Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0859/18.5BEALM
Data do Acordão:09/16/2020
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:FRANCISCO ROTHES
Descritores:REVISTA
APRECIAÇÃO PRELIMINAR
REQUISITOS DE ADMISSÃO
Sumário:I - O recurso de revista excepcional previsto no art. 285.º do CPPT não corresponde à introdução generalizada de uma nova instância de recurso, funcionando apenas como uma “válvula de segurança” do sistema, pelo que só é admissível se estivermos perante uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental, ou se a admissão deste recurso for claramente necessária para uma melhor aplicação do direito, incumbindo ao recorrente alegar e demonstrar os requisitos da admissibilidade do recurso.
II - O erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objecto de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova (cfr. art. 285.º, n.º 4, do CPPT).
Nº Convencional:JSTA000P26312
Nº do Documento:SA2202009160859/18
Data de Entrada:07/31/2020
Recorrente:A............, LDA.
Recorrido 1:AT - AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Apreciação preliminar da admissibilidade do recurso excepcional de revista interposto no processo n.º 859/18.5BEALM

1. RELATÓRIO

1.1 A sociedade acima identificada, não se conformando com o acórdão proferido em 4 de Junho de 2020 nos presentes autos pelo Tribunal Central Administrativo Sul – que, negando provimento ao recurso por ela interposto, manteve a sentença proferida no Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada, que julgou improcedente a reclamação judicial interposta ao abrigo do disposto no art. 276.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT) contra o despacho que indeferiu o pedido de dispensa de prestação de garantia –, interpôs recurso de revista excepcional, nos termos do art. 285.º do CPPT.

1.2 Com o requerimento de interposição do recurso, a Recorrente apresentou as alegações, com conclusões do seguinte teor:

«1. As questões que constituem o objecto da presente revista são:
(i) Constitui forte indício de uma conduta dolosa intencionalmente dirigida para a dissipação de património e para a frustração de créditos uma empresa que vende, durante um exercício fiscal, na prossecução do seu objecto social e no exercício normal da sua actividade principal, a sua mercadoria, pelo preço de mercado, recebendo o respectivo preço, facturando a operação, cumprindo todas as normas que sobre ela impendem, designadamente regras contabilísticas e fiscais?

(ii) O douto Acórdão recorrido viola, ou não viola, o disposto no artigo 52.º, n.º 4 e 74.º, n.º 1 da LGT e o disposto no artigo 170.º do CPPT?

2. A Recorrente identificou com clareza as questões sobre as quais pretende que o Supremo Tribunal Administrativo se pronuncie.

3. Para aferição dos pressupostos previstos no artigo 285.º, n.º 1 do CPPT, importa revisitar a matéria probatória provada, mormente os que têm interesse para as questões enunciadas:
A. Em 22/02/2011 foi registada a constituição da sociedade A…………, Lda, com o objecto de importação, exportação e comércio de veículos automóveis. Prestação de serviços no ramo automóvel (cfr. fls.28).
K. No período compreendido entre 25/05/2018 e 13/12/2018 foram vendidos pela reclamante à sociedade B……….., Lda., os 114 veículos automóveis melhor identificados nas facturas de fls. 141 a 197/verso.
O. Com referência ao processo de execução fiscal 2224201801066340 foram efectuados pela ora reclamante pagamentos, no valor de € 20.000,00 cada, em 05/06/2019, 22/04/2019, 18/03/2019, 25/02/2019, 23/01/2019, 29/12/2018, 19/11/2018, 25/10/2018,19/09/2018, 22/08/2018, 23/07/2018, 19/06/2018, 29/05/2018 (cfr. teor de fls. 217/229).
T. Quando surgiram as questões com a administração tributária houve a necessidade de criar uma estrutura que permitisse a continuação da A……… para fazer face a esses compromissos, daí a criação da B…………, Lda. e da C……….., Lda.(cfr. depoimento da 1ª testemunha)
U. A partir da acção de inspecção a A……….. começou a fazer a facturação de acordo com as indicações da administração tributária (cfr. depoimento da 2.ª testemunha).
V. As vendas de veículos automóveis à B………. são feitas ao valor de mercado (cfr. depoimento das testemunhas).

4. O dolo, do termo latino dolus, “artifício”, é um instituto jurídico consistente na acção ou omissão consciente e volitiva a fim de causar dano.

5. Tecnicamente, as viaturas são um activo circulante, ou seja, são uma mercadoria que, enquanto tal, se destinam a ser transaccionadas e o rendimento das sociedades que se dedicam a esta actividade provém, precisamente, da actividade de compra e venda de viaturas.

6. Mesmo que as viaturas referidas no ponto k não tivessem sido vendidas, verificar-se-ia, igualmente, o 1.º requisito do n.º 4, do artigo 52.º da LGT: insuficiência de bens para garantir uma dívida de € 4.193.918,10 (€ 3.355.134,48 x 1,25).

7. A Recorrente nunca teve bens suficientes para prestar uma garantia no valor de € 4.193.918,10. (€ 3.355.134,48 x 1,25).

8. Os valores liquidados pela Autoridade Tributária a título de IVA NÃO FORAM RECEBIDOS pela Recorrente.

9. A Autoridade Tributária não provou a existência de fortes indícios de que a insuficiência ou inexistência de bens se deveu a actuação dolosa da recorrente, – não provou o requisito subjectivo plasmado na norma contida no disposto no artigo 52.º, n.º 4 da LGT –, e não resultando dos factos provados essa realidade, decidiu mal o douto Tribunal a quo.

10. A decisão recorrida está ferida com o vício da falta de fundamentação, previsto no artigo 77.º da Lei Geral Tributária (LGT) e no artigo 268.º da Constituição da República Portuguesa, consagrado sob a epígrafe “Direitos e Garantias dos Administrados”;

11. A decisão recorrida está ferida com o vício do princípio do inquisitório, expresso no artigo 58.º da LGT;

12. A decisão recorrida viola o princípio da legalidade tributária, da proporcionalidade e da justiça, previstos no artigo 55.º da LGT;

13. À luz do critério qualitativo de admissibilidade do recurso que constitui jurisprudência pacífica do Colendo Supremo Tribunal Administrativo para o preenchimento do conceito indeterminado de relevância jurídica fundamental, relevância social fundamental e clara necessidade da admissão da revista para melhor aplicação do direito que a Recorrente fez constar da sua alegação de recurso, a relevância social fundamental, decorre do facto, público e notório, da actividade da Autoridade Tributária, enquanto exercício legítimo, lançar mão, amiúde, de acções inspectivas a empresas que se dedicam a diversas actividades, das quais resulta maioritariamente a prática de actos tributários de liquidação de impostos que, por seu turno, dão origem a execuções para a respectiva cobrança coerciva e, considerar-se que uma empresa que vende a sua mercadoria actua dolosamente, com o fim de dissipar o seu património, é uma interpretação que tem de ser analisada e julgada superiormente, pois afecta a possibilidade de suspender, sem prestação de garantia, as execuções enquanto as partes discutem judicialmente se o imposto é ou não devido.

14. Existem em Portugal milhares de pequenas e médias empresas que se dedicam ao comércio de automóveis, que contribuem fortemente para a circulação da riqueza, que representam parte significativa do PIB e que estão na mão de uma acção inspectiva, mais ou menos rigorosa, que pode conduzi-las à insolvência porque se entende que a venda do seu activo circulante, vulgo, mercadorias, constitui uma actuação dolosa que impede a verificação do requisito subjectivo do n.º 2 do artigo 54.º da LGT.

15. Igual situação se pode verificar em todas as demais actividades comerciais.

16. As questões subjudice extravasam os limites da situação singular da Recorrente face à possibilidade da sua repetição num número indeterminado de casos presentes e futuros, reclamando uma interpretação pacificadora e uniforme pelo STA, revestindo importância jurídica ou social fundamental, com contornos de novidade pois trata-se de questão que não foi objecto de específica apreciação pelo STA e que acaba por manter interesse e actualidade e é, nesse contexto, repetível ou susceptível de ser recolocada em casos futuros.

17. As questões colocadas têm relevância jurídica pois apresentam uma complexidade jurídica superior ao comum, sendo que a resposta que este STA lhes der é susceptível de poder servir de paradigma para futuros casos de suspensão da execução com dispensa de garantia, devendo, na ponderação, atender-se à circunstância da maioria das empresas que constituem o tecido empresarial português e a maioria dos particulares não terem a possibilidade de prestar garantia para suspender a execução, mas terem capacidade de pagar as dívidas.

18. Afigura-se, ainda, estarem preenchidos os requisitos exigíveis pelo n.º 1 do artigo 285.º do CPPT, porquanto a matéria em causa é susceptível de se configurar de importância fundamental porque se trata de questão relacionada com a natureza da prova exigível sobre a existência de fortes indícios de que a insuficiência ou inexistência de bens se deveu a actuação dolosa da Recorrente e no contencioso tributário são frequentes as reclamações apresentadas como reacção ao indeferimento pelo órgão de execução das suspensão das execuções com dispensa de prestação de garantia, com implicações de grande relevância na vida económica e social das empresas pois pode determinar a sua insolvência e a incobrabilidade de receitas para o Estado.

19. Impõe-se a admissão do recurso para melhor aplicação do direito, porquanto se trata de questão relacionada com a natureza da prova exigível sobre a existência de fortes indícios de que a insuficiência ou inexistência de bens se deveu a actuação dolosa da Recorrente, matéria susceptível de repetição em casos futuros, como também se nos afigura que o douto Acórdão, ora recorrido, tratou a matéria da prova exigível para a verificação da existência de indícios fortes de actuação dolosa de forma ostensivamente errada e juridicamente insustentável, o que gera incerteza na sua resolução a impor a intervenção do órgão de cúpula da justiça administrativa e tributária como condição para dissipar dúvidas.

20. Os actos de comércio de venda de mercadorias não têm consistência, solidez ou idoneidade de indícios que apontem para uma actuação dolosa dirigida para a dissipação de património e para a frustração de créditos, impondo-se aplicar o direito de modo a que esta conduta não seja considerada dolosa, não integrando a previsão do requisito subjectivo previsto no n.º 2, do artigo 54.º da LGT.

21.O Tribunal Central Administrativo do Sul decidiu de forma controvertida e não isenta de dúvidas.

22. O Tribunal Central Administrativo do Sul no plano dos raciocínios lógicos ou jurídicos enferma de erros manifestos em termos da estrita interpretação das regras e no plano dos princípios pertinentes.

23. O Supremo Tribunal Administrativo tem competência para a reapreciação da decisão de direito, em função do erro grosseiro do Acórdão recorrido ser susceptível de legitimar a intervenção do STA em ordem a contribuir para uma melhor aplicação do direito, mormente do artigo 52.º, n.º 4 da LGT e 170.º, n.º 4 do CPPT, já que a responsabilidade prevista na parte final deste número deve entender-se em termos de dissipação dos bens com o intuito de diminuir a garantia dos credores e não como mero nexo de causalidade desprovido de carga de censura ou simples má gestão dos seus bens.

24. Mostra-se inequívoco que as questões decidendas estão dotadas de capacidade de expansão de controvérsia. As questões que a Recorrente coloca não têm natureza casuística.

25. As «quaestio juris» em presença tem vocação de repetibilidade.

26. As quaestiones juris assume manifesto relevo jurídico ainda porque a resposta que a ela se dê tem consequências ao nível da apreciação e preenchimento dos pressupostos do probatório indiciário sobre conduta dolosa, e tem relevo social, visto que, tratando-se de situações com impacto e que se repetem, é de todo o interesse da comunidade que sobre ela exista o entendimento o mais estabilizado possível.

27. A definição do concreto regime substantivo previsto nos artigos 52.º, n.º 4 e 74.º, n.º 1, ambos da LGT, é matéria cuja elucidação assume relevo jurídico, reclamando a necessária intervenção deste Tribunal.

28. A Recorrente alegou, suficientemente, em que medida estas questões cumprem os requisitos do n.º 1, do artigo 285.º do CPPT.

29. Ademais, o montante pecuniário em causa no processo também concorre para que seja admitido o recurso.

30. A suspensão da execução enquadra-se no direito constitucionalmente garantido à efectividade da tutela judicial, conforme artigos 20.º, n.º 1, 268.º, n.º 4, da CRP e artigo 9.º, n.º 1 da LGT.

Termos em que, e sempre com o mui douto suprimento de Venerandos Juízes Conselheiros, se requer muito respeitosamente, seja admitido e concedido provimento ao presente recurso de REVISTA e, em consequência, a douto Acórdão seja revogado in totum e comutada por outra que julgue procedente a reclamação apresentada pela Recorrente, dispensando-a de apresentar garantia, só assim se alcançando e fazendo JUSTIÇA!».

1.3 Não foram apresentadas contra-alegações.

1.4 Recebidos os autos neste Supremo Tribunal Administrativo, foi dada vista ao Ministério Público e a Procuradora-Geral-Adjunta emitiu parecer no sentido de que o recurso não deve ser admitido. Isto, após ter enunciado os requisitos da admissibilidade do recurso de revista e elaborado em torno dos mesmos, com a seguinte fundamentação: «[…]

Em nossa opinião, salvo melhor juízo, a Recorrente não demonstra estarem preenchidos os pressupostos de que depende a admissibilidade do recurso de revista pelas razões a seguir explanadas:
A análise das questões suscitadas pela Recorrente passa pela emissão de um juízo sobre a factualidade dada como provada no douto Acórdão Recorrido de molde a concluir se tal factualidade é ou não suficiente para permitir as ilações de facto extraídas no sentido de que a insuficiência ou inexistência de bens resultou de actuação dolosa da ora Recorrente e, consequentemente, se o douto Acórdão Recorrido errou na apreciação da prova produzida.
Ora, como se escreveu, designadamente, no douto Acórdão do STA de 09-10-2019, proc. 01733/13.7BELRS:
I - O recurso de revista excepcional previsto no artigo 150º do CPTA não corresponde à introdução generalizada de uma nova instância de recurso, funcionando apenas “como uma válvula de segurança do sistema”, pelo que só é admissível se estivermos perante uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental, ou se a admissão deste recurso for claramente necessária para uma melhor aplicação do direito.
II - O alegado erro na apreciação das provas ou a sua insuficiência não pode ser objecto de revista, salvo havendo questão de especial complexidade ou relevo ou que tenha sido decidida de forma ostensivamente errada ou juridicamente insustentável, ou ainda, ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova…”.
No caso em apreço, não está em causa ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova, excepções que permitiriam a revista.
O que resulta do teor das Alegações de Recurso e dos seus termos conclusivos é a discordância da Recorrente quanto à existência de indícios de uma actuação dolosa no que respeita à factualidade que o douto acórdão recorrido deu como assente no probatório.
As questões suscitadas não se mostram de elevada complexidade, exigindo a aplicação e concatenação de diversos regimes legais, princípios e institutos jurídicos, antes se apresentando com um grau de dificuldade comum.
Igualmente, não revestem as questões suscitadas uma especial relevância social ou indício de interesse comunitário significativo que extravase os limites do caso concreto e a sua singularidade.
Importará, agora, saber se a questão/questões foi decidida de forma ostensivamente errada ou juridicamente insustentável:
O douto Acórdão recorrido apreciou os elementos de prova – documental e testemunhal-contidos no processo, tendo concluído, no caso em concreto e a final, com base na factualidade dos autos, pela existência de fortes indícios de que a insuficiência ou inexistência de bens se deveu a actuação dolosa do interessado.
Nos termos do art. 52.º da LGT, é admissível a suspensão do processo de execução fiscal, designadamente em virtude de pagamento em prestações ou reclamação, recurso, impugnação e oposição à execução, desde que prestada garantia idónea ou desde que a AT, a requerimento do executado, o isente de tal prestação (cf. n.º 4).
O art. 170.º do CPPT determina os termos do procedimento do pedido de dispensa de garantia.
De acordo com o quadro normativo referido, a dispensa de prestação de garantia depende da verificação cumulativa de dois requisitos:
- Um requisito objectivo: a situação causar prejuízo irreparável ou a manifesta falta de meios económicos, revelada pela insuficiência de bens penhoráveis para o pagamento da dívida exequenda e acrescido;
- Um requisito subjectivo, consubstanciado na imputação da insuficiência ou inexistência de bens ao executado.
In casu, foi apreciado o segundo dos requisitos indicados (requisito subjectivo).
O douto Acórdão recorrido justificou a sua decisão de forma clara e convincente com um discurso lógico e coerente de acordo com a matéria levada ao probatório e a sua subsunção às normas jurídicas aplicáveis, não aparentando padecer de erros lógicos ou jurídicos manifestos que reclamem a necessidade de admissão da revista para melhor aplicação do direito, não se impondo, salvo melhor juízo, a intervenção do órgão de cúpula da justiça administrativa como condição para dissipar dúvidas sobre o quadro legal que regula a situação em apreço».

1.5 Cumpre apreciar e decidir da admissibilidade do recurso, nos termos do disposto no n.º 6 do art. 285.º do CPPTA.


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2. FUNDAMENTAÇÃO

2.1 DE FACTO

Nos termos do disposto nos arts. 663.º, n.º 6, e 679.º do Código de Processo Civil (CPC), aplicáveis ex vi do art. 281.º do CPPT, remete-se para a matéria de facto constante do acórdão recorrido.

2.2 DE FACTO E DE DIREITO

2.2.1 DOS PRESSUPOSTOS DE ADMISSIBILIDADE DO RECURSO

2.2.1.1 Decorre expressa e inequivocamente do n.º 1 do art. 285.º do CPPT – tal como do n.º 1 do art. 150.º do Código de Processo dos Tribunais Administrativos (CPTA) – a excepcionalidade do recurso de revista. Em princípio, as decisões proferidas em 2.ª instância pelos tribunais centrais administrativos não são susceptíveis de recurso para o Supremo Tribunal Administrativo; mas, excepcionalmente, tais decisões podem ser objecto de recurso de revista em duas hipóteses: i) quando estiver em causa a apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, assuma uma importância fundamental ou ii) quando a admissão da revista for claramente necessária para uma melhor aplicação do direito.

2.2.1.2 Como a jurisprudência também tem vindo a salientar, incumbe ao recorrente alegar e demonstrar essa excepcionalidade, que a questão que coloca ao Supremo Tribunal Administrativo assume uma relevância jurídica ou social de importância fundamental ou que o recurso é claramente necessário para uma melhor aplicação do direito. Ou seja, em ordem à admissão do recurso de revista, a lei não se satisfaz com a invocação da existência de erro de julgamento no acórdão recorrido, devendo o recorrente alegar e demonstrar que se verificam os referidos requisitos de admissibilidade da revista [cfr. art. 144.º, n.º 2, do CPTA e art. 639.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil (CPC), subsidiariamente aplicável].

2.2.1.3 A Recorrente interpõe o presente recurso de revista em ordem a que este Supremo Tribunal, se pronuncie sobre duas questões, que ela mesma enunciou como sendo as de saber se «[c]onstitui forte indício de uma conduta dolosa intencionalmente dirigida para a dissipação de património e para a frustração de créditos uma empresa que vende, durante um exercício fiscal, na prossecução do seu objecto social e no exercício normal da sua actividade principal, a sua mercadoria, pelo preço de mercado, recebendo o respectivo preço, facturando a operação, cumprindo todas as normas que sobre ela impendem, designadamente regras contabilísticas e fiscais» e se o acórdão recorrido «viola, ou não viola, o disposto no artigo 52.º, n.º 4 e 74.º, n.º 1 da LGT e o disposto no artigo 170.º do CPPT?»
Desde já, diremos que, embora a Recorrente enuncie duas questões a apreciar e decidir, se nos afigura que é uma única a questão que pretende ver dirimida: a de saber se, para efeitos de aferir da verificação do requisito de «que não existam fortes indícios de que a insuficiência ou inexistência de bens se deveu a actuação dolosa do interessado», enunciado na parte final do n.º 4 do art. 52.º da LGT, se deve relevar, ou não, como acto doloso de diminuição do património social, a venda de bens que integram o activo circulante da sociedade (mercadorias), efectuada de acordo com as regras do mercado e pela qual foi obtido o preço.
Isto porque o Tribunal Central Administrativo Sul, negando provimento ao recurso por ela interposto da sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada, confirmou o juízo por este efectuado, de que a AT, em ordem a rejeitar o pedido de dispensa de prestação de garantia formulado pela ora Recorrente, cumpriu o seu ónus probatório de demonstrar a existência de fortes indícios de que a insuficiência ou inexistência de bens se deveu a actuação dolosa da Executada.
Na verdade, após enunciar a questão a dirimir como sendo a de saber «se o probatório permite extrair o juízo fáctico quanto [à] existência de fortes indícios de que a insuficiência ou inexistência de bens se deveu a actuação dolosa do interessado na dispensa de prestação de garantia», afirmando expressamente que «a Recorrente diverge da sentença quanto aos juízos de facto nela efectuados sobre a culpa pela inexistência de património social», o Tribunal Central Administrativo Sul, após um excurso em torno da nova redacção introduzida na parte final do n.º 4 do art 52.º da LGT pela Lei n.º 42/2016, de 28 de Dezembro (Após essa alteração e por força da mesma, a jurisprudência, que até então entendia que cabia ao interessado alegar e provar todos os requisitos da dispensa de prestação de garantia – inclusive o requisito subjectivo, então configurado como «desde que em qualquer dos casos a insuficiência ou inexistência de bens não seja da responsabilidade do executado» –, passou a entender que recai sobre a AT o ónus da prova do requisito subjectivo – agora enunciado como «desde que que não existam fortes indícios de que a insuficiência ou inexistência de bens se deveu a actuação dolosa do interessado» –, através da evidenciação de indícios de actuação dolosa do interessado.), e considerando, em síntese, que incumbe à AT a prova do requisito subjectivo para a dispensa da prestação de garantia e que a AT se desincumbe desse ónus mediante a evidenciação de indícios de actuação dolosa do interessado, concluiu que no caso sub judice foi feita essa prova. Isto porque a AT demonstrou que a ora Recorrente «tem vindo a transferir veículos automóveis que fazem parte do seu activo circulante para uma outra sociedade», sendo que entre ambas as sociedades «há ligações de proximidade entre os sócios», e dessa actuação intencional resultaram «o agravamento da insuficiência de bens penhoráveis e a frustração de uma eventual penhora dos mesmos pela Administração tributária».
A Recorrente discorda desse julgamento e sustenta, em síntese, que a venda de mercadorias, efectuada com respeito pelas regras contabilísticas e fiscais, ao preço de mercado e ingressando o preço na sua esfera patrimonial, não constitui senão o normal exercício da sua actividade, na prossecução do seu objecto social, motivo por que não pode ser visto como uma actuação dolosa da Executada de que tenha resultado a inexistência ou insuficiência de bens para assegurar o pagamento da dívida exequenda e do acrescido.
Pretende, pois, a Recorrente que este Supremo Tribunal se pronuncie sobre essa questão.

2.2.1.4 Como dispõe o n.º 4 do art. 285.º do CPTA, «[o] erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objecto de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova».
Salvo o devido respeito, a Recorrente, invocando embora a relevância jurídica da questão que formula e a necessidade de estabelecer uma melhor aplicação do direito, manifesta divergência com a factualidade que foi julgada provada e, no essencial, pretende que este Supremo Tribunal reaprecie a prova produzida nos autos. Na verdade, a Recorrente alega que a AT não logrou demonstrar, como lhe competia, os «fortes indícios de que a insuficiência ou inexistência de bens se deveu a actuação dolosa do interessado», pois não pode ser tida como tal a venda de mercadorias, tanto mais que esta foi efectuada ao preço de mercado e o preço ingressou na sua esfera patrimonial, não constituindo, pois, senão o normal exercício da sua actividade, na prossecução do seu objecto social.
É certo que a Recorrente pretendeu conferir a esta questão uma dimensão que exceda os contornos do caso particular, ensaiando a redacção da questão a dirimir em termos gerais e de abstracção relativamente ao caso concreto, de modo a integrar a invocada relevância jurídica. Mas, obviamente, o juízo a formular sobre a existência de fortes indícios de que a insuficiência ou inexistência de bens se deveu a actuação dolosa da Recorrente nunca poderia extravasar os limites do caso concreto e da sua situação singular.
Apesar de a Recorrente tentar reconduzir a questão a um erro na interpretação da parte final do n.º 4 do art. 52.º da LGT, a verdade é que manifesta discordância quanto à factualidade que as instâncias julgaram provada e quanto aos critérios de valoração da prova produzida – suscitando a questão de saber se a factualidade evidenciada pela AT constitui ou não forte indício de que a insuficiência ou inexistência de bens se deveu a actuação dolosa da Executada – e não quanto à interpretação daquela norma. Aliás, a Recorrente e o acórdão recorrido não discordam quanto à regra de distribuição do ónus da prova; a dissensão verifica-se exclusivamente quanto à conclusão ou inferência (ilação de facto) a que chegou o Tribunal Central Administrativo Sul.
Ou seja, apesar do esforço argumentativo da Recorrente no sentido de conferir à questão uma dimensão que extravase o caso concreto, a questão tem, manifestamente, natureza casuística e singular, sendo que foi por reporte aos factos apurados que o acórdão recorrido inferiu (ilação de facto) a existência de fortes indícios de que a insuficiência ou inexistência de bens se deveu a actuação dolosa da Executada.
Assim, tal como a Procuradora-Geral-Adjunta no parecer acima transcrito, também consideramos que não se verifica a invocada relevância jurídica da questão, invocada pela Recorrente para justificar a admissibilidade da revista.

2.2.1.5 Invoca também a Recorrente que o acórdão recorrido incorreu em erro grosseiro, a justificar a admissão da revista em ordem à melhoria da aplicação do direito.
Mas, salvo o devido respeito, também se não verifica este requisito da admissibilidade do recurso. Como bem deixou dito a Procuradora-Geral-Adjunta neste Supremo Tribunal, o acórdão recorrido «justificou a sua decisão de forma clara e convincente com um discurso lógico e coerente de acordo com a matéria levada ao probatório e a sua subsunção às normas jurídicas aplicáveis, não aparentando padecer de erros lógicos ou jurídicos manifestos que reclamem a necessidade de admissão da revista para melhor aplicação do direito, não se impondo, salvo melhor juízo, a intervenção do órgão de cúpula da justiça administrativa como condição para dissipar dúvidas sobre o quadro legal que regula a situação em apreço».
Não se verifica, pois, a invocada necessidade de reparação de erro grosseiro, invocada pela Recorrente para justificar a admissibilidade da revista ao abrigo da melhor aplicação do direito.

2.2.1.6 No que respeita à alegação vertida nas conclusões 10. a 12., parece a Recorrente ignorar que os recursos jurisdicionais não se destinam a imputar vícios ao acto administrativo-tributário impugnado, mas a questionar o julgamento feito pelas instâncias. Reiterando o que lhe foi dito no acórdão recorrido, «os recursos são meios para obter o reexame das questões já submetidas à apreciação dos tribunais inferiores, e não para criar decisões sobre matéria nova, não submetida ao exame do tribunal de que se recorre».

2.2.1.7 Em suma, não se mostram reunidos os pressupostos de admissibilidade do recurso de revista previstos no art. 285.º do CPPT que, recorde-se não constitui mais um grau de recurso que o legislador tenha posto à disposição da parte que considera que o acórdão recorrido enferma de erro de julgamento.

2.2.2 CONCLUSÕES

Preparando a decisão, formulamos as seguintes conclusões:

I - O recurso de revista excepcional previsto no art. 285.º do CPPT não corresponde à introdução generalizada de uma nova instância de recurso, funcionando apenas como uma “válvula de segurança” do sistema, pelo que só é admissível se estivermos perante uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental, ou se a admissão deste recurso for claramente necessária para uma melhor aplicação do direito, incumbindo ao recorrente alegar e demonstrar os requisitos da admissibilidade do recurso.

II - O erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objecto de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova (cfr. art. 285.º, n.º 4, do CPPT).


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3. DECISÃO

Em face do exposto, os juízes da Secção do Contencioso Tributário deste Supremo Tribunal Administrativo acordam, em conferência da formação prevista no n.º 6 do art. 285.º do CPPT, em não admitir o presente recurso, por se julgar não estarem preenchidos os pressupostos do recurso de revista excepcional previstos no n.º 1 do mesmo artigo.


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Custas pela Recorrente.
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Lisboa, 16 de Setembro de 2020. – Francisco Rothes (relator) – Aragão Seia - Isabel Marques da Silva.