Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:047969
Data do Acordão:06/04/2002
Tribunal:2 SUBSECÇÃO DO CA
Relator:MARQUES BORGES
Descritores:AUTORIZAÇÃO DE RESIDÊNCIA.
RAZÕES HUMANITÁRIAS.
ERRO NOS PRESSUPOSTOS DE FACTO.
PRINCÍPIO DO INQUISITÓRIO.
Sumário:I - Se a Administração considera que o requerente de autorização
de residência por razões humanitárias não tem a nacionalidade serraleonesa, não pode firma essa conclusão em pressupostos de facto errados ou contraditados pelo requerente, sem, de forma razoável, fazer uso do princípio do inquisitório.
II - O princípio do inquisitório deve ser utilizado pela Administração em face de factos e documentos apresentados pelo requerente e em relação a procedimentos em que existe manifesta dificuldade de prova de nacionalidade dos requerentes de autorização de residência por razões humanitárias quando se encontra demonstrado que o país donde o requerente se diz nacional se encontra em regime de insegurança e instabilidade e as declarações do requerente revelam um mínimo de credibilidade.
Nº Convencional:JSTA00057754
Nº do Documento:SA120020604047969
Data de Entrada:09/19/2001
Recorrente:A...
Recorrido 1:SEA DO MINAI
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:REC CONT.
Objecto:DESP SEA DA ADMINISTRAÇÃO INTERNA.
Decisão:PROVIDO.
Área Temática 1:DIR ADM GER - AUTORIZAÇÃO DE RESIDÊNCIA.
Legislação Nacional:L 15/98 DE 1998/03/26 ART8.
CPA91 ART96 ART124.
Aditamento:
Texto Integral: Acordam em conferência na Secção do Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo
I - A..., residente na Rua A... -Damaia, 2720 Amadora, interpôs recurso contencioso do despacho do Secretário de Estado Adjunto da Administração Interna de 13.3.2001.
Imputou ao acto recorrido os vícios de violação de lei, por desconformidade com os princípios da avaliação da prova, ( arts. 513 e segs. do CPC), falta de fundamentação do acto recorrido, nos termos do art. 124º nº.1 a) do CPA e violação de lei por desrespeito do art.º 8º da Lei 15/98 de 26 de Março, por erro na apreciação dos pressupostos.
II - Na resposta a autoridade recorrida considerou que o recurso não deveria ser provido.
III - Notificado o recorrente para apresentar alegações, referiu, em conclusão o seguinte, em síntese:
....5- O Parecer do Comissário Nacional para os Refugiados que serviu de base à decisão recorrida está inquinado por ter sido produzida prova através de um perito/tradutor/mediador que não agiu de forma isenta.
6- O Recorrente nunca foi ouvido sobre a sua concordância com a idoneidade do intérprete/mediador/perito que lhe foi destinado, em desconformidade com o nº. 1 e 2 do art. 568º do CPC e do art. 96º do CPA, o que é atentatório dos princípios legais de apreciação da prova ( arts. 513º e segs. do CPC)
7- Houve omissão de pronúncia sobre a falsidade da Certidão de Nascimento e do Passaporte do recorrente, desrespeitando o art.º 9º do CPA ( Princípio da decisão) e o art.º 124º, nº.1, al a) do CPA.
8- Como ficou referido, há uma violação sistemática dos direitos humanos na Serra Leoa e um clima de instabilidade política e de conflito armado, pelo que o recorrente teme pela sua vida, temor esse que bem se compreende uma vez que o recorrente e a sua família já foram vítimas dessa constante violação dos direitos humanos.
9- Ora, o acto recorrido está, assim ferido de violação de lei, por considerar que não estão reunidos os requisitos de aplicação do art. 8º da Lei 15/98, quando na verdade a situação do recorrente integra aqueles pressupostos.
IV- A autoridade recorrida por sua vez e em conclusão das suas contra-alegações referiu:
A) À nomeação do intérprete é aplicado o art. 139 do CPC e não os artigos referentes à nomeação dos peritos, como pretende o recorrente;
B) Não tendo sido produzida prova dos factos alegados, determina o art. 516º do CPC que, subsistindo a dúvida sobre a realidade de um facto, essa dúvida resolve-se contra a parte a quem o facto aproveita;
C) A fundamentação do acto recorrido, baseada na Proposta do Senhor Comissário Nacional para os Refugiados não merece qualquer censura;
D) Aliás, o teor da referida proposta é no sentido de que seja mantida a decisão proferida a 6 de Outubro de 1998,apreciada por este Supremo Tribunal Administrativo nos autos de recurso que, sob o nº 44778, correu termos na 1ª Subsecção.
E) Não tendo sido feita prova da alegada sistemática violação dos direitos humanos, nunca poderia ser aplicado ao recorrente o regime consignado no artigo 8º da Lei nº 15/98 de 26 de Março.
V- O MP junto do STA emitiu parecer no sentido do recurso não merecer provimento
VI- Colhidos os vistos legais cumpre apreciar.
A) Considera-se assente a seguinte matéria de facto de acordo com os autos e o processo instrutor apenso:
1- Por Acórdão do STA de 00.01.20 foi negado provimento ao recurso interposto pelo recorrente nestes autos, do despacho de 98.10.06 do Secretário de Estado Adjunto do Ministério da Administração Interna que não lhe concedeu asilo político, nem autorização de residência.
2- Em 30.08.2000 o recorrente dirigiu ao Comissário Nacional para os Refugiados, ao abrigo do art. 158º do CPA, um pedido de reanálise do seu pedido de asilo, alegando encontrar-se na pose do seu certificado de nascimento que daria prova da sua nacionalidade e identidade e referindo o recrudescimento da guerra civil na Serra Leoa, que o impossibilitaria de regressar ao seu país de origem, sob pena da violação de um princípio basilar em direitos humanos e tendo em conta o “ Princípio do Non Refoulement” previsto no art.33º da Convenção de Genebra de 1951.
3- Para prova da sua nacionalidade o recorrente juntou o documento constante de fls 198 dos autos do processo instrutor apenso cujo conteúdo se dá aqui por reproduzido;
4- O recorrente foi ouvido em auto de declarações sobre questões relativas ao seu conhecimento sobre a Serra Leoa, conforme auto de fls. 202 do processo instrutor que aqui se dá por reproduzido.
5- Para instrução do processo foi elaborado o relatório 384/DR/99 da Divisão de Refugiados do SEF de 16.11.2000, no qual se refere a situação na Serra Leoa após a assinatura do acordo de Paz de Lomé e a Resolução do Conselho de Segurança das Nações Unidas que votou o envio de uma força multinacional para a Serra Leoa.
6- No relatório do SEF 442/GAR/00 de 29.11.00 é referido, além do mais o seguinte:
“.....2. Dos documentos ou outros elementos apresentados
1.- Aquando da apresentação do seu pedido de reanálise o requerente juntou uma cópia de Certificado de Nascimento...Trata-se de uma fotocópia de muito má qualidade que, saliente-se poderá pertencer a outro indivíduo já que não tem fotografia ou impressão digital que possibilite a comprovação do seu titular,....
...3. Das diligências complementares efectuadas.
1.- Aos 18.10.00, o requerente foi ouvido sobre várias questões respeitantes à Serra Leoa e demonstrou um fraco conhecimento, não sabendo responder ou dando respostas erradas à maioria das questões que lhe foram colocadas...
7 - Remetido o processo ao Comissário Nacional para os Refugiados foi exarado por esta última entidade, despacho onde se pedia a grelha das respostas correctas às perguntas formuladas ao recorrentes sobre a Serra Leoa, e, depois, de se ter referido que as respostas haviam sido remetidas ao Comissariado, o Senhor Comissário exarou em 4.1.2001 despacho no qual se referiu, designadamente “ que o demandante possui um reduzido conhecimento de questões atinentes ao país de onde diz ser natural. Ainda, assim, e em aspectos interessantes, o requerente fornece algumas respostas que permitem vislumbrar um certo conhecimento do país.
O conhecimento patenteado conjugado com as declarações prestadas ao longo do processo permite inculcar a ideia de que o requerente talvez seja do país de que diz ser originário...
E, para afastar a dúvida existente o Senhor Comissário entendeu solicitar ao presidente da Associação Serraleonesa a indicação de data para confrontar-se em declarações com o ora recorrente.
8.-Em 12.01.2001 realizou-se, então, um auto de diligência (fls 243 do instrutor) ao qual compareceu o recorrente e Habibu Jali, na qualidade de intérprete, tendo sido explicados os objectivos da diligência.
Do referido auto consta que o recorrente “ Perguntado sobre o caminho que tomou para chegar a Freetown não conseguiu dizer com segurança qual o caminho que havia adoptado. Perguntado sobre a terra da naturalidade de sua mãe e pai, não conseguiu igualmente a identidade das cidades de onde seriam naturais. Perguntado ainda quanto à forma genuína da língua falada na Serra Leoa- Crioulo- o requerente não se expressou de maneira a que o Crioulo por ele falado pudesse ser identificado pelo intérprete como aquele que é falado na Serra Leoa”......
9.- Em 23.01.2001 o Comissário Nacional para os Refugiados elaborou, então relatório onde referiu, designadamente o seguinte:
......a certidão de nascimento que o demandante HOJE apresenta não é distinta daquela que apresentou no recurso para o tribunal, em 16 de Março de 1999. A contemporaneidade do documento, que é manifestada, ou o parece ser pelo advérbio HOJE, enferma de alguma suspicácia e impudor processual.....
.... O pedido de reanálise estaria, assim com um impedimento de ordem processual para a sua apreciação, qual seja de que sobre o inicial pedido se formou caso julgado e nenhum elemento novo veio a ser apontado para o novo pedido por forma a que a decisão já constituída e formada no processo pendente pudesse vir a sofrer alteração substantiva ou formal.
O desconhecimento que o demandante possui da Serra Leoa e o resultado da entrevista que foi levada a efeito neste Comissariado vieram a comprovar o facto, para nós inarredável, de que o demandante não é nacional da Serra Leoa.
Não sendo nacional da Serra Leoa falece o pressuposto axial para que o regime subsidiário previsto no art. 8º da Lei 15/98 de 26 de Março possa ser aplicado.
III- Proposta
Em face do exposto propõe-se que seja mantida a divisão prolatada a fls 157, por Sua Excelência o Secretário de Estado Adjunto do Ministro da Administração Interna e confirmada por douto acórdão do Supremo Tribunal Administrativo.
9.- O recorrente pronunciou-se sobre o relatório-proposta referido no número anterior em requerimento de 7.2.2001, que aqui se dá por reproduzido.
10.- O comissário Nacional para os Refugiados em 20 de Fevereiro de 2001 elaborou relatório sobre a situação do recorrente. De que se destaca o seguinte:
“ As alegações do demandante não aportam qualquer elemento novo que não haja sido objecto de apreciação no projecto de proposta....
...Quanto à prova apresentada com o recurso e se o tribunal o tivesse considerado valido teria, certamente, ordenado que o processo baixasse ao órgão decisor e fosse reapreciada a questão à luz deste novo elemento probatório.
Não o considerou.... porque, tal como nós entendemos que o documento carece de valimento na ordem jurídica interna portuguesa- cfr artigos 365º do Código Civil, 60º do Código do Notariado e 540º nº.1 do Código Processual Civil
Ainda que assim não fosse... estranha-se que uma certidão que deve ter a data de emissão conforme a data de nascimento ou poucos dias após........apareça com uma data de 24 anos depois
2º Quanto aos meios de prova utilizados e que o demandante taxa de violador dos princípios reguladores de prova dir-se-à que não se descortina que o meio de prova utilizado seja ilegal...
3º- Quanto à diligência de prova que foi efectuada.... o sujeito que interveio foi na qualidade de mediador/intérprete de crioulo, isto é sendo o demandante serraleonês pretendeu-se que respondesse a perguntas formuladas em português no crioulo falado na Serra Leoa....
O resultado foi que o demandante segundo foi afiançado pelo intérprete não se sabe exprimir em crioulo falado na Serra Leoa....
....Assim, ousamos propor...
.....Seja mantida a decisão prolatada a fls 157, por Sua Excelência o Secretário de Estado Adjunto do Ministro da Administração Interna e confirmado por douto acórdão do Supremo Tribunal Administrativo .... ou seja que:
a) seja recusado o direito de asilo ao demandante;
b) não lhe seja aplicado o regime subsidiário de autorização de residência por razões humanitárias, dado não estar demonstrado ser o demandante nacional de país que reúna os pressupostos indicados no artigo 8º da Lei nº. 15/98 de 26 de Março....
11.- O Secretário de Estado Adjunto do Ministro da Administração Interna em 13 de Março de 2001 proferiu, então, o despacho recorrido (fls 293 dos autos) e no qual “não é concedido asilo ao cidadão nacional da Serra Leoa A... por não haver prova de que ele se encontra nas condições do art.º 1º da mesma Lei” (Lei 15/98 de 26 de Março) e “Por não estar demonstrado ser o demandante nacional de país que reúna os pressupostos indicados no artº.8, da supra mencionada lei, não é concedida ao cidadão A... autorização de residência por razões humanitárias”........
B) Da Fundamentação de Facto e de Direito
1.-Deve ser realçado que o Acórdão do STA de 00.01.2000, ao contrário do que é referido na proposta do Senhor Comissário, não se pronunciou sobre a prova apresentada pelo requerente quanto ao seu nascimento. Para o Acórdão a questão da validade daquele documento nem sequer se colocou , por a certidão em causa ter sido emitida já após ter sido proferido o acto então impugnado de 98.10.06 do Secretário de Estado Adjunto do Ministério da Administração Interna.
Aquele acórdão , partindo do pressuposto que o recorrente não provara a sua nacionalidade,(sem apreciar aquela prova), entendeu, ainda, que o recorrente não teria feito a mínima prova sobre os factos que alegara quanto ao fundado receio de ser perseguido em consequência de actividade exercida no Estado da sua nacionalidade e daí que não se verificaria o invocado direito de asilo, e, quanto ao pedido de autorização de residência entendeu que não bastaria existir uma insegurança motivada por conflitos armados, devendo a mesma ser grave , ou quando se verificasse a sistemática violação dos direitos humanos, o que, igualmente se não comprovara.
2.-Deve salientar-se que o pedido de reapreciação do processo formulado pelo recorrente se limitava à concessão de autorização de residência por razões humanitárias( vide fls 197 do instrutor).
Relativamente a esse pedido, o parecer do Comissário em que se fundamentou o acto recorrido, considerou que a prova da validade do nascimento do recorrente já havia sido apreciada pelo STA em sentido negativo e, além de se reafirmar que aquele documento não tinha validade jurídica em Portugal, estranhou-se que uma certidão não tivesse a data de emissão correspondente à data do nascimento, ou poucos dias após.
E, depois, para se reafirmar a validade da consideração de não estar provada a nacionalidade considerou-se que o recorrente não se sabia exprimir em crioulo. Ora é inequívoco que os pressupostos de facto em que assentou o parecer na parte referida e que levaram a concluir que o recorrente por não ter a nacionalidade serraleonesa, não poderia beneficiar do regime previsto no art. 8º da Lei 15/98 de 26 de Março, ou não se verificaram , ou correspondem a uma inexacta interpretação jurídica, ou, ainda, foram contraditados pelo recorrente.
Efectivamente, o STA, como foi referido atrás, não se pronunciou sobre a validade da certidão apresentada pelo requerente para justificar a sua nacionalidade; depois, uma certidão de um documento, não tem, necessariamente, a data correspondente à da emissão do documento original; finalmente, o recorrente demonstrou perante o tribunal e alegara perante a autoridade recorrida, ser o seu dialecto o mandinga e corresponder o mesmo a uma das línguas faladas na Serra Leoa.
Perante a falta de correspondência daqueles pressupostos de facto à conclusão tida pela autoridade recorrida, no sentido de que o recorrente não era detentor da nacionalidade serraleonesa, deve salientar-se, ainda, que a autoridade recorrida revelou durante todo o processo , que os conhecimentos patenteados pelo recorrente conjugados com as declarações prestadas ao longo do processo, permitiam “inculcar a ideia de que o requerente talvez seja do país que diz ser originário (ponto 6º da matéria de facto) pelo que mal se compreende que perante os factos alegados pelo recorrente no sentido d e confirmar a sua nacionalidade,( vide ponto 9 da matéria de facto), não tivesse procedido a quaisquer outras diligências, a manter-se a dúvida sobre a nacionalidade do recorrente e a suspeição lançada sobre o intérprete designado, sobre a autenticidade dos documentos por ele apresentados ou que pretendia apresentar e tivesse decidido, desde logo, indeferir o pedido baseando tal indeferimento, como foi referido, em pressupostos de facto errados ou contraditados pelo recorrente.
È que , se bem que a Administração não esteja obrigada em processos especiais em que se verifique grandes dificuldades de prova a investigar oficiosamente factos que não sejam invocados pelos interessados, já o mesmo se não verifica em casos, como o dos autos, em que a Administração deve de forma razoável fazer uso do princípio do inquisitório, o que lhe permitiria no caso evitar a viciação do acto final de procedimento dados os pressupostos de facto errados em que assentou o despacho recorrido com violação do art.8 da Lei 15/98 de 26 de Março.
E, procedendo a invocada violação do art. 8º da Lei 15/98 nos termos referidos fica prejudicada a apreciação dos demais vícios imputados ao acto recorrido (art.660 nº.2 do CPC).
DECISÃO: Termos em que acordam nesta Secção em conceder provimento ao recurso contencioso e anular o acto recorrido.
Sem custas.
Lisboa, 4 de Junho de 2002.
Marques Borges – Relator – Adelino Lopes – João Belchior.