Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0970/06
Data do Acordão:04/19/2007
Tribunal:1 SUBSECÇÃO DO CA
Relator:COSTA REIS
Descritores:ADVOGADO
ACTOS PRÓPRIOS DO ADVOGADO
MEDIADOR DE COMPRA E VENDA DE IMOBILIARIOS
PROCURADORIA ILEGAL
Sumário:I – São actos próprios dos advogados todos aqueles que, exercidos no interesse de terceiros, são integradores da sua actividade profissional e que constituem o núcleo exclusivo dessa profissão, como sejam, por ex., a consulta jurídica, exercício do mandato forense e a elaboração de contratos e que, por isso, só eles podem praticar.
II - A procuradoria ilegal consiste no exercício do mandato ou da mediação em violação do disposto nas leis estatutárias das profissões em que o mandato ou a mediação constitui o núcleo da sua actividade.
III - A mediação imobiliária traduz-se na procura de “interessado na compra ou na venda de bens imóveis ou na constituição de quaisquer direitos reais sobre os mesmos, bem como para o seu arrendamento e trespasse, desenvolvendo para o efeito acções de promoção e recolha de informações sobre os negócios pretendidos e sobre as características dos respectivos imóveis”, sendo que no exercício dessa actividade podem, ainda, ser prestados “serviços relativos à obtenção de documentação conducente à concretização dos negócios visados e que não estejam legalmente atribuídos em exclusivo a outras profissões.”
IV - Deste modo, as empresas de mediação imobiliária não podem requerer e levantar certidões de registo nem preparar e marcar escrituras para terceiros porque tal se traduz na prática de actos atribuídos aos advogados ou solicitadores e, portanto, no exercício de procuradoria ilegal, só assim não sendo se ao fazê-lo estiverem a agir na sua qualidade de mediadoras imobiliárias e fosse nesta condição que estivessem a praticar tais actos.
V – Não cabe dentro da mediação mobiliária a celebração de contratos promessa de compra e venda ou de contratos de arrendamento, mesmo que tal passe apenas pelo preenchimento dos espaços em branco de contratos já minutados e adquiridos numa papelaria e que os mesmos respeitassem a imóveis cuja transmissão tinha sido angariada por essas empresas.
Nº Convencional:JSTA00064299
Nº do Documento:SA1200704190970
Data de Entrada:10/02/2006
Recorrente:CONSELHO SUPERIOR DA ORDEM DOS ADVOGADOS
Recorrido 1:A ...
Recorrido 2:OUTROS
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:REC JURISDICIONAL.
Objecto:SENT TAC COIMBRA DE 2006/05/03 PER SALTUM.
Decisão:NEGA PROVIMENTO.
Área Temática 1:DIR ADM GER - ASSOC PUBL.
DIR ADM CONT - ACTO.
Legislação Nacional:EOADV84 ART53 ART56 ART76 N1 ART78 A.
L 49/2004 DE 2004/08/24 ART1.
DL 77/99 DE 1999/03/16 ART3 N1 N2.
Aditamento:
Texto Integral: “A..., L.da”, ... e ... interpuseram, no TAC de Coimbra, recurso contencioso pedindo a declaração de nulidade da deliberação do CONSELHO SUPERIOR DA ORDEM DOS ADVOGADOS, de 7/02/2003, que, em sede de recurso hierárquico, confirmou a deliberação do Conselho Distrital de Évora que ordenou o encerramento do estabelecimento sito na ..., em Ponte de Sôr, pertencente à primeira Recorrente da qual a recorrente ... é sócia gerente e a recorrente ... empregada.
Para tanto imputa-lhe os vícios de violação [1] dos art.ºs 53.º, n.º 1 e 56.º, nº 1, ambos dos Estatutos da Ordem dos Advogados, [2] dos art.ºs 36º e 39º do Código de Registo Predial e [3] de violação dos princípios da adequação e da proporcionalidade, justiça e imparcialidade (art.ºs 5º e 6º, ambos do CPA).
Tal recurso mereceu provimento pelo que a deliberação impugnada foi anulada.
Inconformado o Conselho Superior da Ordem dos Advogados recorreu para este Tribunal tendo formulado as seguintes conclusões:
a) Ao contrário do entendimento perfilhado pelo MM Juiz a quo, entende o ora recorrente que os factos dados como provados no processo de averiguações instaurado e imputados às recorrentes configuram o exercício de procuradoria ilícita, proibido pelos artigos 53.º e 56.º do E.O.A. (em vigor à data dos factos).
b) A jurisprudência da Ordem dos Advogados tem definido o conceito de "actos próprios da profissão de advogado" como "todo e qualquer acto relacionado com os direitos e deveres estabelecidos na Lei".
c) O papel do advogado não se esgota na sua intervenção processual, assumindo igual relevância as funções que desempenha no recato do seu escritório quando aconselha, informa, redige contratos e concilia as partes.
d) O exercício dos ditos actos próprios de advogados encontra-se reservado por lei aos advogados (cfr. artigos 53° e 56° do E.O.A. em vigor à data dos factos).
e) Através da consagração de tais disposições legais o legislador procurou (i) garantir a integridade do sistema oficial de provimento em profissões de especial interesse público, garantindo-se a seriedade dos serviços que são prestados; (ii) salvaguardar o direito que assiste a qualquer cidadão de poder contar com um corpo profissional devidamente qualificado e habilitado, sujeito a regras éticas e deontológicas e responsável perante a Ordem dos Advogados e (iii) afirmar e defender a garantia da dignidade da Advocacia e lutar contra a concorrência desleal.
f) Tendo em consideração este enquadramento jurídico, parece indubitável que as recorrentes praticaram actos próprios da profissão de advogado. Assim:
g) As aqui recorridas não eram advogadas e mantinham abertos e em funcionamento dois escritórios onde eram prestados determinados serviços, pelos quais era cobrado um preço.
h) As aqui recorridas praticavam actos próprios de advogados já que procediam à marcação e preparação dos documentos referentes a escrituras de compra e venda; doação; habilitação de herdeiros e justificação notarial; à apresentação de actos de registo predial; ao pagamento de SISA e à elaboração de contratos de promessa.
i) Quanto à marcação e preparação dos documentos referentes a escrituras de compra e venda; doação; habilitação de herdeiros e justificação notarial, refira-se que o exercício de tal actividade pressupõe necessariamente o domínio de conhecimentos de Direito, nomeadamente ao nível da verificação de pressupostos, de declaração de vontade e de prazos, para os quais apenas os advogados/solicitadores estão aptos.
j) Quanto à apresentação de actos de registo predial, esta não é uma actividade meramente administrativa, antes pressupondo o conhecimento das regras registrais, ramo do direito específico, cujo exercício amadorístico pode trazer sérios e graves complicações ao cidadão, podendo conduzir, nomeadamente à provisoriedade do registo.
k) Quanto ao pagamento de SISA, não se trata apenas de uma deslocação à Repartição de Finanças com vista ao pagamento de determinado valor, mas antes da prática de um dever que emerge da lei fiscal.
l) Finalmente, também a elaboração de contratos promessas de compra e venda de imóveis, ainda que recorrendo a minuta, pressupõe uma invasão ilícita da esfera de competência atribuída por lei aos advogados.
m) A ser admitido entendimento contrário, estaria certamente encontrado o caminho para tornar a actuação do advogado dispensável sempre que existissem "minutas" susceptíveis de, em abstracto, regular determinada situação jurídica (e existem variadíssimas minutas à venda nas papelarias).
n) Ainda que recorrendo a uma minuta pré-definida, a verdade é que, também nesse caso, se procura organizar a convenção das vontades tendentes ao negócio definitivo, o que implica certamente a definição de uma complexa teia de direitos e deveres dos Contraentes.
o) Recorrer a uma minuta com vista à regulação de uma determinada relação jurídica pressupõe, desde logo, a detenção de conhecimentos jurídicos que permitam escolher aquela que mais se adequa aos interesses das partes e ao objecto do 11egócio e, ainda, perspectivar quais as consequências futuras que poderão decorrer para as partes em caso de incumprimento.
p) Mas mais. Para além de saber preencher os espaços em branco constantes das minutas é, ainda, necessário perceber/entender os direitos e deveres que assistem a cada uma das partes, para depois poder informar o consumidor dos mesmos. Tais informações apenas poderão, logicamente, ser prestadas pelo advogado, pois somente este possui os conhecimentos técnico-científicos necessários.
q) A conclusão de que as aqui Recorridas praticaram actos próprios de advogado, não é seguramente infirmada pelo facto de ter sido proferido despacho de não pronúncia no âmbito do processo crime movido contra as aqui recorridas.
r) Por tudo quanto se deixou supra exposto, resulta evidente que as aqui recorridas praticaram actos da exclusiva competência dos advogados, violando a douta sentença posta em crise o disposto nos artigos 53° e 56.º do anterior E.O.A.
As Recorrentes contenciosas contra alegaram para defender a manutenção do julgado, tendo concluído do seguinte modo:
1. As recorrentes não praticaram actos da exclusiva competência de advogados ou solicitadores.
2. Não se mostram violados, pela douta decisão em crise, quaisquer preceitos e, designadamente, os dos art.°s 53° e 56° do anterior EOA.
3. Não foi provado que as recorrentes tivessem prestado de forma regular e remunerada qualquer actividade de procuradoria ou consulta jurídica, pelo que nem sequer se mostraram preenchidos os requisitos impostos pelo referido art.º 56°.
O Ilustre Magistrado do Ministério Público emitiu parecer no sentido do não provimento do recurso por entender que a requisição e levantamento de certidões de registo e marcado escrituras não traduz, por si só, o exercício ilegal da advocacia pois “nenhuma dúvida há que qualquer interessado pode requerer e levantar certidões de registo e marcar escrituras, sem que a lei atribua, a essas actividades, a natureza de actos próprios dos advogados e solicitadores”, e que o facto de tais actos pressuporem o conhecimento das regras registrais “não permite concluir que esses actos, apenas, sejam da competência exclusiva dos advogados e solicitadores, sendo, antes, actos que, também, podem praticar.”
Quanto à elaboração de contratos promessa de compra e venda de imóveis aquele Magistrado entende que a sentença recorrida decidiu bem quando afirmara que "resultando provado que apenas eram preenchidos contratos resultados de minutas, à venda em qualquer papelaria, também, nada impede que as recorrentes os preenchessem, pelo que a sua prática não constitui qualquer acto que invada a competência dos advogados e/ou solicitadores", tanto mais quanto era certo que “nada na lei proíbe que os promitentes compradores e vendedores celebrem o respectivo contrato, sem que intervenha, ou que tenha de, obrigatoriamente, intervir advogado ou solicitador.”
Finalmente, e no tocante ao pagamento da sisa, acompanhou, também, a sentença recorrida quando esta referiu que "qualquer interessado se pode dirigir a uma Repartição de Finanças e, sem qualquer necessidade de intervenção de advogado, proceder ao seu pagamento", o que significava que o cumprimento dessa obrigação fiscal não implicava a intervenção de advogado ou solicitador e, por isso, nada impedia que as Recorridas também o pudessem fazer.
Colhidos os vistos cumpre decidir.
FUNDAMENTAÇÃO
I. MATÉRIA DE FACTO.
A decisão recorrida julgou provados os seguintes factos:
1. A recorrente "A..., L.da" da qual a recorrente ... é sócia gerente e a recorrente ... empregada da mesma sociedade, tem por objecto, além de outras actividades, a compra e venda de imóveis.
2. Na sequência de participação feita ao Conselho Distrital de Évora da Ordem dos Advogados, aberto processo de averiguações (Proc. n.º 10/P/1998) e depois de efectivadas as diligências tidas por necessárias, a instrutora do processo, elaborou o Relatório de fls. 69 a 73 dos autos, que aqui damos por reproduzido para todos os efeitos legais, onde concluía, no sentido de, além do mais, ser determinado o encerramento dos escritórios da recorrente "A..., L.da".
3. Após pronúncia das recorrentes, em sede de audiência prévia, elaborado o relatório de fls. 75 a 80 dos autos pela instrutora do processo de averiguações, no qual terminava mantendo o parecer referido no ponto 2 supra, o Conselho Distrital de Évora da Ordem dos Advogados, deliberou, por unanimidade, além do mais, ordenar o encerramento dos escritórios onde funciona a firma "A..., L.da" - cfr. fls. 82 e 83 dos autos.
4. Interposto recurso hierárquico, foi elaborado o Relatório de fls. 17 a 29 dos autos, que aqui damos por reproduzido para todos os efeitos legais, onde a Relatora, concluindo pela existência de procuradoria ilícita, emitia parecer no sentido de ser negado provimento ao recurso, mantendo-se a decisão recorrida.
5. Por acórdão da entidade recorrida, de 7/2/2003, por unanimidade, em concordância com o Parecer, dito em 4, que subscreve na íntegra, foi negado provimento ao recurso, mantendo-se a decisão recorrida - acto/deliberação recorrida.
Nos termos do art.º 712.º do CPC julgam-se ainda provados os seguintes factos:
6. A actividade das Recorridas foi participada criminalmente o que deu origem à instauração de processo judicial que terminou com o despacho de não pronúncia junto aos autos de fls. 40 a 52, que se dá integralmente reproduzido.
7. Dão-se integralmente reproduzidos os ofícios enviados ao Presidente do Conselho Distrital de Évora da Ordem dos Advogados pelos Notários de Mora, Gavião, Ponte de Sôr que se encontram a fls. 42, 58 e 59 e 63 do processo instrutor.
II. O DIREITO.
Resulta do antecedente relato que o Conselho Superior da Ordem dos Advogados, por deliberação de 7/02/2003, manteve a ordem de encerramento do escritório da “A..., L.da”, proferida pelo Conselho Distrital de Évora por esta exercer procuradoria ilegal e nela se praticarem actos próprios dos advogados - designadamente a marcação e preparação dos documentos referentes a escrituras de compra e venda, doação, habilitação de herdeiros e justificação notarial, de apresentação de actos de registo predial, do pagamento da sisa e da elaboração de contratos de promessa – e de tal violar o disposto nos art.ºs 53.º e 56.º do Estatuto da Ordem dos Advogados.
Tal deliberação foi, contudo, impugnada no TAC de Coimbra, com êxito, já que, por sentença de 3/05/2006 (fls. 151 a 159), a mesma foi anulada.
Para assim decidir o Sr. Juiz a quo considerou que as actividades levadas a efeito pelas Recorridas não constituíam procuradoria ilícita nem se traduziam em actos que só os advogados ou solicitadores pudessem praticar. E justificou este julgamento afirmando que
- a requisição e o levantamento de certidões de registo e a marcação de escrituras não eram da competência exclusiva de advogados e solicitadores e, por isso, podiam ser praticados por qualquer pessoa, designadamente pelas Recorridas, tanto mais quanto era certo que estas se dedicavam à actividade de mediação imobiliária.
- Depois, e no tocante à elaboração de contratos promessas de compra venda de imóveis, considerou que se provara apenas que as Recorridas preenchiam “contratos resultantes de minutas, à venda em qualquer papelaria,” e que isso não constituía nenhuma ilegalidade já que “os preenchessem, pelo que a sua prática não constitui qualquer acto que invada a competência dos advogados e/ou solicitadores.”
- Finalmente, e quanto ao pagamento de sisa, considerou que qualquer pessoa podia dirigir-se a uma Repartição de Finanças e pagar esse tributo, pelo que também aqui nada havia de ilegal na actividade das Recorridas.
Daí que tivesse concluído que “quaisquer dos actos imputados às recorrentes podiam por elas ser praticados, sem que, com a sua prática, se invada a esfera de competência atribuída aos advogados, na medida em que não resultou sequer demonstrado que esses actos obrigassem a análise de questões jurídicas com alguma complexidade” e, com essa fundamentação tivesse anulado a deliberação impugnada.
Contra esta decisão se insurge o Conselho Superior da Ordem dos Advogados por entender que de acordo com o que se estabelecia nos art.ºs 53.º e 56.º do EAO, na redacção vigente à data dos factos, o legislador procurou “(i) garantir a integridade do sistema oficial de provimento em profissões de especial interesse público, garantindo-se a seriedade dos serviços que são prestados; (ii) salvaguardar o direito que assiste a qualquer cidadão de poder contar com um corpo profissional devidamente qualificado e habilitado, sujeito a regras éticas e deontológicas e responsável perante a Ordem dos Advogados e (iii) afirmar e defender a garantia da dignidade da Advocacia e lutar contra a concorrência desleal” e que estes objectivos foram violados pelas Recorridas já que estas, apesar de não disporem das necessárias habilitações académicas, praticavam actos próprios de advogados e exerciam procuradoria ilegal ao procederem “à marcação e preparação dos documentos referentes a escrituras de compra e venda; doação; habilitação de herdeiros e justificação notarial; à apresentação de actos de registo predial; ao pagamento de SISA e à elaboração de contratos de promessa.
A questão que temos para resolver é, pois, como se vê, a de saber se a actividade levada a cabo pelas Recorridas era ilegal por se traduzir no exercício de procuradoria ilegal e na prática de actos próprios dos advogados.
1. É pacífico que a Recorrida "A..., L.da", tem por objecto “a prestação de serviços de contabilidade, agência de documentação, projectos de arquitectura e compra e venda de imóveis”.
Como também é inquestionável que a razão determinante do seu encerramento foi o convencimento, primeiro do Conselho Distrital de Évora e depois do Conselho Superior da Ordem dos Advogados de que as Recorridas praticavam actos próprios dos advogados e exerciam a procuradoria ilegal através da elaboração de requerimentos, pedidos de certidão, requisição de registos, marcação e outorga de escrituras, celebração de contratos de promessa de compra e venda, deslocações às Repartições Públicas, Cartórios Notariais, Conservatórias de Registos Comerciais e de Registos Prediais e Repartições de Finanças, sós ou acompanhadas dos seus clientes, para tratar de assuntos que a estes respeitavam, “recebendo honorários e emitindo recibos”. – vd. relatório final que fundamentou a deliberação impugnada, de fls. 17 a 29.
A sentença recorrida, porém, não considerou que as Recorridas praticassem todos aqueles actos pois julgou apenas provado que, de facto, aquelas requeriam e levantavam certidões de registo, marcavam escrituras, preenchiam as minutas de contratos de promessa de compra e venda de imóveis, “à venda em qualquer papelaria”, e procediam ao pagamento da sisa. Mas entendeu que a prática de tais actos não era exclusiva dos advogados ou solicitadores nem constituía o exercício de procuradoria ilegal, porquanto qualquer pessoa os podia praticar, e daí que tivesse considerado que não tinha havido violação do disposto nos art.ºs 53.º e 56.º do EOA.
Será que ao decidir desse modo decidiu bem?
Vejamos.
2. O art.º 53º dos Estatutos da Ordem dos Advogados Aprovados pelo Dec. Lei 84/84, de 16/3., na redacção vigente à data dos factos e, por isso, aqui aplicável, sob a epígrafe Do exercício da advocacia em território nacional”, preceituava o seguinte:
“1 - Só os advogados e advogados estagiários com inscrição em vigor na Ordem dos Advogados podem, em todo o território nacional e perante qualquer jurisdição, instância, autoridade ou entidade pública ou privada, praticar actos próprios da profissão Sublinhados nossos. e, designadamente, exercer o mandato judicial ou funções de consulta jurídica em regime de profissão liberal remunerada.
2. - O exercício da consulta jurídica por licenciados em Direito que sejam funcionários públicos ou que a exerçam em regime de trabalho subordinado não obriga à inscrição na Ordem dos Advogados sempre e quando o destinatário da consulta seja a própria entidade patronal.
3 - Exceptuam-se do disposto no n.º 1 os solicitadores inscritos na respectiva câmara, nos termos e condições constantes do seu estatuto próprio.
4. - ……
5. - …….”
E o art.º 56.º dos mesmos Estatutos, sob o título “Escritório de procuradoria ou de consulta jurídica”, estipulava que:
1 - É proibido o funcionamento de escritório de procuradoria, designadamente judicial, administrativa, fiscal e laboral, e de escritórios que prestem, de forma regular e remunerada, consulta jurídica a terceiros, ainda que, em qualquer dos casos, sob a direcção efectiva de pessoa habilitada a exercer o mandato judicial.
2. - Não se consideram abrangidos pela proibição os gabinetes formados exclusivamente por advogados ou por solicitadores e as sociedades de advogados.
3 - A violação da proibição estabelecida sujeita as pessoas que dirijam o escritório, os advogados ou solicitadores que nele trabalhem e os que facultem conscientemente o respectivo local à pena prevista no n.º 2.º do artigo 400.º do Código Penal e determina o encerramento do escritório pela autoridade policial, a requerimento do respectivo conselho distrital da Ordem dos Advogados.
4 - Da decisão do conselho distrital que determine o encerramento cabe recurso, com efeito suspensivo, para o conselho superior da Ordem dos Advogados. Sublinhados nossos.
5 - Para efeito da aplicação da pena cominada no n.º 2.º do artigo 400.º do Código Penal, o procedimento criminal é instaurado pelo Ministério Público, a requerimento do conselho distrital que houver proferido a decisão.
6 - Não ficam abrangidos pela proibição do n.º 1 os serviços de contencioso e consulta jurídica mantidos pelos sindicatos, associações patronais ou outras associações legalmente constituídas, sem fim lucrativo e de reconhecido interesse público, destinados a facilitar a defesa, mesmo judicial, exclusivamente dos interesses legitimamente associados” Sublinhados nossos..
Deste modo, e nos termos das transcritas disposições, só os advogados e os advogados estagiários com inscrição em vigor na respectiva Ordem podiam praticar actos próprios da respectiva profissão, sendo que também era proibido o funcionamento de (1) escritórios de procuradoria judicial, administrativa, fiscal e laboral, e de (2) escritórios que prestassem, de forma regular e remunerada, consulta jurídica a terceiros.
E, porque assim, a primeira questão a resolver é a de saber o que se deve entender por actos próprios da profissão de advogado e por procuradoria ilegal.
2. 1. A lei, à data em que os factos ocorreram, não definia o que se devia considerar um acto próprio da profissão de advogado se bem que o transcrito art.º 53.º indicasse que nesse conceito cabia o exercício do “mandato judicial ou funções de consulta jurídica em regime de profissão liberal remunerada” e os art.ºs 76/1 e 78/a) do mesmo EOA declarassem que o advogado era “um servidor da justiça e do direito”e devia “pugnar pela boa aplicação das leis”, o que significa que acto próprio dos advogados é, desde logo, o que se relaciona com a representação e consulta jurídica devidamente habilitada e qualificada e que, por isso, só eles podem praticar.
Todavia, a Lei 49/2004, de 24/08, veio definir esse conceito especificando que, sem prejuízo do disposto nas leis de processo, eram actos próprios dos advogados e dos solicitadores os seguintes:
a) O exercício do mandato forense
b) A consulta jurídica
c) A elaboração de contratos e a prática dos actos preparatórios tendentes à constituição, alteração ou extinção de negócios jurídicos, designadamente os praticados junto de conservatórias e cartórios notariais.
d) A negociação tendente à cobrança de créditos
e) O exercício do mandato no âmbito de reclamação ou impugnação de actos administrativos ou tributários
f) Todos aqueles que resultem do exercício do direito dos cidadãos a fazer-se acompanhar por advogado perante qualquer autoridade.
Desde que os mesmos fossem “exercidos no interesse de terceiros e no âmbito de actividade profissional, sem prejuízo das competências atribuídas às demais profissões ou actividades cujo acesso é regulado por lei.” – vd. seu art.º 1.º, nomeadamente os seus n.ºs 5 a 9, com sublinhado nosso.
Ora, muito embora esta definição legal do que se deve entender por actos próprios dos advogados seja posterior à prática dos factos que determinaram a deliberação impugnada, certo é que a mesma deve ser aqui adoptada, uma vez que todos aqueles actos já então se deviam ter como actos integradores da profissão de advogado e já então constituíam o núcleo da sua actividade.
E, porque assim, a actividade das Recorridas seria ilegal e, por conseguinte, seria motivo do encerramento do escritório da A... se elas tivessem, de forma remunerada e no interesse de terceiros, exercido o mandato jurídico, prestado consultas jurídicas, elaborado contratos ou praticado actos destinados à constituição, alteração ou extinção de negócios jurídicos, pois que qualquer destes actos são actos exclusivos dos advogados ou solicitadores e, por isso, só eles os podiam praticar.
2. 2. Por outro lado, a procuradoria é, como se lê no Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, o cargo de procurador e este é o “indivíduo que possui procuração para resolver ou administrar negócios de outrem; administrador, mandatário; aquele que exerce o papel de intermediário entre as partes interessadas no fecho de um contrato, um negócio; mediador, intermediário….” e, se assim é, poderá afirmar-se que a procuradoria ilegal consiste no exercício do mandato ou da mediação em violação do disposto nas leis estatutárias das profissões em que o mandato ou a mediação constitui o núcleo central da sua actividade.
Se assim é, como é, ter-se-á de concluir, que por princípio, as Recorridas não podiam requerer e levantar certidões de registo nem preparar e marcar escrituras para terceiros porque tal se traduzia na prática de actos atribuídos aos advogados ou solicitadores e, portanto, no exercício de procuradoria ilegal, só assim não sendo se ao fazê-lo estivessem a agir na sua qualidade de mediadoras imobiliárias e fosse nesta condição que assumissem a prática de tais actos.
E isto porque a mediação imobiliária se traduz na procura de “interessado na compra ou na venda de bens imóveis ou na constituição de quaisquer direitos reais sobre os mesmos, bem como para o seu arrendamento e trespasse, desenvolvendo para o efeito acções de promoção e recolha de informações sobre os negócios pretendidos e sobre as características dos respectivos imóveis”, sendo que no exercício dessa actividade podem, ainda, ser prestados “serviços relativos à obtenção de documentação conducente à concretização dos negócios visados e que não estejam legalmente atribuídos em exclusivo a outras profissões N.ºs 1 e 2 do art.º 3.º do DL 77/99, de 16/03, diploma que regulamenta a actividade da mediação imobiliária, com nosso sublinhado. Este DL foi, entretanto, revogado pelo DL 211/04, de 20/08, mas o conteúdo dos transcritos n.ºs 1 e 2 do DL 77/99 foi mantido quase integralmente no novo diploma..
Seria, assim, ilegal e, por isso, motivo de encerramento do escritório da A... que neste se exercesse procuradoria judicial, administrativa, fiscal ou laboral ou que nele se prestasse, de forma regular e remunerada, consulta jurídica a terceiros pois que tal constituía violação do disposto no transcrito art.º 56.º do EOA. A..., L.da" tinha por objecto social, como já o dissemos, entre outros, a de agência de documentação e de compra e venda de imóveis, o que quer dizer que dentro das suas atribuições estava a obtenção e tratamento de qualquer tipo de documentação relacionada com a sua actividade de mediação imobiliária, isto é, com a actividade conducente à concretização dos negócios de compra e venda de imóveis.
E, se assim era, nenhuma ilegalidade se cometia quando as Recorridas tratavam da documentação relativa aos negócios de compra e venda de imóveis que angariavam, desde que ao fazê-lo não praticassem actos exclusivos de outras profissões, designadamente da profissão de advogado ou solicitador. O que significa que as Recorridas não mereciam qualquer censura quando tratavam da obtenção (requisição e levantamento) de certidões de registo relacionadas com a transmissão de imóveis que elas tinham agenciado ou quando marcavam as respectivas escrituras e os registos e pagavam a correspondente sisa, já que tratava da prática de actos conducentes à concretização dos seus negócios. E isto porque tais actos eram integradores do objecto da sua actividade mediadora e, portanto, actos que as Recorridas podiam praticar livremente sem que essa prática envolvesse qualquer ilegalidade.
3. 1. Questão diferente é, porém, a de saber se cabia dentro da mediação imobiliária a celebração de contratos promessa de compra e venda ou de contratos de arrendamento, mesmo que tal passasse apenas pelo preenchimento dos espaços em branco de contratos já minutados e adquiridos numa papelaria e que os mesmos respeitassem a imóveis cuja transmissão tinha sido angariada pelas Recorridas.
E a resposta a esta interrogação só pode ser negativa.
Com efeito, parece-nos evidente que a celebração de contratos, fossem eles de promessa de compra e venda fossem eles de arrendamento, envolvia, por um lado, a escolha do contrato já minutado que cabia à situação concreta – e tal podia, por si só, acarretar sérias dificuldades sabendo-se, como se sabe, que na transmissão e arrendamento de imóveis são muitas as variáveis – e, por outro, a sua análise jurídica, já que esta era indispensável para se saber se o mesmo estava correctamente elaborado e se defendia convenientemente os interesses do cliente. O que significa que a celebração desses contratos pressupunha uma prévia análise jurídica dos seus conteúdos e o aconselhamento de que a mesma podia ser feita por ser isenta de perigos. Ora, esta função de análise e de aconselhamento jurídico é uma função própria e exclusiva do exercício da profissão de advogado ou de solicitador, pelo que só eles podiam realizá-la.
E não se argumente - como o faz o Sr. Juiz a quo com a concordância do Ilustre Magistrado do Ministério Público deste Tribunal - com o facto de qualquer pessoa poder preencher os espaços vazios de um contrato-tipo já minutado e de, por isso, os actos praticados pelas Recorridas não poderem ser considerados como exclusivos da profissão de advogado, porquanto se é verdade que tal situação pode ocorrer certo é que quando tal acontece a pessoa em causa age sozinha e por sua conta e risco. Ora, situação diferente é aquela em que o preenchimento é feito ou é aconselhado por terceiros – designadamente mediadores imobiliários - pois, neste caso, os subscritores do contrato estão convencidos de que a intervenção desses terceiros lhes garante a correcta realização de um importante acto jurídico e o acautelamento dos seus interesses.
E se assim é, como é, importa concluir que quando a empresa de mediação imobiliária (ou os seus representantes ou funcionários) escolhe o tipo de contrato a celebrar e aconselha essa celebração ao cliente está a prestar aconselhamento jurídico, isto é, a agir na qualidade de consultora jurídica, ou seja, e dito de outro modo, está a praticar actos legalmente atribuídos em exclusivo à profissão de advogado.
E importa concluir que, ao agir desse modo, tais pessoas estão a agir de forma manifestamente ilegal.
4. No caso sub judice encontra-se provado que as Recorridas marcavam escrituras de compra e venda de imóveis, procediam ao registo de prédios e procediam ao pagamento de sisa.
Todavia, não se provou que esses actos respeitassem a prédios cuja transmissão as mesmas não tinham intermediado pelo que, nesta matéria, ficou por demonstrar que as Recorridas tivessem sido exercido a procuradoria ilegal.
No entanto, já ficou provado que as mesmas preencheram pelo menos alguns dos contratos de promessa das compras e vendas em que intervieram na qualidade de mediadoras imobiliárias e que requisitaram pelo menos três escrituras de justificação notarial no Cartório Notarial de Mora (vd. fls. 42 do instrutor) e duas escrituras de justificação notarial no Cartório Notarial de Gavião (vd. fls. 58/59) e que a Recorrida ... marcou a escritura de uma constituição da propriedade horizontal e elaborou os contratos de arrendamento das fracções desse mesmo prédio (vd. fls. 47).
Ora, como já se disse, o preenchimento desses contratos, ainda que adquiridos na papelaria já parcialmente minutados, pressupõe um juízo jurídico sobre a adequação do mesmo à situação concreta e que tal significa a invasão de uma actividade legalmente atribuída a outras profissões. Ou seja, o preenchimento desses contratos extravasa, claramente, a actividade de mediação imobiliária traduzindo-se na prática de actos próprios dos advogados.
E o mesmo se diga com a sua intervenção nas escrituras de justificação notarial, na constituição da propriedade horizontal, já que estes são também actos exclusivos dos advogados.
Todavia, essa prática de actos próprios dos advogados por pessoas destituídas dessa qualidade não constitui, sempre e em qualquer caso, o exercício de procuradoria ilegal pois que, em certas circunstâncias, a mesma deve, antes, ser assimilada à consulta jurídica na medida em que se traduz no aconselhamento e na indicação das decisões jurídicas a tomar.
Sendo assim, e sendo que só constitui fundamento do encerramento do escritório o exercício da procuradoria ilegal e a consulta jurídica prestada de forma regular – vd. n.º 1 do transcrito art.º 56.º do EOA – importa saber se as circunstâncias em que as Recorridas agiram podiam determinar que os seus actos fossem qualificados como actos de procuradoria ilegal ou actos de consulta jurídica prestada de forma regular, pois que só assim se poderá saber se os mesmos podiam fundamentar o encerramento do escritório da “A..., L.da".
Ora, tendo em conta que os actos ora em causa – celebração de contratos e a intervenção em actos de justificação notarial e constituição de propriedade horizontal – nas circunstâncias em que foram praticados pressupunham o aconselhamento jurídico como seu elemento fundamental entendemos que os mesmos devem ser assimilados a actos de consulta jurídica e não a actos de procuradoria. E, porque assim, só poderiam fundamentar o encerramento do escritório da A... se tivesse ficado provado que as Recorridas tinham praticado, regular e continuadamente, tais actos.
Ora, essa prova não se fez.
Com efeito, não se pode concluir que as Recorridas praticavam regularmente actos de consulta jurídica e, portanto, actos proibidos pelo disposto no art.º 56.º do EOA só porque minutaram alguns contratos promessa de compra e venda e de arrendamento, intervieram em 5 escrituras de justificação notarial e constituíram a propriedade horizontal de um prédio.
É certo que boa parte das testemunhas que depuseram no instrutor afirmaram que as Recorridas eram vistas com muita frequência nas Repartições Públicas (Finanças, Conservatórias e Notários) e que o Sr. Notário do Cartório de Ponte de Sôr referiu - no ofício junto a fls. 63/64 daquele processo - que a Recorrida ... “segundo consta passou a exercer a sua actividade predominantemente no concelho de Mora ou Gavião, sendo ali que marca a maioria dos actos notariais, que são sobretudo os actos que são suporte de processos registrais, tais como justificações, habilitações, procurações ou vendas” e que tal pode fazer presumir que as aquelas praticavam com regularidade a procuradoria ilegal.
Mas a verdade é que essa presunção não basta para se poder concluir, com a necessária segurança, que as Recorridas praticavam procuradoria ilegal e que, por isso, a deliberação impugnada não merecia qualquer censura.
Aliás as Recorridas aceitam que, efectivamente, se dirigiam com frequência às Repartições Públicas, recebiam clientes, elaboravam requerimentos, pedidos de certidões, requisições de registo, marcação e outorga de escrituras mas justificam esses actos afirmando que os mesmos cabiam no objecto da sua actividade profissional e que, por isso, ao praticá-los não estavam a infringir a lei.
Acresce que num caso como o dos autos, atento o melindre da situação e as graves consequências decorrentes, uma deliberação da natureza da ora impugnada só podia suportar-se em prova qualitativa e quantitativa inquestionável. E o certo é que a mesma não existe.
E, se assim é, como é, não estavam reunidos os pressupostos justificativos da deliberação impugnada.
Termos em que acordam os Juízes que compõem este Tribunal em negar provimento ao recurso confirmando-se, assim, ainda que por razões diferentes, a decisão recorrida.
Sem custas.
Lisboa, 19 de Abril de 2007. Costa Reis (relator) – Rui BotelhoAzevedo Moreira.