Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:02433/11.8BELRS
Data do Acordão:05/12/2021
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:FRANCISCO ROTHES
Descritores:IVA
LOCAÇÃO FINANCEIRA
PERDA DE BENS
Sumário:I - As indemnizações pagas no âmbito de um contrato celebrado entre o locatário e a seguradora e que tem a locadora como beneficiária, destinadas a compensar os danos causados pela perda total dos bens locados, em caso de acidente, porque não assumem a natureza de contraprestação pela transmissão de um bem ou prestação de um serviço [cf. arts. 1.º, n.º 1, 4.º, n.º 1 e 16.º, n.º 6, alínea a), do CIVA], nem visam suportar lucros cessantes das recorridas, devem considerar-se excluídas da incidência de IVA.
II - No caso de perda total por sinistro dos veículos objecto de contrato de locação financeira, não pode a AT pretender que a locadora devia ter liquidado imposto sobre a totalidade dos montantes das rendas vincendas e do valor residual dos veículos, mesmo na parte em que esses montantes não foram efectivamente cobrados aos locatários, por os veículos estarem a coberto de contrato de seguro e, por isso, o respectivo valor lhe ter sido directamente pago pelas seguradoras e, nessa medida, reduzida a contraprestação devida pelo locatário.
Nº Convencional:JSTA000P27688
Nº do Documento:SA22021051202433/11
Data de Entrada:01/26/2021
Recorrente:A............ LEASING SOCIEDADE DE LOCAÇÃO FINANCEIRA, SA
Recorrido 1:AT - AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Recurso jurisdicional da sentença proferida no processo de impugnação judicial com o n.º 2433/11.8BELRS
Recorrente: “A………… – Instituição Financeira de Crédito, S.A.”
Recorrida: Autoridade Tributária e Aduaneira (AT)

1. RELATÓRIO

1.1 A sociedade acima identificada recorre para este Supremo Tribunal Administrativo da sentença por que a Juíza daquele Tribunal julgou improcedente a impugnação judicial deduzida contra a liquidação adicional de Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA) relativa ao ano de 2008, e dos respectivos juros compensatórios, efectuada pela AT por ter considerado que a ora Recorrente, no caso de perda total por sinistro dos veículos por ela entregues aos locatários ao abrigo de contratos de locação financeira, devia ter liquidado imposto sobre a totalidade dos montantes das rendas vincendas e do valor residual dos veículos, mesmo na parte em que esses montantes não foram efectivamente cobrados aos locatários, por estarem a coberto de contrato de seguro e, por isso, lhe terem sido pagos directamente pelas seguradoras.

1.2 Com o requerimento de interposição de recurso, a Recorrente apresentou alegações, com conclusões do seguinte teor:

«A) O presente Recurso tem como objecto a douta Sentença proferida em 26 de Setembro de 2020 pelo Tribunal Tributário de Lisboa, que considerou totalmente improcedente a Impugnação Judicial n.º 2433/11.8BELRS, deduzida pela Recorrente contra os actos de liquidação adicional de Imposto sobre o Valor Acrescentado (“IVA”) e de juros compensatórios relativos ao ano de 2008, emitidos pela Administração Tributária na sequência da inspecção feita ao abrigo da Ordem de Serviço n.º OI201000172;

B) A Recorrente é uma instituição financeira que se dedica, entre o mais, à celebração de contratos de locação financeira (leasing) e de aluguer de longa duração (ALD) de veículos automóveis;

C) Em caso de perda total dos veículos objecto daqueles contratos (decorrente, na generalidade dos casos, de acidente rodoviário ou de furto), a Recorrente recebe uma indemnização pela perda do veículo (que se mantinha na sua esfera patrimonial até ser perdido) paga directamente por uma seguradora.

D) Adicionalmente, ao tempo dos factos em causa no presente Processo, a perda total dos veículos era tratada como uma causa de resolução dos contratos de locação e originava, na esfera da Recorrente, o direito a receber dos locatários o valor do capital em dívida, na parte em que este excedesse o valor da indemnização paga pela seguradora;

E) Como é natural, a Recorrente apenas liquidou IVA sobre os montantes efectivamente cobrados aos locatários – os montantes que excediam a reparação das perdas dos veículos, já assumida pelas seguradoras – abstendo-se de apurar qualquer imposto sobre as indemnizações devidas em função daquelas perdas;

F) No entanto, no relatório de inspecção tributária que fundamenta os actos de liquidação contestados nestes Autos, a Administração Tributária considerou que, em caso de perda total dos veículos locados, a Recorrente devia ter liquidado IVA sobre a totalidade dos montantes das rendas vincendas e do valor residual dos veículos, mesmo na parte em que esses montantes não foram efectivamente cobrados aos locatários – a parte coberta pelas indemnizações que as seguradoras pagaram directamente à Recorrente em função da perda dos automóveis;

G) Na douta Sentença aqui recorrida, o Tribunal Tributário de Lisboa deu razão à Administração Tributária porque considerou, em substância, que, ao deduzir o montante das indemnizações recebidas das seguradoras no cálculo dos valores devidos pelos locatários, a Recorrente estava a realizar um encontro de contas, mediante o qual: (i) recebia a totalidade do valor das rendas vincendas e do valor residual previsto nos contratos de leasing ou ALD (sujeitos a IVA); e (ii) entregava aos locatários o valor das indemnizações das seguradoras que lhes eram supostamente devidas (não sujeitas a IVA).

H) Por outro lado, quanto à (i)legalidade dos actos de liquidação de juros compensatórios, o Tribunal a quo reconheceu que o apuramento de juros compensatórios depende sempre do retardamento da entrega do imposto (o pressuposto objectivo dos juros) e da verificação de um comportamento censurável por parte do sujeito passivo, a título culposo ou negligente (o pressuposto subjectivo dos juros);

I) No entanto, a Sentença recorrida acabou por – erradamente – julgar improcedente o pedido de anulação das liquidações de juros apenas com base no respectivo pressuposto objectivo, afirmando simplesmente que “Atendendo a que nos presentes autos a Impugnante não logrou provar que as liquidações adicionais de IVA impugnadas enfermavam de erro nos pressupostos de facto e de direito inerentes à tributação, conforme acima exposto, sendo devido o referido imposto na sua totalidade, devem as liquidações dos juros compensatórios ser, também, mantidas na ordem jurídica”;

J) Todavia, a Recorrente, escudando-se na jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo, considera que a Sentença recorrida padece de erro de julgamento, quer no que respeita à ilegalidade dos actos de liquidação de IVA, quer no que concerne à ilegalidade dos actos de liquidação de juros compensatórios, devendo, por isso, ser revogada e substituída por um aresto que dê provimento ao pedido do Recorrente e anule os actos impugnados, com todas as consequências legais;

K) Sintetizando, os actos de liquidação de IVA são manifestamente ilegais porque os valores que a Recorrente recebeu das seguradoras correspondem a indemnizações totalmente excluídas de IVA, uma vez que têm natureza ressarcitória – servem apenas e só para reparar um dano emergente verificado na sua esfera em caso de acidente ou furto: a perda dos veículos automóveis (que são parte da esfera patrimonial da Recorrente), e não para compensar qualquer tipo de lucros cessantes;

L) O entendimento do Tribunal a quo quanto a esta matéria funda-se numa premissa incorrecta segundo a qual ao deduzir o montante das indemnizações recebidas das seguradoras aos valores a cobrar aos locatários, a Recorrente estava a realizar um encontro de contas, mediante o qual: (i) recebia a totalidade do valor das rendas vincendas e do valor residual previsto nos contratos de leasing ou ALD (sujeitos a IVA); e (ii) entregava aos locatários o valor das indemnizações das seguradoras que lhes eram supostamente devidas (não sujeitas a IVA).

M) Sucede que – independentemente da evidente incorrecção daquela premissa – a conclusão alcançada pelo Tribunal a quo padece de erro porque a tributação das indemnizações em sede de IVA não depende da identidade dos sujeitos envolvidos, mas sim da natureza (ressarcitória ou remuneratória) dessas indemnizações.

N) Como a este respeito (e sobre esta matéria) afirma acertadamente o recente Acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Administrativo em 1 de Julho de 2020, no Processo n.º 01595/10.6BELRS, as indemnizações com carácter meramente ressarcitório não estão sujeitas a IVA.

O) Como se lê neste aresto, “estão excluídas do âmbito de incidência do IVA, para além das indemnizações que tenham sido declaradas judicialmente, as que tenham carácter meramente ressarcitório, isto porque, não existindo qualquer interdependência entre a prestação indemnizatória e outra prestação à qual o lesado se encontre adstrito, na medida em que a obrigação nasce “ex novo” no momento em que é causado o dano, a entrega de uma indemnização, por não pressupor qualquer nexo sinalagmático com determinada transmissão de bens e/ou prestação de serviços, não tem natureza onerosa. Por outras palavras, só serão tributadas em IVA “as indemnizações que correspondam, directa ou indirectamente, à contrapartida devida pela realização de uma actividade económica, isto é, que visem remunerar a transmissão de bens ou a prestação de serviços”;

P) Assim, na parte em que visam ressarcir a perda dos veículos locados (i.e., na parte paga pelas seguradoras, que apenas compensam a perda dos veículos e nada mais), os valores recebidos pela Recorrente não são contraprestações sujeitas a IVA – são montantes que visam apenas indemnizar um dano emergente (um prejuízo actual) e que, por isso, estão fora do escopo do imposto;

Q) E esta conclusão não depende da forma como são configuradas as relações jurídicas aqui em causa: ainda que, como sustenta a Administração Tributária, o montante da indemnização a suportar pela seguradora fosse directamente devido ao locatário e só indirectamente devida ao locador, o certo é que o dano que essa indemnização visa ressarcir é sempre apenas a perda do veículo (verificada na esfera patrimonial da Recorrente) e a perda do veículo não é uma transmissão de bens nem uma prestação de serviços;

R) Como a este propósito se lê no Acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Administrativo em 31 de Outubro de 2012, no Recurso n.º 01158/11 (também sobre esta matéria): “a natureza da indemnização não depende dos sujeitos intervenientes, mas sim da causa e do objecto que a mesma visa reparar. Isto é, o facto de o risco referente à perda total dos veículos ter sido transferido para um terceiro não altera a natureza da indemnização, seja esta paga pela seguradora ou directamente pelo particular, o que releva é que a mesma é devida pelos clientes da entidade que loca/aluga automóveis e tem como propósito reparar o prejuízo sofrido por aquela em caso de sinistro com perda total dos veículos”;

S) Na verdade, “a perda do veículo não pode deixar de ser considerado um prejuízo sofrido pela locadora, derivado do acidente, e que terá impacto na sua actividade como um todo, visando a indemnização reparar esse dano. Assim sendo, por força da sua natureza é evidente que os montantes recebidos a título de indemnizações de risco coberto por contrato de seguro, na parte em que se destinem a reparar o dano consubstanciado na perda do veículo (ou do capital utilizado para a sua aquisição) não podem estar sujeitos a IVA (...), uma vez que não tem associado qualquer transmissão de bens ou prestação de serviços (relação sinalagmática), mas tão só carácter ressarcitório (...)” (ibidem).

T) Em reforço destas conclusões, recorda-se que, nos dois arestos do Supremo Tribunal Administrativo acima citados (o recentemente proferido no Processo n.º 01595/10.6BELRS e o proferido em 2012 no Recurso n.º 001158/11), se concluiu, em substância, pela necessidade de distinguir entre o pagamento de rendas vencidas antes da perda do veículo antes da perda e as indemnizações economicamente suportadas pelas seguradoras, que não compensam as obrigações contratuais, mas a própria perda do veículo;

U) No primeiro caso (o do pagamento das rendas vencidas) o pagamento dos locatários à locadora estará sujeito a IVA, por substituir prestações sujeitas a imposto (tem natureza remuneratória);

V) No segundo caso (o do valor suportado pela seguradora em função da perda do veículo), não há lugar à liquidação do imposto porque se trata de uma indemnização com natureza ressarcitória – voltando ao Acórdão proferido no Recurso n.º 01158/11, as indemnizações pagas pelas seguradoras e destinadas a compensar os danos causados pela perda dos veículos automóveis, em caso de acidente, porque não assumem a natureza de contraprestação pela transmissão de um bem ou prestação de um serviço (arts. 1.º, n.º 1, 4.º, n.º 1 e 16.º, n.º 6, alínea a), do CIVA), nem visam suportar lucros cessantes das recorridas, devem considerar-se excluídas da incidência de IVA (realce acrescentado).

W) A finalizar, a Recorrente não pode deixar de notar os efeitos totalmente desadequados que teria a tributação de valores ficcionadamente devidos pelos locatários e que nunca foram recebidos pela Recorrente – se o entendimento vertido na Sentença recorrida estivesse correto, as indemnizações de danos emergentes poderiam sempre ser indirectamente tributadas, contra toda a doutrina e jurisprudência que afasta do campo do imposto as compensações que não substituem operações tributáveis;

X) Por outro lado, se pudesse ser interpretado no sentido sufragado na Sentença aqui recorrida, o regime introduziria uma complexidade totalmente desproporcionada nas relações comerciais dos sujeitos passivos que se dedicam ao leasing, obrigando-os a cobrar aos seus clientes imposto sobre dívidas que estes não têm e não pagam, o que certamente seria difícil de explicar a um homem médio e geraria litigância entre as partes;

Y) Em face do exposto, a Sentença recorrida padece de um manifesto erro de julgamento e deve ser revogada, e substituída por outra que anule os actos de liquidação contestados pela Recorrente por violação do disposto nos artigos 1.º, 4.º e 16.º do Código do IVA;

Z) Sem prejuízo do exposto, a Recorrente requer ao Supremo Tribunal Administrativo que, caso subsistam, dúvidas sobre a interpretação do regime do IVA acima invocado, reenvie o processo para apreciação prejudicial por parte do Tribunal de Justiça, nos termos previstos no artigo 267.º do Tratado Sobre o Funcionamento da União Europeia, perguntando se o regime de Direito da União Europeia se opõe ou não a uma legislação nacional que, interpretada como fez a Administração Tributária no presente caso, impõe a liquidação de IVA sobre os valores recebidos pelas locatárias em caso de perda total de veículos objecto de locação financeira na parte em que esses valores correspondem às indemnizações pagas pelas seguradoras para compensar as referidas perdas dos veículos locados;

AA) Quanto ao erro de julgamento relativo à ilegalidade das liquidações de juros compensatórios, a Recorrente nota que, sendo ilegais as liquidações de imposto, são também ilegais – e devem ser anuladas – as liquidações de juros compensatórios, por falta do respectivo pressuposto objectivo (o atraso na entrega do imposto).

BB) Por outro lado, mesmo tendo reconhecido que – para além do referido pressuposto objectivo – as liquidações dependem da demonstração de um pressuposto subjectivo (um nexo entre o atraso na entrega do imposto e a conduta do sujeito passivo), o certo é que o Tribunal a quo não retirou as devidas conclusões desta premissa;

CC) Na verdade, o artigo 35.º da Lei Geral Tributária determina que, para que haja lugar a uma liquidação válida de juros compensatórios é preciso que esteja demonstrado que o retardamento da liquidação (o pressuposto objectivo dos juros) se deveu a um facto imputável ao sujeito passivo, ou seja, que este teve culpa no atraso (o pressuposto subjectivo dos juros);

DD) Ora, no presente caso, a Administração Tributária não demonstrou a verificação do pressuposto subjectivo da liquidação dos juros compensatórios, provando que os montantes não liquidados se deveram a uma conduta culposa da Recorrente, sem o que as liquidações são inválidas e devem ser anuladas por violação do disposto no artigo 77.º da Lei Geral Tributária;

EE) Adicionalmente, a matéria aqui em causa é inequivocamente complexa, envolvendo a aplicação de regimes de direito civil, comercial e fiscal, e a solução propugnada pela Administração Tributária é manifestamente contra-intuitiva, impondo a liquidação de imposto sobre valores que não são efectivamente cobrados;

FF) Nestes termos, independentemente da verificação/não verificação do pressuposto objectivo, a divergência qualificativa entre a Administração Tributária e a Recorrente é compreensível e desculpável, faltando às liquidações de juros compensatórios aqui em causa o seu pressuposto subjectivo, o que determina a sua ilegalidade por violação do disposto no artigo 35.º da Lei Geral Tributária;

GG) Em conclusão, independentemente do juízo que se faça quanto ao pressuposto objectivo dos juros compensatórios, o Tribunal a quo devia ter anulado as respectivas liquidações por falta de demonstração (rectius, pela simples falta) do seu pressuposto subjectivo;

HH) Nestes termos, a Sentença aqui recorrida padece de erros de julgamento, quer quanto à questão da ilegalidade das liquidações de IVA, quer quanto à ilegalidade das liquidações de juros compensatórios, devendo por isso ser revogada e substituída por um aresto que anule os actos impugnados pela Recorrente, com todas as consequências legais

Termos em que, deve o presente recurso proceder, por provado e fundado, revogando-se, em consequência, a sentença recorrida, e anulando-se os actos tributários de liquidação de IVA e de juros compensatórios impugnados, com as demais consequências legais».

1.3 A Recorrida não apresentou contra-alegações.

1.4 O Procurador-Geral-Adjunto neste Supremo Tribunal Administrativo emitiu parecer no sentido de que seja concedido provimento ao recurso, revogada a sentença e anulada a liquidação impugnada. Isto, após enunciar o objecto do recurso e a posição da Recorrente, bem como a fundamentação da sentença, nos seguintes termos: «[…]

A primeira questão que vem suscitada pelo Recorrente consiste em saber se a sentença padece do vício de erro de julgamento na apreciação que fez sobre a questão da ilegalidade da liquidação de IVA, o que passa por saber se o Recorrente omitiu liquidação do imposto nas operações de locação financeira de viaturas automóveis em que se tinha verificado a perda total do veículo.
Alega a Recorrente que «apenas liquidou IVA sobre os montantes efectivamente cobrados aos locatários – os montantes que excediam a reparação das perdas dos veículos, já feita pelas seguradoras – abstendo-se de apurar qualquer imposto sobre as indemnizações devidas em função daquelas perdas».
Contesta, assim, a Recorrente o entendimento e actuação da AT no sentido de que «em caso de perda total dos veículos locados, a Recorrente devia ter liquidação IVA sobre a totalidade dos montantes das rendas vincendas e do valor residual dos veículos, mesmo na parte em que esses montantes não foram efectivamente cobrados aos locatários – a parte coberta pelas indemnizações que as seguradoras pagaram directamente à Recorrente em função da perda dos automóveis».
Resulta, assim, que na perspectiva da Recorrente, o imposto (IVA) apenas deve recair sobre o diferencial entre o montante em dívida à data da perda do veículo e o valor da indemnização pago pela seguradora, ou seja, sobre o valor efectivamente cobrado ao locatário.
Dado que os termos em que foi fixada a matéria de facto na sentença recorrida não permite com clareza identificar os valores tidos em consideração na prática do acto tributário, importa analisar os termos do relatório da acção inspectiva que serve de fundamento ao acto tributário impugnado.
Assim, no relatório dos Serviços de Inspecção, aqueles Serviços fazem a seguinte menção:
«Da análise dos elementos apresentados (Cfr. Anexo n.º 17), constatou-se que a A………… IFIC não procedeu à liquidação de IVA sobre o vencimento antecipado (actualizado) do capital em dívida, designadamente rendas vincendas, valor residual e juros, desde a última renda vencida até ao momento da ocorrência da perda total».
E acrescenta-se: «Deste modo o que está em causa não é o valor a restituir pela locadora ao locatário, relativa à indemnização recebida da seguradora, uma vez que não tem subjacente uma operação sujeita a imposto e como tal não deve ser tributada em IVA, mas sim o valor a pagar à locadora pelo locatário, relativa ao valor das rendas vincendas e valor residual actualizados ao momento da perda total do bem, uma vez que configura uma prestação de serviços face ao n.º 1 do art. 4.º do CIVA».
Ora, o discurso acima transcrito não é esclarecedor sobre se na determinação do valor sujeito a tributação a AT subtraiu, ao valor total em dívida no momento da perda do bem, o valor recebido pela Locadora da seguradora. Na verdade, não se alcança qual o sentido que a AT emprestou ao segmento da fundamentação quando refere que “o que está em causa não é o valor a restituir pela locadora ao locatário”, pois não se alcança em que termos esta restituição estaria sujeita a imposto (IVA). Por outro lado não resulta explícito como foi apurado o valor do imposto em falta mencionado no relatório (€ 176.622,00), nem isso resulta da consulta dos mapas constantes dos Anexos ao relatório (mapas n.ºs 18/19 e 25).
Todavia das alegações da Recorrente ao longo do processo e da Fazenda Pública resulta que a divergência assenta na sujeição a imposto do valor que não é cobrado ao locatário, em resultado da compensação que a Locadora recebe da seguradora pela perda do veículo (objecto do contrato de locação).
Ou seja, enquanto a Recorrente considera que o pagamento desse valor não tem natureza remuneratória, mas antes compensatória, o mesmo não está sujeito a tributação; Já a AT entende que o facto de o valor da indemnização ser descontado no valor que é exigido ao locatário, não obsta a que a obrigação de pagamento deste último tenha que ser reportada ao valor total em dívida à data do momento da perda do veículo. Ou seja, para a AT, o valor da indemnização recebido da seguradora apenas releva para efeitos de acerto de contas e como tal não interfere na obrigação tributária, a qual é constituída por referência ao valor total relativo “às rendas vincendas e valor residual actualizado, adicionado das rendas vencidas e não pagas”.
A questão que se coloca é pois a de saber quais os reflexos do recebimento da indemnização pela seguradora sobre a relação contratual e designadamente a de saber se a perda do veículo implica a redução do valor da prestação do locatário na medida correspondente ao valor da indemnização paga pela seguradora e se só esse diferencial está sujeito a imposto (IVA).
O contrato de seguro celebrado pelo locatário é um contrato a favor de terceiro, em que a Locadora é a beneficiária, por o risco do contrato recair sobre o locatário, que nessa medida suporta os custos desse seguro. Em face do perecimento do bem segurado, a locadora deixou de poder ceder a sua fruição e o locatário de beneficiar da mesma em razão do contrato de locação. A ocorrência desse evento, para além de levar à resolução do contrato de locação, tem igualmente reflexos na redução da prestação a cargo do locatário, na medida correspondente ao valor da indemnização recebida pela locadora. Só nessa medida se justifica que esse valor seja tido em consideração no valor a exigir do locatário. No entendimento adoptado pela Administração Tributária ficaria sem se perceber a que título a locadora entregaria ao locatário o valor da indemnização recebida (uma vez que é aquela a beneficiária do seguro). Ou seja, em face da perda do bem, o valor da indemnização recebida da seguradora corresponde no fundo à perda do valor económico do contrato, cujas consequências se vão reflectir na tributação a que está sujeito.
Com efeito, a partir do momento da perda do bem, o locatário deixou de poder obter os benefícios da sua fruição e de poder exercer, no final do contrato, o seu direito potestativo de aquisição com base no seu valor residual. Há, assim, como que um ajustamento da sua contrapartida, que é reduzida em razão do valor da indemnização a atribuir pela seguradora à locadora e que corresponde ao valor venal do veículo à data do seu perecimento. Só que a prestação efectuada pela seguradora à locadora não tem natureza remuneratória, como defende a Recorrente, mas sim compensatória da perda do bem, e nessa medida não pode considerar-se que a mesma tem uma função substitutiva da prestação do locatário, sendo certo que subjacente à mesma não está qualquer prestação de serviços ou entrega de bens.
Afigura-se-nos, assim, que este caso é subsumível no n.º 1 da alínea c) do artigo 11.º da Directiva, que dispõe:
1. Em caso de anulação, rescisão, resolução, não pagamento total ou parcial ou redução do preço, depois de efectuada a operação, a matéria colectável é reduzida em conformidade, nas condições fixadas pelos Estados-membros”.
Com efeito, ainda que numa situação com contornos diversos 1 [1 Estava em causa um caso de incumprimento do locatário e em que o veículo foi recuperado e revendido em hasta pública, colocando-se a questão de saber se o locador devia ou não liquidar IVA na parte relativa ao montante recebido pela venda do veículo.], o TJUE já se pronunciou nesse sentido (acórdão de 03/09/2014, proc. C-589/12), ao referir que:
«42 Assim, em caso de não pagamento, total ou parcial, o montante do valor tributável do contrato de locação financeira de um veículo deve ser ajustado em função da contrapartida realmente recebida pelo sujeito passivo no âmbito desse mesmo contrato. A contrapartida recebida por esse sujeito, paga por terceiro no âmbito de outra operação, neste caso a venda em hasta pública do veículo devolvido pelo locatário financeiro, não afecta a conclusão segundo a qual o referido sujeito passivo pode invocar o efeito directo do artigo 11.º, C, n.º 1, primeiro parágrafo, da Sexta Directiva no âmbito do contrato de locação financeira».
Ora, nos termos do artigo 11.º, parte A, n.º 1, alínea a), da Directiva IVA, a matéria colectável é constituída «no caso de entregas de bens e de prestações de serviços... por tudo o que constitui a contrapartida que o fornecedor ou o prestador recebeu ou deve receber em relação a essas operações… .» (artigo 16.º, n.º 1, do CIVA). Nessa medida a matéria colectável no caso concreto está circunscrita ao valor efectivamente pago pelo locatário.
Entendemos, assim, que assiste razão à impugnante e aqui Recorrente, no sentido da ilegalidade da liquidação adicional de IVA impugnada e no vício de erro de julgamento assacado à sentença recorrida, ficando prejudicado o conhecimento da questão da ilegalidade dos juros compensatórios, que nessa medida não são devidos.
Afigura-se-nos, assim, que se impõe a revogação da sentença recorrida, julgando-se procedente o recurso, e em substituição se determine a anulação do acto de liquidação adicional de IVA objecto de impugnação».

1.5 Cumpre apreciar e decidir se a sentença fez errado julgamento ao considerar que se impunha que a ora Recorrente, enquanto locadora de um bem que se perdeu por sinistro e enquanto beneficiária do contrato de seguro que cobria o risco de perda desse bem, liquidasse IVA sobre o montante de todas as rendas vincendas e sobre o valor residual do bem, contratualmente estabelecido, ou, ao invés, se para efeito de liquidação do imposto podia descontar a esses valores, como descontou, o valor da indemnização recebida da seguradora. Dito de outro modo, cumpre averiguar se a sentença fez correcto julgamento quando sufragou a tese da AT, de que é devido IVA pelo valor correspondente à totalidade das rendas vincendas à data da perda do bem acrescido do valor residual


* * *

2. FUNDAMENTAÇÃO

2.1 DE FACTO

A sentença recorrida efectuou o julgamento da matéria de facto nos seguintes termos:

«1. A Impugnante exerce a actividade de crédito a que corresponde o CAE 64923 – cf. relatório de inspecção tributária a fls. 218 a 258 do processo administrativo apenso;

2. No exercício da sua actividade, a Impugnante realiza operações sujeitas a IVA, designadamente operações de locação financeira mobiliária e imobiliária, operações isentas de IVA e operações isentas de IVA que não conferem direito à dedução – cf. relatório de inspecção tributária a fls. 218 a 258 do processo administrativo apenso e factos não controvertidos;

3. A Impugnante celebra contratos de locação financeira de veículos automóveis onde se estipulam as seguintes condições gerais: «Cláusula 2.ª - Obrigações da Locadora A Locadora obriga-se (...) a adquirir o bem descrito nas Condições Particulares (...) a conceder o seu gozo ao Locatário pelo período da locação e a vendê-lo no termo (...), caso o Locatário opte pela sua compra. (...) Cláusula 8.ª - Obrigações do locatário Ao Locatário (…) compete em especial (…) cumprir as seguintes obrigações: (…) k) Efectuar e suportar um seguro de que a Locadora será a beneficiária; (…). Cláusula 10.ª - Procedimento em caso de sinistro do bem (...) 2. Se, por facto fortuito ou de força maior, o bem locado se perder ou deteriorar, observar-se-á o seguinte: a) Se se verificar uma perda total do bem, o contrato de locação financeira considerar-se-á resolvido, ficando o Locatário obrigado a pagar à Locadora o valor do capital ainda não recuperado, acrescido de todos os débitos vencidos e não pagos, bem como dos juros correspondentes ao período compreendido entre o momento em que o contrato caduca até ao integral e efectivo pagamento, calculado de acordo com a taxa do contrato e eventuais prejuízos resultantes da legislação fiscal e de despesas administrativas. Contudo, a este valor deverá ser deduzido o montante recebido pela Locadora por força do contrato de seguro existente sobre o bem» – cf. condições gerais, cujo teor se dá por integralmente reproduzido, a fls. 202 dos autos;

4. Ao abrigo da ordem de serviço n.º OI201000172 de 17/03/2010, a Impugnante foi objecto de procedimento de inspecção tributária de âmbito geral ao exercício de 2008 – cf. relatório de inspecção tributária a fls. 218 a 258 do processo administrativo apenso;

5. No âmbito do procedimento de inspecção tributária referido no ponto anterior, os serviços de inspecção apuraram o seguinte: «III. 1.2.2. - Imposto sobre o Valor Acrescentado - 1.2.2.1. - Imposto em falta - 1.2.2.1.1. - Perdas totais dos bens objecto de locação financeira (arts. 7.º e 8.º e alínea h) do n.º 2 do Art. 16.º, todos do CIVA) - € 176.622,00 - Na actividade de locação financeira, quando existe um sinistro pode ocorrer a perda total dos bens, a qual está prevista contratualmente, e que conduz à resolução do contrato, sendo o locatário obrigado a pagar o somatório das rendas vincendas e valor residual actualizados. Esta norma consubstancia assim o vencimento antecipado das rendas, naturalmente sujeitas a IVA de acordo com o preceituado na alínea a) do n.º 1 do art. 1.º e na alínea h) do n.º 2 do art. 16.º, ambos do CIVA. (...) Da análise dos elementos apresentados (cfr. anexo 17), constatou-se que a A………… IFIC não procedeu à liquidação de IVA sobre o vencimento antecipado (actualizado) do capital em dívida, designadamente rendas vincendas, valor residual e juros, desde a última renda vencida até ao momento da ocorrência da perda total. Porém, de acordo com as condições gerais dos contratos de locação, quando a perda do bem objecto de locação é total, o contrato considerar-se-á resolvido, devendo o locatário pagar ao locador o montante das rendas vincendas e do valor residual actualizado, adicionado das rendas vencidas e não pagas, e o locador entregar ao locatário a indemnização que venha a receber da seguradora. Deste modo o que está em causa não é o valor a restituir pela locadora ao locatário, relativa à indemnização recebida da seguradora, uma vez que não tem subjacente uma operação subjacente a imposto (...), mas sim o valor a pagar à locadora pelo locatário, relativa ao valor das rendas vincendas e valor residual actualizados ao momento da perda total do bem, uma vez que configura uma prestação de serviços face ao n.º 1 do art. 4.º do CIVA. Para o enquadramento da questão da sujeição ou não a IVA das quantias recebidas a título de indemnização, há que ter em conta o princípio subjacente do IVA (...) e que corresponde (...) ao disposto na 6.ª Directiva, pretendendo tributar a contraprestação de operações tributáveis e não a indemnização de prejuízos, que não tenham carácter remuneratório. Assim, são tributáveis em IVA as indemnizações que tenham subjacente uma transmissão de bens ou prestação de serviços, e como tal configuram uma contraprestação a obter do adquirente de uma operação sujeita a imposto, nos termos do (...) n.º 1 do art. 4.º do CIVA. (...) foram pedidos à A………… - IFIC os elementos necessários referentes aos contratos onde se verificou a perda total dos bens, resultantes da resolução dos contratos de locação/ALD de viaturas, designadamente a conta “58990020 - Outras contas de regularização – Isentas” com referência às perdas totais, pelo que o valor total do IVA em falta é de € 176.622,00, de acordo com o preceituado nos Arts. 7.º e 8.º alínea h) do n.º 2 do art. 16.º, todos do CIVA, conforme se discrimina por valor e por período de imposto (cfr. anexos n.º 18, 19 e 25).» – cf. relatório de inspecção tributária, cujo teor se dá por integralmente reproduzido a fls. 218 a 258 do processo administrativo apenso;

6. Na sequência da correcção efectuada em sede de IVA referida no ponto anterior, foram emitidas em nome da Impugnante as liquidações adicionais de IVA n.º 11008483, n.º 11008485, n.º 11008487, 11008489, 11008491, 11008493, 11018885, 11008497, 11008499, 11008501, 11008503, 11008505, do período de tributação de 2008, e as respectivas liquidações de juros compensatórios n.ºs 11008484, 11008486, 11008488, 11008490, 11008492, 11008494, 11018884, 11008498, 11008500, 11008502, 11008504, 11008506, no valor total de € 192.185,80 – cf. liquidações a fls. 161 a 185 dos autos;

7. Em 14/04/2011, a Impugnante apresentou reclamação graciosa das liquidações mencionadas no ponto anterior – cf. petição de reclamação a fls. 4 a 15 do procedimento de reclamação graciosa apenso;

8. A Impugnante apresentou a presente impugnação em 19/12/2011 – cf. carimbo aposto na petição inicial a fls. 2 dos autos;

9. Por despacho de 27/02/2012 a reclamação graciosa referida no ponto 7. foi indeferida – cf. despacho e informação a fls. 132 a 144 do procedimento de reclamação graciosa apenso.


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Nada mais se provou com interesse para a decisão da causa».

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2.2 DE FACTO E DE DIREITO

2.2.1 AS QUESTÕES A APRECIAR E DECIDIR

2.2.1.1 Na sequência de uma inspecção tributária, a AT considerou que, durante o ano de 2008, a sociedade ora recorrente, no âmbito da sua actividade de locação financeira de veículos, com referência aos casos em que se verificou a perda total dos bens locados por acidente, deixou de liquidar IVA, como deveria ter feito, pelo «somatório das rendas vincendas e valor residual actualizados», cujo pagamento entendeu ser devido (para além das rendas vencidas e não pagas) pelo locatário à locadora, ora Recorrente, nos termos dos contratos de locação financeira por esta celebrados. Considerou ainda que, nos termos dos mesmos contratos, deve o «locador entregar ao locatário a indemnização que venha a receber da locadora». Mais considerou, em conclusão, que «o que está em causa não é o valor a restituir pela locadora ao locatário, relativa à indemnização recebida da seguradora, uma vez que não tem subjacente uma operação subjacente a imposto (...), mas sim o valor a pagar à locadora pelo locatário, relativa ao valor das rendas vincendas e valor residual actualizados ao momento da perda total do bem, uma vez que configura uma prestação de serviços face ao n.º 1 do art. 4.º do CIVA». Por isso, procedeu à liquidação adicional do imposto que considerou em falta, acrescida dos respectivos juros compensatórios.
Ou seja, a tese da AT assenta no pressuposto de que, nos termos dos contratos de locação financeira que a ora Recorrente celebra, enquanto locadora, a perda total do bem tem como efeito a resolução do contrato, vencendo-se então todas as rendas vincendas e do valor residual actualizados (adicionados das rendas vencidas e não pagas), a cujo pagamento fica adstrito o locatário e, por outro lado, a locadora (ora Recorrente) fica obrigada a entregar ao locatário a indemnização que venha a receber da seguradora.
Assim, se bem interpretamos a tese da AT, esta entende que o IVA que ficou por liquidar (e deu origem à liquidação impugnada) não se refere às indemnizações recebidas pela ora Recorrente, enquanto beneficiária dos contratos de seguro celebrados pelos locatários para cobrir o risco de perda total dos veículos locados; o que a AT entende é que, na sequência dessa perda total, nos termos dos contratos de locação, são devidas pelos locatários todas as rendas vincendas, bem como o valor residual, e é sobre estes valores que a ora Recorrente deixou de liquidar IVA, que é devido nos termos dos arts. 1.º, n.º, alínea a), 4.º, n.º 1, 16.º, n.ºs 1 e 2, alínea h), 18.º, n.º 1, alínea c), todos do CIVA.

2.2.1.2 A sociedade ora Recorrente reagiu contra essa liquidação, primeiro mediante reclamação graciosa e, decorrido o prazo legal para apreciação desta, através de impugnação judicial. Sustentou, em síntese, que a perda total dos veículos dados em locação, nos termos dos respectivos contrato, determinam a resolução deste e o apuramento do valor final da responsabilidade do locatário, que é determinado pela diferença entre o valor do capital em dívida e o valor da indemnização recebida por ela, enquanto locadora, no âmbito do contrato de seguro que cobre o risco de perda do bem e de que é beneficiária. Se o valor apurado for positivo, o mesmo é facturado ao locatário e sobre o mesmo é liquidado o IVA; mas, contrariamente ao que sustenta a AT, inexiste obrigação de a locadora entregar o montante da indemnização ao locatário, sendo, por isso, insustentável a tese de que arranca a liquidação impugnada, de que o locador paga a totalidade das rendas vincendas, ignorando a redução desse montante pelo valor da indemnização paga pela seguradora.
Assim, pediu a anulação das liquidações.
Subsidiariamente, pediu a anulação dos juros compensatórios liquidados, com o fundamento de que «a divergência qualificativa entre a Administração Tributária e a Recorrente é compreensível e desculpável», motivo por que falta à liquidação desses juros o pertinente elemento subjectivo, exigido pelo art. 35.º da Lei Geral Tributária (LGT).

2.2.1.3 A Juíza do Tribunal Tributário de Lisboa julgou improcedente a impugnação judicial.
A sentença identificou a questão a dirimir como sendo a de saber «se os actos de liquidação adicionais de IVA e dos respectivos juros compensatórios, do exercício de 2008, ora impugnados, devem ser anulados por se verificar que, no âmbito dos contratos de locação financeira de veículos automóveis celebrados entre a Impugnante e os seus clientes e nos casos em que se verifica uma perda total do bem locado, só existe obrigação de liquidar IVA nos casos em que se apure que o valor do capital em dívida no momento da perda total do bem é superior ao valor da indemnização recebida pela Impugnante por força do contrato de seguro sobre o bem destruído».
Após diversos considerandos em torno do IVA e o contrato de locação financeira, considerou a Juíza do Tribunal a quo, em síntese, que nos termos dos contratos de locação financeira celebrados pela ora Recorrente, esta, em caso de perda total do veículo locado, recebe do locatário a totalidade das rendas vincendas, devendo liquidar o respectivo IVA. Mais considerou que, só depois desse pagamento, a locadora (ora Recorrente) procede a um «encontro de contas com o locatário», entregando-lhe o valor da indemnização que recebeu da seguradora, sobre o qual não é devido IVA.
Assim, louvando-se num acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, que citou (Acórdão da Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Sul proferido em 25 de Junho de 2020, no processo n.º 1552/11.5BELRS, disponível em
http://www.dgsi.pt/jtca.nsf/-/3907684e923d0ede80258593005260da.), concluiu que a Impugnante deveria ter liquidado IVA relativamente à totalidade das rendas vincendas, imediatamente devidas com a perda total do veículo.
Por isso, julgou improcedente a impugnação judicial.
Quanto à liquidação dos juros compensatórios, após diversos considerandos sobre a natureza dos mesmos, concluiu a sentença recorrida que «nos presentes autos a Impugnante não logrou provar que as liquidações adicionais de IVA impugnadas enfermavam de erro nos pressupostos de facto e de direito inerentes à tributação, conforme acima exposto, sendo devido o referido imposto na sua totalidade, devem as liquidações dos juros compensatórios ser, também, mantidas na ordem jurídica».

2.2.1.3 Inconformada com essa sentença, a Impugnante dela recorreu para este Supremo Tribunal Administrativo.
Lidas as alegações de recurso e respectivas conclusões, verificamos que discorda do entendimento adoptado e mantém a posição sustentada na petição inicial.
Subsidiariamente, discorda ainda do julgamento quanto à legalidade da liquidação dos juros compensatórios, reiterando que não se verifica o elemento subjectivo imprescindível para que seja condenada no seu pagamento.

2.2.1.4 Podemos, pois, assentar que não há divergência entre a AT e a Recorrente relativamente à não tributação em IVA das indemnizações por ela recebidas enquanto beneficiária dos contratos por que os locatários transferem para uma seguradora o risco (Risco que o art. 15.º do Regime Jurídico do Contrato de Locação Financeira, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 149/95, de 24 de Junho, põe a cargo do locatário, sem prejuízo de convenção em contrário.) pela perda total do veículo objecto da locação financeira (Sobre a questão, vide os seguintes acórdãos desta Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:
- de 31 de Outubro de 2012, proferido no processo com o n.º 1158/11, disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/-/5e37217e3bac849b80257ab60042945a;
- de 1 de Julho de 2020, proferido no processo com o n.º 1595/10.6BELRS, disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/-/6054af36aad4a89b8025859f0046ad53.) .
A questão que ora cumpre apreciar e decidir, como bem assinalou o Procurador-Geral-Adjunto neste Supremo Tribunal, respeita aos reflexos do recebimento da indemnização paga pela seguradora à ora Recorrente (enquanto locadora) no montante a pagar a esta pelo locatário após a perda total do veículo: é a de saber se o valor da prestação devida pelo locatário à locadora na sequência da perda total do veículo se reduz, ou não, na medida correspondente ao valor da indemnização paga pela seguradora à locadora e, assim, se a sentença fez correcto julgamento ao considerar que é devido IVA pela totalidade das rendas vincendas.
Caso a resposta seja negativa, haverá ainda que averiguar se a liquidação dos juros compensatórios enferma de violação de lei por inexistência do elemento subjectivo – censurabilidade a título de dolo ou negligência do sujeito passivo – exigido pelo art. 35.º da LGT e pelo art. 89.º do CIVA.

2.2.2 DA TRIBUTAÇÃO EM IVA

Da exposição que deixámos feita, resulta inequívoco que, salvo o devido respeito, a tese da sentença assenta num pressuposto de facto que, no caso, não está verificado, qual seja o de que a locadora, ora Recorrente, está obrigada a entregar aos locatários o montante por ela recebida da seguradora como indemnização pela perda do veículo dado em locação.
A verdade é que a indemnização recebida pela locadora no âmbito do contrato de seguro tem carácter indemnizatório e não pode considerar-se como remuneração da locadora pelo contrato de locação financeira ou pela cessação do mesmo. De igual modo, não pode considerar-se que o valor em causa deveria ser entregue pela locadora ao locatário que, por seu turno acertaria as contas com a locadora. Vejamos:
Como ficou dito no acórdão deste Supremo Tribunal de 31 de Outubro de 2012, proferido no processo com o n.º 1158/11 (Vide nota anterior.), «[…] No âmbito dos citados contratos o locatário é obrigado a segurar o veículo locado contra o risco da sua perda ou deterioração, nos termos da alínea j) do n.º 1 do art. 10.º do Decreto-Lei n.º 149/95, de 24 de Junho. O contrato de seguro é celebrado com o locatário (tomador do seguro), o qual paga os prémios respectivos, sendo beneficiária a locadora (art. 10.º n.º 1, al. j), Decreto-Lei n.º 149/95, 24 Junho).
Em caso de perda total do veículo, verificando-se a condição resolutiva do contrato, a companhia seguradora paga à locadora beneficiária as quantias correspondentes às indemnizações, de acordo com o capital constante das apólices.
Por conseguinte, em ambas as situações a responsabilidade pelo seguro pertence ao cliente, mas contratualmente a indemnização é paga directamente pelas seguradoras à locadora que, posteriormente, procede ao encontro de contas com o locatário, restituindo ou exigindo a diferença, caso o valor da indemnização recebida seja respectivamente superior ou inferior ao capital afecto.
Do quadro jurídico exposto, verifica-se que a locadora obriga-se a prestar um serviço traduzido na disponibilidade do veículo ao locatário recebendo como contrapartida uma prestação. Em caso de acidente com perda do veículo, este evento implica a resolução automática do contrato de locação e, por conseguinte, a interrupção da relação sinalagmática existente entre locadora e locatário.
Neste caso, há que distinguir entre a prestação que o locatário paga à locadora e que respeita ao montante de eventuais rendas vencidas e não pagas e respectivos juros de mora e aquela que vai ser paga pela seguradora.
Na primeira situação, a prestação em causa ainda tem a sua fonte no contrato (rendas já vencidas e respectivos juros) e, por conseguinte, na relação sinalagmática que existia entre locador e locatário, que está normalmente sujeita a IVA, porquanto a locação financeira configura a cedência, mediante retribuição, do gozo temporário de uma coisa móvel ou imóvel, pelo que constitui uma prestação de serviços sujeita a imposto, nos termos do n.º 1 do art. 4.º do CIVA.
Na verdade, aplicando ao caso o que ficou dito sobre o critério identificador do conceito de indemnização remuneratória, vemos que nas relações entre locador e locatário havia uma relação sinalagmática e onerosa enquanto a locadora propiciava ao locador, no âmbito do contrato de locação, o uso do veículo.
Já no que respeita à segunda situação as coisas são diferentes.
Com o acidente dá-se a intervenção de um evento externo que interrompe essa relação e constitui a causa da indemnização a pagar pela seguradora à locadora. Aplicando a doutrina do Parecer da Comissão Europeia, o pagamento a efectuar pela seguradora é motivado por um evento exógeno que não está de modo algum relacionado com a operação tributável que constitui a locação do veículo.
Por outro lado, a indemnização não cobre o ganho que a recorrida teria se o contrato chegasse ao fim, uma vez que, como resulta do probatório (ponto N), a recorrida não exigia o pagamento de quaisquer juros vincendos devidos até ao final do contrato e que seriam liquidados se o contrato fosse cumprido.
Pelo contrário, o valor pago pela seguradora visa apenas indemnizar a recorrida do capital afecto às operações, compensando-se da saída do seu activo dos bens que se perderam. Dito por outras palavras, o que está coberto pelo seguro não são os contratos de leasing ou de aluguer de longa duração, mas os veículos, que constituem o objecto da actividade da recorrida, tendo a indemnização em causa o propósito de reparar o prejuízo sofrido pela locadora na sequência da perda dos veículos, substituindo os bens perdidos em espécie pelo valor equivalente em termos monetários.
Não assiste razão à recorrente quando alega que “a indemnização paga pela seguradora deveria ser entregue ao locatário que, por sua vez, acertaria as contas com a locadora. Ora, assim sendo, apenas na óptica da esfera jurídica do locatário os montantes entregues pela seguradora podem ser qualificados com a natureza de indemnização”.
Ao contrário do alegado pela recorrente, afigura-se que a natureza da indemnização não depende dos sujeitos intervenientes, mas sim da causa e do objecto que a mesma visa reparar. Isto é, o facto de o risco referente à perda total dos veículos ter sido transferido para um terceiro não altera a natureza da indemnização, seja esta paga pela seguradora ou directamente pelo particular, o que releva é que a mesma é devida pelos clientes da entidade que loca/aluga automóveis e tem como propósito reparar o prejuízo sofrido por aquela em caso de sinistro com perda total dos veículos.
Na verdade, a perda do veículo não pode deixar de ser considerado um prejuízo sofrido pela locadora, derivado do acidente, e que terá impacto na sua actividade como um todo, visando a indemnização reparar esse dano.
Assim sendo, por força da sua natureza é evidente que os montantes recebidos a título de indemnizações de risco coberto por contrato de seguro, na parte em que se destinem a reparar o dano consubstanciado na perda do veículo (ou do capital utilizado para a sua aquisição) não podem estar sujeitos a IVA, uma vez que não tem associado qualquer transmissão de bens ou prestação de serviços (relação sinalagmática), mas tão só carácter ressarcitório.
Em conformidade com a jurisprudência deste Supremo Tribunal, vazada, entre outros, no Acórdão do STA de 18/6/2008, proferido no proc. 01144/06, tratando-se de uma compensação por prejuízos, se a indemnização sanciona a lesão de qualquer interesse, sem carácter remuneratório, não pode ser tributada em IVA, na medida em que não tem subjacente uma transmissão de bens ou prestação de serviços.”
No mesmo sentido, para além da doutrina da Comissão Europeia, seguida na sentença recorrida, se pronunciou o Conseil d’État, num caso em que estava em causa uma empresa que tinha como actividade o aluguer de longa duração de veículos automóveis de turismo e que no âmbito dos contratos celebrados os clientes transferiam igualmente para companhias de seguro o risco da perda dos referidos veículos.
O tribunal recorrido considerou que a referida indemnização visava compensar os prejuízos comerciais correntes e correspondentes à álea normal inerente à actividade exercida por este tipo de empresas, devendo tais indemnizações ser entendidas e ratadas como «elementos do preço pago pelos locatários como contrapartida das prestações de serviços que lhe eram fornecidos».
Pelo contrário, o Conseil d’ État (Acórdão de 29 de Julho de 1998 (Conseil d’État statuant au contentieux, n.º 146333).) considerou que as indemnizações pagas à locadora, no seguimento dos contratos de seguro que os clientes estavam contratualmente obrigados a fazer para cobrir o rico da perda dos veículos, representando o valor venal dos mesmos antes da perda, não tinham como efeito remunerar a empresa locadora na sequência da prestação inerente ao contrato de locação nem em resultado da interrupção prematura do mesmo. Pelo contrário, entendeu aquela instância que, no caso, tratava-se de indemnizar o incumprimento por parte dos locatários da obrigação de restituir o bem locado no fim do contrato, pelo que tais indemnizações haviam sido indevidamente qualificadas pelo tribunal recorrido como contrapartida de prestações de serviços efectuadas a título oneroso.
Em face de tudo o que vai exposto, somos de concluir, em conformidade com o consignado no douto Parecer do Ministério Público, segundo o qual é preciso distinguir:
a) A indemnização paga pela seguradora, “(…) destinada à compensação do dano causado pela perda do bem”, a mesma deve considerar-se excluída da incidência objectiva de IVA, “na medida em que não assume a natureza de contraprestação pela transmissão de um bem ou prestação de um serviço (arts. 1.º n.º 1, 4.º n.º 1 e 16.º n.º 1 CIVA)”;
b) As quantias pagas pelo locatário à locadora, sendo pagas “complementarmente à locadora pelos locatários não revestem natureza ressarcitória (porque não se destinam à compensação de perdas e danos) antes radicam no cumprimento de obrigações contratualmente assumidas (em cada uma das categorias de contratos em causa). Tendo estes contratos a natureza de contratos de prestação de serviços, aquelas quantias representam, ainda, contraprestações de operações tributáveis em IVA”».
Dito de outro modo, a prestação efectuada pela seguradora à locadora não tem carácter substitutivo da prestação do locatário, não tem natureza remuneratória, na medida em que não tem subjacente qualquer prestação de serviços ou entrega de bens.
O que significa que, para efeitos de IVA, no caso, a matéria tributável está circunscrita ao valor efectivamente pago pelos locatários (contrapartida realmente recebida pelo sujeito passivo no âmbito do contrato de locação financeira) – seja a título de rendas, seja a título de valor residual – e nela não se inclui o valor que a Recorrente recebeu directamente da seguradora por força do contrato de seguro em que figura como beneficiária da indemnização por perda total do bem locado por acidente.
Consideramos, pois, que a sentença, que decidiu com base em entendimento contrário ao que ora deixámos exposto, não pode manter-se, devendo ser revogada e a impugnação judicial julgada procedente, com a consequente anulação da liquidação impugnada, tudo como se decidirá a final.
Anulada a liquidação, fica prejudicada a questão da legalidade dos juros compensatórios.

2.2.3 CONCLUSÕES

Preparando a decisão, formulamos as seguintes conclusões:
I - As indemnizações pagas no âmbito de um contrato celebrado entre o locatário e a seguradora e que tem a locadora como beneficiária, destinadas a compensar os danos causados pela perda total dos bens locados, em caso de acidente, porque não assumem a natureza de contraprestação pela transmissão de um bem ou prestação de um serviço [cf. arts. 1.º, n.º 1, 4.º, n.º 1 e 16.º, n.º 6, alínea a), do CIVA], nem visam suportar lucros cessantes das recorridas, devem considerar-se excluídas da incidência de IVA.
II - No caso de perda total por sinistro dos veículos objecto de contrato de locação financeira, não pode a AT pretender que a locadora devia ter liquidado imposto sobre a totalidade dos montantes das rendas vincendas e do valor residual dos veículos, mesmo na parte em que esses montantes não foram efectivamente cobrados aos locatários, por os veículos estarem a coberto de contrato de seguro e, por isso, o respectivo valor lhe ter sido directamente pago pelas seguradoras e, nessa medida, reduzida a contraprestação devida pelo locatário.


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3. DECISÃO

Em face do exposto, os juízes da Secção do Contencioso Tributário deste Supremo Tribunal Administrativo acordam, em conferência, em conceder provimento ao recurso, revogar a sentença recorrida e, julgando a impugnação judicial procedente, anular a liquidação impugnada na medida em que nesta se consideraram sujeitos a tributação os montantes das rendas vencidas e valor residual na parte em que esses montantes não foram efectivamente cobrados aos locatários por estarem a coberto das indemnizações que as seguradoras pagaram directamente à Recorrente em função da perda dos automóveis.

Custas pela Recorrida [cf. art. 527.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil, aplicável ex vi da alínea e) do art. 2.º do CPPT], que não paga taxa de justiça neste Supremo Tribunal, uma vez que não contra-alegou o recurso.


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Lisboa, 12 de Maio de 2021. - Francisco António Pedrosa de Areal Rothes (relator) - Joaquim Manuel Charneca Condesso - Paulo José Rodrigues Antunes.