Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:01119/16.1BELRA
Data do Acordão:09/30/2020
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:ISABEL MARQUES DA SILVA.
Descritores:RECURSO DE REVISTA EXCEPCIONAL
PRESSUPOSTOS
NÃO ADMISSÃO DO RECURSO
Sumário:I - O recurso de revista excepcional previsto no art. 150.º do CPTA não corresponde à introdução generalizada de uma nova instância de recurso, funcionando apenas como uma “válvula de segurança” do sistema, pelo que só é admissível se estivermos perante uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental, ou se a admissão deste recurso for claramente necessária para uma melhor aplicação do direito, incumbindo ao recorrente alegar e demonstrar os requisitos da admissibilidade do recurso.
II - Por opção expressa do legislador (cfr. o n.º 4 do artigo 150.º do CPTA), O erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objecto de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova, o que não é manifestamente o caso dos autos.
Nº Convencional:JSTA000P26405
Nº do Documento:SA22020093001119/16
Data de Entrada:06/01/2020
Recorrente:T.......II, S.A.
Recorrido 1:AT–AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:

- Relatório -

1 – T……………II, S.A. com os sinais dos autos, vem, nos termos dos artigos 142.º e 143.º n.º 1 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA) interpor para este Supremo Tribunal recurso de revista excecional do acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 8 de maio de 2019, que negou provimento ao recurso por si interposto da sentença do TAF de Leiria que julgara improcedente a impugnação judicial por si deduzida contra liquidações adicionais de IRC relativas aos exercícios de 2012 e 2013, no valor de 2.22.768,15€, decorrentes de tributações autónomas que incidiram sobre despesas não documentadas.

A recorrente termina as suas alegações de recurso formulando as seguintes conclusões:

1.ª Em face do decidido em segundo grau de jurisdição considera a Recorrente verificar-se a violação de lei substantiva na interpretação do artigo 88.º, n.º 1, do Código do IRC, dos artigos 75.º e 77.º da LGT e do artigo 100.º do CPPT, cumprindo dilucidar o seguinte:

1) Se a tributação autónoma de despesas não documentadas prevista no artigo 88.º, n.º 1, do Código do IRC, pode incidir sobre despesas presumidas a partir de meros lançamentos contabilísticos, não sendo exigível a demonstração da efetividade das despesas?

2) Se, numa situação como a da Recorrente, em que a administração tributária afasta a presunção de veracidade da contabilidade (por reconhecer a existência de erros e de omissões) e determina a aplicação de métodos indiretos para quantificar a matéria coletável, pode ser atribuído valor probatório aos lançamentos contabilísticos, ou seja, se estes podem servir de base à tributação autónoma.

2.ª No caso vertente estão verificados os pressupostos de que depende a admissibilidade do presente recurso de revista, uma vez que as supra enunciadas questões assumem quer relevância jurídica, quer social, sendo a admissão de revista necessária para uma melhor aplicação do direito (cf. entre outros o acórdão de 18.04.2018, proferido no âmbito do processo n.º 0471/17);

3.ª O tema para o qual se convoca a atenção deste Douto Tribunal, imiscuiu-se no dia-a-dia das empresas e não reúne um entendimento uniforme da jurisprudência, o que é desde logo evidenciado pelo voto de vencido aposto na decisão em crise;

4.ª A questão de identificar as virtualidades de um mero movimento contabilístico para efeitos de tributação e o tratamento a dar à contabilidade numa situação de irregularidades é um tema transversal a várias situações, que importa clarificar;

5.ª No que respeita ao alegado erro na verificação dos pressupostos da aplicação do regime das tributações autónomas, porquanto a tributação incidiu sobre meros lançamentos contabilísticos, não tendo sido comprovada a ocorrência de uma despesa efetiva, o TCA Sul, no acórdão recorrido, conclui apenas que “Tais fluxos, do ponto de vista da contabilidade da recorrente, constituem despesas não documentadas ou despesas confidenciais”;

6.ª Em sentido divergente, veja-se o voto de vencido aposto em tal decisão, onde se enuncia “Não acompanho a decisão e, como tal, contrariamente ao presente acórdão, teria concedido provimento ao recurso jurisdicional. Em síntese, considero o seguinte: com vista à incidência da tributação autónoma, fundamental é que estejamos perante uma efectiva despesa; da análise que faço dos autos, em concreto da matéria de facto, entendo que esta demonstração não vem feita pela AT, ou seja, sobre a parte a quem incumbia tal ónus de prova (74.º da LGT); com efeito, dos elementos carreados para os autos, concretamente do RIT, não retiro a comprovação da efectiva saída de valores da esfera da Impugnante, ora Recorrente, apesar de as operações em causa estarem contabilisticamente registadas; entendo, assim, que falta um pressuposto para que a AT pudesse sujeitar os valores em causa a tributações autónomas; acresce que, como as partes reconhecem, a contabilidade da Impugnante sofre de anomalias e irregularidades que lhe retiraram a presunção de verdade e possibilitaram, até, o recurso a métodos indirectos; daí que, na minha opinião, não se apresenta justificado que, para efeito de tributação autónoma, a AT tenha actuado a coberto de uma presunção de veracidade das declarações da Impugnante, veracidade esta amplamente questionada no RIT.” (cf. Voto de vencida apresentado no Acórdão recorrido; sublinhado nosso);

7.ª Existem questões associadas à tributação de despesas autónomas que já foram delapidadas pela jurisprudência e que se encontram devidamente esclarecidas como sejam, a distinção entre despesas não documentadas e despesas indevidamente documentadas, a distribuição do ónus da prova em cada um dos casos;

8.ª Não está, contudo, devidamente estabilizado o entendimento se um mero lançamento contabilístico pode consubstanciar uma despesa não documentada, designadamente no caso de a contabilidade conter erros e omissões, que lhe retiram a presunção de verdade e convocam a aplicação de métodos indiretos, duvida que potencia uma diversificada aplicação do direito de caso para caso, o que coloca em crise o princípio da segurança jurídica, um dos pilares do Estado de Direito;

9.ª Assim, no caso sub judice, a necessidade da revista para uma melhor aplicação do Direito assenta, desde logo, no facto de a questão identificada ter a virtualidade de se repetir num número elevado de casos futuros podendo a questão revestir-se de importância jurídica fundamental;

10.ª Atente-se que em crise nos autos está a tributação autónoma de despesas não documentadas, sendo que o instituto da tributação autónoma se apresenta bastante controverso, tendo gerado várias questões e recorrentemente merecido a atenção da jurisprudência e doutrina;

11.ª Uma matéria como aquela sobre que versam os presentes autos, em que se discute precisamente a possibilidade – legal – de tributar uma determinada realidade em sede de tributação autónoma, encerra em si mesma uma complexidade e especificidade resultantes da própria natureza da tributação autónoma, que exige por isso a intervenção deste Douto Tribunal;

12.ª Para além disso, não vigora até esta data uma corrente jurisprudencial uniforme, pelo que, atendendo a que a questão em apreço tem sido recorrentemente suscitada junto dos tribunais, é plausível que venha a ser frequente igualmente nos tribunais superiores, o que torna evidente a suscetibilidade de repetição da questão em casos futuros, em termos de expansão da controvérsia;

13.ª A questão que ora submetemos à apreciação deste douto Tribunal, que se reconduz à determinação da incidência objetiva da tributação autónoma prevista no artigo 88.º do Código do IRC, em especial, na configuração das despesas não documentadas, é questão relevante juridicamente e que cuja cabal resposta é necessária para a boa aplicação do direito;

14.ª A Recorrente invocou como fundamento de ilegalidade das liquidações de IRC dos exercícios de 2012 e de 2013 a circunstância de as mesmas refletirem a tributação autónoma de alegadas despesas não documentadas, sem que se tenham verificado os pressupostos de aplicação do n.º 1 do artigo 88.º do Código do IRC, em especial sem que se tenha verificado a existência de uma despesa efetiva, visto que a administração tributária tributou autonomamente meros movimentos contabilísticos, tributação esta que não mereceu censura dos Tribunais que se pronunciaram sobre o caso dos autos;

15.ª A mera tributação autónoma de despesas não documentadas meramente presumidas a partir de movimentos contabilísticos, desacompanhadas da respetiva demonstração da existência de despesas efetivas é ilegal em violação do disposto no n.º 1 do artigo 88.º do Código do IRC, conforme bem evidenciado pelo o voto de vencida que tal decisão colheu e pela argumentação expendida pela Recorrente;

16.ª O facto tributário que constitui a base de incidência do artigo 88.º, n.º 1 do Código do IRC é a despesa efetiva, não bastando à administração tributária invocar meros registos contabilísticos, sendo necessário comprovar a materialidade da operação subjacente sob pena de se tributar uma despesa meramente presumida;

17.ª Os meros lançamentos contabilísticos não são suficientes para sustentar a tributação autónoma de despesas não documentadas, devendo a administração tributária evidenciar a existência das operações a que tais lançamentos respeitam e, bem assim, devendo a administração tributária provar a materialidade das operações subjacentes à tributação autónoma;

18.ª O regime da tributação autónoma das despesas não documentadas exige que se esteja perante uma despesa e não uma presunção de uma despesa;

19.ª No caso da tributação autónoma de despesas não documentadas, estando a administração tributária a invocar a existência de despesa efetiva com o intuito de proceder à sua tributação, é ela que a deve demonstrar, sob pena de ilegalidade dessa mesma tributação (cf. n.º 1 do artigo 74.º da LGT);

20.ª E tal demonstração da despesa efetiva não se basta com a identificação de meros registos contabilísticos. De facto, sob pena de violação do princípio da tributação pelo lucro real e do princípio da proporcionalidade, a administração tributária deverá sempre demonstrar os factos tributários que invoca, apenas desse modo cumprindo o ónus da prova que sobre si impende;

21.ª A tributação não poderá em caso algum assumir uma função sancionatória;

22.ª A tributação autónoma, conforme se referiu nos presentes autos tem uma função anti-abuso, entendendo-se que « (…) o legislador procura responder à questão reconhecidamente difícil do regime fiscal de despesas que se encontram na zona de intersecção da esfera pessoal e da esfera empresarial, de modo a evitar remunerações em espécie mais atraentes por razões exclusivamente fiscais ou a distribuição oculta de lucros» (cf. J. L. SALDANHA SANCHES, Manual de Direito Fiscal, Coimbra Editora, 2007, p. 407), e que «O objetivo parece ser o de tentar evitar (atenuando ou anulando a “vantagem” delas resultante em IRC) que, através dessas despesas, o sujeito passivo utilize para fins não empresariais bens que geraram custos fiscalmente dedutíveis; ou que sejam pagas remunerações a terceiros com evasão aos impostos que seriam devidos por estes. A realização de tais despesas implica um encargo fiscal adicional para quem nelas incorre porque a lei supõe que, assim, outra pessoa deixa de pagar imposto» (cf. RUI DUARTE MORAIS, “Apontamentos a o IRC”, Almedina, 2007, p. 203);

23.ª Assim, não poderá a administração tributária pretender punir o sujeito passivo por não ter documentação de suporte dos registos contabilísticos, visto que tal assumiria um caráter sancionatório, não permitido, pelo que também por este motivo claudicaria a tributação autónoma em apreço;

24.ª A administração tributária deverá provar a existência de despesa efetiva para efeitos da sua tributação autónoma, sendo ilegal a sua realização com base exclusivamente em meros lançamentos contabilísticos, incorrendo a tributação em crise nos autos de ilegalidade por violação dos artigos 88.º, n.º 1, do Código do IRC, 75.º e 77.º da LGT, bem como em violação dos princípios da tributação pelo lucro real, da capacidade contributiva e da igualdade;

25Contudo, se por mera hipótese de raciocínio, admitirmos que os movimentos contabilísticos podem, abstratamente consubstanciar, facto tributário em sede de tributação autónoma, tal nunca poderá admitir-se como possível numa situação em que a administração tributária afaste a presunção de veracidade da contabilidade prevista no n.º 1 do artigo 75.º da LGT, por entender que existem erros e omissões que impossibilitam a sua valoração e por conseguinte aplique métodos indiretos, como foi o caso dos autos;

26.ª O facto de a administração tributária reconhecer que a contabilidade não permite validar os lançamentos contabilísticos registados confere censura acrescida à decisão recorrida;

27.ª Os movimentos contabilísticos que a administração tributária tributa como alegadas despesas não documentadas emergem do mesmo substrato que justificou o recurso a métodos indiretos para a fixação da matéria coletável, pelo que identificando-se esta realidade – a falta de correspondência entre a contabilidade e a realidade – o que poderia ter tido lugar era precisamente uma tributação por métodos indiretos e não pura e simplesmente a tributação de meros movimentos contabilísticos como despesas que não representam o mínimo de correspondência com a realidade, nem têm subjacente qualquer materialidade;

28.ª Admitir as tributações autónomas numa situação em que a presunção de veracidade da contabilidade é afastada, e tal como sucede no presente caso, é defender a tributação com base numa presunção, o que se situa num extremo oposto dos desígnios da tributação pelo rendimento real, é tributar uma despesa presumida de um movimento contabilístico, resultante de uma contabilidade minada de irregularidades, erros e omissões, que afetam designadamente as contas de onde é retirado o movimento tributado;

29.ª Neste sentido não pode ser conferida força probatória a meros movimentos contabilísticos emanados de uma contabilidade que não beneficia da presunção de veracidade para efeitos de tributação prevista no artigo 88.º, n.º 1 do Código IRC;

30.ª Assim, e atento todo o acima exposto, é manifesto o erro grosseiro em que incorreu o Tribunal recorrido, o qual, atenta a importância fundamental inerente a esta questão, impõe a pronúncia deste douto Tribunal em sede de recurso de revista, contribuindo-se para a melhor aplicação do direito, impondo-se a conclusão de que o Tribunal incorreu em erro grave de aplicação do regime da tributação autónoma de despesas não documentadas, ínsito no artigo 88.º, n.º 1, do Código do IRC, e por esse motivo não pode o acórdão recorrido manter-se.

Por todo o exposto, e o mais que o ilustrado juízo desse Venerando Tribunal suprirá, deve o presente recurso de revista ser admitido, devendo ser julgado procedente, revogando-se o acórdão recorrido, assim se cumprindo com o DIREITO e a JUSTIÇA!

Sendo o valor do recurso superior a € 275.000,00, requer-se que, verificando-se os pressupostos, seja o Recorrente dispensado do pagamento da taxa de justiça remanescente ao abrigo do disposto no n.º 7 do artigo 6.º do Regulamento das Custas Processuais.

2 – Não foram apresentadas contra-alegações.

3 - A Excelentíssima Procuradora-Geral Adjunta junto deste Supremo Tribunal emitiu parecer no sentido de negar provimento ao recurso.

4 – Dá-se por reproduzido, para todos os efeitos legais, o probatório fixado no acórdão recorrido (fls. 20 a 54 da respectiva numeração autónoma)

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir da admissibilidade do recurso.


- Fundamentação -

5 – Apreciando.

5.1 Dos pressupostos legais do recurso de revista.

O presente recurso foi interposto e admitido como recurso de revista excepcional, havendo, agora, que proceder à apreciação preliminar sumária da verificação in casu dos respectivos pressupostos da sua admissibilidade, ex vi do n.º 5 do artigo 150.º do CPTA.

Dispõe o artigo 150.º do CPTA, sob a epígrafe “Recurso de Revista”:

1 – Das decisões proferidas em segunda instância pelo Tribunal Central Administrativo pode haver, excepcionalmente, revista para o Supremo Tribunal Administrativo quando esteja em causa a apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental ou quando a admissão do recurso seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito.

2 – A revista só pode ter como fundamento a violação de lei substantiva ou processual.

3 – Aos factos materiais fixados pelo tribunal recorrido, o tribunal de revista aplica definitivamente o regime jurídico que julgue mais adequado.

4 – O erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objecto de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova.

5 – A decisão quanto à questão de saber se, no caso concreto, se preenchem os pressupostos do n.º 1 compete ao Supremo Tribunal Administrativo, devendo ser objecto de apreciação preliminar sumária, a cargo de uma formação constituída por três juízes de entre os mais antigos da secção de contencioso administrativo.

Decorre expressa e inequivocamente do n.º 1 do transcrito artigo a excepcionalidade do recurso de revista em apreço, sendo a sua admissibilidade condicionada não por critérios quantitativos mas por um critério qualitativo – o de que em causa esteja a apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental ou quando a admissão do recurso seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito – devendo este recurso funcionar como uma válvula de segurança do sistema e não como uma instância generalizada de recurso.

E, na interpretação dos conceitos a que o legislador recorre na definição do critério qualitativo de admissibilidade deste recurso, constitui jurisprudência pacífica deste Supremo Tribunal Administrativo - cfr., por todos, o Acórdão deste STA de 2 de abril de 2014, rec. n.º 1853/13 -, que «(…) o preenchimento do conceito indeterminado de relevância jurídica fundamental verificar-se-á, designadamente, quando a questão a apreciar seja de elevada complexidade ou, pelo menos, de complexidade jurídica superior ao comum, seja por força da dificuldade das operações exegéticas a efectuar, de um enquadramento normativo especialmente intricado ou da necessidade de concatenação de diversos regimes legais e institutos jurídicos, ou quando o tratamento da matéria tem suscitado dúvidas sérias quer ao nível da jurisprudência quer ao nível da doutrina. Já relevância social fundamental verificar-se-á quando a situação apresente contornos indiciadores de que a solução pode constituir uma orientação para a apreciação de outros casos, ou quando esteja em causa questão que revele especial capacidade de repercussão social, em que a utilidade da decisão extravasa os limites do caso concreto das partes envolvidas no litígio. Por outro lado, a clara necessidade da admissão da revista para melhor aplicação do direito há-de resultar da possibilidade de repetição num número indeterminado de casos futuros e consequente necessidade de garantir a uniformização do direito em matérias importantes tratadas pelas instâncias de forma pouco consistente ou contraditória - nomeadamente por se verificar a divisão de correntes jurisprudenciais ou doutrinais e se ter gerado incerteza e instabilidade na sua resolução a impor a intervenção do órgão de cúpula da justiça administrativa e tributária como condição para dissipar dúvidas – ou por as instâncias terem tratado a matéria de forma ostensivamente errada ou juridicamente insustentável, sendo objectivamente útil a intervenção do STA na qualidade de órgão de regulação do sistema.».

Vejamos, pois.

Pretende a recorrente que este STA admita recurso excepcional de revista de acórdão do TCA-Sul que negou provimento ao recurso por si interposto de sentença do TAF de Leiria que julgara improcedente a impugnação judicial por si deduzida contra liquidações de IRC dos anos de 2012 e 2013, pretendendo nele ver reapreciada, em primeiro lugar, a questão de saber Se a tributação autónoma de despesas não documentadas prevista no artigo 88.º, n.º 1, do Código do IRC, pode incidir sobre despesas presumidas a partir de meros lançamentos contabilísticos, não sendo exigível a demonstração da efetividade das despesas (cfr. conclusão 1) das suas alegações de recurso), questão esta a que atribui importância jurídica e social fundamental e sendo o recurso da decisão proferida necessário para uma melhor aplicação do direito (cfr. conclusões 2) a 13) das suas alegações de recurso).

O TCA-Sul deu já, porém, resposta a esta questão no sentido pretendido pela recorrente, quando aí consignou que, no que diz respeito à tributação de despesas não documentadas (…), deverá a AT demonstrar que: i. As despesas em questão ocorreram efetivamente; ii. Que o respetivo beneficiário não é conhecido, nem cognoscível.

Sucede é que o TCA julgou também, por maioria, com um voto de vencido, ter sido efectuada a demonstração da efectividade das despesas tributadas autonomamente, como decorre à evidência do seguinte trecho do acórdão sindicado, de cujo juízo probatório a recorrente discorda:

Salvo o devido respeito pela opinião contrária, estão em causa despesas efectivas, incorridas através de saídas de recursos financeiros sem suporte documental e que, no entanto, obtiveram registo contabilístico, através das contas da contabilidade identificadas. Na primeira correcção, trata-se de saídas de dinheiro, através de depósitos bancários, com contabilização em contas de fornecedores. Na segunda correcção, trata-se de saídas de dinheiro, através de depósitos bancários, com contabilização em contas de clientes.// A efectividade das despesas incorridas resulta das próprias alegações da recorrente, que na petição inicial de impugnação assume as saídas de recursos financeiros que não obtiveram registo contabilístico concomitante, considerando que tal se deve à falta de rigor contabilístico e ao modo de funcionamento dos seus colaboradores comerciais (artigos 12.º a 32.º da p.i.). Como aí se refere, «Na actividade de venda de tabaco, seja por máquinas, seja ao balcão, a principal forma de pagamento dos clientes é através de numerário, pelo que os vendedores da empresa todos os dias entregam avultadas somas de dinheiro que é retirado das máquinas e recebem directamente de clientes. // Tais valores eram registados na conta de caixa e, sucessivamente, depositados não só nas contas bancárias tituladas pela exponente, mas também em contas bancárias de que era titular a T....I, SA, sem que fosse efectuado o correspondente output da conta de caixa correspondente ao depósito bancário».

O cerne do recurso é, pois, um disfarçadamente alegado erro na apreciação da prova da efectividade da despesa objecto de tributação autónoma, matéria esta que extravasa o âmbito do presente recurso, por opção expressa do legislador (cfr. o n.º 4 do artigo 150.º do CPTA - 4 – O erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objecto de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova.) e dada a competência restrita à matéria de direito deste STA.

Restaria como objecto possível da revista a segunda questão enunciada pela recorrente – a de saber Se, numa situação como a da Recorrente, em que a administração tributária afasta a presunção de veracidade da contabilidade (por reconhecer a existência de erros e de omissões) e determina a aplicação de métodos indiretos para quantificar a matéria coletável, pode ser atribuído valor probatório aos lançamentos contabilísticos, ou seja, se estes podem servir de base à tributação autónoma.

Contudo, em face do decidido pelo TCA no que respeita à efectividade das despesas tributadas autonomamente, a apreciação dessa questão não nos parece justificativa da admissão do recurso, não sendo, sequer, certo que a questão possa ser desligada do facto de ter sido julgado provada a efectividade da despesa.

O recurso não será, pois, admitido.

- Decisão -

6 - Termos em que, face ao exposto, acorda-se em não admitir o presente recurso de revista, por não se mostrarem preenchidos os respectivos pressupostos legais.


Custas do incidente pela recorrente, com dispensa do remanescente da taxa de justiça devida pelo recurso, ao abrigo do n.º 7 do artigo 6.º do RCP, pois que o comportamento processual das partes a tal não obsta e a causa se apresenta “de complexidade inferior à comum”.

Lisboa, 30 de Setembro de 2020. - Isabel Marques da Silva (relatora) - Francisco Rothes - Aragão Seia.