Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0118/21.6BEMDL
Data do Acordão:11/10/2021
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:GUSTAVO LOPES COURINHA
Descritores:INCOMPETÊNCIA ABSOLUTA
QUESTÃO DE MÉRITO
Sumário:Não vertendo a sentença recorrida sobre o mérito da questão então peticionada pela Reclamante, ora Recorrente, demonstra-se a existência de um obstáculo à competência do Supremo Tribunal Administrativo para apreciar o recurso, em conformidade com o disposto no supra citado artigo 280.º, n.º 1 do CPPT e com o artigo 38.º, alínea a)do ETAF.
Nº Convencional:JSTA000P28468
Nº do Documento:SA2202111100118/21
Data de Entrada:10/07/2021
Recorrente:A............
Recorrido 1:AT – AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Votação:MAIORIA COM 1 VOT VENC
Aditamento:
Texto Integral: Recurso nº 118/21.6BEMDL – urgente

Acordam na Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo


I – RELATÓRIO

I.1 Alegações
A………………., melhor identificada nos autos, vem recorrer da decisão do Tribunal Administrativo e Fiscal de Mirandela proferida 22 de Junho de 2021 que julgou improcedente a reclamação Judicial por ela apresentada contra o despacho proferido pelo Exmo. Sr.ª Chefe do Serviço de Finanças de Adjunta do Serviço de Finanças de Vila Real, no qual indeferiu o requerimento em que era pedido a extinção de 133 processos executivos para cobrança coerciva de taxas de portagem e custas administrativas associadas no valor global de 32.367,95€.
Apresenta as suas alegações de recurso, formulando as seguintes conclusões a fls. 78 a 81 do SITAF:
A) Não se questionam os factos dados como provados na douta sentença sob recurso.
B) Contudo, a douta decisão erra ao julgar procedente a excepção de caducidade do direito de acção.
C) Sendo o prazo para reclamar um prazo judicial nos termos do art.º 20.º, n.º 2, do CPPT, é-lhe aplicável além do mais, o disposto no art.º 139.º, n.ºs 5 e 6, do CPC.
D) Tendo terminado o prazo para reclamar no dia 10 de Fevereiro de 2020 e tendo a reclamação sido apresentada no dia 12 de Fevereiro do mesmo ano, foi-o no segundo dia útil após o termo daquele prazo.
E) Assim, poderia a ora Recorrente ter apresentado a reclamação na data em que o fez, ainda que condicionada a sua validade ao pagamento de uma multa de 25% da taxa de justiça correspondente ao processo, de imediato ou após a notificação para esse efeito pela secretaria, sendo neste caso a multa acrescida de uma penalização de 25 %.
F) Não tendo a Recorrente procedido de imediato àquele pagamento, deveria a secretaria proceder à referida notificação.
G) A douta sentença sob recurso, ao considerar que a apresentação da reclamação no dia 12 de Fevereiro de 2020 foi extemporânea, sem curar de determinar que a secretaria procedesse à notificação a que se refere o n.º 6 do art.º 139.º do CPC, interpretou e aplicou erradamente o disposto no art.º 277.º do CPPT, em conjugação com o disposto no art.º 139.º, maxime, n.ºs 5 e 6. do CPC.

I.2 – Contra-alegações
Não foram proferidas contra alegações no âmbito da instância.

I.3 – Parecer do Ministério Público
O Ministério Público emitiu parecer com o seguinte conteúdo:
“Nos termos do nº1 do artigo 280º do CPPT, das decisões dos tribunais tributários de 1ª instância só cabe recurso, per saltum, para o Supremo Tribunal Administrativo, nos casos em que a decisão proferida for de mérito e o recurso se fundamente, exclusivamente, em matéria de direito (na redacção introduzida pela Lei nº 118/2019, de 17 de setembro, aplicável neste caso).
No caso concreto dos autos a sentença recorrida não conheceu do mérito da ação, atento que a ação foi considerada intempestiva pelo tribunal "a quo", que julgou verificada a caducidade da ação e absolveu a demandada do pedido.
Assim sendo e sem prejuízo dos demais requisitos do recurso, mostra-se competente para a sua apreciação o Tribunal Central Administrativo do Norte, por ser o TCA com jurisdição na área territorial do TAF de Mirandela.
Em face do exposto, afigura-se-nos que deve ser excecionada a incompetência hierárquica deste tribunal e o processo ser remetido para o TCA Norte.”

I.4 - Com dispensa de vistos, dada a natureza urgente do processo, cabe apreciar.


II - FUNDAMENTAÇÃO

II.1 – De facto
O tribunal a quo deu como provada a seguinte matéria de facto:
1. Por despacho datado de 23/1/2020, a Srª Chefe de Finanças Adjunta do Serviço de Finanças de Vila Real indeferiu o requerimento em que a aqui reclamante pediu a extinção de 133 processos executivos para cobrança coerciva de taxas de portagem e custas administrativas associadas, por considerar que os mesmos não se referem a créditos tributários e, como tal, não se encontrariam abrangidos pela exoneração do passivo restante, definitivamente decretada no processo de insolvência n.º 1169/13.0TBVRL – Fls. 1, 2, 20 a 23, do segmento que o SITAF numera como fls. 3-28;
2. Em 29/1/2020 foi notificada da decisão de indeferimento aqui reclamada, na pessoa do seu mandatário através de carta registada com Aviso de Recepção – Fls. 24 e 25 do segmento que o SITAF numera como Fls “3-28”;
3. Em 12/2/2020 a Reclamante deu entrada com a presente reclamação – Fls. 1 do segmento que o SITAF numera como fls. “33-46”.

II.2 – De Direito
I. Vem o presente recurso interposto da douta sentença proferida pelo TAF de Mirandela que absolveu a Fazenda Pública do pedido, em virtude da reclamação apresentada pela ora Recorrente, no dia 12 de Fevereiro de 2020, ter sido deduzida fora do prazo.
Inconformada como assim decidido, a recorrente invoca erro de julgamento da matéria de direito, no sentido em que a douta decisão ao considerar extemporânea a reclamação por ela apresentada no dia 12 de Fevereiro de 2020, interpretou e aplicou erradamente o disposto no art.º 277.º do CPPT, em conjugação com o disposto no art.º 139.º, n.ºs 5 e 6 do CPC.

II. Remetidos os autos a este Supremo Tribunal, veio o MP suscitar no seu Parecer, a fls. 105 do SITAF, a questão prévia da incompetência, em razão da hierarquia deste Supremo Tribunal, para conhecer o presente recurso.
Notificadas para se pronunciarem acerca do teor deste Parecer, as Partes nada vieram dizer aos autos.
Assim sendo, nos termos do presente recurso, importa começar por responder à questão seguinte: será este tribunal competente para conhecimento das questões apresentadas no presente Recurso ?

III. A competência deste Supremo Tribunal encontra-se fixada, no que ora interessa aos autos, nos termos do artigo 280.º, n.º 1 do CPPT (na redação introduzida pela Lei n.º 118/2019, de 17 de Setembro) e do artigo 26.º, alínea b) do ETAF (na redação introduzida pela Lei n.º 114/2019, de 12 de Setembro).
Segundo a solução ali prevista, a competência deste Supremo Tribunal está apenas circunscrita ao recurso, com exclusivos fundamentos de Direito, de decisões que tenham conhecido do mérito.
É o que se extrai do primeiro daqueles dispositivos: “Das decisões dos tribunais tributários de 1.ª instância cabe recurso, a interpor pelo impugnante, recorrente, executado, oponente ou embargante, pelo Ministério Público, pelo representante da Fazenda Pública e por qualquer outro interveniente que no processo fique vencido, para o Tribunal Central Administrativo, salvo quando a decisão proferida for de mérito e o recurso se fundamente exclusivamente em matéria de direito, caso em que cabe recurso para a Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo.

IV. Tais alterações legislativas em matéria competencial encontravam-se em vigor à data da prolação da sentença recorrida.
Com efeito, a data da prolação da sentença recorrida encontra-se fixada no dia 22 de Junho de 2021, momento em que já se encontravam em vigor e produziam efeito as novas redações introduzidas por aquelas Leis.

V. Ora, no contexto do presente Recurso e pela leitura das Conclusões das Alegações, logo se constata que a questão levantada configura uma manifesta questão de Direito, sobre o sentido interpretativo a dar às normas aplicáveis em sede de contagem dos prazos de caducidade do direito de acção.
Todavia, já não se pode entender que a sentença recorrida se tenha pronunciado acerca do mérito do ali peticionado, tendo-se limitado o segmento decisório da mesma ao reconhecimento da dedução extemporânea da reclamação.
Assim, ao pronunciar-se acerca da intempestividade da reclamação apresentada pela ora Recorrente, o Tribunal recorrido não conheceu de mérito, como impõem as regras de competência aplicáveis, mas antes acerca de uma exceção peremptória, a qual, sendo julgada procedente, obsta ao efeito jurídico dos factos articulados pela Recorrente e importa a absolvição do pedido – cfr. artigo 576.º, n.º 3 do CPC.
Não vertendo a sentença recorrida sobre o fundo da questão então peticionada pela Reclamante, ora Recorrente, deparamo-nos com um obstáculo à competência deste Supremo Tribunal para apreciar o presente recurso, pelo que se declara a incompetência deste Supremo Tribunal e, em conformidade com o disposto no supra citado artigo 280.º, n.º 1 do CPPT e com o artigo 38.º, alínea a) do ETAF, reconhece a competência do Tribunal Central Administrativo Norte, para o qual o Recurso deve ser remetido.


III. CONCLUSÃO
Não vertendo a sentença recorrida sobre o mérito da questão então peticionada pela Reclamante, ora Recorrente, demonstra-se a existência de um obstáculo à competência do Supremo Tribunal Administrativo para apreciar o recurso, em conformidade com o disposto no supra citado artigo 280.º, n.º 1 do CPPT e com o artigo 38.º, alínea a) do ETAF.


IV. DECISÃO
Termos em que acordam os Juízes da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo em julgar procedente a exceção de incompetência absoluta do tribunal, em razão da hierarquia, sendo competente para tanto a Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Norte.

Custas pelo Recorrente, com taxa de justiça em 1 UC.


Lisboa, 10 de Novembro de 2021. - Gustavo André Simões Lopes Courinha (relator) - Anabela Ferreira Alves e Russo (vencida conforme voto infra) - José Gomes Correia.


VOTO DE VENCIDA
Não acompanhamos o julgamento de declaração de incompetência hierárquica do Supremo Tribunal Administrativo por entendermos que somos, nos termos do artigo 280.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), hierarquicamente competentes para conhecer do recurso per saltum interposto para esta Secção de Contencioso Tributário das sentenças que em 1ª instância conhecem de excepções peremptórias, desde que no recurso jurisdicional interposto apenas sejam suscitadas questões de direito.
A sentença que se pronuncia sobre uma excepção peremptória, por ter subjacente a apreciação de factos e o direito invocado, não decide uma questão de forma mas uma questão de fundo ou mérito da causa. Contrariamente ao que ocorre com as excepções dilatórias, fundadas no direito processual, «a excepção peremptória vai buscar o seu fundamento ao direito material: tal como o efeito do facto constitutivo, o dos factos que o impedem, modificam ou extinguem é determinado pelas normas de direito substantivo, constituindo problema de interpretação destas a individualização dos respectivos tipos. Sendo essa a razão pela qual a procedência da peremptória conduz à absolvição do pedido.” (Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Almedina, 4ª edição, 2 volume, página 659-660).
Em suma, a sentença ou o despacho saneador que decidem sobre a procedência de alguma excepção peremptória, que não seja o caso julgado, conhecem do mérito da causa, não ficando tal premissa afectada pelo facto de não existir no actual Código de Processo Civil norma equivalente à que, no revogado Código de Processo Civil de 1961, definia expressamente o conceito de decisão que conhece do mérito da causa (artigo 691.º do CPC/61). Por o elemento histórico determinar que deve continuar a entender-se que as decisões que apreciem (seja no sentido da sua procedência, seja no sentido da sua improcedência) alguma excepção peremptória - como é o caso da caducidade do direito de acção - constituem decisões sobre o “mérito da causa”, por nelas ser realizada uma apreciação do direito invocado, no caso, sobre a existência ou não do direito (neste sentido, António Abrantes Geraldes Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, Abril 2014, págs.158-159). Por subsistirem no ordenamento jurídico-processual, normas que também apontam inequivocamente nesse sentido, como sucede com o artigo 595.º, n.º 1 al. b), do actual CPC (que estabelece que o despacho saneador se destina a conhecer imediatamente do mérito da causa, sempre que o estado do processo permitir a apreciação (i) total ou parcial, do ou dos pedidos deduzidos ou (ii) de alguma excepção peremptória»), com o artigo 576.º do CPC actualmente em vigor (norma que nos faculta a noção legal de excepções dilatórias e peremptórias) já que aí se consigna que as excepções peremptórias, importando a absolvição total ou parcial do pedido, consistem na invocação de factos que impedem, modificam ou extinguem o efeito jurídico dos factos articulados pelo autor, traduzindo um julgamento directamente dirigido à «inexistência do direito» [José Lebre de Freitas/Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, 4ª EDIÇÃO, VOLUME 2, anotação 5. ao artigo 595.º, página 659) e com os artigos 278º, nº 3, 595º nº 1, al. b), e 619º, nº 1 (Ribeiro Mendes, Recursos em Processo Civil – Reforma de 2007, nota 108 a páginas 12).
Acresce que, sendo assim no CPC, se deve entender que também assim o é no CPPT, quer por em matéria de recursos o CPPT remeter expressamente para aquele primeiro diploma (o que implica não apenas uma remissão para a sua tramitação como o acolhimento das concepções dogmáticas que lhe estão subjacentes) quer, porque, como se colhe dos trabalhos preparatórios da reforma empreendida pela Lei n.º 118/2019, de 7-9-2019, a alteração do regime de recurso per saltum para o Supremo Tribunal Administrativo teve precisamente como objectivo cometer à Secção de Contencioso Tributário o mesmo tipo ou âmbito de competências há muito atribuídas quer à Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo (artigo 151.º, n.º 1, 1ª parte do CPTA) quer ao Supremo Tribunal de Justiça (artigo 678.º e 644.º do CPC): «Tendo presente que o artigo 280.º, n.º 1, do CPPT admite o recurso das decisões dos tribunais tributários de 1.ª instância, quando a matéria for exclusivamente de direito, para a Secção do Contencioso Tributário do STA, tornava-se imperioso, não só por uma razão de gestão de recursos, mas também, assumindo o STA como um verdadeiro tribunal de cúpula da jurisdição administrativa, limitar o recurso para a Secção do Contencioso Tributário do STA às situações em que a decisão proferida for de mérito» (RELATÓRIO SUMÁRIO - GRUPOS DE TRABALHO PARA A REFORMA DA JURISDIÇÃO ADMINISTRATIVA E FISCAL, 19/05/2017 -Gabinete da Senhora Secretária de Estado Adjunta e da Justiça).

Anabela Ferreira Alves e Russo