Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo | |
Processo: | 0112/18 |
Data do Acordão: | 02/22/2018 |
Tribunal: | 1 SECÇÃO |
Relator: | MADEIRA DOS SANTOS |
Descritores: | APRECIAÇÃO PRELIMINAR RESPONSABILIDADE DO ESTADO CULPA DO LESADO DANO MORAL |
Sumário: | I – Embora o movimento da vítima – na direcção da ponta da faca que um outro soldado lhe encostara ao tórax – fosse causa imediata da perfuração por ela sofrida, não pode falar-se em «culpa do lesado» (art. 570º do Código Civil) se o TCA inferiu que, ao mover-se de tal modo, a vítima pretendera «arredar da sua frente aquele objecto» perigoso. II – Essa inferência de facto, que está fora dos poderes de controle do STA, impede que se olhe tal comportamento da vítima como uma subversão do nexo causal iniciado com a presença ameaçadora daquele objecto. III – Se a factualidade provada não diz que a morte da vítima foi instantânea, o TCA podia e devia – como fez – reconhecer que ela sofrera danos morais consistentes nas dores experimentadas e na percepção angustiosa do fim. IV – Assim, e por aparente inviabilidade, não é de admitir a revista do aresto que – negando a «culpa do lesado» e a instantaneidade da morte – condenou equitativamente o Estado a indemnizar os pais da vítima. |
Nº Convencional: | JSTA000P22952 |
Nº do Documento: | SA1201802220112 |
Data de Entrada: | 02/01/2018 |
Recorrente: | ESTADO PORTUGUÊS |
Recorrido 1: | A............ E OUTRA |
Votação: | UNANIMIDADE |
Aditamento: | |
Texto Integral: | Acordam, em apreciação preliminar, no Supremo Tribunal Administrativo: O MºPº, em representação do Estado, interpôs este recurso de revista do acórdão do TCA-Sul confirmativo da sentença do TAF de Beja que condenara o aqui recorrente a pagar aos autores A………… e mulher, B…………, uma indemnização pela morte de um seu filho – que faleceu perfurado por uma faca durante um exercício militar. O recorrente pugna pelo recebimento da revista porque o aresto «sub specie» teria decidido mal «quaestiones juris» relevantes. Os recorridos, ao invés, consideram a revista inadmissível. Cumpre decidir. Em princípio, as decisões proferidas em 2.ª instância pelos TCA’s não são susceptíveis de recurso para o STA. Mas, excepcionalmente, tais decisões podem ser objecto de recurso de revista em duas hipóteses: quando estiver em causa a apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, assuma uma importância fundamental; ou quando a admissão da revista for claramente necessária para uma melhor aplicação do direito («vide» o art. 150º, n.º 1, do CPTA). A acção dos autos concerne à responsabilidade civil do Estado pela morte de um militar, filho dos autores, o qual, avançando contra uma faca que um camarada encostara ao seu peito, recebeu um golpe que lhe perfurou o coração e o pulmão esquerdo. O TAF condenou o Estado a pagar aos autores as quantias de € 5.000,00 (pelos danos morais experimentados pela vítima), de € 75.000,00 (pelo dano da morte) e de € 75.000,00 (pelos danos não patrimoniais dos autores), para além de juros moratórios devidos desde a citação. E o TCA-Sul, por maioria, confirmou a sentença. Nesta revista, o MºPº acomete o acórdão por dois prismas: por um lado, a vítima teria morrido quase instantaneamente, pelo que nenhumas dores e angústias percepcionou antes de falecer; por outro lado, a vítima teria contribuído em 50% para a própria lesão mortal, pelo que o «quantum» das outras indemnizações deve ser reduzido a metade. Este derradeiro assunto respeita à activação, «in casu», do art. 570º do Código Civil. O acórdão «sub specie» é questionável ao afirmar que tal norma pressupõe que lesado tenha agido com culpa e, até, ilicitude – já que a ideia predominante na jurisprudência é a de que o artigo, sob a expressão «culpa do lesado, trata verdadeiramente de um problema de causalidade. Contudo, a razão fundamental por que o aresto recorrido não aplicou esse art. 570º foi alheia a uma interpretação jurídica da norma; pois tal razão encontra-se nas presunções naturais que o TCA extraiu dos dados de facto disponíveis – que o levaram a concluir que o movimento da vítima teve por intuito, não uma intensificação do seu contacto com a faca, mas «arredar da sua frente aquele objecto». Este modo de interpretar o sucedido inscreve-se ainda nos poderes cognitivos do TCA no plano da matéria de facto – e não vem questionado na revista nem é questionável pelo Supremo (art. 150º, n.º 4, do CPTA). Ora, o acto da vítima que tente «arredar» de si o objecto perigoso não subverte o nexo causal iniciado com a presença ameaçadora desse objecto – mesmo que a tentativa seja desajeitada e precipite a lesão. O que significa, portanto, que o aresto do TCA adoptou – quanto à inaplicabilidade do art. 570º do Código Civil – uma solução jurídica coerente com aquelas inferências de facto e, nessa medida, insusceptível de modificação. E a revista também é inviável no outro ponto, relativo aos danos morais experimentados pela vítima. Com efeito, a factualidade disponível não afirma a instantaneidade da morte; pelo que nenhuma revisão merece o acórdão ao pressupor que a vítima experimentou dores e se angustiou ou afligiu ante a iminência do fim. Ademais, os «quanta» indemnizatórios arbitrados pelas instâncias mostram-se equitativamente fixados, não justificando reapreciação – seja em si mesmos, seja pela via do grau de culpa do lesante. Nestes termos, acordam em não admitir a revista. Sem custas, por isenção do recorrente. Lisboa, 22 de Fevereiro de 2018. – Madeira dos Santos (relator) – Costa Reis – São Pedro. |