Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:074/22.3BCLSB
Data do Acordão:10/20/2022
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:MARIA DO CÉU NEVES
Descritores:INFRACÇÃO DISCIPLINAR
REGULAMENTO DISCIPLINAR
COMPETIÇÃO DESPORTIVA OFICIAL
APLICAÇÃO DA LEI NO TEMPO
Sumário:
Nº Convencional:JSTA00071579
Nº do Documento:SA120221020074/22
Data de Entrada:09/27/2022
Recorrente:FEDERAÇÃO PORTUGUESA DE FUTEBOL
Recorrido 1:SPORTING CLUBE DE PORTUGAL – FUTEBOL, SAD (E OUTROS)
Votação:UNANIMIDADE
Legislação Nacional:ARTS. 11 e 112º do RD/LPFP2020
ARTS. 11º e 112º do RD/LPFP2021
ART. 71.º, N.º 4 da LEI N.º 27/2007
Aditamento:
Texto Integral:
ACORDAM NA SECÇÃO DE CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO DO SUPREMO TRIBUNAL ADMINISTRATIVO

1. RELATÓRIO

A……………. (A…………) e a Sporting Clube de Portugal - Futebol SAD (Sporting SAD), devidamente identificados nos autos, recorreram para o Tribunal Arbitral do Desporto (TAD), do Acórdão do Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol (FPF), que condenou o primeiro na multa de 6.380.00€ e na sanção de suspensão de 38 dias, pela prática da infracção disciplinar p. e p. pelos arts. 136º, nº 1, e 112º, nº 1, ambos do Regulamento Disciplinar das Competições Organizadas pela Liga Portuguesa de Futebol Profissional de 2020 (RDLPFP 2020) e a segunda na multa de 20.910.00€, pela prática da infracção disciplinar p. e p. pelo artº 112º, nºs 1, 3 e 4, do RDLPFP.
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Por acórdão do TAD, proferido em 10 de Fevereiro de 2022, foi decidido julgar parcialmente procedente o processo arbitral e, consequentemente, revogar a decisão condenatória recorrida.
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A FPF, A........................ [a título subsidiário em sede de ampliação do recurso] e a Sporting SAD [igualmente, a título subsidiário e em sede de ampliação do recurso] apelaram para o TCA Sul e este, por acórdão datado de 19 de Maio de 2022 concedeu provimento ao recurso da FPF, julgou improcedente a ampliação do objecto do recurso deduzida pelos recorridos, revogou o julgado no Tribunal Arbitral do Desporto na parte em que anulou a decisão condenatória recorrida, julgou totalmente improcedente o recurso interposto por A........................ perante o TAD, e, em substituição, julgou procedente o recurso interposto pela Sporting SAD perante o TAD, no segmento em que solicitou a anulação do acórdão do Conselho de Disciplina da FPF acima referido de 20.07.2021 na parte que lhe respeita, anulando tal acórdão nessa parte.
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Deste acórdão proferido pelo TCAS, apenas a FPF interpôs o presente recurso de revista, tendo na respectiva alegação, formulado as seguintes conclusões:
«1. A Recorrida vem interpor recurso de revista para o STA do Acórdão proferido pelo TCA Sul em 19 de maio de 2022, na parte em que ficou vencida, mais concretamente, na parte em que se negou provimento ao recurso apresentado pela Federação Portuguesa de Futebol absolvendo-se a Sporting Clube de Portugal – Futebol SAD – doravante Sporting SAD –, mantendo-se nessa medida, apesar de, por razões diferentes, a decisão que havia sido proferida pelo TAD. Esta instância, por seu turno, havia decidido revogar a decisão de aplicação à ora Recorrida da multa por força do artigo 112º, nº 1, 3 e 4 do RD da LPFP, pelas razões aduzidas infra.
2. A questão em apreço diz respeito à responsabilização dos clubes e respetivos dirigentes e/ou agentes desportivos pelas declarações e/ou publicações consideradas ofensivas da honra e reputação de agentes desportivos e de órgãos da estrutura desportiva e que podem com isso afetar a própria competição, o que, para além de levantar questões jurídicas complexas, tem assinalável importância social uma vez que, infelizmente, tais declarações têm eco nos episódios de violência em recintos desportivos – e fora dos mesmos – que têm sido uma constante nos últimos anos em Portugal e o sentimento de impunidade dos clubes dado por decisões como aquela de que agora se recorre nada ajudam para combater este fenómeno.
3. A Recorrida não pretende fazer deste recurso de revista e do STA uma terceira (ou quarta, se tivermos em consideração a decisão proferida pelo Conselho de Disciplina da Requerida) instância de apreciação deste caso, o que, como se sabe, não é possível.
4. Contudo, a questão essencial trazida ao crivo deste STA – responsabilização dos clubes e respetivos dirigentes e/ou agentes desportivos, pelas declarações e/ou publicações que difundem ou fazem difundir nas suas redes sociais e nos meios de comunicação social - revela uma especial relevância jurídica e social e sem dúvida que a decisão a proferir é necessária para uma melhor aplicação do direito.
5. Recorde-se que, em causa nos presentes autos, estão declarações do Recorrido A........................ em órgão de comunicação privada da Recorrida Sporting SAD – in casu, na Sporting TV -, consideradas ofensivas da honra e da reputação dos órgãos da estrutura desportiva e dos seus membros, como bem notou o Tribunal a quo.
6. Por um lado, se é certo que o futebol é a modalidade desportiva com mais relevo na sociedade portuguesa, tal não torna os litígios com ele relacionados automaticamente relevantes do ponto de vista social, pese embora, possam ter o seu espaço cativo diário nos órgãos de comunicação social.
7. Porém, o que assume especial relevância social é a forma como a comunidade olha para o crescente fenómeno de violência generalizada no futebol – seja a violência física, seja a violência verbal, seja perpetrada por adeptos, seja perpetrada pelos próprios clubes e/ou dirigentes dos clubes, através dos seus meios de comunicação oficiais ou outros.
8. De igual forma, também este Supremo Tribunal Administrativo, quando aceitou conhecer este tipo de declarações, num situação muito idêntica à dos presentes autos, entendeu, de forma clara, que imputações destas “atingem não só os árbitros envolvidos, como assumem potencialidade para gerar um crescente desrespeito pela arbitragem e, em geral, pela autoridade das instituições e entidades que regulamentam, dirigem e disciplinam o futebol em Portugal, sendo o sancionamento dos comportamentos injuriosos, difamatórios ou grosseiros necessário para a prevenção da violência no desporto, já que tais imputações potenciam comportamentos violentos, pondo em causa a ética desportiva que é o bem jurídico protegido pelas normas em causa.”
9. É também verdade que o STA não pode ser chamado a pronunciar-se sobre todas as questões que lhe são colocadas, mas apenas quando a sua intervenção seja necessária para uma melhor aplicação do direito.
10. O bem jurídico a proteger no âmbito disciplinar é distinto daquele que se visa proteger no âmbito penal, ainda que existam normas punitivas semelhantes, por vezes coincidentes, que possam induzir o aplicador em erro. Deste modo, a análise subjacente num e noutro caso tem, também, de ser muito distinto.
11. A afirmação de que a responsabilidade disciplinar é independente e autónoma da responsabilidade penal está, desde logo, presente na Lei e nos Regulamentos Federativos.
12. Naturalmente que as sociedades desportivas, clubes e agentes desportivos não estão impedidos de exprimir pública e abertamente o que pensam e sentem. Contudo, os mesmos estão adstritos a deveres de respeito e correção que os próprios aceitaram determinar e acatar mediante aprovação do RD e RC da LPFP.
13. Quando uma entidade, qualquer que seja, aceita aderir a determinada associação ou grupo organizado, aceita também as suas regras, deontológicas, disciplinares, sancionatórias, etc..
14. Ademais, a questão em apreço é suscetível de ser repetida num número indeterminado de casos futuros, porquanto este tipo de casos são cada vez mais frequentes, o que é facto público e notório, situação que se tornará mais recorrente, caso o entendimento do Tribunal a quo prevaleça.
15. O TCA entendeu, no seu aresto, que o conteúdo das publicações em causa, não obstante terem relevância disciplinar e terem sido reproduzidas e divulgadas pela imprensa privada da Recorrida Sporting Clube de Portugal – Sporting SAD, nomeadamente pelo canal Sporting TV, no Programa ..........., não podem ser imputadas a esta Recorrida, mas sempre tendo por referência as normas penais que sancionam condutas típicas dos crimes cometidos por meio de serviços de programas televisivos e de serviços audiovisuais a pedido.
16. E é aí que reside o grande equívoco dos Exmºs. Senhores Desembargadores. Com efeito, a questão deve ser colocada, como acima se referiu, no âmbito da apreciação no campo disciplinar e não no campo do direito penal, autónomo e distinto deste.
17. Incorre na infração disciplinar p. e p. no artigo 112º, nº 1, 3 e 4 do RDLPFP, a SAD que através dos seus canais de comunicação e informação, difunda declarações visando a atuação dos agentes de arbitragem e a associação que os representa, bem como juízos gravosos para o interesse da própria competição profissional de futebol, utilizando expressões objetivamente injuriosas, difamatórias ou grosseiras e, consequentemente, contrárias à ética desportiva que deve pautar as relações entre as instituições.
18. Com efeito, não temos qualquer dúvida, andou bem o Conselho de Disciplina da Recorrente ao condenar a Recorrida Sporting SAD, pela prática da infração disciplinar p. e p. pelo art. 112º n.ºs 1, 3 e 4, do RDLPFP 2020, porquanto as declarações proferidas pelo Recorrido A........................ são imputáveis à Recorrida Sporting Clube de Portugal – Futebol SAD, dado que as mesmas foram reproduzidas e divulgadas pela sua imprensa privada (canal Sporting TV).
19. Sucede que, ao contrário do que entendeu o Tribunal a quo, tal imputação não é alterada pela nova redação do nº 4 do artigo 112.º do RD da LPFP.
20. Desde logo, o direito disciplinar e o direito penal (e também o contraordenacional) são, consabidamente, autónomos – Atente-se aos artigos 6.º do RD da LPFP e 55.º do RJFD.
21. Tal autonomia, caracteriza-se, no essencial, pela coexistência de espaços valorativos e sancionatórios próprios, tendo em conta a diversidade dos interesses específicos a que se dirige cada um daqueles procedimentos sancionatórios, bem como dos fundamentos e fins das respetivas penas e sanções: o processo criminal dirigido a interesses e necessidades específicas da sociedade em geral; o processo contra-ordenacional dirigido a interesses e necessidades de mera ordenação social e o processo disciplinar dirigido a interesses e necessidades de determinada instituição ou grupo social.
22. Com efeito, a existência de um ilícito disciplinar não está prejudicada ou condicionada pela decisão que, sobre os mesmos factos, tenha sido, ou venha a ser tomada em processo penal ou contra-ordenacional (cf. art. 6º do RD da LPFP e artigo 56º do RJFD) ou, por outras palavras, a condenação pela prática de uma infração disciplinar não depende da responsabilização que, pelos mesmos factos, possa ocorrer em sede contra-ordenacional ou penal.
23. No caso, cabe desde já chamar à colação que, ao contrário daquilo que parece ter entendido o Tribunal a quo, a Lei nº 27/2007, de 30/7, na redação da Lei nº 74/2020, de 19/11 (Lei da Televisão e dos Serviços Audiovisuais a Pedido) não tem por objeto, apenas, estabelecer um regime sancionatório criminal mas sim, e como determina o artigo 1.º da mencionada Lei, “regular o acesso e o exercício de atividades de comunicação social audiovisual, nomeadamente de televisão e de serviços audiovisuais a pedido, bem como certos aspetos relativos à oferta ao público de serviços de plataformas de partilha de vídeo e dos respetivos conteúdos, transpondo para a ordem jurídica interna a Diretiva (UE) 2018/1808 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 14 de novembro de 2018, que altera a Diretiva 2010/13/UE relativa à coordenação de certas disposições legislativas, regulamentares e administrativas dos Estados-Membros respeitantes à oferta de serviços de comunicação social audiovisual (Diretiva Serviços de Comunicação Social Audiovisual), para a adaptar à evolução das realidades do mercado, doravante Diretiva Serviços de Comunicação Social Audiovisual.”
24. Aqui chegados, cabe questionar se a tipificação dos “Crimes cometidos por meio de serviços de programas televisivos e de serviços audiovisuais a pedido” tal qual consta da Lei nº 27/2007, de 30/7, na redação da Lei 74/2020, de 19/11 (Lei da Televisão e dos Serviços Audiovisuais a Pedido) influencia, de alguma forma, o preenchimento do tipo das infrações disciplinares consagradas no RD da LPFP, designadamente da infração p. e p. pelo artigo 112.º, nºs 1, 3 e 4.
25. Sem qualquer dúvida, e de forma perentória, não!
26. O âmbito de aplicação do artigo 71º da Lei da Televisão cinge-se, portanto, às infrações criminais, não sendo possível, por opção do legislador parlamentar, extrair uma qualquer consequência normativa no que respeita aos ilícitos disciplinares, muito menos ao direito disciplinar desportivo.
27. Com efeito, não podemos conceber, nem existe, tão-pouco, qualquer critério interpretativo, que nos permita interpretar a nova redação do nº 4 do artigo 112º do RD da LPFP da forma como o Tribunal a quo a fez, ou seja, não podemos seguir a interpretação segundo a qual a responsabilidade disciplinar depende do preenchimento de um determinado tipo de crime.
28. Pelo contrário, atendendo a todo o supra exposto, sendo a responsabilidade pela prática da infração disciplinar “Lesão da honra e da reputação dos órgãos da estrutura desportiva e dos seus membros” independente, como não podia deixar de ser, do disposto nas leis que regulam a imprensa, a rádio e a televisão, bem como não se referindo aquela Lei a ilícitos disciplinares, muito menos ao direito disciplinar desportivo, de forma alguma podemos conceber o entendimento segundo o qual a conduta sub judice, atendendo à tipificação dos “Crimes cometidos por meio de serviços de programas televisivos e de serviços audiovisuais a pedido”, deixou de ser disciplinarmente punível.
29. Outro argumento adjuvante que afasta liminarmente a interpretação do Acórdão recorrido, radica no facto de o regulador desportivo não poder, louvando-se em normas de direito penal, afastar a responsabilidade disciplinar de certos agentes desportivos em caso de violação das regras relativas à ética desportiva.
30. O artigo 53.º do RJFD dispõe que o regime disciplinar deve prever a sujeição dos agentes desportivos a deveres gerais e especiais de conduta que tutelem os valores da ética desportiva e da transparência e verdade das competições desportivas.
31. Permitir que o regulador desportivo (no seu exercício de autorregulação) vá abrindo espaços “vazios” de responsabilidade disciplinar sem amparo nos diplomas legais que definem as suas competências, constitui, não só um obstáculo à proteção dos interesses públicos que o ordenamento desportivo visa salvaguardar, como também uma flagrante violação do princípio (constitucional) da legalidade da administração e da imparcialidade administrativa (artigo 266º, nº 2 CRP).
32. Por fim, sempre se dirá que, quando muito, e naquilo que um regulador dotado de normal diligência, clareza e razoabilidade, procurou alcançar em termos de efeito útil com tal alteração normativa, é a densificação do conceito de imprensa privada, máxime, normativizando que deverá ser tido em conta o que se dispõe nas leis que regulam a imprensa, a rádio e a televisão, desde logo encimado pela própria Lei de Imprensa, Lei nº 2/99, de 13 de Janeiro, na sua redação atualmente em vigor, em sede de definição de imprensa, prevista no artigo 9º daquele diploma legal.
33. Em suma, a responsabilidade disciplinar dos ora recorridos depende apenas da violação dos deveres gerais ou especiais a que os mesmos estão adstritos no âmbito do RDLPFP e demais legislação desportiva aplicável à realização da competição desportiva em causa (Liga NOS) - cfr. art. 17º, do RDLPFP 2020 – e não do preenchimento dos elementos típicos de qualquer crime.
34. Pelo que, ao decidir da forma que fez, o Tribunal a quo violou o artigo 112.º do Regulamento Disciplinar da LPFP, pelo que, deve ser a revista admitida e o Acórdão recorrido revogado, tendo em vista uma melhor aplicação do direito».
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A “SCP - SAD”, ora aqui recorrida, veio apresentar contra-alegações, tendo concluído da seguinte forma:
«A. No caso em apreço não estão, não podem estar nem a recorrente demonstrou estarem preenchidos os requisitos do recurso de revista, tal como previsto nos números 1 e 2 do CPTA, o que determina a inadmissibilidade do presente recurso de revista;
B. Subsidiariamente, a responsabilização – e consequente condenação – da recorrida, no âmbito do acórdão proferido pelo Conselho de Disciplina da Recorrente não tem como proceder à luz do RD, aplicável in casu, uma vez que os clubes promoveram – e a FPF ratificou/homologou – uma alteração regulamentar com o específico propósito de limitar a sua responsabilidade disciplinar por declarações de terceiros.»
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O “recurso de revista” foi admitido por acórdão deste STA [formação a que alude o nº 6 do artº 150º do CPTA], proferido em 08 de Setembro de 2022.
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O Ministério Público foi notificado do acórdão recorrido, nos termos do disposto nos artºs 146º, nº 2 e 147º do CPTA, não tendo emitido pronúncia.
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Sem vistos, por legalmente não serem devidos.
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2. FUNDAMENTAÇÃO
2.1. MATÉRIA DE FACTO
A matéria de facto assente nos autos, é a seguinte:
«1 - O Demandante A………………. é Diretor de Comunicação da Sporting Clube de Portugal Futebol SAD.
2 - No dia 31 de dezembro de 2020, o Demandante A........................ proferiu as seguintes declarações na rede social Twitter: «Desejos para 2021: que se encontre a vacina para o Mecanismo instalado há muito tempo no futebol e deixe de existir o medo de apitar os 2 habituais favorecidos de acordo com as Leis do jogo. Isto sim seria um Novo Normal no futebol português. Bom ano a todos os Sportinguistas».
3 - O Demandante A........................ proferiu ainda, no Programa “…………” transmitido no canal Sporting TV em 4 de janeiro de 2021, as seguintes declarações: «A perceção que eu tenho (e acredito que é comum a muitos sportinguistas e a muitas pessoas que vêem desporto e futebol em Portugal) é a de que sinto que os árbitros têm medo de tomar certas decisões em caso de dúvida que possam prejudicar o Benfica ou o FC Porto. Infelizmente temos tido vários casos [...], esse tweet já vem em consequência dos últimos dois jogos dos nossos rivais e não me querendo estender muito relativamente à análise desses jogos... quando o resultado estava 1 a 0 contra o FC Porto há um lance claríssimo em que o …………. faz uma falta que é merecedora de cartão amarelo em qualquer parte do mundo e a perceção que eu fico ao ver esse jogo é que não fui só eu que achei isso, o ………….. também deve ter achado porque o tirou no minuto seguinte, aos trinta e tal minutos de jogo, o que não é muito normal vermos um treinador substituir um jogador nessa altura do jogo. Mas não foi exclusivo do FC Porto...nós vimos um jogo do Benfica em que o lance do primeiro golo do Benfica é precedido de uma falta do ………., compreendo que o árbitro não veja, não compreendo que o VAR não assinale. O caso mais caricato acaba por se passar... estava o resultado em 2 a 0 ... há um penalty claríssimo do ………….. e acaba com o jogador do Portimonense a levar amarelo por simulação. Mais uma vez, o erro do árbitro é um erro humano... O que não se percebe muito bem é que depois na Cidade do Futebol alguém que esteja sentado e com todas as repetições e todas as câmaras à sua disposição não reverte essa decisão porque quando um jogador é derrubado daquela maneira e leva um cartão amarelo por simulação é um erro grave e o VAR está lá para evitar que os árbitros tomem esses erros e por isso é uma questão de perceção e acho que é uma perceção que é comum a muita gente que é a de que muitas vezes em caso de dúvida sentimos que os árbitros têm receio ou quase medo de ter decisões que vão em contra o Benfica ou o FC Porto».
4 - Estas declarações tiveram repercussão na imprensa desportiva nacional.
5 - Na época desportiva 2020/2021, a Demandante Sporting Clube de Portugal – Futebol SAD, disputou a Liga NOS, organizada pela Liga Portuguesa de Futebol Profissional e, no seu canal televisivo “Sporting TV”, transmitiu em 4 de janeiro de 2021 o programa “……….no decurso do qual o Demandante A........................ proferiu as declarações citadas em 3 supra».
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2.2. O DIREITO.
O presente recurso intentado pela Federação Portuguesa de Futebol (FPF) tem por objecto o acórdão proferido pelo Tribunal Central Administrativo Sul (TCAS) em 19 de Maio de 2022, na parte em que ficou vencida, ou seja, na parte em que o acórdão recorrido negou provimento ao recurso por si apresentado, absolvendo a Sporting Clube de Portugal-SAD, e mantendo-o nessa medida embora por fundamentação diversa.
Defende a recorrente, em síntese, nos termos vertidos nas conclusões de recurso apresentadas na presente revista que, para além da condenação de A........................ - Director de comunicação da SAD, que foi disciplinarmente punido, com condenação confirmada pelo TCAS e de que não recorreu - também o deverá ser a entidade desportiva que divulgou pela sua imprensa privada - Sporting TV - as respectivas declarações ofensivas por ele produzidas, pois é isso que resulta do estipulado nas normas do dito artigo 112° do RD/LPFP20, pelo que o julgamento realizado pelo TCAS em substituição se mostra errado.
Vejamos.
Consta do acórdão recorrido, em sustento da decisão tomada:
«(…) Sporting SAD
Tendo-se acima concluído que o recorrido A........................, ao proferir as declarações descritas em 2. e 3., dos factos provados, incorreu na prática da infracção disciplinar prevista e punida nos termos das disposições conjugadas dos arts. 112º nº 1 e 136º nº 1, ambos do RDLPFP 2020, e que, portanto, o acórdão arbitral recorrido incorreu em erro ao julgar em sentido distinto, tem também de se concluir que tal acórdão incorreu em erro ao assentar a anulação do acórdão do Conselho de Disciplina da FPF de 20.7.2021, no que respeita à recorrida Sporting SAD, na circunstância de A........................ não ter praticado qualquer infracção disciplinar, o que implica que terá de ser concedido provimento ao recurso interposto pela FPF na parte relativa à recorrida Sporting SAD, bem como a necessidade de conhecer da ampliação do objecto do recurso que esta deduziu.
Ora, relativamente a essa ampliação do objecto do recurso [onde é suscitada a questão relativa à alegada nulidade da acusação por ter sido excedido o prazo previsto no art. 229º n.º 3, do RDLPFP 2020, o qual se consubstanciará num prazo peremptório], a mesma improcede pelas razões acima enunciadas aquando do conhecimento da ampliação deduzida pelo recorrido A.........................
Assim sendo, e no que respeita à recorrida Sporting SAD, cumpre conhecer, em substituição, ao abrigo do art. 149º nº 2, do CPTA, desde logo, da questão por esta suscitada perante o TAD, mas cujo conhecimento ficou prejudicado pela solução dada ao litígio, relativa à exclusão da sua responsabilidade face à alteração do art. 112º n.º 4, do RDLPFP, em 2021 [a Sporting SAD também suscitou perante o TAD a questão relativa à desproporcionalidade da medida da sanção que lhe foi aplicada, cujo conhecimento igualmente ficou prejudicado pela solução dada ao litígio, mas relativamente à qual os poderes do TAD são mais amplos que os deste TCA Sul (que apenas pode sindicar a medida concreta da pena aplicada pela Administração quanto a aspectos vinculados e em casos de erro grosseiro ou manifesto) - neste sentido Ac. do STA de 8.2.2018, proc. nº 1120/17 (“II - Resulta da Lei do TAD, Lei nº 74/2013, de 6 de Setembro na redacção dada pela Lei nº 33/2014 de 16 de Junho, (e nomeadamente do seu art. 3º e 4º nº 3) que este é um verdadeiro tribunal, mas com algumas especificidades relativamente aos tribunais administrativos entre as quais está a possibilidade de reexame das decisões em sede de matéria de facto e de direito das decisões dos Conselhos de Disciplina.” (sublinhados nossos) -, razão pela qual não se pode substituir ao TAD na apreciação desta questão, pelo que, caso se colocasse a necessidade do seu conhecimento, teria de ser determinada a baixa dos autos ao TAD, a fim de a mesma aí ser apreciada].
Vejamos.
A Sporting SAD, e como acima referido, foi condenada pelo acórdão do Conselho de Justiça de 20.7.2021 na multa de € 20 910, pela prática da infracção disciplinar p. e p. pelo art. 112º nºs 1, 3 e 4, do RDLPFP 2020 [ou seja, por as declarações proferidas por A........................ lhe serem imputadas, dado que as mesmas foram reproduzidas e divulgadas pela sua imprensa privada (canal Sporting TV)].
Ora, o nº 4 deste art. 112º foi alterado na assembleia geral extraordinária da Liga Portuguesa de Futebol Profissional de 2 de Junho de 2021, alteração ratificada na assembleia geral extraordinária da FPF realizada a 5 de Julho de 2021, passando a ter a seguinte redacção:
“Sem prejuízo do disposto nas leis que regulam a imprensa, a rádio e a televisão, o clube é considerado responsável pelos comportamentos que venham a ser divulgados pela sua imprensa privada e pelos sítios na Internet que sejam explorados pelo clube, pela sociedade desportiva ou pelo clube fundador da sociedade desportiva, diretamente ou por interposta pessoa.” (sublinhado nosso).
Esta alteração traduziu-se no aditamento do segmento “Sem prejuízo do disposto nas leis que regulam a imprensa, a rádio e a televisão”.
A este propósito dispõe o art. 71º, da Lei nº 27/2007, de 30/7, na redacção da Lei 74/2020, de 19/11 (Lei da Televisão e dos Serviços Audiovisuais a Pedido), o seguinte:
1 - Os actos ou comportamentos lesivos de interesses jurídico-penalmente protegidos perpetrados através de serviços de programas televisivos ou de serviços audiovisuais a pedido são punidos nos termos gerais, com as adaptações constantes dos números seguintes.
2 - Sempre que a lei não estabelecer agravação em razão do meio de perpetração, os crimes cometidos através de serviços de programas televisivos ou de serviços audiovisuais a pedido que não estejam previstos na presente lei são punidos com as penas estabelecidas nas respectivas normas incriminadoras, elevadas de um terço nos seus limites mínimo e máximo.
3 - O director referido no artigo 35.º apenas responde criminalmente quando não se oponha, podendo fazê-lo, à prática dos crimes referidos no nº 1, através das acções adequadas a evitá-los, caso em que são aplicáveis as penas cominadas nos correspondentes tipos legais, reduzidas de um terço nos seus limites.
4 - Tratando-se de declarações correctamente reproduzidas ou de intervenções de opinião, prestadas por pessoas devidamente identificadas, só estas podem ser responsabilizadas, salvo quando o seu teor constitua incitamento ao ódio racial, religioso, político ou gerado pela cor, origem étnica ou nacional, pelo sexo ou pela orientação sexual, ou à prática de um crime, e a sua transmissão não possa ser justificada por critérios jornalísticos.
(…)” (sublinhados nossos).
In casu verifica-se que as declarações descritas em 3., dos factos provados, foram proferidas num programa (“………”) televisivo (canal Sporting TV, em 4.1.2021), por pessoa devidamente identificada (recorrido A........................) e que não constituem incitamento ao ódio racial, religioso, político ou gerado pela cor, origem étnica ou nacional, pelo sexo ou pela orientação sexual, ou à prática de um crime, pelo que, de acordo com o disposto no art. 112º, nº 4, do RDLPFP 2021, a Sporting SAD não pode ser responsabilizada pelas mesmas.
Ora, estatui o art. 11º, do RDLPFP (quer na versão de 2020, quer na versão de 2021), sob a epígrafe “Aplicação no tempo”, que:
“(…)
2. O facto punível como infração por norma legal ou regulamentar no momento da sua prática deixa de ser punível se, em virtude da entrada em vigor de nova disposição legal ou regulamentar, deixar de ser qualificado como infração disciplinar; no caso de já ter havido condenação, ainda que por decisão já definitiva na ordem jurídica desportiva, cessa de imediato a respetiva execução.
(…)”
Do nº 2 deste art. 11º decorre que, embora a Sporting SAD tenha praticado uma infracção disciplinar nos termos do art. 112º nºs 1, 3 e 4, do RDLPFP 2020 [ou seja, por as declarações proferidas por A........................ lhe serem imputadas, dado que as mesmas foram reproduzidas e divulgadas pela sua imprensa privada (canal Sporting TV)], a mesma não é punível, dado que, face ao prescrito no art. 112º n.º (1, 3 e) 4, do RDLPFP 2021, a respectiva conduta já não constitui infracção disciplinar.
Assim sendo, cabe, em substituição, julgar procedente o recurso interposto pela Sporting SAD perante o TAD, no segmento em que solicitou a anulação do acórdão do Conselho de Disciplina da FPF de 20.7.2021 na parte que lhe respeita, anulando tal acórdão nessa parte (cfr. art. 163º nº 1, do CPA de 2015).
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Pelo exposto, cumpre conceder provimento ao recurso jurisdicional interposto pela FPF e julgar improcedente a ampliação do objecto do recurso deduzida pelos recorridos, revogando o acórdão arbitral recorrido no segmento em que anulou a decisão condenatória recorrida, e:
- em consequência, julgar totalmente improcedente o recurso interposto por A........................ perante o TAD;
em substituição, julgar procedente o recurso interposto pela Sporting SAD perante o TAD, no segmento em que solicitou a anulação do acórdão do Conselho de Disciplina da FPF de 20.7.2021 na parte que lhe respeita, anulando tal acórdão nessa parte.».
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Vejamos, sendo que o que está em causa é a ampliação do objecto de recurso que a Sporting SAD deduziu no caso de procedência do recurso interposto e que o acórdão recorrido proferido no TCAS conheceu, em substituição, nos termos do disposto no artº 149º, nº 2 do CPTA.
Neste segmento o acórdão recorrido, face à alteração da redacção do artº 112º, nº 4 do RDLPFP, designadamente, face ao aditamento na nova redacção do teor “Sem prejuízo do disposto nas leis que regulam a imprensa, a rádio e a televisão… entendeu que, embora a Sporting SAD tenha praticado uma infracção disciplinar nos termos do artº 112º, nºs 1, 3 e 4 do RDLPFP 2020, esta infracção deixou de ser punível dado que, face à nova redacção dada a este artigo, a respectiva conduta já não constitui infracção disciplinar.
E é contra esta interpretação que a recorrente se insurge no presente recurso de revista.
Mas sem razão.
Com efeito, se é certo que as normas disciplinares não se confundem com as normas penais, a verdade é que o acórdão recorrido não cometeu o erro de julgamento que lhe é imputado, pois não as confundiu, limitando-se, sempre no âmbito da previsão disciplinar, a aplicar a norma que entretanto e fruto da alteração a que foi sujeita na sua redacção, determinou que aquele “quadro fáctico” deixava de ser punido disciplinarmente, ou seja, aplicou a nova redacção do nº 4, do artº 112º do RDLPFP que tendo entrado em vigor depois da prática do facto e da respectiva condenação, neste momento que a condenação está a ser posta em causa, em sede de recurso [com efeito suspensivo] deixou de qualificar os referidos factos, como infracção disciplinar.
Estamos, pois, contrariamente ao pretendido pela recorrente, no âmbito dos princípios da aplicação das leis no tempo.
E com efeito, é inequívoco que a redacção do artº 112º, nº 4 do RDLPF de 2020, sofreu alterações na nova redacção dada em 2021, alterações estas aprovadas pela Assembleia Geral Extraordinária da Liga Portuguesa de Futebol Profissional de 02.06.2021, alterações ractificadas na Assembleia Geral Extraordinária da FPF realizada em 05.07.2021, em que se faz a ressalva “Sem prejuízo do disposto nas leis que regulam a imprensa, a rádio e a televisão”, alterações estas que têm de ser conjugadas com o disposto no nº 4 do artº 71º da Lei nº 27/2007 de 30.07 na redacção dada pela Lei nº 74/2020 de 19.11 (Lei da Televisão e dos Serviços Audiovisuais a Pedido) que consagra no referido nº 4, o seguinte:
«Tratando-se de declarações correctamente reproduzidas ou de intervenções de opinião, prestadas por pessoas devidamente identificadas, só estas podem ser responsabilizadas, salvo quando o seu teor constitua incitamento ao ódio racial, religioso, político ou gerado pela cor, origem étnica ou nacional, pelo sexo ou pela orientação sexual, ou à prática de um crime, e a sua transmissão não possa ser justificada por critérios jornalísticos.
Ora, é inequívoco, que as declarações prestadas por A........................ [cfr. ponto 3 dos factos provados] foram proferidas num programa televisivo, por pessoa devidamente identificada e que não constituem incitamento ao ódio racial, religioso, político ou gerado pela cor, origem étnica ou nacional, pelo sexo ou pela orientação sexual, ou à prática de um crime, pelo que, bem andou o acórdão recorrido, ao considerar que de acordo com a nova redacção do artº 112º, nº 4 do RDLPFP/2021, a Sporting SAD não podia ser responsabilizada uma vez que a infracção havia desaparecido do quadro/sistema normativo em vigor.
E esta solução a que chegou o TCAS resulta do instituto da aplicação de leis no tempo, designadamente do disposto no artº 11 do RDLPFP, que quer na versão de 2020, quer na versão de 2021, dispõe:
«(…) 2. O facto punível como infracção por norma legal ou regulamentar no momento da sua prática deixa de ser punível se, em virtude da entrada em vigor de nova disposição legal ou regulamentar, deixar de ser qualificado como infracção disciplinar; no caso de já ter havido condenação, ainda que por decisão já definitiva na ordem jurídica desportiva, cessa de imediato a respectiva execução”.
Assim sendo, o acórdão recorrido, ao aplicar ao caso, a redacção dada pelo RDLPFP de 2021, não incorreu em nenhum erro de julgamento, designadamente, no que lhe é imputado quanto à aplicação da lei no tempo, pois, se é evidente que a Sporting SAD praticou uma infracção disciplinar, ao tempo p.e p. nos termos do disposto no artº 112º, nºs 1, 3 e 4, essa infracção deixou de ser punível por força da alteração legislativa entretanto [no decorrer do procedimento, desde a sua prática] ocorrida [que a despenalizou].
Bem andou, pois, o acórdão recorrido, quando, em substituição, julgou procedente o recurso interposto pela Sporting SAD perante o TAD, no segmento em que solicitou a anulação do acórdão do CD da FPF de 20.07.2021 na parte que lhe dizia respeito, dada a alteração legislativa entretanto operada dentro do próprio direito disciplinar [que veio operar como uma causa de exclusão da ilicitude, ou seja, como uma causa de exclusão da responsabilidade disciplinar dos clubes, agora limitada apenas a declarações de «incitamento ao ódio racial, religioso, político ou gerado pela cor, origem ou nacional, pelo sexo ou pela orientação sexual, ou à prática de um crime»], o que no caso não se verifica.
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3. DECISÃO
Face ao exposto, acordam os juízes que compõem este Tribunal em negar provimento ao recurso
Custas pela recorrente.
Lisboa, 20 de Outubro de 2022. - Maria do Céu Dias Rosa das Neves (relatora) - Cláudio Ramos Monteiro - José Francisco Fonseca da Paz.