Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0363/09.2BECTB 0156/17
Data do Acordão:09/16/2020
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:PAULO ANTUNES
Descritores:ACÇÃO PARA RECONHECIMENTO DE DIREITO
DEDUÇÃO DE IMPOSTO
Sumário:A ação para reconhecimento de um direito ou interesse legítimo em matéria tributária, sendo um meio processual complementar, apenas deve ser proposta quando os restantes meios contenciosos não assegurem uma tutela efectiva dos direitos e interesses legítimos dos administrados, conforme é jurisprudência do S.T.A. a respeito do art. 145.º do C.P.P.T., nomeadamente, do seu n.º3.
Ainda que, segundo a doutrina, tal acção possa incidir em certos casos sobre situações futuras, se foi intentada ação com vista ao reconhecimento do direito à dedução de I.V.A., mas alegadamente pende ainda impugnação judicial relativa a liquidação daquele imposto efetuada pela A. T. a participada da autora e esta ainda não emitiu fatura relativamente ao imposto a deduzir, necessária a que tal dedução ocorra, aquela não tem objecto sobre que possa incidir, impondo-se a absolvição da instância – art. 278.º n.º 1, e), do C.P.C., subsidiariamente aplicável.
Nº Convencional:JSTA000P26325
Nº do Documento:SA2202009160363/09
Data de Entrada:02/15/2017
Recorrente:A....., LDA
Recorrido 1:MINISTÉRIO DAS FINANÇAS (DIRECÇÃO GERAL DE FINANÇAS-SERVIÇO FIN. COVILHÃ)
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo
I. Relatório

I.1. A………., Lda, com os sinais dos autos, vem interpor recurso da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Castelo Branco, exarada em 30/10/2016, que decidiu julgar a absolvição da Fazenda Pública da instância, por falta de objecto, nos termos do artigo 278.º, n.º1 alínea e) do CPC, ex vi do artigo 2.º, alínea e) do CPPT, no âmbito da acão para o reconhecimento de um direito ou interesse legalmente protegido em matéria tributária, em que pedia o reconhecimento à dedução do IVA relativo às operações realizadas com a B……….. nos anos 2002, 2003 e 2004 que foram objecto de liquidações adicionais de IVA, a partir do momento em que as mesmas se consolidassem na ordem jurídica, e desde que seja dado cumprimento aos requisitos previstos nos artigos 19.º do CIVA e no artigo 18.º da sexta directiva (actual artigo 178.º da Directiva do IVA).
I.2. Apresentou alegações que rematou com o seguinte quadro conclusivo:
“a. O Tribunal Recorrido, na medida em que entendeu estar em causa uma situação meramente hipotética, andou mal na sua decisão, pois o que a Recorrente efetivamente pretende é o reconhecimento judicial de um direito efetivo, baseado em factos concretos - embora condicionado à verificação dos pressupostos legais da dedução do IVA - cuja constituição na sua esfera jurídica é certa caso a B……….. venha a repercutir à Recorrente o IVA inerente às liquidações adicionais com os números de liquidação 06066940 a 06067011 referentes aos anos de 2002, 2003 e 2004;

b. Ao contrário do que se decidiu a Recorrente tem direito de ver reconhecido desde já o direito à dedução do referido imposto, uma vez que é um (i) direito fundado numa a relação jurídica já existente entre a Recorrente e a B………- que permite a esta sociedade repercutir o IVA à Recorrente - e o (ii) direito à dedução do imposto tem por base exatamente os mesmos pressupostos fácticos e jurídicos que levaram a Administração Tributária a requalificar na esfera da B………. as operações em causa, para efeitos de tributação em sede de IVA;

c. O que está em causa no caso concreto é o reconhecimento do direito imediato de dedução do IVA repercutido, desde que estejam verificados todos os pressupostos do direito de dedução do imposto nos termos previstos no Código do IVA, sob pena de caducidade do direito de dedução, tendo o Tribunal todos os elementos para proceder ao reconhecimento do direito futuro da Recorrente;

d. É evidente que a repercussão do IVA consubstancia uma lesão futura que pode ocorrer na esfera jurídica da Recorrente nos termos da lei e em consequência da relação existente entre si e a B……….., sendo que a Recorrente caso essa repercussão tivesse ocorrido à data dos factos teria direito à dedução do imposto suportado e por via do decurso do tempo tem de requer o reconhecimento desse direito sob pena de caducidade. Deste modo nada obsta a que esse reconhecimento ocorra desde já, no âmbito da Ação para Reconhecimento de um Direito em Matéria Tributária, uma vez que os pressupostos de facto e de direito relativos à dedução do imposto estão devidamente demonstrados;

e. Para além disso, andou mal o Tribunal recorrido ao declarar improcedente a ação apenas porque não existe um efetivo e atual litígio quanto ao reconhecimento do direito à dedução do IVA em causa;

f. Na verdade, só através da Ação para Reconhecimento de um Direito em Matéria Tributária é que a Recorrente poderia promover a definição, desde já e para o futuro das relações jurídicas que se venham a estabelecer, na sua esfera, na sequência da consolidação dos atos de liquidação adicional de IVA acima identificados na esfera jurídica da B………, desde logo porque nenhum outro meio tutelar permite alcançar tal desiderato

g. É pois perfeitamente legítimo - e não deve ser recusada essa possibilidade - que a Recorrente, em face da sua situação concreta e antevendo a violação do seu direito à dedução do imposto repercutido - por via de uma eventual caducidade do direito -, peça o reconhecimento judicial, do mesmo.

h. Acresce que se eventualmente estava em causa uma eventual "falta de litígio", como referiu o Tribunal a quo, sempre a Ação para Reconhecimento de um Direito em Matéria Tributária deveria ter sido suspensa até à emissão de decisão no âmbito do processo de Impugnação Judicial n.º 532/09.5BESNT que ainda corre termos no Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra, uma vez que a constituição do direito em causa depende, este outros da decisão que viesse a ser proferida nesses autos e da repercussão do imposto pela B……..;

i. Pelo que a sentença recorrida deve ser revogada em conformidade, sendo substituída por outra que reconheça o direito à dedução do IVA, pela Recorrente, como peticionado, ou que determine a sua suspensão até à decisão no âmbito do processo de Impugnação Judicial n.º 532/09.5BESNT.

Nestes termos, e nos mais de Direito que Vossas Excelências suprirão, deverá ser dado provimento ao presente Recurso, por provado e, em consequência, ser anulada a decisão recorrida, com as legais consequências.

I.3. A Diretora-Geral da Autoridade Tributária formulou as seguintes contra-alegações:

“A douta sentença recorrida, constante de fls., ao julgar procedente a excepção inominada de falta de objecto da acção e em consequência ter absolvido da instância a entidade pública demandada deve ser mantida por ter amplamente demonstrado uma correcta aplicação da lei aos factos expostos.

Na verdade, o que se pode constatar é que o fundamento em que a ora recorrente alicerça os presentes autos radica numa série de "se"(s) que não indo além de meras hipóteses, ainda assim, segundo ela podem ocorrer.

Ora, salvo o devido respeito, os tribunais só cm casos muito circunscritos e expressamente previstos na lei estão aptos para prevenir hipotéticas lesões de direito, casos esses cujo recorte e previsão não abrange a hipótese formulada nos presentes autos.

Efectivamente, no caso dos presentes autos a ora recorrente pretende uma decisão que resolva um hipotético litígio entre ela e a administração em função, igualmente da lesão de um hipotético direito que ela não tem e muito menos se vislumbra a hipótese de este lhe vir a ser negado.

Nem se diga como pretende a ora recorrente que se pretende com os presentes autos concluir pelo "reconhecimento antecipado e condicional do direito à dedução do IVA em causa", já que não pode existir direito à dedução de um imposto que não se suportou e não lhe foi repercutido por ninguém.

O reconhecimento de direitos derivados da ocorrência de determinados factos ou actos só pode efectivar-se se tiverem ocorrido esses factos ou situações.

Por assim ser, fácil é concluir que os presentes autos se fundam em determinados equívocos, sendo o mais paradoxal de todos a inexistência do direito que a Requerente pretende acautelar, facto que a própria deixa a nu, de forma expressa e evidente, ao longo de todo o processo.

Na verdade, a acção para o reconhecimento de um direito não pode ser usada para reconhecer o que não existe - já que este tipo de acção requer a efectividade do direito que se pretende fazer valer e acautelar e não um qualquer direito eventual ou interesse hipotético.

Efectivamente, embora como meio processual complementar dos restantes meios contenciosos, a acção para o reconhecimento de um direito está concebida para servir naqueles casos em que a lei não faculta instrumentos processuais adequados à tutela jurisdicional efectiva dos direitos e interesses legítimos dos administrados.

Na verdade, o n.º 3 do artigo 145º do Código de Procedimento e do Processo Tributário, sob a epígrafe, "Acção para reconhecimento de um direito ou interesse legítimo em matéria tributária" dispõe o seguinte:

"As acções apenas podem ser propostas sempre que esse meio processual for o mais adequado para assegurar uma tutela plena, eficaz e efectiva do direito ou interesse legalmente protegido."

Não havendo, pois, no presente caso, um direito efectivo que legalmente deva ser protegido não há lesão desse direito, logo os presentes autos não podem prosseguir.

Efectivamente, se a acção para o reconhecimento de um direito apresenta um carácter de complementaridade instrumental, face aos restantes meios processuais e que só dela se possa lançar mão quando os outros meios processuais não deem tutela plena, eficaz e efectiva ao direito ou interesse a defender, por maioria de razão ela não pode servir para acautelar simulacros de direitos ou interesses hipotéticos, ou como defende a ora recorrente um direito futuro e incerto.

Acresce que, ao invocar a Jurisprudência deste Venerando Tribunal para tentar alicerçar a sua tese a ora Recorrente esqueceu um dado fundamental, ou seja, esqueceu que no caso a que o citado Acórdão se reporta a casos efectivos de relações de facto existentes entre o contribuinte e a administração tributária que devam ser resolvidos de um modo que defina o seu "conteúdo quanto ao passado (actos já praticados) mas também quanto ao futuro".

A definição do conteúdo de uma determinada relação quanto ao futuro pressupõe, se bem entendemos aquela formulação, a existência dessa relação no presente e não uma qualquer hipotética situação que pode ou não ocorrer e cujos contornos não estão pré-definidos.

Na verdade, na situação dos presentes autos, não existe qualquer relação entre a ora recorrente e a administração tributária que careça de definição quanto a um eventual direito à dedução que lhe aproveite.

Por assim ser, ao contrário do que pretende a ora recorrente douta sentença recorrida não merece qualquer censura.

Termos em que deverá ser negado provimento ao presente recurso, mantendo­-se a douta sentença recorrida, como é de Direito e de Justiça.”

I.4. O exm.º magistrado do Ministério Público pronunciou-se no sentido de ser negado provimento ao recurso, uma vez que a recorrente pede a pronúncia do tribunal sobre uma situação futura, meramente hipotética e de cuja ocorrência depende de mais do que uma variável, inexistindo, neste momento, qualquer efetivo direito da recorrente à dedução do IVA, pelo que também inexiste qualquer litígio que incumba ao tribunal decidir, carecendo a ação para reconhecimento de um direito, de todo, de objeto, o que inviabiliza a convolação dos autos noutra forma processual.

I.5. Importa, pois, apreciar o decidido quanto à falta de objeto, exceção inominada que conduziu à absolvição da instância relativamente à ação de reconhecimento de direito ou interesse em matéria tributária, conforme resulta das conclusões apresentadas, nos termos do art. 635.º n.º 3 do C.P.C., em que a recorrente com vários argumentos discorda do entendimento tido, acabando a pedir a revogação do decidido com reconhecimento do direito invocado ou a suspensão dos autos até à decisão no âmbito do processo de Impugnação Judicial n.º 532/09.5BESNT.

I.6. Foram colhidos vistos dos exm.ºs Conselheiros adjuntos, mas, tendo cessado funções a exm.ª 2.ª adjunta, intervém no presente acórdão o atual 2.º adjunto do ora relator, que dispensou o visto, tendo acesso aos autos através do SITAF.

II. Fundamentação.

No caso, visou-se, pela ação intentada, o reconhecimento do direito à dedução de IVA, decorrente de liquidações efetuadas pela A.T. a uma participada da autora que lançou mão de impugnação, mais alegando não estar a mesma aí decidida e ser intenção daquela sua participada proceder à repercussão de imposto, nos termo do art. 37.º do C.I.V.A., emitindo a correspondente fatura com o débito do imposto, em caso de sucumbir na impugnação.

Por outro lado, não se põe em causa na ação intentada que seja com a fatura que resultará preenchido o direito à dedução, nos termos do art. 35.º do C.I.V.A., de acordo com a jurisprudência dos tribunais superiores de que cita o acórdão do S.T.A. de 10-10-2007, no proc. 487/2007, e a própria posição do Ministério das Finanças, de que cita também a informação de 7-4-1998, da Direção de Serviços do IVA.

Ora, foi com fundamento em ser condição necessária da ação que a dita participada não decaia na impugnação de que lançou mão, bem como ainda daquela depender de serem cumpridos os requisitos formais do direito à dedução de I.V.A., que se julgou a ação sem objecto e se decidiu pela absolvição da instância – art. 278.º n.º 1 e) do C.P.C., subsidiariamente aplicável.

Atenta a consagração efetuada no art. 145.º do C.P.P.T. da acção para reconhecimento de direito ou interesse legalmente protegido, na esteira do previsto no n.º 4 do art. 268.º da C.R.P., e não sendo inequívoco qual seja o seu campo de aplicação, a doutrina construiu sobre essa acção, três teorias, de alcance mínimo, médio ou máximo - assim, Vieira de Almeida em Justiça Administrativa (Lições), 2.ª ed., pág. 131-138 e Jorge Lopes de Sousa, em Código de Procedimento e de Processo Tributário, anotado e comentado, 6ª ed., 2011, Vol. I pp. 491-492.

De acordo com este último autor, em face do n.º3 do art. 145.º do C.P.P.T., ”(…) quando, apesar de existir um ou mais atos da administração tributária impugnáveis, o interessado pretender uma decisão judicial que vincule a administração tributária não só relativamente a esses determinados atos já praticados, mas também no futuro, relativamente a situações idênticas que se venham a gerar entre o interessado e a administração tributária que tenham subjacentes os mesmos pressupostos fácticos e jurídicos, situações estas que habitualmente surgem no domínio das relações tributárias dos impostos que não incidem sobre atos isolados”.

Numa outra linha doutrinal, a ação em causa teria de assentar numa posição adjectiva ou processual que não substantiva, só podendo ser proposta quanto for o meio mais adequado à tutela judicial efetiva - Casalta Nabais, em Direito Fiscal, 2012, 7.ª ed. Almedina, pág. 365, a que adere Ana Paula Dourado, 4.ª d. Almedina, 2019, p. 359.

Numa formulação mais recente, afirma-se ainda: ”aqui, procura-se uma solução para vinculação futura, fixando um arsenal de efeitos completamente novos, mas sem bulir com situações passadas”- Joaquim Freitas da Rocha, Lições de Procedimento e Processo Tributário, 7.ª ed. Almedina, 2019, pág. 339.

A jurisprudência da Secção do Contencioso Tributário do S.T.A. tem também entendido que a acção para reconhecimento de um direito ou interesse legítimo em matéria tributária, sendo um meio processual complementar, apenas deve ser proposta quando os restantes meios contenciosos não assegurem uma tutela efectiva dos direitos e interesses legítimos dos administrados – acórdãos da Secção do Contencioso Tributário do S.T.A., de 11/12/2002, proc. nº 46283, de 8/10/2003, proc. nº 525/03; de 12/11/2003, proc. nº 1237/03, de 14/1/2004, proc. nº 1698/04, de 6/10/2005, proc. nº 607/05, de 17/10/2012, proc. nº 0295/12, bem como o de 16/10/2013 (Pleno), também proferido nesse mesmo proc. nº 0295/12, de 21/05/2014 proc. n.º 0737/13 e de 20/6/2018, no proc. 01086/17, acessíveis em www.dgsi.pt.

E quanto o interesse legítimo entende-se que é apenas aquele que resulte reflexamente do interesse público, conforme Jorge Lopes de Sousa refere ainda a pág.490 da ob. citada, citando o acórdão do S.T.A. de 28-3-2001, no processo n.º 27016.

Ora, a impugnação judicial alegadamente pendente constitui a forma mais adequada para decidir a matéria relativa às liquidações de I.V.A..

Aliás, a admitir-se a presente acção relativa ao direito a deduzir I.V.A., sem que que esteja decidida a dita impugnação, poder-se-ia ainda bulir com situação passada.

Por outro lado, ainda, ao exercício do direito à dedução do IVA a que ser refere a presente acção é essencial que seja emitida fatura, a qual não consta que tenha sido emitida.

E, sendo a mesma necessária, não se pode considerar que a presente ação tenha objecto sobre que pudesse incidir e impõe-se confirmar a absolvição da instância, que foi decidida na sentença recorrida.

E tal impede que se conheça dos pedidos formulados pela recorrente no recurso interposto, de reconhecimento do dito direito ou suspensão dos autos até decisão na referida impugnação judicial.

III. Decisão.

Nos termos expostos, os juízes Conselheiros da Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo acordam em confirmar o decidido na sentença recorrida e negar provimento ao recurso.

Custas pela recorrente, nos termos do artigo 527.º do C.P.C..

Lisboa, 16 de setembro de 2020. - Paulo José Rodrigues Antunes (relator) – Francisco António Pedrosa de Areal Rothes - Jorge Miguel Barroso de Aragão Seia.