Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:03109/18.0BEPRT
Data do Acordão:11/27/2019
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:ISABEL MARQUES DA SILVA
Descritores:RECURSO DE REVISTA EXCEPCIONAL
PRESSUPOSTOS
Sumário:O erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objecto de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova, o que não é o caso dos autos.
Nº Convencional:JSTA000P25222
Nº do Documento:SA22019112703109/18
Data de Entrada:10/11/2019
Recorrente:AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Recorrido 1:A... LDA
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:
- Relatório -
1 – A Autoridade Tributária e Aduaneira – AT, vem, nos termos dos artigos 144.º e 150.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA) interpor para este Supremo Tribunal recurso de revista do acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte, de 9 de Maio de 2019, que negou provimento ao recurso por si interposto da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto que julgara improcedente a reclamação judicial deduzida contra a decisão do Chefe do Serviço de Finanças de Gondomar 1 que, no âmbito do processo de execução fiscal n.º 1783201801083422, indeferiu o pedido de dispensa de prestação de garantia formulado pela requerente A…………., Lda.
Conclui a sua alegação de recurso nos seguintes termos:
a) O acórdão proferido pelo TCA Norte considerou que a AT “Deste modo, podemos concluir que a AT, através da remissão para os factos alegadamente apurados em sede de inspecção tributária, não demonstrou que a conduta da Recorrida foi no sentido de, com intenção dolosa, diminuir a garantia e frustrar a cobrança do crédito tributário, pois não demonstrou, ainda que através de factos indiciários, que a Recorrida ao realizar os pagamentos para entidades residentes em territórios submetidos a um regime fiscal claramente mais favorável tenha realizado transferências para o exterior sob o seu controlo e, assim, que tenha dissipado e ocultado bens com aquele propósito.”
b) Considerou não estar demonstrado que os factos colhidos pela inspeção são de suficientes para concluir que a referida insuficiência económica, e consequente insuficiência de bens, se deveu àqueles factos ou à atuação descrita no relatório inspetivo.
c) Não se encontrando na fundamentação da AT qualquer relação de causalidade entre a atuação da contribuinte e a situação de insuficiência patrimonial em que se encontra.
d) Ou seja, o ónus da prova que impendia sobre a AT não se considerou verificado.
e) Entende a Fazenda Pública, em consonância com o parecer do Digníssimo Magistrado do Ministério Público, que a AT demonstrou a existência de fortes indícios de que a atuação da Reclamante levou a uma condição económica debilitada provocando a insuficiência de bens para garantia da dívida exequenda.
f) Assim sendo, cremos que a AT cumpriu o ónus da prova sobre a verificação do requisito em causa para a não concessão da dispensa de prestação de garantia.
g) Decorre da interpretação dos artigos 52.º da LGT e 170.º do CPPT que, para a AT deferir o pedido de dispensa de prestação de garantia é necessário cumprir os seguintes requisitos:
- A prestação de garantia causar prejuízo irreparável ao sujeito passivo;
- Se demonstre a manifesta falta de meios económicos revelada pela insuficiência de bens penhoráveis para o pagamento da dívida exequenda e acrescido;
- E que essa inexistência ou insuficiência não seja imputável a conduta dolosa do executado
h) O acórdão recorrido fez, salvo o devido respeito, uma errada interpretação e aplicação do artigo 52.º, n.º 4 da LGT, conjugado com o artigo 170.º CPPT.
i) Com a recente alteração legislativa introduzida pela LOE de 2017, o órgão de execução fiscal passou a estar incumbido de demonstrar a existência de “fortes indícios de que a insuficiência ou inexistência de bens se deveu a atuação dolosa do interessado”.
j) Assim, é visível, pela letra do referido artigo, que cabe à AT o ónus da prova da atuação dolosa, desonerando-se, portanto, o executado do ónus da prova que sobre ele impendia no regime anterior.
k) Consideramos que a lei circunscreve os moldes para a aplicação dos termos do n.º 4 do artigo 52.º da LGT na existência de indícios de uma atuação dolosa, e não de factos que comprovem tal atuação assim qualificada.
l) Na verdade, na informação de dispensa parcial da garantia são apresentados factos apurados no âmbito da inspeção externa que demonstram uma atuação, por parte da Reclamante, que se pode caracterizar como indiciariamente dolosa.
m) De facto, isso mesmo resulta claro por se ter verificado uma divergência intencional entre o negócio real e o negócio declarado, com vista a empolar os gastos do SP diminuindo, por conseguinte, o seu lucro tributável e permitindo a saída de meios financeiros para destinos diversos, nomeadamente países e territórios com regime de tributação mais favoráveis, diminuindo desta forma a capacidade financeira da aqui Recorrida.
n) Através do exame ao relatório de inspeção encontramos indícios não só da intenção, por parte da gerência, mas da sua efetiva execução, em alterar os resultados financeiros da sociedade, adulterações que necessariamente conduziram à insuficiência do património, à consequente falta de pagamento dos impostos e, o que aqui é mais relevante, à incapacidade em prestar garantia pela totalidade da dívida tributária.
o) Os Serviços da Inspeção Tributária, através da Ordem de Serviço n.º O1201402582, recolheram fortes indícios de que a situação de insuficiência ou inexistência de bens é da responsabilidade da aqui Recorrida.
p) Factos estes que, segundo consta no relatório inspetivo, poderão configurar o crime de fraude fiscal e o crime de fraude fiscal qualificado previstos e punidos pelos artigos 103.º e 104.º do Regime Geral das Infrações Tributárias.
q) Considerando o tribunal a quo que não é de aceitar os indícios de crimes de fraude fiscal para a atuação dolosa na insuficiência de património, devemos perguntar-nos então, quais seriam os indícios que poderiam aceitar-se?
r) Temos de recorrer ao conceito de indícios suficientes para depois considerar se a prova recolhida pela AT foi considerada como válida para o cumprimento do ónus da prova.
s) O Tribunal da Relação de Coimbra já se pronunciou quanto ao mesmo e considerou como sejam indícios suficientes os elementos que, relacionados e conjugados, persuadem da culpabilidade do agente, fazendo nascer a convicção de que virá a ser condenado.
t) Como sejam indícios os vestígios, suspeitas, presunções, sinais, indicações, suficientes e bastantes para convencer de que há uma qualquer “realidade” e de que alguém determinado é o responsável, de forma que, logicamente relacionados e conjugados formem um todo persuasivo da culpabilidade.
u) De acordo com vertido no anterior ponto, entendemos que a AT relacionou todos os “vestígios” do seu conhecimento, conjugando-os entre si por forma a considerar que a atuação do sujeito passivo ao longo dos anos em análise levou à insuficiência ou inexistência de bens.
v) Consideramos que neste conceito não está em causa a culpa do gerente na insuficiência de bens da sociedade devedora originária, para efeitos de uma reversão, mas apenas a recolha de indícios fortes de que a insuficiência ou inexistência de bens se deveu a actuação dolosa do requerente.
w) Mais recentemente temos o acórdão proferido em 03 de agosto de 2018, processo n.º 00268/18.6BEAVR, onde refere que “A recolha dos (fortes) indícios não é equivalente à prova da existência dos factos indiciados, nem configura uma acusação criminal ao contrário do que sugere o Recorrido. Não é de factos provados, mas sim de indícios que fala a lei. E estes são os factos a partir dos “quais se procurará extrair, com o auxílio das regras de experiência comum, da ciência ou da técnica, uma ilação quanto aos factos indiciados. A conclusão ou prova não se obtém directamente, mas indirectamente, através de um juízo de relacionação normal entre o indício e o tema de prova” – cfr. Alberto Xavier, “Conceito e Natureza do Acto Tributário”, pág. 154; também neste sentido, entre outros, o acórdão do TCAN, de 26/04/12 (processo nº 00964/06.0BEPRT)”.
x) Torna-se importante responder à seguinte questão: quais os documentos, informações ou outros elementos que possam ser considerados suficientes e válidos como prova para que a AT cumpra o ónus da prova que impende sobre si na que diz respeito aos fortes indícios de que a insuficiência ou inexistência de bens se deveu à sua atuação dolosa?
y) Entendemos que o ónus da prova se bastará com a reunião de elementos que configurem ou potenciem indícios de que a atuação do sujeito passivo tornou o cumprimento das obrigações fiscal impossível, impossibilitando a apresentação de garantias às dívidas tributárias.
z) Para a concretização deste ónus, a AT recolheu uma série de fortes indícios relativos à gestão patrimonial e financeira da reclamante que indiciam da sua responsabilidade pela insuficiência patrimonial para satisfazer esse pagamento.
aa) A questão aqui em análise é suscetível de repetição em inúmeros casos, tendo em consideração que o ónus da prova impõe à AT uma análise constante de pedido de dispensa de garantia e a verificação da atuação dolosa na inexistência ou insuficiência de património.
bb) Esta questão jurídica em si, pela sua relevância jurídica ou social, mas também, pelo facto de se mostrar bastante pertinente decisão sobre a matéria, sendo necessária a intervenção desse STA, a fim de ser julgada, definitivamente e de forma uniforme, em julgamento ampliado de revista.
Termos pelos quais e, com o douto suprimento de V. Exas., deve ser admitido o presente recurso de revista e, analisando do mérito do recurso, deve ser dado provimento ao mesmo, revogando-se o douto acórdão recorrido, com todas as legais consequências.

2 – Contra-alegou a recorrida, pugnando desde logo pela não admissão da revista, atendendo à natureza puramente casuística da questão decidenda e porque a decisão recorrida dependente das ilações de facto que o Tribunal recorrido retirou dos elementos constantes dos autos para concluir que os indícios apontados pela AT são insuficientes para legitimar a decisão de indeferimento do pedido de dispensa de prestação de garantia, matéria excluída do âmbito da revista ex vi do disposto no n.º 4 do artigo 150.º do CPTA.


3 - O Excelentíssimo Procurador-Geral Adjunto junto deste Tribunal emitiu parecer no sentido da não admissão da revista, por falta de motivação do recurso e porque o recurso prende-se essencialmente com a apreciação da matéria de facto no que toca à existência ou não de indícios susceptíveis de integrar actuação dolosa por parte do sujeito passivo tributário (…) com repercussão na aplicação e interpretação do disposto no artigo 52.º n.º 4 da LGT em conjugação com o disposto no artigo 170.º do CPPT.//Questão que interfere necessariamente com a revisão da matéria de facto em controvérsia na presente lide.


Colhidos os vistos legais, cumpre decidir da admissibilidade do recurso.
- Fundamentação -

4 – Apreciando.
4.1 Da admissibilidade do recurso
O presente recurso foi interposto como recurso de revista nos termos dos artigos 144.º e 150.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, havendo, agora, que proceder à apreciação preliminar sumária da verificação in casu dos respectivos pressupostos da sua admissibilidade, ex vi do n.º 5 do artigo 150.º do CPTA.
Dispõe o artigo 150.º do CPTA, sob a epígrafe “Recurso de Revista”:
1 – Das decisões proferidas em segunda instância pelo Tribunal Central Administrativo pode haver, excepcionalmente, revista para o Supremo Tribunal Administrativo quando esteja em causa a apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental ou quando a admissão do recurso seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito.
2 – A revista só pode ter como fundamento a violação de lei substantiva ou processual.
3 – Aos factos materiais fixados pelo tribunal recorrido, o tribunal de revista aplica definitivamente o regime jurídico que julgue mais adequado.
4 – O erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objecto de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova.
5 – A decisão quanto à questão de saber se, no caso concreto, se preenchem os pressupostos do n.º 1 compete ao Supremo Tribunal Administrativo, devendo ser objecto de apreciação preliminar sumária, a cargo de uma formação constituída por três juízes de entre os mais antigos da secção de contencioso administrativo.

Decorre expressa e inequivocamente do n.º 1 do transcrito artigo a excepcionalidade do recurso de revista em apreço, sendo a sua admissibilidade condicionada não por critérios quantitativos mas por um critério qualitativo – o de que em causa esteja a apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental ou quando a admissão do recurso seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito – devendo este recurso funcionar como uma válvula de segurança do sistema e não como uma instância generalizada de recurso.
E, na interpretação dos conceitos a que o legislador recorre na definição do critério qualitativo de admissibilidade deste recurso, constitui jurisprudência pacífica deste Supremo Tribunal Administrativo - cfr., por todos, o recente Acórdão deste STA de 2 de abril de 2014, rec. n.º 1853/13 -, que «(…) o preenchimento do conceito indeterminado de relevância jurídica fundamental verificar-se-á, designadamente, quando a questão a apreciar seja de elevada complexidade ou, pelo menos, de complexidade jurídica superior ao comum, seja por força da dificuldade das operações exegéticas a efectuar, de um enquadramento normativo especialmente intricado ou da necessidade de concatenação de diversos regimes legais e institutos jurídicos, ou quando o tratamento da matéria tem suscitado dúvidas sérias quer ao nível da jurisprudência quer ao nível da doutrina. Já relevância social fundamental verificar-se-á quando a situação apresente contornos indiciadores de que a solução pode constituir uma orientação para a apreciação de outros casos, ou quando esteja em causa questão que revele especial capacidade de repercussão social, em que a utilidade da decisão extravasa os limites do caso concreto das partes envolvidas no litígio. Por outro lado, a clara necessidade da admissão da revista para melhor aplicação do direito há-de resultar da possibilidade de repetição num número indeterminado de casos futuros e consequente necessidade de garantir a uniformização do direito em matérias importantes tratadas pelas instâncias de forma pouco consistente ou contraditória - nomeadamente por se verificar a divisão de correntes jurisprudenciais ou doutrinais e se ter gerado incerteza e instabilidade na sua resolução a impor a intervenção do órgão de cúpula da justiça administrativa e tributária como condição para dissipar dúvidas – ou por as instâncias terem tratado a matéria de forma ostensivamente errada ou juridicamente insustentável, sendo objectivamente útil a intervenção do STA na qualidade de órgão de regulação do sistema.».

No caso dos autos, a recorrente AT pretende que este STA admita revista para ver melhor analisada pelo tribunal “ad quem” a questão de saber como se concretiza o ónus da prova que impende sobre a AT para a demonstração dos “fortes indícios de que a insuficiência ou inexistência de bens se deveu a atuação dolosa do interessado”, pois alega que contrariamente ao decidido pelo TCA-Norte cumpriu o ónus da prova sobre a verificação do requisito em causa para a não concessão da dispensa de prestação de garantia.
A questão que a recorrente coloca, nos termos como a coloca, tem necessariamente natureza casuística, pois dependente das concretas circunstâncias de cada caso concreto, e encerra um juízo de censura sobre o modo como as instâncias, e concretamente o TCA-Norte, valorou o probatório fixado e os constantes do relatório da inspecção.
Ora, como se consignou já em Acórdão proferido no processo n.º 1420/18.0BEAVR no passado dia 21 de Novembro, perante alegação semelhante da recorrente, a AT procura no presente recurso excepcional de revista que este STA sindique a apreciação da matéria de facto feita pelas instâncias quanto à insuficiência dos indícios recolhidos pela inspeção tributária para o efeito de obstar à recusa do pedido de dispensa de prestação de garantia, olvidando que, por disposição expressa da lei – cfr. o n.º 4 do artigo 150.º do CPTA – o erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objecto de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova, o que não é o caso dos autos onde o que se expressa é uma discordância da recorrente quanto existência de indícios de uma actuação dolosa que a mesma defende existir a partir de determinadas práticas da recorrida que alega consistiam em através de registos contabilísticos de contratos fictícios alterar os resultados financeiros da sociedade e que conduziram à insuficiência do património, mas que o acórdão recorrido não deu como assente no probatório.

Pelo exposto se conclui não ser de admitir a revista.

- Decisão -
5 - Termos em que, face ao exposto, acorda-se em não admitir o presente recurso, por se julgar não estarem preenchidos os pressupostos do recurso de revista excepcional previstos no n.º 1 do artigo 150.º do CPTA.

Custas pela recorrente, com dispensa do remanescente da taxa de justiça devida pelo presente recurso nos termos do n.º 6 do artigo 7.º do RCP, pois que este se revelou de complexidade inferior à comum, dada a sua fundamentação remissiva.

Lisboa, 27 de Novembro de 2019. – Isabel Marques da Silva (relatora) – Ascensão Lopes – Francisco Rothes.