Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0204/09.0BESNT
Data do Acordão:02/03/2021
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:ARAGÃO SEIA
Descritores:IRS
MAIS VALIAS
LOCALIDADE
HABITAÇÃO
Sumário:I - Até 2007, o n.º 5 do art. 10.º do CIRS, em ordem à exclusão da tributação das mais-valias obtidas com a alienação de habitação própria permanente do sujeito passivo, ou do seu agregado, exigia, para além do mais, que o produto da venda ou parte deste fosse aplicado na aquisição de outra habitação própria permanente localizada em território português.
II - Essa restrição territorial constante da norma devia ter-se como violadora dos princípios da livre circulação de pessoas e da liberdade de estabelecimento, consagradas nos arts. 18.º, 39.º e 43.º, do Tratado da CE e nos arts. 28.º e 31.º do Acordo sobre o Espaço Económico Europeu, como decidiu o Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias, a pedido da Comissão das Comunidades Europeias, em acção por incumprimento, instaurada ao abrigo do art. 226.º CE, no Processo C-345/05, pelo acórdão de 26 de Outubro de 2010.
III - Foi para sanar essa situação de incompatibilidade com o direito comunitário, declarada pelo acórdão aí proferido, que o Estado português, através do Decreto-Lei n.º 361/2007, de 2 de Novembro, alterou a redacção do n.º 5 do art. 10.º do CIRS, como se refere no respectivo relatório.
Nº Convencional:JSTA000P27094
Nº do Documento:SA2202102030204/09
Data de Entrada:10/06/2020
Recorrente:AT – AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Recorrido 1:A...................
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam os juízes da secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:

A Representante da Fazenda Pública tendo sido notificada da douta sentença, proferida nos autos acima identificados e com esta não se conformando, vem, nos termos do disposto nos artigos n.º 280.º a 282.º do CPPT.

Alegou, tendo concluído:
A. Visa o presente recurso reagir contra a douta decisão que julgou a impugnação judicial procedente, anulando a liquidação de IRS, do ano de 2004.
B. Entendeu o douto Tribunal, que a Autoridade Tributária ao não aceitar o reinvestimento realizado noutro Estado-Membro, por falta de fundamento legal, violou o Tratado que institui a Comunidade Europeia.
C. Todavia, importa frisar que, no ano de 2005, o artigo 10.º n.º 5 alínea a) do CIRS, previa que apenas são excluídos os ganhos provenientes da transmissão onerosa de imóveis destinados à habitação própria e permanente do sujeito passivo ou do seu agregado familiar, se houver reinvestimento na aquisição da propriedade de outro imóvel exclusivamente com o mesmo destino, e desde que esteja situado em território português.
D. Não obstante, o direito comunitário ser aplicável na ordem interna por força do primado da legislação comunitária sobre o direito interno, sempre se diga, que o TJCE exerce uma competência de plena jurisdição não podendo, ainda que solicitado, nesse sentido, anular um acto ilegal de um Estado Membro, antes lhe cabendo decidir sobre a interpretação das normas do tratado e sobre a interpretação e validade dos actos das instituições das comunidades.
E. Deve, assim, ser a decisão ora recorrida ser revogada, na parte decisória que revogou o acto de liquidação de IRS em questão.
Termos em que, concedendo-se provimento ao recurso, deve a decisão recorrida ser revogada e substituída por acórdão que declare a impugnação improcedente.

Contra-alegaram os recorridos A……………… e B………………, para o que apresentaram as seguintes conclusões:
I. Estabelecia o Art.º 10.º do CIRS na redacção em vigor em 2005 que:
“5 – São excluídos da tributação os ganhos provenientes da transmissão onerosa de imóveis destinados a habitação própria e permanente do sujeito passivo ou do seu agregado familiar, nas seguintes condições:
a) Se, no prazo de vinte e quatro meses contados da data de realização, o valor da realização, deduzido da amortização de eventual empréstimo contraído para a aquisição do imóvel, for reinvestido na aquisição da propriedade outro imóvel, de terreno para a construção imóvel, ou na construção, ampliação ou melhoramento de outro imóvel exclusivamente com o mesmo destino, e desde que esteja situado em Território português;”
II. Estabelece, por sua vez o Art.º 8.º da Constituição da República Portuguesa que:
“1 – As normas e os princípios de direito internacional geral ou comum fazem parte integrante do direito português.
2 – As normas constantes de convenções internacionais regularmente ratificadas ou aprovadas vigoram na ordem interna após a sua publicação oficial e enquanto vincularem internacionalmente o Estado Português.
3 – As normas emanadas dos órgãos competentes das organizações internacionais de que Portugal seja parte vigoram directamente na ordem interna, desde que tal se encontre estabelecido nos respectivos tratados constitutivos.
4 – As disposições dos tratados que regem a união europeia e as normas emanadas das suas instituições, no exercício das respectivas competências, são aplicáveis na ordem interna, nos termos definidos pelo direito da União, com respeito pelos princípios fundamentais do Estado de direito democrático.”
III. Vale isto por dizer que qualquer norma de qualquer tratado internacional a que legitimamente o Estado Português esteja vinculado, tem prevalência sobre qualquer lei ordinária do direito interno.
IV. É fundamento da liquidação, do indeferimento da reclamação graciosa e consequentemente do recurso aqui em apreço, que a actual redacção do n.º 5 do Art.º 10.º do CIRS, que permite que o reinvestimento possa ser feito noutro estado membro, ainda não se encontrava em vigor.
V. Porém, tal redacção dessa norma, em vigor em 2005, viola várias disposições do Tratado que institui a Comunidade Europeia, nomeadamente o princípio da livre circulação de pessoas e bens e ainda as regras que impõem não só a harmonização legislativa, mas a proibição de normas que possam constituir entrave à constituição do mercado interno.
VI. Ou seja, ao penalizar os contribuintes que optavam por residir noutro estado membro e aí reinvestir o capital obtido pela venda de imóvel destinado à habitação própria e permanente do agregado familiar, está o Estado Português não só a favorecer as empresas portuguesas desincentivando que os trabalhadores portugueses ou que o não sendo aqui tenham residido, possam deslocar-se para outro Estado-Membro,
VII. Como também a penalizar os trabalhadores que vêm a sua situação fiscal agravada caso optem por residir noutro Estado-Membro.
VIII. Nesse âmbito, vide ainda os Art.ºs 45.º e 107.º do Tratado que institui a Comunidade Europeia.
IX. Manifestamente a redacção do n.º 5 do Art.º 10.º do CIRS não deverá ser aplicada porque, ao violar as disposições do Tratado que institui a Comunidade Europeia, atento o Art.º 8.º da Constituição, está ferida de inconstitucionalidade.
X. Para além disso ainda, a aplicação tal redacção cria uma situação de discriminação com os demais nacionais residentes em Portugal que veriam ser-lhes aplicado um regime jurídico mais favorável, criando uma situação de discriminação em relação quer aos nacionais que decidissem deslocar a sua residência para outro Estado-Membro, quer em relação aos nacionais de outros Estados-Membro, por virtude da localização da residência, ser fora do Estado Português.
XI. E dessa forma violando não só os Art.ºs 13.º e 14.º da CRP, como também o Art.º 18.º do Tratado que institui a Comunidade Europeia.
XII. Em face das normas legais, quer nacionais, quer comunitárias, supra transcritas, bem como a vasta jurisprudência já proferida sobre esta matéria, entendem os Contribuintes aqui Recorridos que a liquidação é ilegal por violação das normas supra indicadas dos Tratados que instituem a União Europeia, e consequentemente da Constituição da República Portuguesa e nessa medida deverá ser mantida a Douta Decisão Recorrida, que aplica exemplarmente o direito vigente aos factos em apreço.
Termos em que, deverá o presente recurso ser julgado improcedente e mantida in totum a decisão recorrida.

O Magistrado do Ministério Público junto deste Supremo Tribunal emitiu parecer no sentido do não provimento do recurso.

Cumpre decidir.

Na sentença recorrida levou-se ao probatório a seguinte matéria de facto:
A. Em Setembro de 2000, a Impugnante adquiriu a fracção autónoma designada pela letra G, inscrita na matriz sob o artigo 853, da freguesia de Linda-a-Velha, pelo valor de € 64.843,73, tendo suportado encargos no valor de € 6.061,49 (cfr. declaração modelo 3 de IRS, a fls. 40 e 41 dos autos, que se dá por reproduzida; facto não controvertido);
B. Em Setembro de 2004, a Impugnante procedeu à sua alienação, pelo valor de € 100.000,00 (cfr. declaração modelo 3 de IRS, a fls. 40 e 41 dos autos; facto não controvertido);
C. No anexo G da declaração modelo 3 de IRS referente ao ano de 2004, os Impugnantes declararam a alienação da fracção autónoma referida em A. e a intenção de proceder ao reinvestimento do valor referido na alínea antecedente (facto não controvertido);
D. Em 02.12.2005, os Impugnantes adquiriram, pelo valor de € 150.000,00, uma fracção autónoma, sita em ….. (…………), …-… Avenue …………, ……. “………”, em França (cfr. certidão de tradução, a fls. 37 a 42 dos autos);
E. Em 04.06.2008, foi emitida em nome dos Impugnantes a liquidação adicional de IRS n.º 2008 5000073392, referente ao ano de 2004, com o valor a pagar de € 5.974,21 (cfr. nota de liquidação a fls. 19 dos autos, que se dá por reproduzida);
F. Em 23.07.2008, os Impugnantes apresentaram uma declaração de substituição referente ao ano de 2005, na qual declararam ter reinvestido em imóvel localizado na União Europeia o valor de € 150.000,00 (cfr. declaração modelo 3, a fls. 40 e 41 do PAT apenso);
G. Em 29.07.2008, os Impugnantes deduziram reclamação graciosa invocando, em suma, que a liquidação reclamada viola o princípio do primado do direito comunitário, face à condenação que foi proferida contra o Estado Português no processo C-345/05 (cfr. reclamação, a fls. 12 a 14 do PAT apenso, que se dá por reproduzida);
H. Em 17.12.2008, o Chefe do Serviço de Finanças de Oeiras - 3 proferiu projecto de decisão de indeferimento da reclamação graciosa, com os fundamentos constantes na informação elaborada pelos serviços, na qual se conclui, na parte relevante, que:
“(…) 9. Em 23 de Julho de 2008, foi apresentada pelos reclamantes declaração de substituição, com referência ao ano de 2005, na qual foi mencionado o reinvestimento efectuado sem recurso ao crédito em imóvel situado na União Europeia ou no Espaço Económico Europeu.
10. Tal declaração foi mandada convolar em reclamação graciosa, pelo que da sua apresentação não resultará qualquer liquidação.
11. Verifica-se que à data – 2005 – não estava previsto no Código do IRS que tal reinvestimento pudesse ser efectuado na União Europeia. Tal alteração apenas consta do Orçamento de Estado para 2008, aprovado pelo Decreto-Lei 361/2007 de 02/11. (…)”.
(cfr. projecto de decisão, a fls. 62 a 64 do PAT apenso, que se dá por reproduzido);
I. Notificados do projecto de decisão referido na alínea antecedente, em 30.12.2008, os Impugnantes exerceram o seu direito de audição prévia alegando, em síntese, que o Estado Português estava numa situação de incumprimento, da qual a Administração Fiscal não se deverá prevalecer e que a jurisprudência dos Tribunais Portugueses tem sido unânime na solução desta questão e de questões similares, em resultado dos pedidos de apreciação prejudicial formulados (cfr. resposta, a fls. 67 a 70 do PAT apenso, que se dá por reproduzida);
J. Em 29.01.2009, o Chefe do Serviço de Finanças de Oeiras – 3 indeferiu a reclamação graciosa apresentada pelos Impugnantes por não terem sido trazidos ao processo factos novos (cfr. despacho e informação, a fls. 73 e 74 do PAT apenso, que se dão por reproduzidos);
K. Os Impugnantes efectuaram uma caução, na forma de depósito autónomo, no valor de € 7.546,37, destinada a suspender o processo de execução fiscal n.º 3522200801149482, instaurado para cobrança coerciva da dívida exequenda (cfr. comprovativo do depósito autónomo, a fls. 43 do PAT apenso e fls. 48 do PAT apenso).
Nada mais se deu como provado.

Há agora que conhecer do recurso que nos vem dirigido e desde já se dirá que o mesmo não merece provimento.
A Fazenda Pública veio interpor o presente recurso jurisdicional da sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra, datada de 13 de Junho de 2018, que julgou procedente a impugnação judicial deduzida por A…………… e B……………… do indeferimento da reclamação graciosa contra a liquidação adicional de IRS, do ano de 2004, no valor de €7.546,37.
A Recorrente, invocando erro de julgamento da matéria de direito, pretende com o presente recurso jurisdicional a revogação daquela sentença com o fundamento de que, não obstante, o direito comunitário ser aplicável na ordem interna por força do primado da legislação comunitária sobre o direito interno, o TJCE exerce uma competência de plena jurisdição não podendo, ainda que solicitado, nesse sentido, anular um acto ilegal de um Estado Membro.
Antes lhe cabendo decidir sobre a interpretação das normas do tratado e sobre a interpretação e validade dos actos das instituições da União.
A Mmª Juíza a quo, julgou a presente impugnação procedente em virtude de ter considerado que não ocorre a exclusão da tributação das mais-valias resultantes da venda da habitação própria e permanente, prevista no n.º 5 do artigo 10 do CIRS, na redacção em vigor à data (Lei n.º 32-B/2002, de 30 de Dezembro), se o reinvestimento for efectuado na compra de imóvel que, apesar de destinado ao mesmo fim, está situado noutro estado membro da União Europeia.
Fundamentou a sua decisão no facto do Tribunal de Justiça da União, através do acórdão proferido em 26 de Outubro de 2010, no Processo C-345/05, e que teve por objecto uma acção por incumprimento nos termos do artigo 226.º CE, instaurada pela Comissão das Comunidades Europeias contra a República Portuguesa, se pronunciou no sentido da incompatibilidade com o direito comunitário, por violação dos princípios da livre circulação e da liberdade de estabelecimento, da norma do artigo 10.º, n.º 5, do CIRS na referida redacção, na medida que subordina o benefício da exclusão da tributação das mais-valias resultantes da alienação onerosa de imóveis destinados a habitação própria e permanente do sujeito passivo ou dos membros do seu agregado familiar à condição de que os ganhos obtidos sejam reinvestidos na aquisição de imóveis situados em território português.
Na verdade, o referido Acórdão concluiu:
.“Não cumpre as obrigações que lhe incumbem por força dos artigos 18.º CE, 39.º CE e 43.º CE e 28.º e 31.º do Acordo sobre o Espaço Económico Europeu (EEE), um Estado-Membro que mantém em vigor disposições fiscais que subordinam o benefício da exclusão da tributação das mais-valias resultantes da alienação onerosa de imóveis destinados a habitação própria e permanente do sujeito passivo ou dos membros do seu agregado familiar à condição de que os ganhos obtidos sejam reinvestidos na aquisição de imóveis situados em território nacional.
Com efeito, o sujeito passivo que decida proceder à venda do imóvel de que dispõe para sua habitação nesse Estado-Membro tendo em vista transferir o seu domicílio para o território de outro Estado-Membro e a aí adquirir um novo imóvel afecto à sua habitação, no âmbito do exercício do direito de qualquer cidadão da União de circular e permanecer livremente no território dos Estados-Membros, o qual tem expressão específica nos artigos 43.º CE, no que respeita à liberdade de estabelecimento e 39.º CE, no que diz respeito à livre circulação de trabalhadores, ou dos direitos que são conferidos pelos artigos 28.º, relativo à livre circulação de trabalhadores e 31.º, relativo à liberdade de estabelecimento, do acordo EEE, está submetido a um regime fiscal desvantajoso relativamente ao que se aplica a uma pessoa que mantém a sua residência no Estado-Membro em causa. (…)” (cf. sumário do acórdão).
Aliás, foi para sanar essa situação de incompatibilidade com o direito comunitário, que o Estado português, na sequência deste acórdão, alterou a redacção do n.º 5 do artigo. 10.º do CIRS através do Decreto-Lei n.º 361/2007, de 2 de Novembro passando ali prever-se:
“O valor de realização, deduzido da amortização de eventual empréstimo contraído para a aquisição do imóvel, seja reinvestido na aquisição da propriedade de outro imóvel, de terreno para construção de imóvel e ou respectiva construção, ou na ampliação ou melhoramento de outro imóvel exclusivamente com o mesmo destino situado em território português ou no território de outro Estado membro da União Europeia ou do Espaço Económico Europeu, desde que, neste último caso, exista intercâmbio de informações em matéria fiscal”.
Para finalizar apenas resta dizer que mal se compreende o que vem alegado na conclusão D do presente recurso uma vez que o conhecimento oficioso, e a todo o tempo, de questões que se prendam com a violação do direito da União é obrigatório para todos os órgãos jurisdicionais dos estados membros, tal como resulta do acórdão do TJUE proferido no processo n.º C-312/93: “O direito comunitário opõe-se à aplicação de uma norma processual nacional, em condições como as do processo principal, que proíbe o juiz nacional, a quem é submetida uma causa no âmbito da sua competência, de apreciar oficiosamente a compatibilidade de um acto de direito interno com uma disposição comunitária, quando esta última não tenha sido invocada dentro de um determinado prazo pelo particular”.

Pelo exposto, acordam os juízes que compõem a Secção do Contencioso Tributário deste Supremo Tribunal Administrativo em negar provimento ao recurso que nos vinha dirigido.
Custas pela recorrente.
D.n.

Lisboa, 3 de Fevereiro de 2021. – Jorge Miguel Barroso de Aragão Seia (relator) – Nuno Filipe Morgado Teixeira Bastos – Gustavo André Simões Lopes Courinha.