Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0421/02
Data do Acordão:06/02/2004
Tribunal:PLENO DA SECÇÃO DO CA
Relator:MADEIRA DOS SANTOS
Descritores: ACESSO A SALA DE JOGOS.
TUTELA.
INSPECÇÃO GERAL DE JOGOS.
LACUNA DE LEI.
JOGOS DE FORTUNA OU AZAR
Sumário:I - As decisões do director do serviço de jogos que, ao abrigo do disposto no art. 36º, n.º 1, do DL n.º 422/89, de 2/12, recusem a emissão de cartões de entrada nas salas de jogos dos casinos a indivíduos cuja presença seja tida por inconveniente estão sujeitas ao controle da Inspecção-Geral de Jogos, no âmbito da tutela, legalmente prevista, que o Governo exerce sobre os jogos de fortuna ou azar.
II - Existe uma lacuna de regulamentação quanto ao modo como a Inspecção-Geral de Jogos há-de controlar as decisões ditas em I.
III - Essa lacuna deve ser integrada através da aplicação analógica do regime previsto para hipóteses semelhantes no art. 37º, n.º 2, do mesmo diploma, já que esse regime não se apresenta dotado de natureza excepcional.
IV - Assim, as referidas decisões estão sujeitas a confirmação por parte dos serviços de inspecção de jogos, de cujo acto poderá recorrer-se hierarquicamente para o membro do Governo responsável pelo sector do turismo.
Nº Convencional:JSTA00061298
Nº do Documento:SAP200406020421
Data de Entrada:03/13/2002
Recorrente:A...
Recorrido 1:SE DO TURISMO
Recorrido 2:OUTRA
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:REC JURISDICIONAL.
Objecto:AC SUBSECÇÃO DO CA.
Decisão:NEGA PROVIMENTO.
Área Temática 1:DIR ADM CONT - ACTO.
Legislação Nacional:DL 422/89 DE 1989/12/02 ART36 N1 ART37 N2 ART95 N4.
Jurisprudência Nacional:AC STA PROC44798 DE 2002/05/22.; AC STA PROC44757 DE 2003/11/26.
Aditamento:
Texto Integral: Acordam no Pleno da 1.ª Secção do Supremo Tribunal Administrativo:
A..., S.A, interpôs recurso jurisdicional do acórdão da Subsecção, de fls. 130 e ss., que negou provimento ao recurso contencioso que a mesma sociedade deduzira de um despacho, de 18/10/02, em que o Secretário de Estado do Turismo negara provimento ao recurso hierárquico respeitante a um acto do Coordenador da Inspecção junto do Casino da Póvoa, acto este que não confirmara a recusa de emissão de cartão de acesso às salas de jogos tradicionais e à sala de máquinas a seis frequentadores.
A recorrente terminou a sua alegação de recuso oferecendo as conclusões seguintes:
a) A recorrente é concessionária da exploração de jogos de fortuna e azar na zona de jogo da Póvoa de Varzim.
b) Nessa qualidade e por decisão sua, recusou o acesso às salas de jogos tradicionais e de máquinas a seis jogadores, através da não emissão de cartões, por considerar inconveniente a sua presença.
c) Tal decisão foi comunicada, por carta de 28/12/01, ao serviço de Inspecção de Jogos junto do Casino da Póvoa de Varzim.
d) Na sequência dessa comunicação, o Sr. Coordenador da equipa da Inspecção Geral de Jogos naquele casino proferiu, em 31/12/01, despacho em que decidia não confirmar a medida de recusa.
e) Inconformada, a recorrente interpôs o competente recurso hierárquico para S. Ex.ª o Sr. Secretário de Estado do Turismo.
f) Em 18/1/02, o Sr. Secretário de Estado do Turismo indeferiu o recurso interposto pela recorrente, confirmando o despacho da Inspecção-Geral de Jogos e aderindo na íntegra aos seus fundamentos.
g) Notificada, a recorrente interpôs o competente recurso contencioso para o STA.
h) O tribunal negou provimento ao recurso com os seguintes fundamentos:
- O entendimento defendido pela recorrente só aparentemente seria sustentável; numa análise mais profunda ao DL n.º 422/89 constata-se que tal entendimento tornava o diploma incongruente; isto porque,
- O Inspector-Geral de Jogos encontra-se colocado, no âmbito do referido diploma, numa situação de supremacia, pelo que não é congruente que o art. 38º, n.º 3, do mesmo diploma, estabeleça que dos actos praticados pelo Inspector-Geral de Jogos ao abrigo do art. 36º cabe recurso hierárquico e os mesmos actos praticados pelas concessionárias não se encontrem sujeitos a nenhum tipo de controle administrativo;
- A confirmar o entendimento «supra» exposto está o princípio geral sobre o âmbito dos poderes de inspecção enunciado no art. 95º do referido diploma, que atribui expressamente à Inspecção-Geral de Jogos competência fiscalizadora da actividade das concessionárias em matéria de aplicação de medidas preventivas e cautelares de inibição de acesso às salas de jogo e que, portanto, se incluem na matéria prevista no referido art. 36;
- Apenas existe uma lacuna relativamente à regulamentação do modo de exercício dessa tutela;
- Não existe qualquer obstáculo ao preenchimento dessa lacuna com recurso à analogia.
A recorrente não se conformou e interpôs o presente recurso jurisdicional.
i) O douto acórdão proferido pelo STA, seguindo a orientação do acórdão de 22/5/02 do mesmo tribunal, salvo o devido respeito, não fez uma correcta interpretação e aplicação dos preceitos legais aplicáveis.
j) Pese embora ter considerado, tal como a recorrente, que era manifesto que «no artigo 36º não prevê, por forma expressa, a necessidade de as decisões de recusa de emissão de cartões de acesso ou de acesso proferidas pelo director de serviço de jogos serem confirmadas por qualquer entidade», considerou que só aparentemente se podia admitir essa solução; porque
k) O n.º 3 do art. 29º e o n.º 2 deste art. 37º prevêem expressamente a necessidade de confirmação pelos serviços de inspecção das decisões das concessionárias.
l) Daí ter concluído que, numa primeira análise, a comparação dos artigos favorece a conclusão defendida pela recorrente, de que a decisão do director do serviço de jogos, nas situações previstas neste art. 36º, não necessita de confirmação, pois não está ali expressamente prevista, ao contrário do que sucede naqueles artigos 29º e 37º.
m) Mas, de imediato, vem concluir que a interpretação literal «consubstanciaria uma situação de incongruência», uma vez que, das decisões tomadas pelo Inspector-Geral de Jogos cabe recurso para o membro do Governo, logo, as decisões do director do serviço de jogos têm um controle administrativo e este tem de ser exercido pela Inspecção-Geral de Jogos por via de tutela.
n) Ao concluir nestes termos, o tribunal, sem suporte legal, partiu do princípio de que o legislador pretendeu disciplinar o controle das decisões do Inspector-Geral de Jogos nos mesmos termos em que pretendeu disciplinar as do director do serviço de jogos.
o) Não atendeu ao facto de o Inspector-Geral de Jogos estar integrado na hierarquia da pessoa colectiva Estado e o director do serviço de jogos ser um órgão de uma pessoa colectiva privada, investida em poderes de autoridade por via da concessão.
p) Não atendeu a que esta diferença de natureza não implicava igualdade de tratamento no que respeita ao controle dos actos que praticam.
q) Não atendeu a que os destinatários dos actos do Inspector-Geral de Jogos podem recorrer hierarquicamente e os destinatários dos actos do director do serviço de jogos podem fazê-lo, desde logo, contenciosamente, porque se consideram praticados pela concessionária e em caso algum deixam de estar garantidos os meios de defesa.
r) Assim, a previsão de recurso hierárquico fixada no n.º 3 do art. 38º, relativamente aos actos do Inspector-Geral de Jogos, nada tem de incongruente, nem determina a necessidade de controle administrativo das decisões de não emissão de cartões, nos termos do art. 36º, por parte do director de serviço de jogos; logo,
s) É ilegítimo e ilegal chamar à colação o art. 95º, n.º 4, do DL n.º 422/89, quer pela desnecessidade, quer pelo facto de o tribunal considerar que ali se encontra um «princípio geral sobre o âmbito dos poderes de inspecção».... «atribuído globalmente para toda a matéria em que se enquadra a situação em apreço».
t) O tribunal, por esta via, pretendeu afastar uma pretensa lacuna de competência e a necessidade de recurso à analogia, sem atender a que o art. 95º confere um poder inspectivo, enquanto o caso dos autos implicava um poder integrativo ou, dado o carácter negativo do acto, revogatório ou substitutivo.
u) A extensão dos poderes tutelares, preconizada pelo acórdão recorrido, contraria toda a jurisprudência e doutrina que defende que a tutela só existe nos casos e nos termos expressamente previstos na lei, «os actos de uma pessoa colectiva só estão sujeitos à tutela nos termos expressamente fixados na lei, isto é, apenas os actos que a lei dispuser, pela forma e para os efeitos nela estabelecidos e pelos órgãos aí designados» (M. Caetano, Manual de Direito Administrativo, vol. I, 10.ª ed., págs. 232 e 233).
v) Como facilmente se constata, a competência atribuída em termos genéricos pelo art. 95º, n.º 4, do DL n.º 422/89 é uma competência fiscalizadora, que conceitualmente se designa por tutela inspectiva, enquanto os actos praticados pela Inspecção-Geral de Jogos, à semelhança das competências estabelecidas pelos artigos 29º e 37º do referido diploma, consubstanciam uma tutela correctiva ou integrativa.
w) A diferença entre estes dois tipos de tutela não é meramente conceitual, é também substancial; a tutela inspectiva «consiste no poder de fiscalizar os órgãos e os serviços a pessoa colectiva para o efeito de promover a aplicação de sanções contra ilegalidades ou má gestão» (Marcello Caetano, op. cit., pág. 232).
x) A tutela correctiva ou integrativa, por sua vez, traduz-se «no poder de autorizar ou aprovar os actos da entidade tutelada» (Freitas do Amaral, op. cit. Pág. 703), ou seja, «o órgão resolve e só necessita do consentimento tutelar para pôr em prática a sua resolução» (Marcello Caetano , op. cit. , pág. 231).
y) Ora, tratando-se de formas de tutela distintas, não podia o tribunal, pelo facto de o legislador conferir uma, inferir a inexistência da outra, sob pena de se violar o princípio da legalidade da competência que exige a prescrição normativa da competência, incluindo o seu modo de exercício.
z) A tutela não se presume, não existem lacunas de tutela, pelo que só pode existir quando expressamente conferida e nos termos em que for conferida.
aa) A Inspecção-Geral de Jogos só se poderia considerar competente para não confirmar os actos da recorrente praticados no âmbito do art. 36º do referido diploma se tal competência se encontrasse expressamente prevista na lei, o que, como já vimos e o STA reconheceu, não acontece.
bb) Afirma o Prof. Freitas do Amaral que «existe um princípio geral da maior importância em matéria de tutela administrativa e que é este: a tutela administrativa não se presume, pelo que só existe quando a lei expressamente a prevê e nos precisos termos em que a lei a estabelecer. Isto significa que, por exemplo, pelo facto de a lei prever uma tutela inspectiva não se segue que exista tutela disciplinar, revogatória ou substitutiva. A tutela só existe nas modalidades que a lei consagrar, e nos termos e dentro dos limites que a lei impuser» (op. cit., págs. 706 e 707).
cc) O princípio da legalidade encontra-se constitucionalmente consagrado, nomeadamente no n.º 2 do art. 266º da CRP, que expressamente impõe «que os órgãos e agentes administrativos estão subordinados à Constituição e à lei».
dd) A interpretação levada a efeito pelo tribunal não é conforme àquele preceito constitucional e, uma vez que admite uma competência tutelar não expressa na lei e sem regulamentação do seu exercício, viola-o frontalmente.
ee) A interpretação do pensamento legislativo defendido pela recorrente é conforme à lei, não só aparentemente, como o tribunal a considerou, mas em conformidade com o texto legal aplicável.
ff) Assim sendo, e tendo em conta o princípio da legalidade que está subjacente ao instituto da tutela administrativa, teremos de concluir que a interpretação defendida pela recorrente não só não padece de nenhuma incongruência, mas foi efectivamente aquela que o legislador quis consagrar, para além de se encontrar, ao abrigo da presunção legal plasmada no n.º 3 do art. 9º do Código Civil.
gg) A integração analógica levada a efeito pelo tribunal para suprir a lacuna de regulamentação de exercício também não é legítima, uma vez que as normas que estabelecem a tutela e a regulam têm a mesma natureza jurídica e são igualmente normas excepcionais; assim,
hh) O acórdão recorrido é ilegal por erro de interpretação e aplicação das normas legais aplicáveis, nomeadamente os artigos 36º, 37º, 38º, 29º e 95º, entre outros, todos do DL n.º 422/89, de 2/12, na redacção dada pelo DL n.º 10/95, de 19/1, por erro de interpretação e aplicação dos artigos 10º e 11º do Código Civil e, ainda, do n.º 2 do art. 266º da CRP.
A autoridade recorrida contra-alegou, apresentando as conclusões seguintes:
I – Cabe à Inspecção-Geral de Jogos a competência para proceder à confirmação da medida pretendida pela concessionária e recorrente, relativamente às entradas nas salas de jogos.
II – Pelo que podia a Inspecção-Geral de Jogos não confirmar a recusa de acesso por parte de alguns frequentadores às salas de jogos.
III – Decidindo neste sentido o douto acórdão recorrido, fez ele correcta interpretação e aplicação do direito.
IV – Pelo que deverá o mesmo ser confirmado, assim se fazendo justiça.
O Ex.º Magistrado do MºPº junto deste Pleno emitiu douto parecer no sentido do não provimento do recurso.
A matéria de facto pertinente é a dada como provada na decisão «sub censura», que aqui damos por reproduzida – como se estabelece no art. 713º, n.º 6, do CPC (cfr. os artigos 726º e 749º do mesmo diploma).
Passemos ao direito.
Na origem deste processo esteve a comunicação, enviada por um director da recorrente aos serviços de inspecção de jogos, de que iria ser recusado o acesso às salas de jogos tradicionais e de máquinas do Casino da Póvoa a seis frequentadores, recusa essa que se concretizaria «através da não emissão de cartões» de entrada naquelas salas. Como fundamento da medida escolhida – e da sua «confirmação», que o director também solicitava – a mesma comunicação explicava que nenhum desses frequentadores consumia os serviços postos ao seu dispor e que quatro deles costumavam ainda adoptar um comportamento que incomodava os demais utentes do casino. Contudo, o Coordenador da equipa de inspecção junto do Casino da Póvoa decidiu não confirmar aquela medida; e, insatisfeita com a decisão de não confirmação, a ora recorrente acometeu-a através de um recurso hierárquico a que o Secretário de Estado do Turismo negou provimento.
Então, a recorrente recorreu contenciosamente deste último acto, essencialmente alegando que o art. 36º do DL n.º 422/89, de 2/12, não faculta à Administração a competência para se pronunciar sobre as decisões, emanadas dos directores do serviço de jogos dos casinos, que recusem a emissão de cartões de acesso às salas de jogos de fortuna ou azar. Todavia, o acórdão «sub censura» entendeu que as decisões desse tipo estão sujeitas a confirmação por parte da Inspecção-Geral de Jogos, por sua vez recorrível para o membro do Governo responsável pela área do turismo – razão por que o aresto não deu provimento ao recurso contencioso dos autos.
No presente recurso jurisdicional, a recorrente reedita os argumentos já expendidos junto da Subsecção, que sobretudo passam pela natureza da tutela a que as concessionárias das zonas de jogos estão sujeitas e pela circunstância de o mencionado artigo 36º nada dispor sobre a necessidade de as decisões dos directores do serviço de jogos, restritivas do acesso às salas de jogos, serem objecto de confirmação por parte dos serviços da Inspecção-Geral de Jogos. Deste modo, uma única questão jurídica vem colocada no presente recurso: a de saber se o director do serviço de jogos – que é o membro ou o adjunto da direcção do casino a quem incumbe dirigir as salas de jogos (art. 75º do DL n.º 422/89) – tem competência para recusar, com efeitos externos e duradouros, a emissão de cartões de entrada a frequentadores das salas de jogos de fortuna ou azar, ou se tal competência está atribuída ao serviço de inspecção, a quem sempre caberia confirmar a medida adoptada pelo director.
A título preliminar, lembremos que a matéria em causa é regulada pelo DL n.º 422/89, de 2/12, que foi alterado pelo DL n.º 10/95, de 19/1. Em termos gerais, esse diploma prevê que, por regra, a exploração dos jogos de fortuna ou azar só seja permitida nos casinos existentes em zonas de jogo, cabendo tal actividade a sociedades concessionárias de um direito de explorar que é reservado para o Estado e competindo «a tutela dos jogos» ao membro do Governo responsável pelo sector do turismo (cfr. os artigos 2º, 3º e 9º). E, precisamente para que essa «tutela» se exerça, a Inspecção-Geral de Jogos dispõe de um serviço de inspecção permanente em cada casino (art. 97º), sendo múltiplas as áreas de intervenção dos inspectores destacados para o efeito – como uma superficial leitura do DL n.º 422/89 imediatamente revela.
Comecemos por atentar na redacção integral daquele art. 36º e, também, na de outros normativos do diploma que com o problema mais directamente se ligam.
Artigo 29º
Reserva do direito de acesso aos casinos
1 – As concessionárias podem cobrar bilhetes de entrada nos casinos, cujo preço não deverá exceder um montante máximo a fixar anualmente pela Inspecção-Geral de Jogos.
2 – O aceso aos casinos é reservado, devendo as concessionárias não permitir a frequência de indivíduos que, designadamente:
a) A partir das 22 horas, sejam menores de 14 anos, excepto quando maiores de 10 anos, desde que acompanhados pelo respectivo encarregado de educação;
b) Não manifestem a intenção de utilizar ou consumir os serviços nele prestados;
c) Se recusem, sem causa legítima, a pagar os serviços utilizados ou consumidos;
d) Possam causar cenas de violência, distúrbios do ambiente ou causar estragos;
e) Possam incomodar os demais utentes do casino com o seu comportamento e apresentação;
f) Sejam acompanhados por animais, exerçam a venda ambulante ou prestem serviços.
3 – Sempre que a direcção do casino exerça o dever que lhe é imposto no número anterior, deverá comunicar a sua decisão ao serviço de inspecção no casino, no prazo de vinte e quatro horas, indicando os motivos que a justificam e as testemunhas que possam ser ouvidas sobre os factos, pedindo a confirmação da medida adoptada.
Artigo 36º
Restrições de acesso
1 – O acesso às salas de jogos de fortuna ou azar é reservado, devendo o director do serviço de jogos ou a Inspecção-Geral de Jogos recusar a emissão de cartões de entrada ou o acesso aos indivíduos cuja presença nessas salas considerem inconveniente, designadamente nos casos do n.º 2 do art. 29º.
2 – Independentemente do disposto no número anterior, é vedada a entrada nas salas de jogos, designadamente, aos indivíduos:
a) Menores de 18 anos;
b) Incapazes, inabilitados e culpados de falência fraudulenta, desde que não tenham sido reabilitados;
c) Membros das Forças Armadas e das corporações paramilitares, de qualquer nacionalidade, quando se apresentem fardados;
d) Empregados das concessionárias que prestam serviço em salas de jogos, quando não em serviço;
e) Portadores de armas, engenhos ou matérias explosivas e de quaisquer aparelhos de registo e transmissão de dados, de imagem ou de som.
Artigo 37º
Expulsão das salas de jogos
1 – Todo aquele que for encontrado numa sala de jogos em infracção às disposições legais, ou quando seja inconveniente a sua presença, será mandado retirar pelos inspectores da Inspecção-Geral de Jogos ou pelo director do serviço de jogos, sendo a recusa de saída considerada crime de desobediência qualificada, no caso de a ordem ser dada ou confirmada pelos referidos inspectores.
2 – Sempre que o director do serviço de jogos tenha de exercer o poder que lhe confere o n.º 1, deve comunicar a sua decisão ao serviço de inspecção no prazo de vinte a quatro horas, indicando os motivos que a justificam e as testemunhas que possam ser ouvidas sobre os factos, pedindo a confirmação da medida adoptada.
3 – A expulsão das salas de jogos por força do disposto nos números anteriores implica a proibição preventiva de acesso a essas salas, a decretar nos termos do artigo seguinte, e dá lugar:
a) A processo contra-ordenacional, nos termos dos artigos 144º e seguintes, quando a expulsão se funde na prática de contra-ordenação.
b) A processo criminal, quando a expulsão se funde na prática de um crime.
Artigo 38º
Proibição de acesso
1 – Por sua iniciativa, ou a pedido justificado das concessionárias ou ainda dos próprios interessados, o inspector-geral de jogos pode proibir o acesso às salas de jogos a quaisquer indivíduos, nos termos do presente diploma, por períodos superiores a cinco anos.
2 – Quando a proibição for meramente preventiva ou cautelar, não excederá dois anos e fundamentar-se-á em indícios reputados suficientes de ser inconveniente a presença dos frequentadores nas salas de jogos.
3 – Das decisões tomadas pelo inspector-geral de Jogos ao abrigo do disposto nos números anteriores e nos artigos 36º e 37º cabe recurso para o membro do Governo responsável pela área do turismo, nos termos da lei geral.
Do que anteriormente se transcreveu, resulta que, tal e qual a recorrente afirma, o texto do art. 36º, n.º 1, silencia a necessidade de as medidas restritivas do acesso às salas de jogos, adoptadas pelo director do serviço de jogos ao abrigo do preceito, serem comunicadas ao serviço de inspecção a fim de que este seguidamente as confirme. Contudo, os outros preceitos transcritos mostram que tais comunicação e confirmação são exigíveis sempre que o director do serviço de jogos tome as iniciativas de impedir a alguém o acesso ao casino ou de expulsar da sala de jogos algum seu frequentador. Ora, as medidas limitativas previstas nos artigos 29º, 36º e 37º constituem respostas típicas a situações de facto que se apresentam como muito semelhantes – se é que as situações não são mesmo abstractamente iguais enquanto se reconduzem, todas elas, à noção de que é inconveniente a presença, nalguma parte do casino, do destinatário das medidas. E, vista a paridade dos motivos que fundam as soluções acolhidas nesses três artigos, seria bizarro que essa flagrante correspondência entre os factos justificativos das várias medidas conduzisse a modos distintos de exercitar os poderes preventivos ou repressivos que os preceitos incorporam.
Por outro lado, a proximidade entre a proibição de acesso ao casino, a expulsão da sala de jogos e a recusa da emissão de cartões de entrada nestas salas não se resume aos factos que estão na origem dessa medidas, abrangendo também o efeito delas – pois, em todos os casos, impede-se uma presença que se reputou de inconveniente. E é bom de ver que esta semelhança no resultado das medidas fortemente sugere que elas deverão ser alvo de um tratamento comum – que necessariamente inclua a sua confirmação pelos serviços de inspecção sediados nos casinos, visto que tal é imposto pelos artigos 29º e 37º.
E esta sugestão reforça-se ante a constatação de que, para além da semelhança que une as três medidas em apreço, subsiste uma diferença que, ao menos numa certa perspectiva, torna as restrições previstas no art. 36º mais gravosas do que as soluções preconizadas nos artigos 29º e 37º. É que estes dois preceitos contêm respostas pontuais e instantâneas a comportamentos indevidos, enquanto que o art. 36º acarreta, para os destinatários das medidas nele contempladas, consequências que necessariamente se prolongarão no tempo. Ora, seria surpreendente que as actuações das concessionárias, cujos efeitos se esgotam com o seu exercício, devessem ser controlados pelos serviços da Inspecção-Geral de Jogos, enquanto que os comportamentos delas de um tipo semelhante, mas com efeitos duradouros, já estariam a coberto de um tal controle.
Ademais, a razão de ser da necessidade de confirmação das medidas, prevista nos artigos 29º e 37º, reside na salvaguarda do público contra reacções das concessionárias que possam pecar por arbitrariedade ou excesso. E tais razões justificam inteiramente, senão mesmo «a fortiori», que iguais cautelas se tomem no que respeita às restrições de acesso «in futurum», referidas no art. 36º, n.º 1. Até porque, e em sintonia com o que se disse no acórdão deste Pleno de 12/11/03 (rec. n.º 44.798), a proibição de alguém entrar ou permanecer num casino e nas suas salas de jogos – ressalvadas as situações de impedimento legalmente previstas, que se articulam com a natureza reservada do acesso (art. 29º, n.º 2) – tem efeitos limitativos que facilmente se prestam a acusações de desigualdade e de discriminação, pelo que um tal impedimento deverá, pelo seu melindre, provir da autoridade originária do Estado, e não da autoridade simplesmente delegada da concessionária.
Em abono desta ideia deve ainda notar-se que, por todo o DL n.º 422/89, perpassa – como já dissemos – o controle exaustivo a que as concessionárias das zonas de jogos estão sujeitas por parte da Inspecção-Geral de Jogos e, mais particularmente, dos serviços de inspecção que funcionam em permanência nos casinos. Ora, não se entenderia que essa actividade, que a própria lei apelida de tutelar, não abrangesse também as questões relevantes a que o art. 36º, n.º 1, se refere.
Ante o exposto, não pode duvidar-se que a «ratio essendi» deste art. 36º, n.º 1, reclama que as decisões dos directores do serviço de jogos em matéria de «restrições de acesso» devem estar sujeitas a confirmação por parte dos inspectores de jogos. E resta-nos agora ver se o texto do diploma contém alguma outra norma donde essa solução claramente brote.
Ora, o primeiro preceito que reclama a nossa atenção é o n.º 3 do art. 38º, «supra» transcrito, em que se diz que «das decisões tomadas pelo inspector-geral de Jogos ao abrigo do disposto nos números anteriores e nos artigos 36º e 37º cabe recurso» hierárquico para o membro do Governo competente. «Primo conspectu», poderia surgir a tentação de interpretar esta norma no sentido de que os ataques às restrições de acesso ordenadas ao abrigo do disposto no art. 36º, n.º 1, haveriam de ser decididos na ordem hierárquica ou na contenciosa consoante a medida restritiva emanasse, respectivamente, do inspector de jogos sediado no casino ou do director do serviço de jogos. Mas, por todas as razões já atrás expostas, essa dualidade de soluções seria incompreensível e falha de razoabilidade, não se vislumbrando também o preceito donde derivaria a autoridade inequívoca das concessionárias para proferirem actos definitivos num tal domínio. Consequentemente, o art. 38º, n.º 3, deve ser antes interpretado como um factor de unificação do regime subsequente ao exercício das várias hipóteses de limitação da presença das pessoas nas salas de jogos, unificação essa realizada no ponto em que só à inspecção de jogos se reconhece a autoridade para, em primeira linha, decidir sobre a aplicação das medidas desse género.
Portanto, o art. 38º, n.º 3, inculca que o dever que o art. 36º, n.º 1, atribui ao director do serviço de jogos não é distinto ou autónomo dos poderes de fiscalização e de controle que à Inspecção-Geral de Jogos estão legalmente cometidos, antes traduzindo a obrigação das concessionárias de colaborarem com a Administração no prosseguimento dos fins de interesse público que a esta incumbem. Precisamente por isso, é que o n.º 4 do art. 95º do DL n.º 422/89 estabelece que a Inspecção-Geral de Jogos, no exercício dos poderes tutelares do Estado sobre as concessionárias, dispõe de amplas competências inspectivas e fiscalizadoras, que, para além do mais, abrangem «a aplicação de medidas preventivas e cautelares de inibição de acesso às salas de jogo». Sublinhemos, «en passant», que esta fórmula legal é inconciliável com a ideia de que a competência para aplicar tais «medidas» configuraria um poder simplesmente inspectivo, e não também revogatório ou substitutivo, pois é óbvio que a mera inspecção das medidas tomadas por outrém, realizada a jusante delas, acarretaria fatalmente a negação do que a lei dispôs, ou seja, a competência da Inspecção-Geral de Jogos para as aplicar. Retomando o fio do discurso, não sofre dúvidas que a recusa da emissão de cartões de entrada nas salas de jogos se fundamenta numa antecipação da conduta futura dos visados e tem por propósito prevenir a inconveniência da sua ulterior presença nesses locais. Sendo assim, esse modo de restringir o acesso às salas reconduz-se, afinal, à previsão do mencionado art. 95º, n.º 4, preceito que, assim, não só reforça, mas definitivamente estabiliza a conclusão que já anteriormente atingíramos – a de que é à Inspecção-Geral de Jogos que incumbe, no exercício dos poderes tutelares que a lei expressamente reconhece, confirmar ou infirmar autoritariamente a provisória decisão, provinda do director do serviço de jogos, de recusar a emissão de cartões de entrada nas salas de jogos de fortuna ou azar (neste sentido, cfr. o acórdão do STA de 22/5/02, rec. n.º 44.798).
Aqui chegados, uma única dificuldade persiste – a que resulta do facto de não haver, no DL n.º 422/89, uma qualquer norma que directamente preveja o procedimento a adoptar entre a decisão do director do serviço de jogos, prevista no art. 36º, n.º 1, e o acto autoritário dos serviços de inspecção que, sobre essa decisão, há-de recair. Ora, e como o aresto «sub judicio» correctamente disse, é neste ponto que legitimamente se pode e deve recorrer à interpretação por analogia, prevista no art. 10º do Código Civil, por forma a transpor, para a lacuna entrevista no art. 36º n.º 1, o procedimento que o art. 37º, n.º 2, previu com vista a regular uma situação que, no seu essencial, se mostra equivalente.
E não se diga que o uso da analogia é aqui vedado pela regra inserta no art. 11º do Código Civil. Este argumento seria embaraçante, e mesmo inultrapassável, se estivéssemos a usar a analogia para integrarmos uma «lacuna legis» quanto à existência, neste particular domínio, de poderes de tutela incidentes sobre as concessionárias – já que a tutela não se presume e só existe na exacta medida em que a lei expressamente a preveja. Mas, tendo nós visto que os poderes tutelares que a recorrente recusa têm um efectivo assento, não só no espírito, mas ainda na letra da lei, o uso que da analogia agora fazemos restringe-se à questão secundária de como regular um procedimento silenciado, o que fica a coberto da excepcionalidade em que o art. 11º do Código Civil funda a proibição que incorpora. Até porque, da economia do DL n.º 422/89, «maxime» dos seus artigos 29º, n.º 3, e 37º, n.º 2, deduz-se que a sequência normal das decisões das concessionárias que interfiram com a presença de utentes nos casinos consiste na comunicação da medida adoptada ao serviço de inspecção para que este, de acordo com as razões dela e os testemunhos produzidos, confirme ou recuse o que a concessionária preliminarmente decidiu; e, assim sendo, não há neste modo de proceder a índole excepcional que impediria a sua aplicação aos casos, previstos no art. 36º, n.º 1, de recusa da emissão de cartões de entrada nas salas de jogos.
Deste modo, e como o acórdão «sub judicio» correctamente disse, o acto contenciosamente recorrido, ao manter na ordem jurídica o despacho do Coordenador da equipa de inspecção junto do Casino da Póvoa de Varzim que não confirmara a recusa de emitir cartões de entrada aos seis frequentadores das salas de jogos atrás mencionados, não enfermou do vício em que a aqui recorrente insiste neste recurso – e que consistiria na falta de competência da Administração para se pronunciar nessa matéria. Tem sido esta, aliás, a posição constante do STA neste domínio, como resulta dos arestos já citados e do acórdão de 26/11/03, da 3.ª Subsecção, proferido no recurso n.º 44.757. Improcedem, assim, todas as conclusões úteis da alegação de recurso, mostrando-se o aresto «sub judicio» imune às criticas que lhe vêm dirigidas.
Nestes termos, acordam em negar provimento ao presente recurso e em confirmar o acórdão recorrido.
Custas pela recorrente:
Taxa de justiça: 500 euros
Procuradoria: 350 euros
Lisboa, 2 de Junho de 2004.
Madeira dos Santos – Relator – António Samagaio – Azevedo Moreira – Santos Botelho – Rosendo José – Angelina Domingues – Pais Borges – Jorge de Sousa – J Simões de Oliveira