Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:01250/17
Data do Acordão:11/30/2017
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:SÃO PEDRO
Descritores:RECURSO DE REVISTA EXCEPCIONAL
RESPONSABILIDADE CONTRATUAL
PRESUNÇÃO DE CULPA
Sumário:Deve admitir-se revista excepcional de decisão do TCA que, perante a simples mora e sem discutir a existência da prestação respectiva, julgou verificados os pressupostos da responsabilidade contratual.
Nº Convencional:JSTA000P22639
Nº do Documento:SA12017113001250
Data de Entrada:11/10/2017
Recorrente:MINISTÉRIO PÚBLICO
Recorrido 1:A...
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Formação de Apreciação Preliminar – art. 150º, 1, do CPTA.

Acordam no Supremo Tribunal Administrativo (art. 150º, 1 do CPTA)

1. Relatório

1.1. O ESTADO PORTUGUÊS – representado pelo MP – recorreu, nos termos do art. 150º, 1, do CPTA, para este Supremo Tribunal Administrativo do acórdão do TCA Sul proferido, em 20-4-2017 – na sequência da arguição de nulidades do acórdão de 24-11-2016 - que confirmou a sentença proferida pelo TAF de Sintra, que por seu turno julgou procedente a ACÇÃO ADMINISTRATIVA COMUM intentada por A……………… e o condenou a pagar-lhe a quantia de € 67.393,98 euros, acrescida de juros moratórios vencidos e vincendos até efectivo e integral pagamento.

1.2. Justifica a admissão da revista por entender que o acórdão recorrido enferma de erro manifesto fazendo alusão a matéria de facto que não diz respeito ao pedido ou causa de pedir, e porque a questão de saber em que momento um contrato ou uma proposta de adesão se torna eficaz, é susceptível de colocar-se em outros processos.

1.3. Não foram produzidas contra-alegações.

2. Matéria de facto

Os factos dados como provados são os constantes do acórdão recorrido para onde se remete.

3. Matéria de Direito

3.1. O artigo 150.º, n.º 1, do CPTA prevê que das decisões proferidas em 2ª instância pelo Tribunal Central Administrativo possa haver, excepcionalmente, revista para o Supremo Tribunal Administrativo «quando esteja em causa a apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental» ou «quando a admissão do recurso seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito». Como decorre do próprio texto legal e a jurisprudência deste STA, tem repetidamente sublinhado trata-se de um recurso excepcional, como de resto o legislador cuidou de sublinhar na Exposição de Motivos das Propostas de Lei nºs 92/VIII e 93/VIII, considerando-o como uma «válvula de segurança do sistema», que só deve ter lugar, naqueles precisos termos.

3.2. No presente processo a autora pediu a condenação do Estado a pagar-lhe determinadas quantias na sequência de contratos que celebrou com a ADSE. A primeira instância condenou o Estado a pagar à autora a quantia de €67.393,98 euros. O MP recorreu para o TCA Sul, considerando que não era devido o pagamento de 909 fichas referentes a dias não contemplados no acordo, num total de 34.263,60 euros. E quanto ao restante o MP entendeu que a autora não tinha provado ter sido ela a prestar os serviços facturados. Terminava pedindo a absolvição do Estado por ter sido a Autora quem incumpriu os acordos celebrados com a ADSE e não o réu, o Estado Português.

3.3. O TCA Sul no acórdão de 24-11-2016 perante os factos provados entendeu o seguinte:

Releva sobretudo o facto provado sob z) que explicita as 3 ilegalidades contratuais (reportadas ao contrato celebrado ao abrigo do Decreto-lei n.º 118/83) invocadas pelo réu contra a Autora:

-serviços em dias não previstos no acordo/contrato;

-errado processamento das destartarizações, em violação do exigido no contrato;

-confissão de que certos serviços foram prestados por outros médicos.

A A teria de provar que tais alegações do réu estão incorrectas.

E assim é, como decorre do artigo 799º do Código Civil (incumbe ao devedor provar que a falta de cumprimento ou cumprimento defeituoso da obrigação não procede de culpa sua) e, depois, na acção, do artigo 342º, 1 do mesmo Código.

Portanto, exceptuando os valores referentes à questão dos dias e horas (que como vimos era cláusula contratual não conhecida da autora e, portanto, fora do contrato) num total de 47.418,01 euros, o demais é imputável à ilicitude contratual e à culpa da autora.

Pelo que este montante sobrante não pode ser pago pelo réu à autora, já que nessa parte a autora incumpriu o acordado.

Pelo que a autora/recorrida não tem razão quanto aos montantes relacionados com o errado processamento das destartarizações, em violação do exigido no contrato, e com a confissão de que certos serviços foram prestados por outros médicos”.

O MP recorreu deste acórdão imputando-lhe várias nulidades.

Por acórdão de 20-4-2017 o TCA Sul reconheceu ter incorrido em lapso de escrita e em erro aritmético referente à soma das facturas referidas nos artigos 4 a 10 da PI. De seguida rectificou o lapso manifesto e extraiu as consequências devidas, modificando o texto do acórdão recorrido, nos termos seguintes:

“(…)

Releva sobretudo o facto provado sob x), referente aos valores referentes à questão dos dias e horas (que como vimos supra em 1, a propósito do quesito n.º 1, era cláusula contratual não conhecida da autora e, portanto, fora do contrato), num total de 34.263,60 euros.

O restante das facturas abordadas nos Factos Provados I a X (queremos mesmo dizer “Xis”, X) não vem discutido neste recurso, a não ser por referência (i) aos inverificados erros de julgamento de facto pelo TAC e (ii) ao ónus da prova.

Assim, tendo presentes as respostas dadas às duas questões de facto anteriores e o decorrente do art. 224º, 1 do CC quanto a uma matéria (os dias e horas concretos da prestação de serviço) proposta pela pessoa aderente ao contrato (e não matéria proposta pela ADSE à pessoa aderente), temos “apenas” que: 1º - A ADSE suspendeu até ao presente o pagamento das facturas referidas nos Factos i) a x), já vencidas; entrou em mora, portanto (cf. Art. 804º do C. Civil); 2º – há assim ilicitude objectiva consistente no não pagamento das facturas pela ADSE no prazo acordado entre as partes (art. 798º do C. Civil) o que representa um dano para a autora; tratam-se de pressupostos da obrigação de indemnizar (nascida da mora) provados pela credora aqui autora; a autora provou, pois o facto ilícito (a mora) da autoria da ADSE, o dano por si sofrido até ao presente (cf. Art. 806º/1 do CC) e o nexo causal respectivo; 3º - não existe nos factos provados matéria referente a excepção de não cumprimento do contrato (cf. Artigo 428º do Código Civil), pelo que não se demonstrou a ilicitude nesta mora da ADSE; 4º -nestes termos presume-se a culpa da ADSE (cf. artigos 798º e 799º/1 do Código Civil – cfr. Antunes Varela, Das Obrigações … II, 5ª Ed. N.º 296 a 299; Galvão Telles, D. das Obrigações, 6ª Ed. N.º 119.

Foi o que, de outro modo, se concluiu na 1ª instância.

Finalmente, cabe lembrar a inutilidade dos factos constantes das al. z), aa), cc) dd), ee) e ff).

III. Decisão

Por tudo quanto vem de ser exposto e de harmonia com os poderes conferidos no art. 202º da Constituição, acordam os Juízes deste Tribunal Central Administrativo Sul em negar provimento ao recurso, julgando-o improcedente.

(…)”.

Perante o novo acórdão o MP apresentou alegações complementares, onde arguiu novas nulidades.

Veio a ser proferido novo acórdão pelo TCA Sul, em 21-9-2017, considerando que se não verificavam tais nulidades.

Como decorre do exposto o TCA Sul entendeu que a mora configura – só por si – a ilicitude e, como estava perante a responsabilidade contratual onde se presume a culpa, entendeu verificados os pressupostos da obrigação de indemnizar.

A nosso ver justifica-se a admissão da revista com vista a uma melhor interpretação e aplicação do direito.

Com efeito, o entendimento de que basta a mora do devedor para se dar por assente o incumprimento da prestação não está suficientemente fundamentado no acórdão recorrido.

No presente caso o Estado entende que as quantias pretendidas pela autora não eram devidas, por não ter havido cumprimento do acordo com a ADSE. Sustenta o Estado que foi a autora quem não cumpriu o acordo.

Ora, sem essa questão ser apreciada, é muito discutível considerar verificados todos os pressupostos da responsabilidade civil (contratual).

Desde logo, porque a presunção de culpa a que alude o art. 799º, 1, do CC pressupõe, como decorre do texto legal que “tenha havido incumprimento ou cumprimento defeituoso”. Como só existe incumprimento de uma prestação se a mesma for devida, a alegação do Estado de que não tinha o dever de prestar (por entender que a autora não cumpriu o acordado com a ADSE) não pode ser afastada com a mera constatação da mora. Aliás não é sequer lógico dar como assente a mora, sem antes dar como assente a existência e exigibilidade da prestação…

4. Decisão

Face ao exposto admite-se a revista.

Lisboa, 30 de Novembro de 2017. – São Pedro (relator) – Costa Reis – Madeira dos Santos.