Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:062/06.7BEPRT
Data do Acordão:12/17/2019
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:JOAQUIM CONDESSO
Descritores:CONTRIBUIÇÃO AUTÁRQUICA
FISCALIZAÇÃO CONCRETA DA CONSTITUCIONALIDADE
INCONSTITUCIONALIDADE ORGÂNICA
PRINCÍPIO DA NÃO RETROACTIVIDADE DA LEI
Sumário:I - A Contribuição Autárquica, imposto municipal criado pelo Código da Contribuição Autárquica (aprovado pelo dec.lei 442-C/88, de 30/11; veja-se actualmente o I.M.I. aprovado pelo dec.lei 287/2003, de 12/11), devia considerar-se um imposto sobre o património que incide no valor dos prédios situados no território de cada município, dividindo-se, de harmonia com a classificação dos mesmos prédios, em rústica e urbana. O sujeito passivo da relação jurídico-tributária de contribuição autárquica era aquele que em 31 de Dezembro do ano a que diz respeito o tributo tenha o uso e fruição do prédio, seja proprietário ou usufrutuário, e a matéria colectável do imposto (pressuposto objectivo genérico de qualquer relação jurídico-tributária) era constituída pelo valor tributável dos prédios, o qual consistia no valor do rendimento anual produzido pelos imóveis.
II - O vício de inconstitucionalidade orgânica consubstancia-se na violação das normas de competência para a formação dos actos legislativos, no caso o processo de formação do artº.32, nº.2, do dec.lei 287/2003, de 12/11.
III - A Lei 26/2003, de 30/07, da Assembleia da República, conferiu ao Governo a necessária autorização para a aprovação do C.I.M.I., tal como de um regime transitório, onde veio a enquadrar-se o citado artº.32, nº.2, do dec.lei 287/2003, de 12/11. É que a norma do referido artº.32, nº.2, do dec.lei 287/2003, de 12/11, reproduz, exactamente, a norma do artº.84, nº.2, constante do capítulo VI-Disposições finais e transitórias da Lei de autorização legislativa 26/2003, de 30/07.
IV - No ordenamento jurídico português o princípio da proibição de impostos com natureza retroactiva (o qual contempla, apenas, o tipo de retroactividade autêntica) foi expressamente introduzido no texto constitucional com a revisão constitucional de 1997 (cfr.artº.103, nº.3, da C.R.P.; artº.12, nº.1, da L.G.T.), desta forma explicitando um postulado que já poderia considerar-se como uma decorrência do princípio da protecção da confiança, inscrito no princípio do Estado de Direito (cfr.artº.2, da C.R.P.). Desse modo, não são lícitos constitucionalmente os impostos criados para incidir sobre rendimentos já auferidos ou sobre factos tributários (transacções, etc.) já transcorridos. A forma enfática como a norma está formulada não deixa dúvidas sobre a natureza absoluta desta proibição, dando a todo o contribuinte o direito de se recusar a pagar tal imposto. Nessa medida, o imposto retroactivo (ou qualquer outra norma fiscal retroactiva, desde que desfavorável) é sempre constitucionalmente ilícito. A Constituição fez aplicação à obrigação de pagar impostos - que se traduz sempre numa ablação pecuniária dos contribuintes - do mesmo regime de proibição da retroactividade que vale para as restrições de direitos, liberdades e garantias nos termos do artº.18, nº.3, da C.R.P.
V - De acordo com a doutrina, parece não haver qualquer obstáculo constitucional à consagração da retroactividade da lei tributária mais favorável ao contribuinte, como acontece no caso do artº.32, nº.2, do dec.lei 287/2003, de 12/11. Por outras palavras, a irretroactividade fiscal não é aplicável, por razões substanciais, às normas fiscais que espelhem uma situação de favorecimento fiscal, não interessando as modalidades que este venha a assumir: se de isenção total, se de desagravamento fiscal ou se de exclusão tributária.
(sumário da exclusiva responsabilidade do relator)
Nº Convencional:JSTA000P25344
Nº do Documento:SA220191217062/06
Data de Entrada:05/13/2019
Recorrente:A............ E OUTRO
Recorrido 1:AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: ACÓRDÃO
X
RELATÓRIO
X
A………… E B…………, com os demais sinais dos autos, deduziram recurso dirigido a este Tribunal tendo por objecto sentença proferida pelo Mº. Juiz do T.A.F. do Porto, exarada a fls.78 a 88 do presente processo, a qual julgou improcedente a presente impugnação pelos apelantes deduzida contra os actos de liquidação de Contribuição Autárquica, referentes aos anos de 2001 e 2002 e no valor total de € 5.943,70.
X
Os recorrentes terminam as alegações do recurso (cfr.fls.72 a 77 do processo físico) formulando as seguintes Conclusões:
1-A autorização fixada no âmbito da Lei n.º 26/2003, em concreto, 4) Art 1º encontrava-se subordinada às normas do Capitulo V da lei, em especial ao regime do Art.º 73º o qual dispõe que:
Artigo 73.º
Avaliação de prédios já inscritos na matriz
1 - Enquanto não se proceder a avaliação geral, os prédios urbanos já inscritos na matriz serão avaliados, nos termos do CIMI, aquando da primeira transmissão ocorrida após a sua entrada em vigor, sem prejuízo, quanto a prédios arrendados, do disposto no artigo 75.º
2 - Será promovida uma avaliação geral dos prédios urbanos, no prazo máximo de 10 anos, após a entrada em vigor do CIMI.

2-Tal norma, não concedia autorização para que o Governo estabelecesse um regime transitório que mandasse determinar o valor patrimonial dos imóveis nos anos anteriores ao da data da entrada em vigor do CIMI de acordo com as regras de determinação da base tributável (valor patrimonial), de acordo com as regras do CIMI, como veio a suceder com o Art.º 32º n. 2, do CIMI;
3-Com efeito, a norma em causa, por se referir aos critérios de determinação da base tributável é uma norma de incidência, à qual não pode ser atribuída pelo governo eficácia retroactiva, por se tratar de uma situação de verdadeira incidência do imposto e de determinação de matéria colectável, e como tal, insusceptível de ser considerada como matéria a sanar por via de integração de lacunas, e como tal constitui matéria reservada por imperativo constitucional à lei, e no caso, objecto de reserva legislativa da Assembleia da Republica (Ut Art.º 165º n.º 1 al, i) da C.R.P.);
4-Não se pode estabelecer que duas normas de incidência são iguais porque ambas versam sobre o valor patrimonial do imóvel, abstraindo dos critérios fixados para a determinação do valor patrimonial, que, no domínio do CCA era fixado por referência à extrapolação de um valor locativa anualizado, e no domínio do CIMI, com recurso a factores de natureza económica, como sejam o custo de construção, a área, os factores de localização e de qualidade e conforto, na medida em que a norma de incidência não se resume apenas à concreta redacção do indicado valor patrimonial, mas antes às concretas regras de determinação da base tributável;
5-A douta sentença agora em recurso enferma de erro na aplicação do direito ao confundir as normas de incidência com meras normas procedimentais, e ao fazer tábula rasa das condições fixadas na lei n.º 26/2003 para a criação de um regime transitório de tributação do património;
6-Termos em que deve o presente recurso merecer provimento, com a consequente revogação da decisão proferida, concluindo-se a final pela procedência da impugnação como é de JUSTIÇA.
X
Não foram produzidas contra-alegações no âmbito da instância de recurso.
X
O Digno Magistrado do M. P. junto deste Tribunal emitiu douto parecer no qual termina pugnando pelo não provimento do recurso (cfr.fls.110 e 111 do processo físico).
X
Corridos os vistos legais (cfr.fls.115 do processo físico) vêm os autos à conferência para deliberação.
X
FUNDAMENTAÇÃO
X
DE FACTO
X
A sentença recorrida julgou provada a seguinte matéria de facto (cfr.fls.81 e 82 do processo físico):
1-Em 16.12.2003 o impugnante, A…………, apresentou, junto do Serviço de Finanças da Póvoa do Varzim, declaração para inscrição ou actualização de prédios urbanos na matriz, modelo 1, na qualidade de comproprietário do prédio rústico daquela freguesia, com o artigo ……, onde consta que esta é entregue pelo facto do prédio em causa se encontrar omisso, bem como que a sua passagem a urbano ocorreu em 14.03.1980 - cf. declaração constante de fls. 25 e 26 do Processo Administrativo apenso aos autos;
2-A propriedade do prédio identificado em 1., encontra-se registada a favor dos impugnantes, em regime de compropriedade - cf. comprovativo da declaração para inscrição ou actualização de prédios urbanos na matriz constante de fls. 32 do Processo Administrativo apenso aos autos;
3-Em consequência da declaração id. em 1., em 22.11.2004 ocorreu uma primeira avaliação, para determinação do valor patrimonial tributário - cf. dados de avaliação constantes de fls. 35 e seguintes do Processo Administrativo apenso aos autos;
4-Em 12.08.2005, foi emitida a liquidação n.º 37886547 determinando o valor a pagar de € 5.943,70, o qual inclui duas prestações de Imposto Municipal sobre Imóveis, relativas aos anos de 2001 e 2002, no montante de € 2.744,30 cada uma, mais juros nos montantes de € 131,50 e € 323,60 - cf. detalhe das liquidações constante de fls. 39 do Processo Administrativo apenso aos autos, documento para o qual se remete e cujo teor se dá por integramente reproduzido para todos os efeitos legais;
5-A liquidação id. em 4., deu lugar à emissão das notas de cobrança com os números 2004.001619403 e 2004.001619503 e 2004.001619603 e 2004.001619703, aquelas em nome de A………… e estas em nome de B…………, com os valores de € 3.067,90 e € 2.875,80 e com datas limite de pagamento voluntário em 30.09.2005 e 31.03.2005 - cf. notas de liquidação constantes de fls. 20, 27 e 28 e factos alegado na contestação, artigo 1º, a fls. 33 e seguintes dos autos, sempre numeração referente ao processo físico;
6-Em 04.01.2006 deu entrada neste Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto a presente impugnação judicial - cf. comprovativo de entrega de documento, prévio à petição inicial.
X
A sentença recorrida considerou como factualidade não provada a seguinte: “…Para a decisão da causa, sem prejuízo das conclusões ou alegações de matéria de direito produzidas, de relevante, nada mais se provou…”.
X
Por sua vez, a fundamentação da decisão da matéria de facto constante da sentença recorrida é a seguinte: “…A convicção do tribunal baseou-se na análise dos documentos constantes dos autos, conforme se deixou indicado ao longo dos factos provados, por deles resultarem com toda a clareza bem como pelo facto do seu conteúdo não ter sido posto em causa pelas Partes…”.
X
ENQUADRAMENTO JURÍDICO
X
Em sede de aplicação do direito, a decisão recorrida julgou totalmente improcedente a presente impugnação, mais declarando a legalidade dos actos tributários objecto do processo.
X
Antes de mais, se dirá que as conclusões das alegações do recurso definem, como é sabido, o respectivo objecto e consequente área de intervenção do Tribunal “ad quem”, ressalvando-se as questões que, sendo de conhecimento oficioso, encontrem nos autos os elementos necessários à sua integração (cfr.artº.639, do C.P.Civil, na redacção da Lei 41/2013, de 26/6; artº.282, do C.P.P.Tributário).
Os recorrentes dissentem do julgado alegando, em síntese, que a Lei 26/2003, de 30/07, não concedia autorização para que o Governo estabelecesse um regime transitório que mandasse determinar o valor patrimonial dos imóveis nos anos anteriores ao da data da entrada em vigor do C.I.M.I., de acordo com as regras de determinação da base tributável (valor patrimonial), do mesmo C.I.M.I., como veio a suceder com o artº.32, nº.2, do dec.lei 287/2003, de 12/11, norma que tem eficácia retroactiva. Que a decisão recorrida enferma de erro na aplicação do direito ao confundir as normas de incidência com meras normas procedimentais, não levando em consideração as condições fixadas na Lei 26/2003, de 30/07, para a criação de um regime transitório de tributação do património aplicável à Contribuição Autárquica (cfr.conclusões 1 a 5 do recurso). Com base em tal alegação pretendendo concretizar um erro de julgamento de direito da decisão recorrida.
Examinemos se a decisão objecto do presente recurso comporta tal vício.
Antes de mais, deve constatar-se que o presente processo de impugnação tem por objecto duas liquidações oficiosas de Contribuição Autárquica (cfr.artº.20, nº.2, do C.C. Autárquica), relativas aos anos de 2001 e 2002 e com prazos de pagamento voluntário fixados em 30/09/2005 e 31/03/2006, das quais surgem como sujeitos passivos os recorrentes, A………… e B…………, tudo conforme devidamente se identifica no articulado inicial dos autos (cfr.p.i. junta a fls.11 a 19 do processo físico; documentos juntos a fls.20, 27 e 28 do processo físico; documentos juntos a fls.39 e 45 do processo administrativo apenso).
Apesar disso, do probatório estruturado em 1ª. Instância consta a identificação de uma liquidação, com duas prestações, de Imposto Municipal sobre Imóveis relativo aos anos de 2001 e 2002 (cfr.nºs.4 e 5 do probatório).
Pelo que, ao abrigo do artº.249, do C.Civil, se rectificam os erros materiais acabados de apontar e constantes do nº.4 e 5 do probatório supra, dos mesmos passando a constar duas liquidações oficiosas de Contribuição Autárquica (cfr.artº.20, nº.2, do C.C. Autárquica), relativas aos anos de 2001 e 2002 e com prazos de pagamento voluntário fixados em 30/09/2005 e 31/03/2006, das quais surgem como sujeitos passivos os recorrentes, A………… e B………… (cfr.p.i. junta a fls.11 a 19 do processo físico; documentos juntos a fls.20, 27 e 28 do processo físico; documentos juntos a fls.39 e 45 do processo administrativo apenso).
Avancemos.
A Contribuição Autárquica, imposto municipal criado pelo Código da Contribuição Autárquica (aprovado pelo dec.lei 442-C/88, de 30/11; veja-se actualmente o I.M.I. aprovado pelo dec.lei 287/2003, de 12/11), devia considerar-se um imposto sobre o património que incide no valor dos prédios situados no território de cada município, dividindo-se, de harmonia com a classificação dos mesmos prédios, em rústica e urbana. O sujeito passivo da relação jurídico-tributária de contribuição autárquica era aquele que em 31 de Dezembro do ano a que diz respeito o tributo tenha o uso e fruição do prédio, seja proprietário ou usufrutuário, e a matéria colectável do imposto (pressuposto objectivo genérico de qualquer relação jurídico-tributária) era constituída pelo valor tributável dos prédios, o qual consistia no valor do rendimento anual produzido pelos imóveis (cfr. preâmbulo e artºs.1, 2, 7 e 8, do Código da Contribuição Autárquica; ac.T.C.A.Sul-2ª.Secção, 24/11/2016, proc.6132/12; Pedro Soares Martinez, Direito Fiscal, Almedina, 1996, pág.584 e seg.; Nuno Sá Gomes, Manual de Direito Fiscal, I, Editora Rei dos Livros, 1996, pág.280 e seg.).
Revertendo ao caso dos autos, defendem os recorrentes que as liquidações de Contribuição Autárquica objecto do processo, referente aos anos de 2001 e de 2002, porque baseadas no regime transitório fixado no artº.32, nº.2, do citado dec.lei 287/2003, de 12/11, são ilegais. Mais sustentam que esta é uma norma de incidência, que determina a matéria colectável, ao estabelecer a forma de calcular o imposto, sendo manifesto que tem efeitos retroactivos, atribuídos pelo Governo sem poderes para o efeito. Por último, que o artº.32, nº.2, do dec.lei 287/2003, de 12/11, padece de inconstitucionalidade orgânica, devido a violação da esfera de reserva legislativa da Assembleia da República, não podendo ser aplicada a referida norma nas concretas liquidações do tributo impugnadas, as quais devem ter-se por ilegais.
Encontramo-nos perante alegados vícios de inconstitucionalidade e que buscam uma fiscalização concreta e com características oficiosas. Esta caracteriza-se por ser um controlo que compete a todos os Tribunais, mais tendo natureza difusa e incidental (cfr. artºs.204 e 280, nº.1, da C.R.Portuguesa; ac.S.T.A.-2ª.Secção, 25/11/2015, rec.103/15; ac.S.T.A.-2ª.Secção, 23/10/2019, rec.179/19.8BEPFN; J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa anotada, 4ª. Edição, 2º. Volume, Coimbra Editora, 2010, págs.518 e seg. e 940 e seg.; J. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7ª. Edição, 21ª. Reimpressão, Almedina, 2019, pág.982 e seg.).
Concretamente, o vício de inconstitucionalidade orgânica consubstancia-se na violação das normas de competência para a formação dos actos legislativos, no caso o processo de formação do artº.32, nº.2, do dec.lei 287/2003, de 12/11 (cfr.J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa anotada, 4ª. Edição, 2º. Volume, Coimbra Editora, 2010, págs.910; J. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7ª. Edição, 21ª. Reimpressão, Almedina, 2019, pág.959 e seg.).
Ora, deve vincar-se, ao contrário da posição assumida pelos apelantes, que a Lei 26/2003, de 30/07, da Assembleia da República, conferiu ao Governo a necessária autorização para a aprovação do C.I.M.I., tal como de um regime transitório, onde veio a enquadrar-se o citado artº.32, nº.2, do dec.lei 287/2003, de 12/11. É que a norma do referido artº.32, nº.2, do dec.lei 287/2003, de 12/11, reproduz, exactamente, a norma do artº.84, nº.2, constante do capítulo VI-Disposições finais e transitórias da Lei de autorização legislativa 26/2003, de 30/07, em virtude do que não se compreende a alegação dos recorrentes, quando defendem que o Governo não tinha autorização legislativa para legislar nesse sentido.
Não se verifica, pelos considerandos ora expostos, a alegada inconstitucionalidade orgânica, assim improcedendo este argumento dos apelantes.
Apesar disso, igualmente defendem os recorrentes que o artº.32, nº.2, do dec.lei 287/2003, de 12/11, é uma norma de incidência, que determina a matéria colectável, ao estabelecer a forma de calcular o imposto, sendo manifesto que tem efeitos retroactivos, atribuídos pelo Governo sem poderes para o efeito.
No ordenamento jurídico português o princípio da proibição de impostos com natureza retroactiva (o qual contempla, apenas, o tipo de retroactividade autêntica) foi expressamente introduzido no texto constitucional com a revisão constitucional de 1997 (cfr.artº.103, nº.3, da C.R.P.; artº.12, nº.1, da L.G.T.), desta forma explicitando um postulado que já poderia considerar-se como uma decorrência do princípio da protecção da confiança, inscrito no princípio do Estado de Direito (cfr.artº.2, da C.R.P.). Desse modo, não são lícitos constitucionalmente os impostos criados para incidir sobre rendimentos já auferidos ou sobre factos tributários (transacções, etc.) já transcorridos. A forma enfática como a norma está formulada não deixa dúvidas sobre a natureza absoluta desta proibição, dando a todo o contribuinte o direito de se recusar a pagar tal imposto. Nessa medida, o imposto retroactivo (ou qualquer outra norma fiscal retroactiva, desde que desfavorável) é sempre constitucionalmente ilícito. A Constituição fez aplicação à obrigação de pagar impostos - que se traduz sempre numa ablação pecuniária dos contribuintes - do mesmo regime de proibição da retroactividade que vale para as restrições de direitos, liberdades e garantias nos termos do artº.18, nº.3, da C.R.P. (cfr.ac.T.C.A.Sul-2ª.Secção, 24/09/2015, proc.6960/13; J.J.Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa anotada, 4ª. Edição, 1º. Volume, Coimbra Editora, 2007, pág.1092 e seg.; J.L.Saldanha Sanches, Manual de Direito Fiscal, 3ª. Edição, Coimbra Editora, 2007, pág.186 e seg.).
A norma cuja interpretação é questionada - o artº.32, nº.2, do dec.lei 287/2003, de 12/11, dispõe nos seguintes termos:
“Aos prédios omissos cujo pedido de inscrição na matriz seja apresentado a partir do dia seguinte ao da publicação deste diploma aplica-se o regime de avaliações previsto no CIMI, sendo as liquidações da contribuição autárquica respeitantes aos anos anteriores ao de 2003 efectuadas com base na taxa prevista na alínea c) do n.º 1 do artigo 112.º daquele Código fixada para aquele ano”.

As liquidações em causa nos autos resultam da aplicação do regime transitório constante do dito artº.32, nº.2, do dec.lei 287/2003, de 12/11, de acordo com o qual se apunha o regime de avaliação previsto no novo Código do Imposto Municipal sobre Imóveis aos prédios omissos, cujo pedido de inscrição na matriz fosse apresentado a partir do dia seguinte ao da publicação deste diploma legal, ou seja depois de 13/11/2003, como é o caso (cfr.nº.1 do probatório; cfr.ac.S.T.A.-2ª.Secção, 10/10/2012, rec.661/12).
Será que a norma em causa padece do vício de inconstitucionalidade decorrente da violação do princípio da não retroactividade da lei fiscal supra examinado?
Pensamos que não. Expliquemos porquê.
Face a esta norma, pode acontecer que se esteja perante prédios que já estavam concluídos ou modificados segundo as regras do C.C.Autárquica, antes da entrada em vigor da reforma do património, mas em relação aos quais a declaração para inscrição na matriz seja apresentada depois do início de vigência, isto é, depois da publicação do seu diploma de aprovação, como acontece no caso “sub judice”. Nestes casos, a liquidação do I.M.I. referente a 2003 e da C.Autárquica referente a anos anteriores, se for esse o caso, com os limites dos prazos de caducidade, será efectuada quando o prédio for avaliado, avaliação essa que deverá ser feita com base no novo regime de avaliações (avaliação que parte do valor de mercado do imóvel urbano ((para maiores desenvolvimentos sobre a destrinça entre os modelos de avaliação antes e depois da reforma do património de 2003/2004, vide José Maria Fernandes Pires, Lições de Impostos sobre o Património e do Selo, Almedina, 3ª. Edição, 2016, pág.17 e seg.).) - cfr.artºs.38 e 39, do C.I.M.I.).
Com efeito, para evitar dois tipos de avaliação de prédios urbanos, uma com as regras em vigor no domínio de vigência do C.C.Autárquica e outra com as novas regras de avaliação em relação ao ano de 2003, este artigo prevê uma única avaliação, com aplicação do novo regime previsto no C.I.M.I., mais prevendo que seja aplicável a taxa que cada município vier a fixar, dentro dos limites de 0,2% a 0,5% previstos no artº.112, nº.1, al.c), do C.I.M.I., na redacção vigente em 2003, taxa essa que será aplicada a todo o período abrangido pelas liquidações em causa.
Ainda que, neste caso, se esteja perante a aplicação retroactiva de um novo regime tributário (cfr.J. Silvério Mateus e L. Corvelo de Freitas, Os Impostos sobre o Património. O Imposto do Selo, Lisboa, Engifisco, 2005, pág.84), a verdade é que se trata de um regime mais favorável, dado que as taxas previstas no C.I.M.I. são, significativamente, mais baixas do que as vigentes no âmbito da C.Autárquica (cfr.artº.16, nº.1, al.b), do C.C.Autárquica), prevendo-se uma tributação mais reduzida, não obstante o valor patrimonial tributário poder ser mais elevado do que reverteria da aplicação das regras da avaliação da contribuição autárquica, as previstas no antigo Código da Contribuição Predial e do Imposto sobre a Indústria Agrícola (avaliação segundo o valor do rendimento anual produzido pelo imóvel - cfr.artºs.113 e 125, § 1, do C.C.P.I.I.A., “ex vi” do artº.8, do dec.lei 442-C/88, de 30/11).
E de acordo com a doutrina, parece não haver qualquer obstáculo constitucional à consagração da retroactividade da lei tributária mais favorável ao contribuinte, como acontece no caso em análise. Por outras palavras, a irretroactividade fiscal não é aplicável, por razões substanciais, às normas fiscais que espelhem uma situação de favorecimento fiscal, não interessando as modalidades que este venha a assumir: se de isenção total, se de desagravamento fiscal ou se de exclusão tributária (cfr.J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa anotada, 4ª. Edição, 1º. Volume, Coimbra Editora, 2007, pág.1093; Diogo Leite Campos e Outros, Lei Geral Tributária anotada e comentada, 4.ª Edição, 2012, pág.132; José Maria Fernandes Pires e Outros, Lei Geral Tributária comentada e anotada, 2015, pág.109; António Lima Guerreiro, Lei Geral Tributária anotada, Rei dos Livros, 2000, pág.93; Jorge Bacelar Gouveia, A Irretroactividade da norma fiscal na Constituição Portuguesa, in Ciência e Técnica Fiscal, nº.387, pág.49 e seg., concretamente a pág.71).
Com estes pressupostos, a norma constante do artº.32, nº.2, do dec.lei 287/2003, de 12/11, e as liquidações sindicadas não sofrem do vício que lhe foi imputado pelos recorrentes.
Sem necessidade de mais amplas considerações, nega-se provimento ao recurso e mantém-se a decisão recorrida, embora com a presente fundamentação, ao que se provirá na parte dispositiva do acórdão.
X
DISPOSITIVO
X
Face ao exposto, ACORDAM, EM CONFERÊNCIA, OS JUÍZES DA SECÇÃO DE CONTENCIOSO TRIBUTÁRIO deste SUPREMO TRIBUNAL ADMINISTRATIVO em NEGAR PROVIMENTO AO RECURSO E CONFIRMAR A DECISÃO RECORRIDA que, em consequência, se mantém na ordem jurídica.
X
Condenam-se os recorrentes em custas.
X
Registe.
Notifique.
X
Lisboa, 17 de Dezembro de 2019. - Joaquim Condesso (relator) - Francisco Rothes - Aragão Seia.