscal em Portugal, a sentença deveria, tão só, declarar a improcedência da impugnação.
F. Se é certo que o ato de liquidação, enquanto ato administrativo, é divisível e susceptível de anulação parcial nos termos do artº 100º da LGT, no caso, entendemos que a douta sentença errou quando, muito embora não considerando a liquidação ilegal, e decidindo (e bem) que os rendimentos constantes da declaração de IRS elaborada pela AT (rendimentos obtidos em França) seriam de tributar em Portugal, determinou a sua anulação parcial, pugnando pela consideração de que a AT deve computar no cálculo do imposto devido pelo impugnante, imposto e contribuições pagos na Holanda.
G. A decisão recorrida, ao pugnar pela reformulação da liquidação em moldes que, sublinhe-se, nem sequer foram alvitrados ou requeridos pelos Autores, excedeu ressalvado o devido respeito, os poderes do Tribunal, no âmbito da impugnação judicial, enquanto processo contencioso de mera anulação, o que em nosso entender não será legalmente admissível.
H. Pois, no contencioso tributário, a plena jurisdição só é de aceitar em relação a atos que não impliquem, para o Juiz, afronta ao núcleo essencial da função administrativa.
Termos em que, deve o presente recurso ser julgado procedente e em consequência ser revogada a decisão recorrida por padecer de erro de julgamento, com violação do nomeadamente dos art.ºs 123º e 124º do CPPT e proferida nova decisão que declare a impugnação totalmente improcedente».


2- Não foram apresentadas contra-alegações.

3- O Excelentíssimo Senhor Procurador-Geral Adjunto junto deste Tribunal emitiu parecer no sentido de ser dado provimento ao recurso, com base no seguinte: “[…] apurada que foi a ilegalidade da liquidação impugnada e implicando a reposição da ordem jurídica violada a realização de uma nova liquidação e não a mera segmentação material do acto sindicado, teria a liquidação que ser totalmente e não parcialmente anulada […]”.

4- Colhidos os vistos legais, cabe decidir.


II – Fundamentação

1. De facto
Na sentença recorrida deu-se como assente a seguinte factualidade concreta:
A) Os impugnantes entregaram em 27/06/2009, a declaração anual Mod. 3 de IRS do ano de 2008, tendo declarado que são casados e residentes no continente (fls. 35 e 66 verso do procedimento de reclamação graciosa apenso (PRG)).
B) Com esta declaração entregaram o anexo F em que declaram rendimentos prediais de ambos no valor de €6.270,50, despesas de condomínio de €631,25 e IMI de €76,37 (fls. 35 e 66 verso do PRG).
C) E o anexo H em que declararam deduções à coleta e benefícios fiscais do impugnante, titular A, de €599,64, de PPR, e de €39,94, de seguros de vida (fls. 35, 35 verso e 66 verso do PRG).
D) Esta declaração Mod. 3 deu origem à liquidação de IRS n.º 2009.5004651548, sendo o valor apurado de €0,00 (fls. 35 a 37 e 66 verso do PRG).
E) A administração tributária adicionou o anexo J à declaração de rendimentos dos impugnantes, do qual consta como rendimento de trabalho dependente obtido no estrangeiro, em França, no valor de €33.880,00 (fls. 38 a 40, 66 verso e 67 do PRG).
F) Esta declaração deu origem à liquidação oficiosa de IRS de 2008 n.º 2012.5004935118, da qual consta imposto a pagar no valor de €6.897,78 (fls. 38 a 40, 66 verso e 67 do PRG).
G) O impugnante é residente no estrangeiro desde 25/01/2012, tendo sido residente em Portugal até 24/01/2012, com domicílio fiscal na mesma morada da impugnante e tem a impugnante como sua representante desde 01/01/2010 (fls. 42, 50, 52 e 67 verso do PRG).
H) Até ao ano de 2010 os impugnantes entregaram declaração de rendimentos Mod. 3 de IRS, na qualidade de casados e residentes no continente (fls. 30, 31 e 67 verso do PRG).
I) No ano de 2008, o impugnante esteve a trabalhar e a viver no estrangeiro designadamente na Líbia, Trinidad e Tobago e Países Baixos (fls. 9 a 16 dos autos, 27 do PRG e depoimento da testemunha).
J) Nesse ano teve rendimentos obtidos no estrangeiro de €46.155,00 (fls. 10 e 11 dos autos e 62 a 65 do PRG).
K) Em 2008 o impugnante pagou €5.816,04, de imposto sobre o rendimento, e €2.962,96, de desconto para a Segurança Social (fls. 10 e 11 dos autos e 62 a 65 do PRG).
L) Os impugnantes foram notificados do projeto de decisão da reclamação graciosa de fls. 66 a 71 verso do PRG, cujo teor aqui se dá por reproduzido.
M) Os impugnantes exerceram o direito de audição pelo requerimento de fls. 77 a 79 do PRG, cujo teor aqui se dá por reproduzido.
N) A administração tributária indeferiu a reclamação graciosa pela decisão de fls. 83 e 83 verso do PRG, cujo teor aqui se dá por reproduzido.».

Com relevância para a decisão da causa, o Tribunal julgou não provado:
1 - No ano de 2008 o impugnante teve domicílio fiscal na Holanda e aí radicou o seu “centro de interesses vitais”.
2 - O impugnante esteve todo o ano de 2008 na Holanda limitando-se a vir a Portugal passar férias por período não superior a três semanas.


2. Do direito
O recurso interposto pela Fazenda Pública restringe-se exclusivamente ao segmento da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Penafiel no qual se afirma que “a anulação da liquidação impugnada no valor que vier a apurar-se que excede o valor resultante da consideração no anexo J da declaração de rendimentos do ano de 2008 do valor pago pelo impugnante na Holanda no ano de 2008, a título de imposto sobre o rendimento, no montante de 5.816,04 e a título de descontos para segurança social, no valor de € 2.962,96” e o fundamento para o pedido assenta no alegado “excesso” do Tribunal a quo relativamente ao exercício da sua função que, por esta razão, afrontaria o núcleo essencial da função administrativa. Mas, como veremos, não tem razão a Recorrente.

Com efeito, a decisão agora impugnada apreciou a legalidade do acto de liquidação adicional de IRS referente à tributação de rendimentos auferidos no estrangeiro durante o ano de 2008, mais concretamente na Holanda, por um dos Impugnantes, rendimentos que aí foram tributados. Alegou o Impugnante que o acto de liquidação adicional, pelo qual se tributavam esses rendimentos também em Portugal, violava as regras legais e convencionais em matéria de dupla tributação internacional, designadamente porque ele se teria de considerar residente na Holanda e não em Portugal, mas, mesmo que devesse considerar-se residente nos dois países, sempre haveria de atender-se ao facto de aqueles rendimentos já terem sido tributados na Holanda (no ponto K da matéria de facto ficou assente que o Impugnante pagara imposto e contribuições para a segurança social na Holanda, no ano de 2008).
Na decisão recorrida o Tribunal a quo concluiu, correctamente, que o Impugnante teria de considerar-se residente em Portugal e, como tal, aqueles rendimentos teriam também de ser tributados aqui, sem prejuízo de, nessa tributação, ter de eliminar-se o efeito da alegada dupla tributação internacional, o que não havia sucedido.
Assim, concluiu o Tribunal a quo não estar verificado o fundamento que determinaria a invalidade total do acto tributário por violação das regras em matéria de determinação da residência e do qual decorreria que nenhum imposto poderia ser exigido em Portugal ao Impugnante pelos rendimentos em causa. Mas concluiu também que o Impugnante tinha razão quanto à verificação de uma situação de dupla tributação internacional, uma vez que a liquidação não havia sido realizada em conformidade com as regras legais ao não terem sido contabilizados e deduzidos na liquidação os valores correspondentes à eliminação do respectivo efeito (cf. artigo 81.º do CIRS na redacção em vigor em 2004 (Dispunha o artigo 81.º do CIRS, à data dos factos, o seguinte:
1 - Os titulares de rendimentos das diferentes categorias obtidos no estrangeiro têm direito a um crédito de imposto por dupla tributação internacional, dedutível até à concorrência da parte da colecta proporcional a esses rendimentos líquidos, considerados nos termos da alínea b) do n.º 6 do artigo 22.º, que corresponderá à menor das seguintes importâncias:
a) Imposto sobre o rendimento pago no estrangeiro;
b) Fracção da colecta do IRS, calculada antes da dedução, correspondente aos rendimentos que no país em causa possam ser tributados.
2 - Quando existir convenção para eliminar a dupla tributação celebrada por Portugal, a dedução a efectuar nos termos do número anterior não pode ultrapassar o imposto pago no estrangeiro nos termos previstos pela convenção.…]) na parte respeitante aos montantes de imposto e descontos para a Segurança Social, que o Impugnante pagara naquele país (ponto K da matéria de facto). É este fundamento de invalidade do acto de liquidação adicional impugnado a que o Tribunal a quo se pretende referir através da expressão menos adequada de “anulação parcial do acto”.
No fundo, o que o Tribunal recorrido afirma na sua decisão, redigida sem o rigor jurídico terminológico que deveria ter – reconhece-se –, é que o acto impugnado é anulado, não por nenhum imposto ser devido em Portugal em relação àquele rendimento como pretendia primeiramente o Impugnante ao alegar violação das regras de determinação do critério da residência, mas sim porque o apuramento do montante de imposto devido não observou as regras legais em matéria de eliminação da dupla tributação internacional, alegada pelo Impugnante com carácter subsidiário.
Assim, concluiu, correctamente, pela anulação do acto tributário para que essas regras fossem aplicadas e os montantes pagos por ele no estrangeiro a título de imposto e contribuições para a segurança social pudessem ser devidamente contabilizados, deduzidos e apurados na determinação do imposto devido em Portugal. É certo que esta segunda parte estaria subentendida a partir da anulação do acto e que a ela não caberia fazer alusão no segmento decisório, mas tal alusão não inquina a decisão que apenas procura sublinhar o facto de o acto de liquidação adicional não ser totalmente ilegal, mas apenas parcialmente, por não ter procedido à devida dedução dos montantes relativos à neutralização da dupla tributação internacional.
O modo como a Administração Tributária deve executar a decisão judicial, faz parte da função administrativa e, nessa parte, a sentença recorrida não tem, obviamente, qualquer força vinculativa.
Em suma, o presente recurso baseia-se (ou pretende basear-se) apenas na terminologia menos precisa do segmento decisório da sentença recorrida para a partir dele procurar construir uma tese de invalidade da decisão judicial de anulação de um acto tributário reconhecidamente ilegal, o que não pode admitir-se. Na verdade, temos dificuldade em compreender o sentido útil do presente recurso, pois não sendo contestado pela Fazenda Pública que o acto de liquidação adicional enferma da ilegalidade que correctamente lhe assaca a sentença recorrida, a consequência jurídica daí decorrente não poderia ser outra que não a da respectiva anulação, a qual não é (não pode ser) prejudicada pelo menor rigor terminológico da sentença recorrida.

Pelo exposto, acordam os juízes que compõem esta Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo em negar provimento ao recurso.

Custas pela Recorrente [nos termos dos n.ºs 1 e 2 do artigo 527.º do Código de Processo Civil, aplicável ex vi a alínea e), do artigo 2.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário].

Lisboa, 1 de Julho de 2020. - Suzana Maria Calvo Loureiro Tavares da Silva (relatora) - Aníbal Augusto Ruivo Ferraz - Francisco António Pedrosa de Areal Rothes.