Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0269/02
Data do Acordão:05/18/2004
Tribunal:PLENO DA SECÇÃO DO CA
Relator:ISABEL JOVITA
Descritores:RECURSO CONTENCIOSO.
LEGITIMIDADE ACTIVA.
INTERESSE LEGÍTIMO.
PRORROGAÇÃO.
CONCESSÃO.
JOGOS DE FORTUNA OU AZAR
Sumário:I- Está-se perante um interesse legalmente protegido quando a lei não protege directamente um interesse particular, mas um interesse público que, se for correctamente prosseguido, implicará a satisfação simultânea do interesse individual.
II- Os titulares de interesses legalmente protegidos, por força do disposto no nº 4 do artº 268º da C.R.P. têm o direito de impugnar contenciosamente as decisões da Administração conexas com esses interesses.
III- Desenvolvendo a recorrente a sua actividade no sector turístico em geral e na exploração de zonas de jogo de fortuna ou azar em particular, como alega, tem um interesse conexo com o interesse público do fomento turístico que o acto recorrido visa realizar
IV- É, pois, titular de um interesse legalmente protegido, tendo legitimidade para interpor recurso contencioso do acto que autorizou a prorrogação da concessão da exploração de determinada zona de jogo de fortuna ou azar, estando abrangida pela garantia constitucional do nº 4 do artº. 268º da C.R.P.
Nº Convencional:JSTA00060510
Nº do Documento:SAP200405180269
Data de Entrada:10/08/2003
Recorrente:A...
Recorrido 1:PMIN
Votação:MAIORIA COM 2 VOT VENC.
Meio Processual:REC JURISDICIONAL.
Objecto:AC STA.
Decisão:PROVIDO.
Área Temática 1:DIR ADM CONT - REC JURISDICIONAL.
Legislação Nacional:RSTA57 ART46 N1.
CONST97 ART268 N4.
DL 422/89 DE 1989/12/02 ART10 N2.
Jurisprudência Nacional:AC STA PROC27016 DE 2001/03/28.
Referência a Doutrina:FREITAS DO AMARAL DIREITO ADMINISTRATIVO 1988 VOLII PAG90 PAG98.
Aditamento:
Texto Integral: Acordam no Pleno da 1ª Secção do Supremo Tribunal Administrativo:
A... recorre para este Pleno do acórdão da Subsecção de fls. 211 e segs. que, por ilegitimidade da recorrente, rejeitou o recurso contencioso por ela interposto do acto administrativo de prorrogação do contrato de concessão da Zona de Jogo do ..., publicado sob a forma de Dec. Lei n° 275/2001, de 17 de Outubro, praticado pelo Governo.
Nas suas alegações formulou as seguintes conclusões:
O acórdão da Secção a quo decide que, face aos factos apresentados, bem como à moldura da lei aplicável, não se revela que da anulação do acto de prorrogação resulte uma vantagem para a Recorrente, removendo uma lesão aos seus direitos ou interesses legalmente protegidos.
Decide deste modo, dado que considera que os investimentos realizados pela Recorrente tendo em vista uma futura e eventual candidatura à exploração da zona de jogo do ... não merecem qualquer tutela jurídica, uma vez que, findo o prazo contratual actual, não existiria da parte da Administração, a obrigação de abrir concurso público para a referida concessão.
Deste modo, não existiria qualquer expectativa legítima, interesse ou direito que ficasse frustrado com o acto objecto de recurso, sendo que, caso o mesmo viesse a ser anulado, daí não resultaria qualquer vantagem para a Recorrente, não lhe assistindo, consequentemente, o interesse pessoal, directo e legítimo a que se refere o artigo 46°, n.º 1 do Regulamento do Supremo Tribunal Administrativo.
Em apoio da posição da Recorrente sublinhou-se o parecer emitido a fls. 209, pela Senhora Procuradora da República, que, "acompanhando a argumentação da Recorrente sou de parecer que deverá improceder a questão prévia por se afigurar que aquela é titular de um interesse pessoal, directo e legítimo".
Consequentemente, reproduziram-se, no essencial, os argumentos apresentados pela Recorrente, os mesmos que foram subscritos, sem reservas, pela Exmª Procuradora.
Em suma, alega a Recorrente:
Que, tendo capacidade jurídica para tal - a qual decorre, desde logo, do seu objecto social - poderia concorrer através de concurso público aberto para o efeito, para a exploração da zona permanente de jogo de fortuna ou azar do ...;
Que, a partir do momento em que o acto de prorrogação não respeitou os termos em que esta é permitida pelo mencionado decreto-lei n.o 422/89, de 02 de Dezembro, os investimentos realizados pela Recorrente, tendo em vista uma eventual abertura de novo concurso público, tornam-na efectivamente lesada;
Na medida em que, se esse acto ilegal de prorrogação não existisse, uma das possíveis soluções a adoptar pelo Governo, findo o prazo da actual concessão, seria, de facto, a abertura do referido concurso público.
Pelo que se encontram verificados na esfera da Recorrente, no caso em apreço, os pressupostos de um interesse pessoal, directo e legítimo, na medida em que
(1) "esta, através da invalidação do acto administrativo impugnado (o decreto-lei n.º 275/2001, de 17 de Outubro, na parte que prorroga a concessão da exploração da zona de jogo de fortuna ou azar do ...),
(2) espera obter uma vantagem ou benefício que se repercuta necessariamente na sua esfera jurídica (a eventual abertura de um concurso público, ou a abertura de negociações directamente com os possíveis interessados)",
Sendo que esta vantagem não terá que ser uma vantagem certa, podendo ser eventual sem que esse aspecto lhe retire a característica de consubstanciar o referido interesse.
Com o argumento de que a oportunidade de proceder à abertura de um eventual concurso público para a referida concessão cabe nos denominados poderes discricionários da Administração, a Secção a quo acaba por recusar legitimidade à Recorrente, abstendo-se de conhecer sobre o objecto do recurso.
Ora,
Para chegar a esta conclusão, a Secção teve de realizar determinados julgamentos prévios sobre os factos apresentados que são incompatíveis com uma apreciação liminar sobre a legitimidade das partes, numa sentença em que expressamente se absteve de conhecer o pedido, nomeadamente, que considerar (ainda que subliminarmente), que o acto em causa estava correctamente fundamentado.
Para além disso, a Secção, para poder chegar a esta conclusão, teve de partir de uma concepção excessivamente restritiva do "interesse pessoal, directo e legítimo" pressuposto do recurso contencioso de anulação, manifestamente contrária ao espírito do artigo 268°, nº 4 da Constituição da República Portuguesa, concepção esta que não admite a tutela jurisdicional de uma legitima expectativa eventual (possível ou não de se vir a realizar), ilegitimamente frustrada.
E que, consequentemente, não deverá ser admissível, por contrariar abertamente a tutela jurisdicional efectiva consubstanciada no referido artigo. A posição da Recorrente encontra igualmente importante apoio na doutrina, dizendo o Prof. Vieira de Andrade, acerca da legitimidade passiva no recurso contencioso de anulação (in A Justiça Administrativa - Almedina, 1997, pág. 97 e 98), que "aos particulares que tenham um "interesse directo pessoal e legítimo” na anulação do acto – isto é, quem retire imediatamente (directamente) do facto da anulação um benefício específico não contrário à lei (legítimo) para a sua esfera jurídica pessoal, mesmo que não invoque a titularidade de uma posição jurídica subjectiva lesada (ou seja, mesmo que a norma pretensamente violada pela Administração não vise a protecção, em primeira ou sequer em segunda linha, de um bem jurídico seu) mas tão só um interesse simples (que na situação concreta será obviamente diferenciado) - no âmbito da chamada "acção particular".
Pelo que, deverá ser admitida legitimidade à Recorrente, considerando-se, nos termos e com os fundamentos acima expostos, que lhe assiste, efectivamente, um interesse pessoal, directo e legítimo no presente recurso de anulação, devendo os autos baixar à Subsecção competente e seguir seus termos até final.
Contra-alegaram a autoridade recorrida e a recorrida particular ....
Nas suas contra-alegações, concluiu esta última:
a) O presente recurso jurisdicional tem por objecto o douto acórdão recorrido que julgou procedente a excepção da ilegitimidade activa invocada pelas contra-interessadas;
b) A ora recorrente no seu requerimento inicial requereu a anulação do acto que prorrogou, por 15 anos, o contrato de concepção do exclusivo da exploração de jogos de fortuna ou azar, na zona permanente de jogo do ..., arguindo os vícios de forma por faltas de fundamentação, violação do principio da igualdade e violação do principio da proporcionalidade;
c) As recorridas particulares arguiram a ilegitimidade activa da recorrente por ausência de um interesse directo, pessoal e legitimo;
d) A recorrente em sede de resposta veio pugnar pela sua legitimidade alegando que: (i) é uma sociedade de direito estrangeiro que congrega os interesses de diversos accionistas com interesses no sector turístico em geral e na exploração de zonas de jogo de fortuna ou azar em particular; (ii) despendeu avultadas quantias, contratando diversos peritos e encomendando estudos, tendo em vista a apresentação de proposta em concurso publico a apresentar no final do prazo da concepção da zona de jogo de fortuna ou azar em Portugal, nomeadamente na zona do ...; (iii) o interesse e o investimento que levou a cabo assentaram na legitima expectativa de que no fim do prazo da concessão fosse efectivamente aberto concurso para nova concessão; (iiii) o prazo do concurso estar a terminar e não se verificarem os fundamentos que poderiam justificar uma eventual prorrogação do mesmo;
e) O Tribunal veio a dar razão aos argumentos invocados pelas recorridas particulares e decidiu pela ilegitimidade da recorrente, com fundamento na falta de interesse pessoal e directo;
f) Fundamentou a sua argumentação legal no nº 1 do artº 46° do Regulamento do Supremo Tribunal Administrativo, aplicável ex vi artº 5° do ETAF e artº 2° e 24° al) da LPTA e conjugou-os com o n° 4 do artº 268° da Constituição da Republica;
g) Fundamentou a sua argumentação jurisprudencial no acórdão do Pleno da 1ª secção do STA, de 15-1-97 Recurso: n° 29150 e no acórdão do mesmo Pleno, de 15-10-99, recurso n° 41897;
h) A recorrente nas suas alegações, vem admitir que, de facto, não tem um interesse directo na procedência do recurso, afirma: "sendo que esta vantagem não terá de ser uma vantagem certa, podendo ser eventual sem que esse aspecto lhe retire a característica de consubstanciar o referido interesse "; e,
i) Vai mais longe, admite que o interesse se pode configurar como directo, mas na sua vertente negativa, afirma: "sempre se dirá que esse efeito directo existe efectivamente, embora na sua vertente negativa"
j) Alicerçada nestes pressupostos, afirma que a argumentação do Tribunal e das Recorridas partilham uma concepção dos poderes discricionários que se compadece com a "permissividade de uma certa arbitrariedade"; e,
k) Que o Tribunal e as Recorridas partilham uma visão excessivamente restritiva de interesse pessoal, directo e legítimo, contrária ao espírito da Constituição da República Portuguesa; ora,
l) No presente recurso o que está sub judice é uma questão de natureza formal, qual seja a da determinar se o Tribunal a quo ao julgar não verificado, em relação à Recorrente, o pressuposto processual da legitimidade activa o fez em conformidade com a lei ou, pelo contrário, não se conformou com ela;
m) O douto acórdão recorrido, salvo melhor opinião, não merece qualquer reparo, uma vez que identificou todos os factos relevantes, configurou a situação jurídica nos seus precisos termos e aplicou a lei em vigor, em conformidade com a melhor interpretação que a jurisprudência e doutrina vêm a fazer dela, sem que a Recorrente o tenha conseguido pôr em causa;
n) É manifesto, que, contrariamente à argumentação da Recorrente, o legislador, no contencioso de anulação, exige como necessário um interesse que seja simultaneamente pessoal, directo e legítimo, nos termos do disposto no art. 46°, n° 1 do R.S.T.A, aplicável por força do artigo 24°, al. b) da L.P.T.A., considerando o disposto no art. 268°, nº 4 da C.R.P.;
o) Assim o tem entendido a jurisprudência e a doutrina que, em atenção à natureza subjectiva que caracteriza o nosso ordenamento administrativo, têm configurando a legitimidade activa pelo critério do interesse subjectivo do particular/recorrente e a legitimidade activa do Ministério Público pelo critério da legalidade objectiva; pelo que,
p) Decai, por contrária a toda jurisprudência e doutrina, a argumentação da Recorrente quer na configuração que faz do interesse directo pessoal e legítimo, quer quando alicerça a sua legitimidade na ilegalidade que imputa ao acto recorrido, afirmando que é dessa ilegalidade que decorre o seu prejuízo; acresce que,
q) O Tribunal jamais poderia concluir pela legitimidade da Recorrente, na medida em que da eventual anulação do acto recorrido não resultava para o Governo qualquer obrigação legal que se repercutisse na esfera jurídica da Recorrente; aliás,
r) A Recorrente nem sequer se poderia dirigir ao Tribunal para que ele fixasse os actos que o Governo deveria praticar, uma vez que o Governo ficaria com a possibilidade de escolher qual a medida a tomar de entre as possibilidade que a lei lhe confere e que vão desde a extinção da zona de jogo até à sua adjudicação sem concurso;
s) Pelo que jamais, no caso em apreço se poderia configurar um interesse directo;
t) Da anulação do acto a Recorrente não retirava sequer uma expectativa, uma vez que se abria um leque de possibilidades que ficavam à livre escolha do Governo.
A autoridade recorrida formulou as seguintes conclusões:
A) O acto de autorização de prorrogação do prazo do actual contrato de concessão de exploração da zona de jogo permanente do ... não está sujeito a concurso público.
É no momento do concurso público, não o da autorização de prorrogação do prazo do contrato de concessão, que se coloca a questão da legitimidade dos diferentes interesses em presença.
B) O objecto da concessão consubstancia-se no acervo de poderes e deveres relativos à actividade concedida- a exploração de jogos de fortuna ou azar na zona de jogo permanente do ... - que façam parte das atribuições e competências da entidade concedente.
Os poderes e direitos sobre que a concessão incide, ou a que diz respeito, relacionam-se com o conceito de "interesse público" ou, até mesmo, de "serviço público".
Esses poderes e direitos constam do "estatuto" da própria concessão, que se consubstancia no "contrato administrativo" outorgado entre o Estado e Sociedade Anónima de Responsabilidade Limitada “...”.
C) Nesse sentido, o objecto do processo diz respeito a questões de legalidade, não de mérito.
Ora, o que parece resultar das alegações de recurso da Recorrente são questões de mérito, não de legalidade.
D) O interesse directo da Recorrente para efeitos de legitimidade só existirá se da averiguação, através dos termos em que a petição e a pretensão são formuladas, resultar que da anulação do acto advirá, como consequência directa, qualquer utilidade ou vantagem efectiva para a Recorrente.
Esse interesse afere-se pela utilidade ou vantagem que a Recorrente inicialmente alega pretender obter com o provimento do recurso, não pela alegação da titularidade de um "direito subjectivo" ou mero "interesse simples".
E) Na óptica do Estado, representado pelo Governo, a política de promoção turística, que se apresenta como finalidade do acto de autorização de prorrogação do prazo do contrato de concessão, mostra-se, "in casu", como a concretização desse "interesse público", que se reputa de "relevante".
O procedimento utilizado, além de pertinente, objectivo e legal, mostra-se suficiente quanto à salvaguarda e protecção dos princípios constitucionais de igualdade, proporcionalidade, justiça, imparcialidade, transparência e boa-fé referenciados no n° 2 do artigo 266° da Constituição da República.
Ao Estado, representado pelo Governo, assiste, constitucional e legalmente, o direito de prosseguir, mediante a autorização de prorrogação antecipada do prazo do contrato de concessão, a promoção de uma particular política de fomento turístico em sintonia com as suas próprias concepções de política económica para o sector do turismo.
F) O "interesse simples" reclamado pela Recorrente, densificador, em seu entender, da sua legitimidade processual activa, entra aqui em contradição com a própria lei.
O que a Recorrente impugna é o acto de autorização de prorrogação do prazo do contrato de concessão. Essa autorização vem prevista e concretizada em lei (artigo 13° da "Lei do Jogo" e Decreto-Lei n° 275/2001, de 17 de Outubro).
E se a iniciativa dessa prorrogação, nos termos do disposto no artigo 13° da "Lei do Jogo", só pode provir do Governo ou mediante pedido fundamentado das concessionárias "que tenham cumprido as suas obrigações", não se vê bem como o possa fazer um terceiro, a Recorrente, através de recurso contencioso de anulação, não sendo parte no contrato de concessão ao qual o acto administrativo impugnado se encontra objectivamente subordinado.
A Exmª Procuradora Geral Adjunta proferiu o parecer de fls. 334, que aqui se dá por inteiramente reproduzido, concluindo no sentido de o recurso não merecer provimento.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
O acórdão recorrido rejeitou, por ilegitimidade activa, o recurso contencioso interposto pela Recorrente do acto de autorização de prorrogação do prazo do contrato de concessão do exclusivo da exploração dos jogos de fortuna ou azar na zona permanente de jogo do ....
Entendeu-se no aresto sob recurso, que:
A recorrente não tinha interesse directo, pessoal e legítimo na anulação do acto, como exige o artº 46°, n° 1, do Regulamento do STA porque, face aos factos invocados na petição, na moldura da lei aplicável, não lhe resultaria da anulação do acto uma vantagem, removendo uma lesão aos seus direitos ou interesses legalmente protegidos; operada pelo acto recorrido.
Depois de analisar o regime jurídico aplicável ao contrato em causa, acrescentou:
"...atentos os traços expostos do regime jurídico aplicável ao contrato de concessão em referência, claro é que a Recorrente não detinha nenhuma expectativa com legitimação legal de ver aberto concurso com vista à celebração de contrato de concessão do exclusivo de exploração dos jogos de fortuna na zona de jogo permanente do ..., findo o prazo do contrato de concessão em vigor".
"Como contraprova da sua falta de legitimidade activa para o "presente recurso, cabe ainda dizer que, a eventual anulação do acto, com a execução do julgado anulatório, não garantiria à Recorrente a abertura de concurso para a celebração do contrato de concessão em causa, pois, além do mais, a Administração gozava do poder de livre escolha de nem sequer outorgar a concessão e, decidindo outorgá-la, poder adjudicá-la sem concurso, nos termos e condições do supra citado artigo 10°, nº 2 do Decreto-Lei n° 422/89."
Inconformada com esta decisão veio a recorrente defender a sua legitimidade, imputando erro de julgamento ao acórdão da Subsecção, designadamente por partir de uma concepção excessivamente restritiva do "interesse pessoal, directo e legítimo", e por ter realizado julgamentos prévios sobre os factos alegados incompatíveis com uma apreciação liminar sobre a legitimidade das partes.
Vejamos, pois, se a interpretação que o acórdão recorrido fez das regras da legitimidade activa e a sua aplicação ao caso concreto está ou não correcta.
Nos termos do artº 46° do RSTA, aplicável por força da alínea b) do artº 24° da LPTA, os recursos podem ser interpostos:
1º Pelos que tiverem interesse directo, pessoal e legítimo na anulação do acto administrativo susceptível de recurso directo para a secção;
2° Pelo Ministério Público.
Há, porém, que conexionar os apontados requisitos com o disposto no artº 268° n° 4 da CRP que garante o direito de impugnação contenciosa não só aos titulares de direitos, mas também aos titulares de interesses legalmente protegidos.
Há um interesse legalmente protegido quando a lei não protege directamente um interesse particular, mas um interesse público que, se for correctamente prosseguido, implicará a satisfação simultânea do interesse individual; neste caso, o particular não pode exigir da Administração a satisfação do seu interesse, apenas podendo exigir-lhe que não o prejudique ilegalmente. Por isso, para ser possível esta exigência, é necessário que exista uma norma que estabeleça a forma de a Administração realizar o interesse público na situação conexa com o interesse particular, com a consequente proibição de esta actuar de forma ilegal. Está-se aqui perante um direito à legalidade das decisões da Administração que possam afectar um interesse próprio (Freitas do Amaral, Direito administrativo, 1988, vol. II, p. 90 e 98, e acórdão deste STA, de 28.3.2001, rec. 27016).
Como já se referiu, a Recorrente interpôs recurso contencioso do acto de autorização de prorrogação do prazo de concessão do exclusivo da exploração dos jogos de fortuna ou azar na zona permanente de jogo do ..., imputando-lhe o vício de forma por falta de fundamentação e vícios de violação dos princípios da proporcionalidade e da igualdade.
Para fundamentar a sua legitimidade alegou, em resumo que, se o acto for anulado poderá haver lugar à abertura de concurso público para a concessão da zona de jogo em causa ou, na hipótese de o Governo não seguir esta via, à abertura de negociações directamente com os possíveis interessados, sendo que qualquer das soluções lhe traria uma vantagem ou beneficio que se repercutiria necessariamente na sua esfera jurídica, sendo que, nessa perspectiva, tem vindo a desenvolver, desde há vários meses, estudos na área de mercado de jogos de fortuna ou azar, em Portugal, nomeadamente na zona do ..., para o que dispendeu avultadas quantias, contratando diversos peritos e encomendando estudos e análises para realização de projectos de investimento.
No caso concreto, dúvidas não há de que a recorrente não é titular de um direito subjectivo a que seja aberto novo concurso para a exploração de jogos de fortuna ou azar na zona de jogo do ..., pois que a lei não lhe reconhece o direito a evitar a prorrogação do prazo do contrato de concessão do exclusivo da exploração desses jogos à recorrida particular, impondo ao Governo a obrigação de abrir concurso.
Afigura-se-nos, no entanto, contrariamente ao decidido no acórdão recorrido, ser a mesma detentora de um interesse legítimo em obrigar a cumprir a legalidade relativamente ao acto de prorrogação do referido contrato.
Na verdade, desenvolvendo a recorrente a sua actividade no sector turístico em geral e na exploração de zonas de jogo de fortuna ou azar em particular, como alega, tem um interesse conexo com o interesse público de fomento turístico que o acto recorrido visa realizar , pelo que tem direito a que o seu interesse não seja lesado de forma ilegal. Nesta perspectiva, a recorrente é titular de um interesse legalmente protegido, estando, por isso abrangida pela garantia constitucional do n° 4 do artº 268° da CRP.
Por outro lado, a ser tal acto declarado ilegal com fundamento em vício, incompatível com a sua renovação (e a recorrente invocou vícios desse tipo), para ela adviria a vantagem de, tendo em conta as possíveis soluções a adoptar pelo Governo (eventual abertura de novo concurso ou de negociações directamente com os possíveis interessados), poder vir a concorrer ou a intervir nessas negociações, sendo que, nessa perspectiva, desenvolveu estudos e realizou investimentos.
Como bem refere a recorrente, há um efeito útil que da anulação do acto impugnado para ela resulta directamente e que consiste em não ver ilegalmente frustrada a sua pretensão de concorrer à atribuição da concessão da exploração da referida zona de jogo. Não se trata aqui, pois, de servir a legalidade objectiva que, sem dúvida incumbe ao Ministério Público. A recorrente retira, efectivamente, da pretendida anulação uma vantagem digna de tutela jurisdicional.
Assim, contrariamente ao decidido no acórdão recorrido, é de reconhecer legitimidade à Recorrente, nos termos e para efeito do disposto no artº 46° n° 1 do RSTA e 268° n° 4 da CRP.
Pelo exposto, acordam em conceder provimento ao recurso, revogando o acórdão recorrido e devendo os autos voltar à Subsecção para aí prosseguirem os seus termos, se outra causa a tal não obstar.
Custas pela recorrida particular, fixando-se a taxa de justiça e a procuradoria, respectivamente, em 400 e 200 euros.
Lisboa, 18 de Maio de 2004
Isabel Jovita – Relatora – Santos Botelho – Rosendo José – Pires Esteves – Azevedo Moreira – Pais Borges – Jorge de Sousa – Maria Angelina Domingues (vencida, com a fundamentação constante do acórdão recorrido, de que fui relatora) – António Samagaio – (vencido pelas razões constantes do acórdão recorrido de que fui adjunto).