Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:01331/16
Data do Acordão:01/31/2018
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:ISABEL MARQUES DA SILVA
Descritores:IRS
BOLSA DE FORMAÇÃO
Sumário:I - Afigura-se duvidoso, apesar da designação que o legislador lhe atribuiu, que a bolsa adicional paga aos médicos internos em regime de vaga preferencial deva ser considerada como uma prestação relacionada exclusivamente com acções de formação profissional dos trabalhadores, pois sendo embora verdade a conexão desta com a formação especializada dos médicos que a recebem, o seu propósito confesso é o de incentivar a fidelização do médico interno no serviço ou hospital onde se verificou uma carência de profissionais, compensando-os pela obrigação de permanência naquele serviço após a conclusão do internato médico.
II - Não tendo sido decididas pela sentença recorrida as questões da natureza remuneratória ou meramente compensatória da prestação auferida e bem assim da alegada “actuação da administração violadora do princípio da boa-fé” relativamente às “bolsas de formação” pagas em 2010 e 2011, impõe-se a baixa dos autos ao tribunal “a quo” para que sobre tais questões se pronuncie.
Nº Convencional:JSTA00070521
Nº do Documento:SA22018013101331
Data de Entrada:11/28/2016
Recorrente:FAZENDA PÚBLICA
Recorrido 1:A...
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:REC JURISDICIONAL
Objecto:SENT TAF LOULÉ
Decisão:PROVIDO
Área Temática 1:DIR FISC - IRS
Legislação Nacional:CIRS ART2 N8 C.
DL 203/2004 ART2 N1 ART12-A.
DL 45/2009.
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:

- Relatório -

1 – A Fazenda Pública recorre para este Supremo Tribunal da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Loulé, de 16 de Junho de 2016, que julgou procedente a impugnação judicial deduzida por A…………, com os sinais dos autos, contra a liquidação de IRS n.º 2013 4000070787 e respectivos juros compensatórios relativos ao ano de 2011, no valor total de € 3.625,28, apresentando para tal as seguintes conclusões:

1) A disposição da al. c) do nº 8 do art. 2 CIRS não é idónea para dar a solução jurisdicional do caso em litígio.

2) Pois, para qualificar juridicamente a realidade em causa importa rectificar o sentido verbal da expressão “bolsa de formação” na conformidade e na medida do sentido lógico do artigo 12-A aditado ao DL nº 203/2004.

3) Ora, a circunstância que promoveu o surgir da norma foi obviar às carências de médicos em determinados serviços ou estabelecimentos, fixando-se as regras necessárias para que as vagas preferenciais cumprissem a sua função.

4) O que significa que são um meio para conseguir aquele fim, sem nexo directo com a formação médica ou relacionadas exclusivamente com ela.

5) Na verdade, constituem uma forma de retribuição do trabalho prestado numa vaga preferencial ao abrigo do contrato de trabalho em funções públicas.

6) Facto tributário na enumeração casuística adoptada pelo art. 2 CIRS.

Assim, de harmonia com o exposto, e max. ex. supl., deve ser concedido provimento ao presente recurso e revogada a sentença recorrida, para se fazer JUSTIÇA.

2 – Contra-alegou o recorrido, concluindo nos seguintes termos:

A) As bolsas de formação recebidas pelo Recorrido durante o ano de 2011, e liquidadas pela Administração Regional de Saúde do Algarve, IP não se reconduzem a rendimentos do trabalho dependente, sujeitos a IRS nos termos do artigo 2º CIRS.

B) As bolsas de formação não constituem remuneração pela prestação de trabalho, nem tão pouco constituem remuneração acessória daquela, nos termos do artigo 2.º n.º 3 al. b) do CIRS.

C) Não sendo subsumíveis à previsão do artigo 2º CIRS nem se alegando qualquer outra norma que preveja a sua sujeição a imposto, as bolsas de formação não devem ser sujeitas a IRS, pelo que a sua consideração para apuramento da matéria coletável em sede de IRS é ilegal.

D) As bolsas de formação encontram-se previstas no artigo 12ºA do Decreto-Lei n.º 203/2004, de 18 de Agosto (Define o regime jurídico da formação médica, após a licenciatura em Medicina, com vista à especialização, e estabelece os princípios gerais a que deve obedecer o respectivo processo), aditado pelo Decreto-Lei nº 45/2009.

E) Neste diploma prevê-se a atribuição de uma bolsa de formação aos médicos internos que preencham uma vaga preferencial, bem como a obrigatoriedade daqueles, após o internato, ficarem a realizar trabalho para o estabelecimento ou serviço onde se verificou a necessidade que deu lugar à vaga preferencial, por um período não inferior ao do respectivo programa de formação médica especializada, incluindo repetições. Em caso de incumprimento desta obrigação, o interno terá de devolver a totalidade ou parte do montante da bolsa recebida.

F) De acordo com o regime estabelecido no referido artigo 12ºA, as vagas preferenciais são destinadas a suprir as necessidades de serviços e estabelecimentos de saúde carenciados de médicos em determinadas especialidades.

G) O médico interno tanto poderá receber formação no serviço ou estabelecimento de saúde onde será colocado em vaga preferencial como em outro serviço ou estabelecimento de saúde, que tenha capacidade formativa.

H) Nesta última situação, a mais comum, o médico interno recebe formação e presta trabalho num determinado serviço ou estabelecimento de saúde com capacidade formativa. Este serviço ou estabelecimento de saúde suporta a remuneração devida pelo trabalho prestado.

I) Após a conclusão com sucesso do internato, o médico será colocado no serviço ou estabelecimento com vaga preferencial, onde passará a prestar trabalho durante um período equivalente ao internato.

J) Durante o período de formação, mas não após a conclusão do internato, o serviço ou estabelecimento de saúde com a vaga preferencial suportará o pagamento da bolsa de formação.

K) Assim, na economia do artigo 12ºA, a bolsa de formação pode caracterizar-se do seguinte modo:

i. Corresponde a um incentivo (como o apelida o diploma) para que os médicos internos concorram a vagas em estabelecimentos ou serviços carenciados de determinadas especialidades.

ii. Tal incentivo tem como contraprestação a obrigação de permanência e a pressuposta conclusão do internato.

iii. O sinalagma estabelece-se entre a prestação pecuniária (a bolsa de formação) e a permanência num determinado estabelecimento ou serviço de saúde por um certo período de tempo.

iv. A bolsa de formação, como o seu nome indica, é percebida durante o período de formação profissional obrigatória, a que corresponde o internato médico.

v. A bolsa de formação não tem correlação com a prestação de trabalho.

vi. O pagamento da bolsa de formação durante o internato e não após a conclusão deste, compreende-se na lógica de incentivo, motivando e vinculando os médicos internos a um benefício presente, sem que se instale a dúvida sobre a manutenção desse mesmo incentivo no futuro.

L) Deve assim ser prevenida qualquer confusão entre a prestação de trabalho e a bolsa de formação.

M) O interno, ao prestar trabalho, é remunerado pela entidade ou entidades para a qual presta trabalho e nos termos do contrato que tenha para o efeito celebrado.

N) Já a bolsa de formação é paga, durante o internato, pela entidade onde o interno irá ocupar a vaga preferencial após a conclusão com aproveitamento do internato.

O) É entendimento do Recorrido que a bolsa de formação não é sujeita a imposto, atenta a sua natureza compensatória pela obrigação de permanência, não tendo natureza remuneratória.

P) Esta dicotomia tem extrema importância em sede de IRS, porquanto o IRS incide sobre a retribuição do trabalho e não sobre quantias que se destinem a compensar o trabalhador por encargos ou sacrifícios específicos, independentes da prestação de trabalho.

Q) Na verdade, a possibilidade de ter de ser devolvida posteriormente interrompe a relação sinalagmática entre a prestação de trabalho e a prestação pecuniária, afastando a bolsa de formação de um puro conceito de remuneração.

R) Trata-se pois de uma compensação da restrição do exercício da liberdade de trabalho.

S) Este traço particular do regime desta prestação pecuniária destaca-a e separa-a do conceito de remuneração, o qual, atento o disposto no artigo 11.º da Lei Geral Tributária, se deve reconduzir ao sentido de contraprestação pela prestação de trabalho.

T) Não deve pois ser sujeito a imposto a bolsa de formação, nem, em consequência, ser retida qualquer importância aquando do seu pagamento.

U) Pelo que a liquidação efectuada pela AT é ilegal, nos termos do artigo 99.º alínea c) do CPPT.

V) A Recorrente desconsidera por completo a especificidade do regime da bolsa de formação, considerando-a, numa interpretação que não corresponde sequer à letra e espírito do artigo 2.º CIRS, uma remuneração acessória.

W) A remuneração dita principal e a ora qualificada remuneração acessória são muitas vezes processadas por entidades diversas.

X) Verifica-se assim uma total e inequívoca autonomia.

Y) Na verdade, tal bolsa de formação será sempre devida mesmo que o médico interno não prestasse trabalho, já que a mesma se destina a compensar a obrigatoriedade de permanência em vaga preferencial após a conclusão do internato.

Z) Também não autoriza a conclusão vazada pela Recorrente nas suas alegações de recurso uma correcta interpretação do artigo 2.º, n.º 2 e n.º 3 al. b) do CIRS.

AA) O artigo 2º do CIRS deve ser interpretado à luz do artigo 11º LGT e dos demais princípios estruturantes do direito fiscal, sendo permitido tributar apenas o que couber numa interpretação condizente com tais regras.

BB) Desde logo importa descartar os nº1 e 2 do artigo 2º, porquanto tais nºs pressupõem uma remuneração auferida pela prestação de trabalho, o que, conforme alegado supra, não sucede com a bolsa de formação, a qual é liquidada sem que tenha como contrapartida a prestação de trabalho.

CC) Tal resulta claro das alíneas do nº 1, sendo o n.º 2 complementar do n.º 1, esclarecendo que a tributação opera independentemente da forma e natureza do pagamento. Apenas é essencial o sinalagma que se estabelece entre a remuneração e a prestação de trabalho, o que permite distinguir este rendimento das restantes categorias constantes do CIRS.

DD) No nº 3, o CIRS procede a um alargamento do conceito de remuneração de trabalho dependente constante do n.º 1, o que desde logo impede a sua invocação conjunta, como resulta da sentença recorrida.

EE) Prevê a alínea b) do n.º 3 que se consideram rendimentos de trabalho dependente “As remunerações acessórias, nelas se compreendendo todos os direitos, benefícios ou regalias não incluídos na remuneração principal que sejam auferidos devido à prestação de trabalho ou em conexão com esta e constituam para o respectivo beneficiário uma vantagem económica, elencando de seguida um rol não taxativo de situações.

FF) Surgem desta norma dois requisitos distintos: 1) relação ou conexão com a remuneração principal e 2) natureza de vantagem económica.

GG) Analisando o primeiro requisito, a bolsa de formação não é auferida devido à prestação de trabalho, nem tem conexão com esta.

HH) Confrontando os factos constantes dos autos com o disposto na alínea b) do nº 3 e com o disposto no artigo 12º A do Decreto-Lei nº 203/2004, logo se conclui que a bolsa de formação é auferida com total autonomia da remuneração devida pela prestação de trabalho e não pressupõe sequer a existência de qualquer prestação principal.

II) Tanto assim é que a remuneração principal e a bolsa de formação são na maioria dos casos devidas e liquidadas por entidades diversas e sem que a entidade que processa a bolsa de formação exija ou pressuponha a existência de uma remuneração principal.

JJ) Nesta sede, o que se encontra disposto no nº 8 do artigo 12-A é irrelevante, já que se limita a afirmar a autonomia entre a bolsa de formação e a remuneração auferida pelo médico interno pela prestação de trabalho.

KK) Desde que cumpra as obrigações consignadas no n10 do mesmo artigo, o médico interno tem direito a auferir a bolsa de formação, sem qualquer dependência da prestação de trabalho.

LL) Assim, não se pode considerar preenchido o primeiro requisito da alínea b) do n.º 3 do artigo 2.º CIRS.

MM) Não obstante tal apuramento ser desnecessário, em face do não preenchimento do primeiro requisito, também o segundo requisito não se encontra preenchido.

NN) Conforme analisado supra, a bolsa de formação não se destina a conferir ao médico interno uma vantagem económica, que acresça à sua remuneração, mas sim uma compensação pela obrigação de permanência, o que constitui uma limitação à liberdade do trabalho do médico interno.

OO) Nessa perceptiva, a bolsas de formação não se distinguem de outras compensações não sujeitas a imposto, pelo que a liquidação impugnada é ilegal.

PELO EXPOSTO,

não deverá ser dado provimento ao recurso apresentado pela Fazenda Pública.

Assim se fará a costumada Justiça.

3 - O Excelentíssimo Procurador-Geral adjunto junto deste Tribunal emitiu o douto parecer de fls. 141/142 dos autos, concluindo no sentido do não provimento do recurso porquanto ainda que seja de admitir que as retribuições auferidas ao abrigo do art. 12.º-A aditado ao Dec.-Lei n.º 203/2004, pelo qual foi aprovado o regime de internato dos médicos, não constituam propriamente uma quantia devida pela formação, mas antes uma quantia paga pelo preenchimento de vagas preferenciais que o candidato, uma vez admitido, se compromete a vir a preencher, não resulta preenchido qualquer dos ditos tipos funcionais previstos no dito artigo 2.º.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.


- Fundamentação -


4 – Questão a decidir

É a de saber se a sentença recorrida incorreu em erro de julgamento ao ter julgado que o valor de € 9.000 pago ao Recorrido em 2011 foi recebido no âmbito da acção de formação do médico interno, não estando sujeito a tributação por constituir uma bolsa de formação, excepcionada pelo art.º 2º nº 8 al. d) do CIRS, na redacção aplicável à altura.

5 – É do seguinte teor o probatório fixado na sentença recorrida:

III – 1 – Factualidade provada:

A) Desde 01/01/2011 que o Impugnante exerce funções no Centro de saúde de ……., na Unidade de Saúde Familiar ……., mediante “contrato de trabalho em funções públicas a termo resolutivo incerto”, como interno do Internato Médico na Especialidade de Medicina Geral e Familiar (cfr. Fls. 13 a 16 dos autos);

B) Em 13/01/2012 foi emitida “nota de rendimentos devidos e de imposto retido” pela Administração Regional de Saúde do Algarve, I.P., onde consta como “rendimentos sujeitos a retenção: €24.754,66” e “total do imposto retido: €4.081” (cfr. fls. 19 dos autos);

C) O Impugnante apresentou, em 20/04/2012, declaração Mod. 3 referente a IRS do exercício de 2011 (cfr. fls. 17 e 18 dos autos);

D) Entre Janeiro e Dezembro de 2011, a Administração Regional de Saúde do Algarve, I. P. emitiu recibos de vencimento ao Impugnante, onde consta: “bolsa de formação: € 750” (cfr. fls. 19 verso a 25 dos autos);

E) Em 21/02/2013 a Direção de Finanças de Faro enviou à Impugnante, ofício n.º 3240 a solicitar “a entrega de uma declaração de substituição de IRS” (cfr. fls. 25 verso dos autos);

F) Em Março de 2013 o Impugnante recebeu a demonstração de liquidação de IRS de 2011 e demonstração de liquidação de juros e de Acerto de Contas (cfr. fls. 28 verso a 31 dos autos);

G) O Impugnante efetuou, em 31/05/2013, o pagamento do valor de EUR 3.696,87 (cfr. fls. 31 verso dos autos);

H) Em 22/04/2013, o Impugnante apresentou reclamação graciosa da liquidação de juros compensatórios, que veio a ser indeferida por decisão proferida pelo Chefe do Serviço de Finanças de Faro, em 21/06/2013 (cfr. fls. 2 e 36 do processo de reclamação graciosa).

III – 2 – Factualidade não provada:

Não ficou provado que a Administração Regional de Saúde do Algarve, I.P tenha feito retenção de IRS ao montante pago ao Impugnante a título de bolsa de formação, durante o ano de 2011, no valor de € 9.000.

Não se provaram quaisquer outros factos passíveis de afetar a decisão de mérito, em face das possíveis soluções de direito, e que, por conseguinte, importe registar como não provados.

6 – Apreciando

6.1. Do alegado erro de julgamento da sentença recorrida

A sentença recorrida, a fls. 67 a 70 dos autos, julgou procedente a impugnação deduzida pelo ora recorrido contra a liquidação de IRS relativa ao ano de 2011 e respectivos juros compensatórios, no entendimento de que a qual a “bolsa de formação” recebida pelo recorrido, no valor de € 9.000, está excluída de tributação em IRS por constituir uma bolsa de formação, excecionada pelo art. 2.º nº 8 al. d) do CIRS, na redação aplicável à altura.

Para assim julgar, considerou a sentença recorrida que nos vários diplomas, a referência é sempre feita a formação e bolsa de formação, estando os médicos internos sujeitos a avaliação final, resultando inclusive do preâmbulo do próprio diploma que estabelece o regime jurídico do internato médico que o contrato vigora pelo período de duração estabelecido para o respetivo programa de formação médica especializada – cfr. sentença recorrida, a fls 70 dos autos.

Discorda do decidido a recorrente, alegando que a bolsa de formação paga aos médicos internos em regime de vaga preferencial constitui um meio para obviar às carências de médicos em determinados serviços ou estabelecimentos, sem nexo directo com a formação médica e sem se encontrar exclusivamente relacionado com ela, antes constituem uma forma de retribuição do trabalho prestado numa vaga preferencial ao abrigo do contrato de trabalho em funções públicas, o que consiste num facto tributário abrangido pela enumeração casuística do artigo 2.º do Código do IRS, não lhe podendo ser aplicada a al. c) do nº 8 desta disposição legal.

Contra-alega o recorrido que as bolsas de formação pagas aos médicos internos em regime de vaga preferencial não têm uma correlação com a prestação de trabalho, antes correspondendo a um incentivo para o preenchimento de vagas em estabelecimentos ou serviços carenciados de determinadas especialidades e que visa compensar o médico pela conclusão do internato e pela obrigação de permanência nesse estabelecimento, daí que sustente que as bolsas de formação não são sujeitas a imposto nos termos do artigo 2.º n.º 1, 2 e 3 do Código do IRS na medida em que não são pagas aos médicos internos pela prestação de trabalho e em conexão com esta, nem se destinam a conferir ao médico interno uma vantagem económica que acresça à sua remuneração. Não sendo subsumíveis à previsão do artigo 2º CIRS nem se alegando qualquer outra norma que preveja a sua sujeição a imposto, as bolsas de formação não devem ser sujeitas a IRS, pelo que a sua consideração para apuramento da matéria coletável em sede de IRS é ilegal.

O Excelentíssimo Procurador-Geral adjunto junto deste STA, no seu parecer junto aos autos, pronuncia-se pelo não provimento do recurso, porquanto ainda que seja de admitir que as retribuições auferidas ao abrigo do art. 12.º-A aditado ao Dec.-Lei n.º 203/2004, pelo qual foi aprovado o regime de internato dos médicos, não constituam propriamente uma quantia devida pela formação, mas antes uma quantia paga pelo preenchimento de vagas preferenciais que o candidato, uma vez admitido, se compromete a vir a preencher, não resulta preenchido qualquer dos ditos tipos funcionais previstos no dito artigo 2.º do CIRS.

Vejamos.

Dispunha a alínea c) do n.º 8 do artigo 2.º do Código do IRS, na redação em vigor à data dos factos – que a sentença recorrida julgou aplicável ao caso dos autos -, que estavam excluídas de tributação “as prestações relacionadas exclusivamente com acções de formação profissional dos trabalhadores, quer estas sejam ministradas pela entidade patronal, quer por organismos de direito público ou entidade reconhecida como tendo competência nos domínios da formação e reabilitação profissionais pelos ministérios competentes”.

No caso dos autos, o ora recorrido exerceu funções na Unidade de Saúde Familiar do Centro de Saúde de …… durante o exercício de 2011, ao abrigo de um contrato de trabalho em funções públicas a termo resolutivo incerto, na qualidade de médico interno em regime de vaga preferencial e entre Janeiro e Dezembro de 2011, a Administração Regional de Saúde do Algarve, I. P. emitiu recibos de vencimento ao Recorrido, onde consta o pagamento de uma bolsa de formação com uma periodicidade mensal e no valor de € 750.

Ora, nos termos do artigo 2.º n.º 1 do Decreto-Lei n.º 203/2004, de 18 de Agosto (diploma que estabelece o regime jurídico do internato médico), na redação em vigor à data dos factos, “após a licenciatura em Medicina, inicia-se o internato médico, que corresponde a um processo único de formação médica especializada, teórica e prática, tendo como objectivo habilitar o médico ao exercício tecnicamente diferenciado na respectiva área profissional de especialização”.

Ou seja, o internato médico corresponde ao período de exercício da Medicina que se segue, imediatamente, à conclusão da respetiva licenciatura. Neste período de internato, e ao abrigo de um contrato de trabalho a termo resolutivo incerto, os médicos internos exercem a sua profissão e recebem, simultaneamente, formação especializada de cariz teórico e prático (artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 203/2004, de 18 de Agosto).

Por força da aprovação do Decreto-Lei n.º 45/2009, de 13 de Fevereiro, foi aditado ao Decreto-Lei n.º 203/2004, de 18 de Agosto o artigo 12.º-A, com a epígrafe “vagas preferenciais”, através do qual foi criada uma distinção ao nível das vagas do internato médico, a saber: as vagas comuns e as vagas preferenciais. Nos termos do Preâmbulo do Decreto-Lei n.º 45/2009, de 13 de Fevereiro, a introdução desta distinção foi motivada pela revogação do contrato administrativo de provimento (operada no âmbito das alterações introduzidas ao regime legal da função pública pela Lei n.º 12-A/2008, de 27 de Fevereiro e pela Lei n.º 59/2008, de 11 de Setembro), o que obrigou à criação de uma nova forma de vinculação dos médicos internos através da qual pudesse ser assegurado o exercício de funções próprias do serviço público que não revestissem carácter de permanência.

Pela sua importância para a decisão do caso sub judice, transcreve-se o artigo 12.º-A do Decreto-Lei n.º 203/2004, de 18 de Agosto, com a epígrafe “Vagas Preferenciais” (aditado pelo Decreto-Lei n.º 45/2009, de 13 de Fevereiro):


1 - No mapa de vagas previsto no n.º 6 do artigo 12.º, podem ser identificadas vagas preferenciais, destinadas a suprir necessidades de médicos de determinadas especialidades, as quais não podem exceder 30 % do total de vagas estabelecidas anualmente.

(…)

3 - As vagas preferenciais são fixadas independentemente da existência de capacidade formativa no estabelecimento ou serviço onde se verificou a necessidade que a elas deu lugar, podendo a formação decorrer em estabelecimento ou serviço diferente daquele, no caso de não existir idoneidade ou capacidade formativa.

4 - Os médicos internos colocados em vagas preferenciais assumem, no respectivo contrato, a obrigação de, após o internato, exercer funções no estabelecimento ou serviço onde se verificou a necessidade que deu lugar à vaga preferencial, por um período igual ao do respectivo programa de formação médica especializada, incluindo repetições.

5 - O exercício de funções nos termos do número anterior efectiva-se mediante celebração do contrato de trabalho em funções públicas por tempo indeterminado, o qual é precedido de um processo de recrutamento em que são considerados e ponderados o resultado da prova de avaliação final do internato médico e a classificação obtida em entrevista de selecção a realizar para o efeito.

(…)

8 - O preenchimento de uma vaga preferencial confere direito a uma bolsa de formação, que acresce à remuneração do interno, de valor e condições a fixar por portaria conjunta dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças, da Administração Pública e da saúde, sem prejuízo do recurso a outros regimes de incentivos legalmente previstos.

(…)

10 - O incumprimento da obrigação de permanência prevista no n.º 4, bem como a não conclusão do respectivo internato médico por motivo imputável ao médico interno, salvo não aproveitamento em avaliação final de internato, implica a devolução do montante percebido, a título de bolsa de formação, sendo descontados, proporcionalmente, os montantes correspondentes ao tempo prestado no estabelecimento ou serviço de saúde onde se verificou a necessidade que deu lugar à vaga preferencial, a contar da data de conclusão do respectivo internato médico.

(…)

Importa, pois, compreender o “estatuto especial” conferido aos médicos em regime de vaga preferencial nos termos do artigo 12º-A transcrito, por oposição ao estatuto dos médicos internos em regime de vaga normal. Assim:

1. À semelhança dos médicos internos em regime de vaga normal, os médicos internos em regime de vaga preferencial celebram um contrato de trabalho a termo resolutivo incerto, ao abrigo do qual exercem a profissão de Medicina de forma remunerada e recebem formação especializada de cariz teórico e prático (artigos 2.º e 20.º do Decreto-Lei n.º 203/2004, de 18 de Agosto).

2. Contrariamente aos médicos internos em regime de vaga normal, os médicos internos em regime de vaga preferencial:

a. Assumem a obrigação de, após internato, exercer funções no estabelecimento ou serviço onde se verificou a necessidade que deu lugar à vaga preferencial por um período igual ao do respectivo programa de formação médica especializada, incluindo repetições (artigo 12.º-A do Decreto-Lei n.º 203/2004, de 18 de Agosto); e

b. Gozam do direito ao recebimento de uma bolsa de formação, que acresce à respetiva remuneração de médico interno (artigo 12.º-A do Decreto-Lei n.º 203/2004, de 18 de Agosto).

Em face do exposto, parece evidente que aquilo que distingue uma vaga normal de uma vaga preferencial não é a existência de uma oferta formativa diferenciada ou alargada para os médicos internos que ocupam as vagas preferenciais, antes o facto de os médicos internos em regime de vaga preferencial assumirem a obrigação de, após o internato, exercerem funções no estabelecimento ou serviço onde se verificou a necessidade que deu lugar à vaga preferencial.

Afigura-se-nos, pois, duvidoso que, apesar da designação que o legislador lhe atribui, a bolsa adicional paga aos médicos internos em regime de vaga preferencial deva ser considerada como uma prestação relacionada exclusivamente com acções de formação profissional dos trabalhadores e como tal excluída de tributação em IRS, como julgado pela sentença recorrida, pois sendo embora verdade a conexão desta com a formação especializada dos médicos que a recebem, o seu propósito confesso é o de incentivar a fidelização do médico interno no serviço ou hospital onde se verificou uma carência de profissionais e onde este vinha exercendo a profissão de Medicina em regime de internato, compensando-os pela obrigação de permanência naquele serviço após a conclusão do internato médico, como, aliás, é reconhecido pelo recorrido nas suas contra-alegações de recurso.

Não pode, pois, manter-se o decidido, que julgou procedente a impugnação em razão da aplicação do disposto na alínea c) do n.º 8 do artigo 2.º do Código do IRS, na redação em vigor à data dos factos.

Sucede, porém, que analisado o teor da petição de impugnação - a fls. 4 a 9 dos autos - se constata que o então impugnante fundava a sua pretensão de não tributação, primariamente, no carácter não remuneratório – antes compensatório da obrigação de permanência - da “bolsa de formação” (cfr. os n.ºs 52.º a 62.º da P.I., a fls. 7, verso e 8 dos autos), mais invocando a “ilegitimidade da actuação da administração”, por violação do princípio da boa-fé, ao reclamar imposto sobre as bolsas de formação liquidadas nos anos de 2010 e 2011 (cfr. os n.ºs 69.º a 78.º da P.I., a fls. 8, verso e 9 dos autos).

Não conheceu a sentença recorrida destes fundamentos, pois que se limitou a conhecer da causa de pedir só subsidiariamente, e por mero dever de patrocínio, invocada - o disposto na alínea c) do n.º 8 do artigo 2.º do Código do IRS, que julgamos inaplicável ao caso dos autos.

Impõe-se, pois, na procedência do recurso, revogar a sentença recorrida e determinar a baixa dos autos ao Tribunal “a quo” para que destes fundamentos conheça, ampliando para tal, se necessário, o probatório fixado, o que se determina.


- Decisão -

7 - Termos em que, face ao exposto, acordam os juízes da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo, em conceder provimento ao recurso, revogar a sentença recorrida e ordenar a baixa dos autos ao tribunal “a quo” para que conheça dos demais fundamentos da impugnação.

Custas a final.

Lisboa, 31 de Janeiro de 2018. – Isabel Marques da Silva (relatora) – Ana Paula Lobo – Dulce Neto.