Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0127/10.0BELLE 0711/17
Data do Acordão:12/12/2018
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:DULCE NETO
Sumário:
Nº Convencional:JSTA000P23936
Nº do Documento:SA2201812120127/10
Data de Entrada:06/09/2017
Recorrente:A.......
Recorrido 1:AT - AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo

1. A………, Lda, interpõe recurso de revista excepcional, ao abrigo do disposto no artigo 150º do CPTA, do acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul que negou provimento ao recurso que havia interposto da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Loulé, que, por sua vez, julgara improcedente a impugnação judicial que deduziu contra liquidações de IVA e de juros compensatórios referentes ao 3º trimestre de 2006, no montante de € 12.328,63 e € 1.599,68, respectivamente.

1.1. Rematou as suas alegações com as seguintes conclusões:

a. A falta de reenvio prejudicial para o Tribunal de Justiça da União Europeia antes da prolação da decisão determina que o Acórdão recorrido padeça de irregularidade, configuradora de uma nulidade processual, com consequências anulatórias dos termos subsequentes a tal omissão e dela absolutamente dependentes, nos termos do artigo 195º do Código de Processo Civil [ex vi alínea e) do artigo 2º do Código de Procedimento e de Processo Tributário] e, ainda, viole manifestamente o artigo 267º do Tratado de Funcionamento da União Europeia e do artigo 8º da Constituição da República Portuguesa, o qual consagra o princípio do primado do direito internacional sobre o direito interno;
b. Nos termos do nº 1 do artigo 150º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, das decisões proferidas em segunda instância pelo Tribunal Central Administrativo pode haver, excecionalmente, revista para o Supremo Tribunal Administrativo quando verificados os seguintes requisitos: i) estar em causa a apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental; ou ii) ser a admissão do recurso claramente necessária para uma melhor aplicação do direito;
c. De acordo com a interpretação do Supremo Tribunal Administrativo quanto a cada um dos anteditos requisitos legais, verifica-se que, revestindo as questões em apreço nos autos uma relevância manifestamente prática, em atenção à suscetibilidade da questão controvertida de se expandir para além dos limites da situação singular, independentemente da sua relevância teórica, resultando da mesma a possibilidade de repetição da questão noutros casos e da necessidade de garantir a uniformização do direito pela instância de cúpula do sistema judicial tributário, estão reunidos os pressupostos para o conhecimento do mérito do presente Recurso de Revista;
d. No caso vertente está em causa a apreciação, por parte do Supremo Tribunal Administrativo, da forma como as instâncias trataram a matéria dada como provada, na medida em que a Recorrente entende que nas decisões proferidas em sede de primeira instância e pelo Tribunal recorrido "as instâncias [trataram] a matéria de forma ostensivamente errada ou juridicamente insustentável, sendo objectivamente útil a intervenção do STA na qualidade de órgão de regulação do sistema";
e. De facto, está-se perante uma questão em que se denota a manifesta necessidade e utilidade de intervenção do Supremo Tribunal Administrativo, dada a evidente forma errada e juridicamente insustentável com que o Tribunal de primeira instância e o Tribunal a quo trataram a relevante matéria (de prova) aqui em apreço, não se compadecendo a ordem jurídica com os clamorosos erros interpretativos plasmados na decisão a quo, verificando-se estar preenchido o segundo requisito a que alude a 2ª parte do nº 1 do artigo 150º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (necessidade de garantir a "melhor aplicação do direito") para efeito de admissão do Recurso de Revista, o qual deverá ser admitido por Vossas Excelências;
f. Os bens e serviços adquiridos pela Recorrente no período em apreço (2006), consubstanciados na edificação das infraestruturas de apoio à atividade turística (estábulo, armazém, adega, receção, piscina e restaurante), tiveram em vista, única e exclusivamente, a prossecução da atividade turística que a Recorrente pretendeu (no futuro) exercer e, nessa medida, mostram-se adequados ao objeto social da Recorrente;
g. A dedução do IVA suportado pela Recorrente é legítima, na medida que se trataram de investimentos iniciais com vista à prossecução da atividade turística, a qual apenas não se iniciou em virtude de questões alheias à vontade da Recorrente, relacionadas com os processos de licenciamento das obras edificadas - armazém e estábulo e não quaisquer outros licenciamentos - que se encontram pendentes junto da Câmara Municipal de Loulé;
h. Relativamente à dedução do IVA nos investimentos iniciais de uma atividade, a Jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia (nomeadamente o Caso Rompleman) e a Doutrina têm entendido que as mesmas são incluídas no rol das despesas dedutíveis;
i. A Recorrente tem (e sempre teve) intenção de exercer, de facto, a atividade turística, situação que sempre demonstrou pelos investimentos que efetuou nas suas propriedades, aliás constantes das faturas que foram alvo de apreciação pela Administração Tributária em sede do pedido de reembolso do IVA;
j. Constata-se que os atos de liquidação (de imposto e seus juros) ser anulados, por errónea qualificação do facto tributário e violação da Sexta Diretiva Comunitária (Diretiva 2006/112/CE do Conselho, que veio substituir a Sexta Diretiva), bem como do artigo 8º da Constituição da República Portuguesa e do artigo 1º da Lei Geral Tributária;
k. Merece, pois, censura, na ótica da Recorrente, a decisão proferida pelo Tribunal a quo, a qual deverá ser anulada por Vossas Excelências, dando-se provimento ao presente recurso, nos termos supra expostos e abaixo peticionados;
l. À cautela e subsidiariamente, para o caso de se entender estarem subjacente ao presente processo questões de Direito Comunitário prejudiciais ao conhecimento do mérito da causa, solicita-se o reenvio da presente ação, para esclarecimento das questões acima enunciadas, para o Tribunal de Justiça da União Europeia.


1.2. A entidade recorrida não formulou contra-alegações.


1.3. O Exmo. Magistrado do Ministério Público emitiu douto parecer no sentido da admissão do recurso, por claramente necessário para uma melhor aplicação do direito, enunciando a seguinte argumentação:
«( ... )
Não se impunha nem se impõe proceder ao reenvio prejudicial para o TJUE que a recorrente defende, pelo que não ocorreu a irregularidade, configuradora de nulidade processual, nos termos dos artigos 195.º do C.P.C (ex vi do 2.ª al. e) do C.P.P.T.), 267.º do T.F.U.E. e 8.º da C.R.P. que, a propósito, é invocada.
Com efeito, o TJUE já se pronunciou sobre a questão do direito à dedução de IVA quanto a atos preparatórios de uma atividade económica e quanto a atos realizados no decurso de tal atividade, nomeadamente, pelo acórdão de 14-2-1985, Caso Rompleman, Proc. C - 268/83, acessível em www.europa.eu, admitindo o mesmo de forma clara - sobre tal, Clotilde Celorico Palma, em Introdução ao Imposto sobre o Valor Acrescentado, IDEF, 5 ª ed., p. 82.
Segundo tal jurisprudência, embora tal direito a dedução existe, pode ser afastado pela administração de acordo com elementos objetivos que sejam apurados, respeitantes essencialmente à própria atividade que se pretendeu desenvolver.
A Recorrente alega ainda, a propósito, ter adquirido bens e serviços no período em apreço (2006), consubstanciados na edificação de várias infraestruturas de apoio à atividade turística, aliás, suportados pelas faturas que foram alvo de apreciação pela A. T. e tal estar de acordo com o seu objeto social.
De acordo com o apurado pela A. T. foi considerado no acórdão recorrido que “a impugnante inicialmente teve como objetivo a construção de um hotel e a utilização do espaço para turismo, mas depois, por falta de licenciamento do mesmo e dos acessos a este, decidiu utilizar os terrenos adquiridos para a exploração agrícola, nomeadamente, para a produção de vinho e mel, mas por outra empresa que não a impugnante, ou seja, a B………., Lda".
Sendo a dita falta de licenciamentos do hotel e dos acessos os únicos elementos objetivos respeitantes à atividade que se pretendeu desenvolver, existiu erro de direito na apreciação efetuada, impondo-se proceder à reparação do decidido.
Concluindo:
O recurso é de admitir por claramente necessário para uma melhor aplicação do direito.


1·4·Colhidos os vistos legais, cumpre proceder à apreciação liminar sumária a que se refere o n.º 5 do artigo 150.º do CPTA.


2. Segundo o disposto no nº 1 do artigo 150º do CPTA, «das decisões proferidas em 2ª instância pelo Tribunal Central Administrativo pode haver, excepcionalmente, revista para o Supremo Tribunal Administrativo quando esteja em causa a apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental ou quando a admissão do recurso seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito», competindo a decisão sobre o preenchimento de tais pressupostos, em termos de apreciação liminar sumária, à formação prevista no nº 5 do referido preceito legal.
Isto é, o preceito prevê, excepcionalmente, recurso de revista para o Supremo Tribunal Administrativo quando esteja em causa a apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental ou quando a admissão do recurso seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito.
Ora, tal como tem sido repetidamente explicado nos inúmeros acórdãos proferidos sobre a matéria, o preenchimento do conceito indeterminado de relevância jurídica fundamental verificar-se-á quando a questão a apreciar seja de elevada complexidade ou, pelo menos, de complexidade jurídica superior ao comum, seja por força da dificuldade das operações exegéticas a efectuar, de um enquadramento normativo especialmente intricado ou da necessidade de concatenação de diversos regimes legais e institutos jurídicos, ou quando a matéria vem gerando polémica ou suscitando dúvidas a nível jurisprudencial ou doutrinal.
Já relevância social fundamental verificar-se-á quando esteja em causa uma questão com elevada capacidade de repetição e que importa que o STA aprecie e decida para que a solução encontrada venha a constituir uma orientação para os demais casos, ou quando esteja em causa uma questão que revele especial capacidade de repercussão social, em que a utilidade da decisão extravasa os limites do caso concreto e das partes envolvidas no litígio.
Por outro lado, a clara necessidade da revista para uma melhor aplicação do direito há-de resultar da possibilidade de repetição num número indeterminado de casos futuros e consequente necessidade de garantir a uniformização do direito em matérias em que se verifique ser objectivamente útil a intervenção do STA na qualidade de órgão de regulação do sistema.
No caso vertente, a questão colocada prende-se com a legalidade de actos de liquidação de IVA relativos ao 3º trimestre de 2006, ou, mais precisamente, com a questão de saber se a sociedade impugnante tinha, como advoga, o direito de deduzir o IVA que suportara nesse período com a aquisição de bens e serviços, por estarem em causa despesas de investimento iniciais consubstanciados na edificação das infraestruturas de apoio à actividade turística (estábulo, armazém, adega, recepção e restaurante) com vista a prossecução de actividade turística que pretendia exercer.
Com efeito, segundo a recorrente, a dedução do IVA que suportou é legítima, porquanto se tratava de investimentos iniciais com vista à prossecução da actividade turística que sempre demonstrou pretender prosseguir - quer pelos investimentos que efectuou, quer pela cooperação e colaboração que sempre teve nas acções de âmbito social e cultural na região - e que acabou por não iniciar apenas por razões alheias à sua vontade (relacionadas com os processos de licenciamento das obras edificadas e que se encontram pendentes junto da Câmara Municipal de Loulé), sustentando que a jurisprudência do TJUE tem reconhecido o direito à dedução neste tipo de situações.
Deste modo, as razões colhidas das conclusões da alegação de recurso evidenciam, sem necessidade de maiores desenvolvimentos, que estamos perante questão jurídica de complexidade superior ao comum, atenta a necessidade de conjugar diversas normas de direito interno e de ter presente o influxo de fontes de âmbito comunitário relativamente à dedução do IVA.
Trata-se, por conseguinte, de questão de relevância jurídica fundamental, dada a sua complexidade jurídica e, sobretudo, a necessidade de compatibilizar o quadro jurídico tributário português com o da União Europeia, com apelo a princípios fundamentais objecto de interpretação comunitária cuja observância se impõe aos Estados-Membros.
Acresce, como bem salienta a recorrente, ser evidente a relevância social fundamental da questão, pois a posição sustentada no acórdão recorrido poderá ser catapultada para outros casos semelhantes.
Em suma, é de reconhecer, no caso, a importância jurídica e o inegável relevo social e económico da questão, bem como a sua repercussão em múltiplas situações, dada a sua abrangência, com a consequente relevância excepcional com vista a uniformizar as decisões e a permitir segurança no domínio do acesso à justiça.
Em conclusão, importa que o Supremo Tribunal Administrativo intervenha, conhecendo da revista, para que a sua pronúncia sobre a questão possa servir como orientação para os tribunais de que é órgão de cúpula e contribuir para uma melhor aplicação do direito.
E tanto basta para que se considerem preenchidos os requisitos de que o nº 1 do artigo 150º faz depender a admissão do recurso de revista.

Resta observar que quanto à arguida nulidade processual - por falta de reenvio prejudicial para o TJUE - constitui jurisprudência consolidada que o reenvio só é obrigatório se a questão for pertinente ou relevante para a decisão da causa, competindo ao juiz nacional, a quem foi submetido o litígio e que deve assumir a responsabilidade pela decisão jurisdicional a tomar, apreciar tanto a necessidade de uma decisão prejudicial para poder proferir a decisão, como analisar a pertinência das questões que as partes pretendem submeter ao TJUE.
O reenvio não é, pois, uma faculdade processual das partes e, como tal, a falta de reenvio não pode constituir uma nulidade processual. Razão por que esta arguida nulidade não pode verificar-se e, como tal, não constitui motivo para a admissão da revista.
Todavia, tendo em conta que a revista vai ser admitida, o Tribunal examinará, no âmbito da apreciação do objecto do recurso, a questão da necessidade de proceder ao pretendido reenvio.


3. Termos em que acordam os juízes que integram a formação referida no nº 5 do artigo 150º do CPTA em admitir a revista.

Lisboa, 12 de Dezembro de 2018. – Dulce Neto (relatora) – Isabel Marques da Silva – Ascensão Lopes.